RESUMO
Objetivo: Identificar as tensões sociais mais evidentes relacionadas a salvaguarda de cinco bens imateriais em processo de Instrução do Registro localizados na região Nordeste do Brasil de 2005 a 2015.
Método: Utiliza os métodos de pesquisa exploratória segundo os objetivos, documental conforme os procedimentos e a técnica de análise documental para descrição das propostas submetidas e caracterização destas enquanto patrimônio cultural imaterial da Região Nordeste.
Resultado: A partir dos dados analisados, as tensões sociais mais expressivas desdobraram-se acerca dos valores da representatividade, do reconhecimento, da intervenção da comunidade sem um auxílio de uma instituição governamental e de diretrizes jurídicas.
Conclusões: O patrimônio cultural imaterial é composto por um conjunto de práticas e atividades intangíveis que são passíveis de serem recriadas e adaptadas por um grupo social ao longo das gerações. Para garantir a preservação dos bens imateriais, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional dispõe de um processo jurídico-administrativo e social denominado de Instrução do Registro, na qual se operacionaliza a inscrição do bem em um dos livros do Patrimônio Imaterial. Os cinco bens em processo de instrução para registro estudados, são de uma importância inerente para a memória, na formação de identidades, relações sociais, herança coletiva e continuidade histórica.
PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural Imaterial, Instrução do Registro, Iphan, Região Nordeste, Brasil.
ABSTRACT
Objective: Identify the most evident social tensions related to the safeguarding of five immaterial assets in the process of Registration Instruction located in the Northeast region of Brazil from 2005 to 2015.
Methods: It uses the methods of exploratory research according to the objectives, documentary analysis and procedures to describe the proposals submitted and characterize them as intangible cultural heritage of the Northeast Region.
Results: From the data analyzed, the most expressive social tensions unfolded about the values of representativeness, recognition, community intervention without the help of a government institution and legal guidelines.
Conclusions: The intangible cultural heritage is composed of a set of practices and intangible activities that can be recreated and adapted by a social group over generations. In order to guarantee the preservation of intangible assets, the National Institute of Historical and Artistic Heritage has a legal-administrative and social process called Registration Instruction, in which the registration of the asset in one of the books of the Intangible Heritage is made operational. The five properties in the process of registration instruction are of inherent importance for the memory, in the formation of identities, social relations, collective heritage and historical continuity.
KEYWORDS: Intangible Cultural Heritage, Registration Instruction, Iphan, Brazil.
Artigo Original
BENS IMATERIAIS EM PROCESSO DE INSTRUÇÃO PARA REGISTRO NO IPHAN: TENSÕES SOCIAIS EM TORNO DA SALVAGUARDA NA REGIÃO NORDESTE DO BRASIL
Immaterial assets in the process of being registered in the IPHAN: social tensions surrounding the safeguard in the Northeast region of Brazil
Recepção: 02 Fevereiro 2021
Aprovação: 24 Março 2021
Publicado: 30 Abril 2021
O lastro cultural das nações é decorrente de um processo histórico de acumulação e ressignificação do conjunto de suas práticas socioculturais. Sua formação é marcada por elementos subjetivos e objetivos, intencionais ou não, de construções individuais, coletivas e institucionais que permitem identificar o patrimônio produzido e cultivado. Em seu processo histórico de constituição, está em constante transformação por ser resultante de trocas de saberes, experiências, valores, linguagens, representações entre indivíduos, grupos sociais e instituições. Nesse sentido, deve-se compreender a cultura e suas formas de manifestações, como um conjunto de práticas (sociais, religiosas, econômicas, entre outras) que compõem a identidade cultural, ao longo do tempo, de seus produtores e consumidores.
Conforme Veloso (2004), em seu processo histórico, o homem sempre investiu na transmissão de práticas, expressões, conhecimentos, técnicas, representações, crenças e celebrações que fazem parte da sua identidade cultural. No escopo dessas práticas, a cultura está em constante transformação, e as sociedades expressam diferenças culturais, que no decurso da história, acarretam tensões de diversos aspectos: políticos, econômicos, educacionais e sociais. Logo, a constituição do lastro cultural de povos e nações se dá pelos elementos diferenciais da cultura que caracterizam as manifestações práticas socioculturais, carregado de tensões e marcas no espaço e no tempo.
