RESUMO
Objetivo: Descrever, com ontologia, a representação de documentos de acordo com os princípios e conceitos da Arquivologia. A análise ontológica teve enfoque na produção documental de uma organização, permitindo que ontologias desenvolvidas para organizações possam ser compatibilizadas com os princípios e soluções da Arquivologia, quando a questão é o documento e sua produção.
Método: Análise ontológica de conceitos com enfoque na classificação de entidades arquivísticas nas classes especificadas na ontologia de alto nível Basic Formal Ontology (BFO) no que se refere a: informação, documento arquivístico e materialidade; produção de documento arquivístico; e contextos jurídico-administrativo, administrativo, documental e de proveniência.
Resultado: O modelo ontológico esclarece e especifica o significado semântico dos conceitos arquivísticos analisados, construindo um suporte para derivações lógicas destes documentos, associação destes documentos com entidades que representam conteúdos de domínio especificadas em outras ontologias derivadas da BFO.
Conclusões: Os resultados demonstram que os conceitos arquivísticos estão alinhados à BFO em uma relação de subsunção com relação aos aspectos analisados. Se observa que o documento arquivístico é fundamentado pelas percepções de realidade de BFO.
Palavras-Chave: Representação Semântica, documento Arquivístico, basic Formal Ontology, princípio da Proveniência, ontologia.
ABSTRACT
Objective: We describe the representation of documents with ontology according to the principles and concepts of Archival Science. The ontological analysis considered the organization document production aiming that the organization developed ontologies could be compatible with archival principles and solutions, when the issue is the document and its production.
Methods: Exploratory study of a qualitative nature. An ontological analysis of concepts to allow the classification of archival entities into the classes specified in BFO top-level ontology, with regard to: information, archival document and materiality; production of archival document; and juridical-administrative, administrative, documentary, and provenancial contexts.
Results: The ontological model clarifies and specifies the semantic meaning of the analyzed archival concepts, building a support for logical derivations of these documents, association of these documents with entities that represent domain contents specified in other ontologies derived from BFO.
Conclusions: The results demonstrate that archival concepts are aligned to BFO in a subsumption relationship with respect to the analyzed aspects. It is observed that the archival document is based on BFO's perceptions of reality.
KEYWORDS: Semantic representation, record, basic Formal Ontology, principle of Provenance, ontology.
Artigo Original
ONTOLOGIA E DOCUMENTO ARQUIVÍSTICO: ANÁLISE ONTOLÓGICA PARA REPRESENTAÇÃO SEMÂNTICA DO DOCUMENTO ARQUIVÍSTICO EM BFO
ONTOLOGY AND ARCHIVAL RECORD: ONTOLOGY ANALYSIS FOR THE SEMANTIC REPRESENTATION OF ARCHIVAL RECORD AT BFO
Recepção: 26 Agosto 2021
Aprovação: 28 Janeiro 2022
Publicado: 10 Fevereiro 2022
A Arquivologia produziu um arcabouço conceitual para compreender o documento e seu contexto. A partir desse arcabouço, estabeleceu princípios que norteiam a produção documental, criou métodos que apoiam implantação de sistemas de gestão de documentos e definiu padrões, metodologias e normas para representar essa produção. Os entendimentos e as proposições da Arquivologia para representar documentos de uma instituição são requisitos relevantes ao desenvolvimento de ontologias de organizações, pois trazem a essas ontologias uma compreensão consolidada por uma disciplina que se dedica a estudar o documento no contexto de uma instituição, em que a representação da proveniência e do contexto de produção documental são atividades centrais.
Estudos sobre ontologias na Ciência da Informação vem sendo realizados há mais de uma década, e em diferentes aspectos da informação, tanto em pesquisas de abordagens analíticas e teóricas, como no desenvolvimento de aplicações com o uso de ontologias. As pesquisas voltadas para organização do conhecimento e semântica demonstram a importância dos estudos de ontologia para a área (CAMPOS, 2010; SALES; CAMPOS; GOMES, 2008). Algumas pesquisas investigam os usos de ontologia na recuperação da informação e para a web semântica e dados ligados (EMYGDIO; ALMEIDA; TEIXEIRA, 2021; MARCONDES, 2016; MARCONDES, 2012; MARCONDES; CAMPOS, 2008).
Este artigo aborda a representação do documento arquivístico em ontologias. Em especial, investiga a representação do documento arquivístico por meio da ontologia de alto nível Basic Formal Ontology (BFO) e da ontologia Information Artifact Ontology (IAO), que é derivada de BFO e aborda entidades de informação, seus portadores, seus processos de produção e suas relações. BFO é uma ontologia de alto nível muito utilizada para a construção de ontologias de domínio. Ontologias de alto nível servem como base para as ontologias de domínio, pois descrevem conceitos gerais (FARINELLI; DAMASCENO SOUZA, 2021). Enquanto uma ontologia de domínio é construída como a representação de um conjunto básico de universais pertinentes a um único domínio, uma ontologia de alto nível é uma representação genérica de categorias comuns a todos estes domínios (ARP; SMITH; SPEAR, 2015). Ontologias de domínio desenvolvidas a partir de uma mesma base conceitual estabelecida por uma ontologia de alto nível são integradas mais facilmente, o que favorece a interoperabilidade. BFO foi recentemente escolhida como padrão internacional para ontologias de alto nível, conforme descrito na norma ISO/IEC: 21