As tensões sociais podem ser compreendidas como conflitos subjetivos que permeiam as interações na sociedade. Convém destacar, que, na contemporaneidade, as tensões sociais direcionadas aos patrimônios culturais, também são conceituados como patrimônios dissonantes. De acordo com Huis et al (2019, p. 8, tradução nossa), patrimônios dissonantes podem ser considerados “[...] como uma qualidade intrínseca de todo o patrimônio que não representa um problema em si [...]”, além de contribuir na abertura de espaços para ações, desafios e lutas do patrimônio contemporâneo. O presente trabalho elucida a perspectiva das tensões sociais, enquanto relacionadas às propostas dos registros do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), para cada bem imaterial analisado.
Embora o campo da cultura seja demasiado amplo, objeto de muitos campos e especialidades do conhecimento, nos interessa aqui compreender os produtos culturais que se constituem como patrimônio cultural. A escolha por esta perspectiva é motivada pela compreensão de que patrimônio cultural incorpora as mais diversas manifestações, que insere a cultura, a herança coletiva e a identidade. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) define Patrimônio Cultural, como sendo “[...] um bem (ou bens) de natureza material e imaterial considerado importante para a identidade de cada país.” (PATRIMÓNIO, 2020, Online)
A perspectiva dos estudos sobre patrimônio cultural que se apresenta na Ciência da Informação é a de lançar elementos de e sobre os bens materiais e imateriais existentes, enquanto registros de informação (em seu sentido lato), para evidenciar suas funções sociais, históricas e memoriais. Os processos de registro desses bens culturais repercutem na atribuição de valor, historicamente construído e transformado, a um conjunto de práticas socioculturais que se desdobram em registros materiais e imateriais. O valor do patrimônio cultural, assim, é notadamente simbólico, sustentado pela importância designada pelos produtores e usuários, sendo delegado por meio das instituições governamentais.
Os bens imateriais, por serem suscetíveis à perda e ao esquecimento, necessitam de políticas que protejam a sua memória (LARAIA, 2004). Diante disso, o presente trabalho tem o objetivo central de identificar as tensões sociais relacionadas à salvaguarda de cinco bens imateriais em processo de Instrução do Registro na Região Nordeste do Brasil, no período de 2005 a 2015 de acordo com o Iphan. Os objetivos específicos são: a) apresentar os atores envolvidos e as propostas submetidas para registro como patrimônio cultural imaterial da Região Nordeste; e b) identificar a mobilização institucional e social em torno da salvaguarda e as razões que sustentam os pedidos de registros das propostas submetidas.
O ato de salvaguardar bens de natureza imaterial, envolve mais do que a ação obrigatória do Estado; envolve também as contribuições da sociedade, suas formas de organização e difusão, entre produtores e usuários dos bens culturais, cabendo ao Estado a garantia compulsória dos recursos públicos para a salvaguarda (LARAIA, 2004). As políticas de proteção em correlação com o registro, respeitam a dinamicidade e mutabilidade de cada bem imaterial, garantido a continuidade histórica do bem no processo de recriação da base social e nos usos e significados atribuídos ao longo do tempo.
Atualmente, existem 27 bens imateriais no Brasil que, desde 2005, estão em fase de processo1, carecendo de uma pesquisa que reconheça a representatividade desses bens que estão há um bom tempo aguardando o parecer final para se tornarem Patrimônio Cultural do Brasil.
O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) criado através da Lei nº 378/1937 no art. 46 (BRASIL, 1937), atual Iphan, tem um escopo de identificação, restauração, conservação, preservação, catalogação, fiscalização e disseminação dos bens culturais em todo o país. Após 63 anos, o cenário voltado para a cultura da “pedra e cal”2 vai além dos bens tangíveis, registrado no Decreto nº 3551/2000 (BRASIL, 2000), que instituiu o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). O PNPI abrange as expressões culturais e tem a missão geral de reconhecer a cultura viva de grupos de indivíduos, a fim de propagar a identidade de seus detentores.
Nesse ínterim, o PNPI passou por adaptações nos últimos anos, sendo evidenciado a vertente inovadora para as políticas culturais nacionais, que é a lógica de participação, ou seja, os detentores têm o direito de se envolverem durante todo o processo de registro, diferentemente como acontece no tombamento. Por consequência, a legitimação dos atores e da sociedade que faz parte do bem imaterial é totalmente dependente para a abertura do processo de registro, que é feito através de abaixo-assinado (CORÁ, 2014).
O Decreto nº 3551/2000 (BRASIL, 2000) que instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial, retrata nuances essenciais para o entendimento do mecanismo legal. O art. 1, § 1º lista quatro tipos de livros de registro, que são: Saberes, Celebrações, Formas de Expressão e Lugares, caso exista algum bem que não se encaixe nos parâmetros dos quatro livros, o § 3º deixa claro uma flexibilização para que outros livros de registro possam ser criados. As partes legítimas mencionadas no art. 2 são: o Ministro de Estado da Cultura, instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, Secretaria de Estado, de Município e do Distrito Federal e sociedades ou associações civis. Cabe destacar que sem o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) não há possibilidade de dar entrada no processo de registro.
Os bens culturais permanecem ao longo de 10 anos registrados no Livro de Registro, como assinala o art. 7 do Decreto nº 3551/2000 (BRASIL, 2000). Após esse período, é feita uma reavaliação do título de Patrimônio Cultural do Brasil em decorrência da dinamicidade, ou seja, um acompanhamento da evolução e se o bem passou por alguma transformação total, atingindo esferas da continuidade histórica até o apagamento dos elementos importantes desse bem. Em caso do bem cultural ter sofrido uma mudança significativa que comprometa a perpetuação dos valores, o bem perde o título, mantendo-se somente o registro como forma de referência cultural de seu tempo.
Os objetivos centrais do instrumento jurídico de proteção do patrimônio imaterial é reconhecer e valorizar o bem cultural, atribuindo valor e legitimando dentro do repertório cultural nacional. O pilar do registro é o respeito a mutabilidade e a dinamicidade do bem. Corá (2014) enfatiza que mesmo havendo uma recognição do papel da comunidade, um desdobramento de outras figuras que detenham do conhecimento do bem é crucial, antes de iniciar o processo de registro.
Sant’Anna (2006) enumera quatro fatores que são intrínsecos nos efeitos do registro, que são: obrigação pública no ato da documentação e no acompanhamento na ação dos bens; o benefício na disseminação e permanência do bem; a manutenção do banco de dados com acesso público e o reconhecimento e valorização da relevância dos bens. Em conformidade ao trecho anterior, Arantes (2009) acrescenta a utilização de uma lista de patrimônio que possa ser datada e visível a todos, para que a sociedade perceba as atividades dos bens diante da realidade social, revelando o caráter vivo do patrimônio imaterial.
O Iphan no que tange ao início da abertura do processo de registro, sugere que haja uma demanda coletiva expressiva. A sociedade nesse caso, precisará se impor sobre o valor do bem imaterial, realizando exposições, montando projetos, dando visibilidade para que exista uma visão conjunta e que revele a motivação dos indivíduos em tornar o bem como uma herança coletiva e construtora da identidade. Corá (2014, p. 183) lembra que a escolha do que será registrado é uma atividade intelectual bastante complexa, que exige uma dedicação por parte do Iphan de “[...] pesquisas preexistentes, risco de continuidade ou até mesmo questões políticas”. Na Figura 1, pode-se notar como o Iphan lista as principais fases durante o processo de registro:

Segundo a entrevista realizada por Corá (2014) com a diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI), no percurso do processo de registro, é feita uma análise minuciosa baseada em critérios centrais, que são:
[...] ser patrimônio imaterial, cumprir todas as determinações do Decreto nº 3.551/2000 e da Resolução nº 1/2006. Em seguida, passa para uma avaliação analítica quanto à pertinência do bem cultural para sua comunidade detentora, a continuidade histórica e o comprometimento dos detentores do bem cultural. Após isso, segue a tramitação legal . . . até o bem ser registrado em um dos Livros de Registro e ser intitulado Patrimônio Cultural do Brasil. (CORÁ, 2014, p. 184, grifo nosso)
A tramitação do processo de registro está elencada em dois instantes, com o requerimento e a instrução técnica do processo administrativo. O desdobramento da solicitação do bem imaterial, requer de muitas ações que tenham um conjunto de documentos bem fundamentados para que o processo encaminhe de maneira eficaz para a instrução do processo administrativo. De acordo com o art. 4 da Resolução nº 01/2006 (IPHAN, 2006), a Figura 2 exemplifica oito documentos importantes para o envio do requerimento:

Constata-se que o ato da tomada de decisão sobre um determinado bem imaterial envolve uma política rigorosa, a fim de garantir a inserção do bem no livro de registro. Ressaltando que, os bens culturais podem estar presentes em mais de um livro, coincidentemente, e o processo de registro de acordo com o art. 9 da Resolução n° 1/2006 (IPHAN, 2006) declara que o prazo avaliativo da pertinência é de 18 meses, podendo ser prorrogada por um período determinado, por meio de justificativa.
Os bens imateriais, além de carregarem valores que cercam a identidade, memória, cultura e história das comunidades detentoras, geram meios de trabalho e renda que possibilitam um estilo de vida melhor para essas pessoas, no qual há um reconhecimento e legitimação do Estado pelos ofícios. Por isso, desde o art. 215, § 1º da Promulgação da Constituição Federal de 1998 (BRASIL, [2016]), acerca da proteção do Estado sobre as manifestações culturais populares, indígenas, afro-brasileiras e incluindo outros grupos que estejam dentro dos parâmetros da Constituição, o tema sobre preservação foi adquirindo uma nova roupagem, como também os estudos voltados para a salvaguarda dos bens imateriais.
A Unesco realizou no dia 17 de outubro de 2003, a 32ª reunião, na qual durante o percurso da conferência, foi aprovada a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial. A Unesco define o ato de salvaguarda no art. 2 como:
Entende-se por “salvaguarda” as medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão - essencialmente por meio da educação formal e não-formal [grifo nosso] - e revitalização deste patrimônio em seus diversos aspectos. (UNESCO, 2003, p. 3)
Nessa conjuntura, o patrimônio imaterial dá oportunidades para que a comunidade detentora participe e acompanhe todo o processo destinado a proteção do bem, para que não só fique nas mãos do Estado, tornando uma política integrada. A transparência da informação através dos sites, bancos de dados, palestras, conferências e cursos, narram a valorização de ouvir e considerar a opinião de tais comunidades como cruciais na salvaguarda.
O Inventário Nacional de Referências Culturais (INCR) que instrumentaliza o art. 8 do Decreto n° 3551/2000 (BRASIL, 2000), além de ser um procedimento de investigação é um dos instrumentos fundamentais na salvaguarda do bem imaterial, pois através do INCR que os critérios voltados para a proteção de bens culturais sofreram uma revisão radical (CAVALCANTI; FONSECA, 2008). O planejamento para a salvaguarda, partiu do inventário ao decorrer do processo de instrução para registro dos bens culturais, diante das tensões e conflitos que convergiram para um diálogo crescente nas propostas e implementação das políticas integradas de salvaguarda nos estados e municípios (CORÁ, 2014).
Conforme Cavalcanti e Fonseca (2008, p. 24), são cinco ações em torno da salvaguarda que podem ser destrinchadas de maneira ampla e diversificada, que são:
Reportando-se à terceira ação, vale ressaltar que no instrumento jurídico de proteção ao patrimônio imaterial, os mestres e executantes não são inseridos no livro de registro pelo Iphan, somente os aspectos intangíveis como o saber fazer e nunca o objeto e o sujeito, visto que ambos não são elementos passíveis de preservação. Contudo, de acordo com a terceira ação, há uma preocupação em valorizar os detentores do bem, pois o patrimônio imaterial parte de uma ação em conjunto, na qual a participação dos mestres e executantes são fundamentais.
Os dossiês elaborados durante o processo de registro, expõem as atividades dirigidas a salvaguarda do bem e, evidenciar os pontos que revelam a heterogeneidade na produção da cultura, a diversidade que não isola, mas agrega valor para o desenvolvimento social. Cada dossiê apresenta ações de salvaguarda distintas, pois cada bem imaterial se configura de uma maneira diferente (CORÁ, 2014). As políticas de proteção em correlação com o registro respeitam a dinamicidade e mutabilidade de cada bem imaterial.
A pesquisa se configura como exploratória, na qual foram selecionados cinco bens imateriais em processo de instrução para registro, que compreendem a região Nordeste do Brasil entre os anos de 2005 a 2015, de acordo com as informações dispostas no site do Iphan. O Quadro 1 abaixo demonstra a relação dos bens escolhidos:

Para estabelecer as tensões sociais em torno da salvaguarda e averiguar o andamento do bem, utilizou-se o Sistema Eletrônico de Informações (SEI)3 do Iphan. A análise documental partiu dos materiais dispostos no sistema pertencentes a cada bem, observando os documentos que deram início ao processo de instrução para registro até a última data registrada.
Na pesquisa bibliográfica sobre os bens, utilizou-se livros impressos e digitais, o site oficial do Planalto e do Iphan para obter os marcos legais, além das bases de dados de periódicos, nas quais destacam-se: Google Acadêmico, Scientific Electronic Library Online, Base de Dados Referenciais de Artigos de Periódicos em Ciência da Informação e Portal da Capes. Ademais, nas investigações sobre os bens imateriais selecionados, os recursos audiovisuais, como documentários através da plataforma Youtube, contribuíram na construção dos resultados.
A categorização dos bens foi realizada a partir do art. 1, § 1° do Decreto n° 3551/2000 (BRASIL, 2000), que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, na qual os bens são classificados em saber, celebração, formas de expressão e lugar. Para organização dos dados e descrição das análises uma matriz no Microsoft Excel foi construída para cada bem imaterial em apreciação pelo Iphan, correlacionando-as com os atores envolvidos, o estado da federação, o ano, o título, as razões do registro, o processo social, as mudanças sociais e o impacto que o bem exerce na sociedade.
A partir da análise documental, foi possível fazer a coleta de materiais no SEI, no qual houve um direcionamento para as especificidades dos bens. Ao organizar os bens recuperados, pôde-se verificar a dinamicidade e complexidade dispostas em torno das tensões sociais e salvaguarda dos bens imateriais.
O roteiro para as análises dos cinco bens imateriais foram: 1) apresentação do bem e os elementos que envolvem a sua identificação; 2) autor(es) do pedido de registro; 3) documentos constantes no processo, com identificação do número do documento e uma breve descrição do item; 4) tensões sociais identificadas com citação dos documentos que as apresentam; e 5) estágio atual do registro.
Durante a década de 30, a feira móvel começou a se estabelecer na rua do comércio, próxima ao sétimo armazém das docas em Salvador, Bahia. Nesta época, ficou conhecida como Feira do Sete, devido sua localização. A proximidade com o cais do porto fez afluir grande número de comerciantes e do público local, vindos de várias partes do estado, principalmente do Recôncavo Baiano. Sendo os Saveiros4, importante instrumento de locomoção para a circulação da economia na região, ocasionaram numa transformação da Feira do Sete em entreposto comercial (QUEIROZ, [20--]).
Contudo, devido à pressão política para a saída da feira do seu local para dar espaço a modernização do Porto de Salvador, houve uma mudança que começou a ser chamada de Feira de Água de Meninos, funcionando numa área além das docas. Um grande incêndio nunca totalmente esclarecido, na década de 60, consumiu a quase totalidade das barracas da feira, praticamente extinguindo-a do Porto de Salvador e causando prejuízos financeiros e sociais gigantescos à época (informação verbal)5. Porém, os feirantes remanescentes iniciaram a mudança de endereço para a Cidade Baixa, entre a Baía de Todos os Santos e a Avenida Oscar Pontes na enseada de São Joaquim, numa área da União, onde conquistaram a permissão de uso do solo e sacramentaram o local e o nome atual como Feira de São Joaquim, em outubro de 1964 (QUEIROZ, [20--]).
De acordo com o documento do processo posto no SEI, datado de 2007, foram levantadas os seguintes indícios das tensões sociais:
Irrelevância da feira numa localização portuária, com o intuito de relocar para uma implementação de um projeto de saneamento básico;
Expansão do porto de Salvador devido a sua relevância econômica;
Requalificação urbana;
Espaço de interesse jurídico da empresa solicitante pactuados em 1996 pela União
Contrato de Arrendamento.
O Iphan, em dezembro de 2007 através de um memorando, informou que ainda aguardava a aprovação do convênio com a Fundação Palmares, para realizar a próxima etapa da pesquisa sobre a feira6.
Uma das tensões sociais que permeiam o bem em questão, está atrelado ao pertencimento da Feira de São Joaquim à uma área non aedificandi7, cuja situação está em desacordo com a Lei Federal n° 6.766/79 (BRASIL, 1979), art. 4, inciso II, alterado pela Lei n° 10.932/04 (BRASIL, 2004), denotado no processo desde 2009, na qual é obrigatória a reserva de uma extensão não edificável de quinze metros de cada lado. A última atualização do processo de instrução foi em 2019 na lista de andamentos, em que foi feito um despache do processo. Diante de toda essa tramitação burocrática, a inserção do bem adquire um tempo mais longo do que previsto no art. 9 da Resolução n° 01/2006 (IPHAN, 2006), que seria apenas de 18 meses.
Fugindo dos riscos ou moldes, o bico singeleza é feito sobre uma trama bastante simples, numa minúscula rede de nós é iniciada com pontos dados usando uma agulha em um pedaço de tecido que funciona de suporte. Os materiais básicos para a confecção são: linha de algodão, agulha e talo fino de coqueiro. O talo do coqueiro é utilizado para segurar e regular as laçadas, que de outra forma seriam dadas soltas no ar. Nesse contexto surgem bicos, mandalas, faixas e têxteis de uso cotidiano ou decorativo (MELO, 2019).
A renda singeleza teve o auge de sua produção e venda nas décadas de 50 e 60, especialmente nas cidades do litoral norte do Estado de Alagoas, como Marechal Deodoro, Água Branca, Viçosa, Paulo Jacinto, Coqueiro Seco e Maceió. Os pedidos de encomendas da Renda Singeleza foram diminuindo, até o ponto de não haver mais nada além das poucas peças feitas para amigos e conhecidos da Dona Marinita. Com a observação de que na cidade Marechal Deodoro, esse saber estava guardado na memória de apenas uma pessoa, Dona Marinita de 80 anos de idade, surge o projeto (Re)Bordando o Bico e Renda Singeleza da Arquiteta Josemary Omena Passos Ferrare, do Curso de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. Instaurado em 2009, a instituição inicial consistiu na perpetuação do modo de fazer Bico e Renda Singeleza para outras pessoas, proporcionando a oportunidade de se manter viva essa prática (MELO, 2019).
Conforme prescrito na documentação presente no sistema, o bem ganhou notoriedade devido ao tombamento, a nível Federal, da sede urbana do município Marechal Deodoro. A Nota Técnica n° 08/2010 (BRASIL, 2010) aponta algumas nuances no trâmite do processo, como:
os formulários enviados a INRC usados de maneira não produtiva;
ausência de fichas de Ofícios e Modo de Fazer para o município de Marechal Deodoro;
revisão do dossiê escrito;
escassez de informações sobre o bem em questão;
tratamento homogêneo dos produtos entregues.
As tensões sociais vão de acordo com a representatividade do bem, visto que alguns embates são devido a migração populacional das áreas litorâneas para o interior (compreensão do trânsito do bem) e principalmente a continuidade histórica, pois na Nota Técnica n° 08/2010 (BRASIL, 2010) é explícito que nas localidades interioranas a Singeleza não é a ocupação principal das mulheres, por consequência da dedicação somente nos períodos da entressafra e como forma de socialização.
A arte santeira no Piauí teve início por volta dos anos 1960 com José Alves de Oliveira, mais conhecido como Mestre Dezinho. Auxiliado também por Expedito Antônio dos Santos (Mestre Expedito), ambos vieram do interior do Piauí para Teresina, a capital, em busca de oportunidades (SILVA; GONTIJO, 2010). Em 1961, como vigia da praça em frente da Igreja de Nossa Senhora de Lourdes ou Igreja da Vermelha, Mestre Dezinho, começou a usar seus conhecimentos de carpinteiro na reforma da igreja que ocorria naquele período. O pároco Francisco Carvalho foi o descobridor do talento autodidata de Mestre Dezinho para a escultura em madeira (MORIM, 2014).
São figuras de gibão, anjos usando fardas militares, rolinhas, pombas e bacuraus, anjos com bigode, objetos, animais e roupas que fazem a alusão ao que os artesões têm ao seu redor (SILVA; GONTIJO, 2010). Esses aspectos, além da singularidade de cada escultor, são as marcas diferenciais do Modo de Fazer da Arte Santeira Piauiense em relação aos santeiros de outros pontos do país. Existe, inclusive, um processo de tombamento paralelo, que pretende tombar a arte representada no acervo de arte santeira que compõe a igreja da Vermelha. De antemão, o processo não corresponderá no mesmo livro de tombo, e só será composto principalmente por peças do Mestre Dezinho, nas quais formam o marco fundador do modo de fazer da arte santeira piauiense, ou seja, são obras de arte integradas ao conjunto cultural da igreja da Vermelha. (informação verbal8).
Os últimos documentos listados no SEI, são referentes ao Relatório das Oficinas de Esclarecimento sobre o Registro da Arte Santeira Piauiense (GALVÃO NETO, 2019), na qual o Iphan realizou três oficinas no mês de novembro de 2019. O processo é estruturado em quatro etapas que são: pré-produção, pesquisa complementar, mobilização e produção do dossiê e do vídeo documentário. As três consecutivas etapas já foram concluídas, restando apenas a quarta, para que o processo de instrução prossiga em sua fase final.
À luz do que foi apresentado pelo SEI, a tensão social que perpassa esse bem imaterial, volta-se para o reconhecimento e valorização, justificando a relevância através do relatório das oficinas executadas. Os participantes demonstraram a singularidade do bem no Piauí, incluindo a dificuldade na aquisição dos materiais para a concretização do modo de fazer da Arte Santeira.
A comunidade teve origem com a chegada de descendentes de negros e índios, dos vaqueiros e garimpeiros. A localidade situada próximo as margens do rio Uruçuí Vermelho, está entre as maiores reservas de diamantes do mundo, junto com Rússia e Botsuana (SENA, 2017). Contudo, essa riqueza subterrânea não se reflete em progresso aos moradores que até 2015 sequer possuíam acesso à energia elétrica.
Além dos moradores locais, o festejo atrai romeiros de várias partes do Brasil e de cidades no entorno da comunidade. Esses romeiros são recepcionados pelos festeiros com a construção de pequenas casas de Pau a Pique, feitas à mão pelos próprios anfitriões, sendo composto por orações, ladainhas e cantos, incluindo forró, bebidas e muita comida. Toda a mobilização para a realização e manutenção da festa é operacionalizada pelos membros da comunidade, destacando as famílias Honorato e Faustino que vêm mantendo as festas, cada uma com sua função no festejo, além de outras famílias de pagadores de promessas (SABÓIA, 2018).
Não foi possível pesquisar no SEI o processo do bem, pois o protocolo não existe arquivado no site. No entanto, uma das tensões mais notórias diante das fontes analisadas sobre a história e a presença viva da festa atualmente, consiste na ausência de um tipo de intervenção, ajuda ou financiamento por parte da Igreja Católica ou de qualquer instância governamental. Aliás, os moradores foram surpreendidos com a visita dos pesquisadores do Iphan com a possibilidade de inscrição da Festa no livro das Celebrações.
A Ciranda chegou ao Brasil por volta do século XVIII e teve maior destaque em Pernambuco, na Zona da Mata Norte e Litoral. Embora em diversas partes do Brasil o conceito de ciranda seja direcionado ao aspecto infantil, a ciranda praticada em Pernambuco é conceituada como dança circular de adultos, que pode ser executada em qualquer espaço, por qualquer pessoa, independente de idade, gênero, condição social ou econômica (GASPAR, 2004).
A roda de Ciranda é o formato da coreografia utilizada pelos cirandeiros, não há limite de participantes e estes não pedem licença para entrar, nem autorização para sair. Na aproximação de alguém que deseja dançar, se abre a roda para acolhê-lo; e quem se retira normalmente junta as mãos de quem fica, numa forma de expressar a continuidade da conexão entre os cirandeiros. A Ciranda é realizada ao longo do ano, sem que haja uma data, horário de início e término ou até uma motivação específica para ocorrer.
Vale destacar que durante a pesquisa sobre o bem, o Iphan ainda não tinha divulgado no SEI o Parecer Técnico n° 14/2020 (BRASIL, 2020b) do DIP publicado no dia nove de dezembro de 2020, na qual confirma a Ciranda do Estado de Pernambuco como Patrimônio Cultural do Brasil, enquadrando-se na tipologia Formas de Expressão. No site do Iphan, o bem não foi retirado da listagem dos que estão em Processo de Instrução para Registro. O SEI emitiu o Ofício n° 719/2020 (BRASIL, 2020a) do DIP para o Procurador-Chefe da Procuradoria Federal no Iphan, com o objetivo de análise da regularidade jurídica do processo no dia 21 de dezembro de 2020.
O Parecer Técnico n° 14/2020 (BRASIL, 2020b) do DIP transparece as ações de salvaguarda paralelo as tensões sociais do bem, como por exemplo, restabelecimento das atividades e a reprodução prática cultural da ciranda, além da representatividade no âmbito dos mestres, o que de fato agrega um grande valor para o bem imaterial, pois garante a continuidade histórica do bem para a sociedade.
A memória coletiva é um instrumento de poder, como assinala Le Goff (2013) e está presente nos bens imateriais, visto que é através da memória construída pela sociedade que há uma luta na preservação, manifestação e continuidade na história das tradições que são singulares nas comunidades a qual pertencem. Os marcos legais desse legado, a partir do primeiro bem imaterial inscrito no Livro dos Saberes, O Ofício das Paneleiras de Goiabeiras em 2002, repercutiu numa propagação de conhecimentos que antes estavam velados e somente entregues aos detentores daquele saber.
A pesquisa adquiriu uma roupagem pioneira em abordar sobre os bens que ainda estão na fase de serem inscritos no Livro do Registro, no qual devem ser apresentadas a viabilização e a riqueza cultural desse patrimônio imaterial que há mais de anos está em processo de análise, perpassando por dilemas sociais que acarretam numa necessidade acentuada de salvaguardá-los.
Vale mencionar que após as análises dos bens, conforme a terceira ação de salvaguarda, valorização de mestres e executantes, elencada por Cavalcanti e Fonseca (2008), no instrumento jurídico de proteção ao patrimônio imaterial, os detentores não são inseridos no livro de registro pelo Iphan, somente os aspectos intangíveis, como o saber fazer e nunca o objeto e sujeito, pois entre ambos não há preservação.
Sendo assim, cada ser humano se torna responsável em transmitir o patrimônio cultural imaterial de sua comunidade, evidenciando a diversidade cultural, a criatividade humana e a memória coletiva. O intermédio da população e principalmente a atribuição de valor aos mestres e executores do bem, são pontos significativos e que irão auxiliar na transmissão da diversidade cultural que esses bens irão representar para a futura geração.
Pelos colaboradores que enriqueceram a pesquisa auxiliando nas análises dos bens imateriais e pela dedicação durante todo o processo da escrita.


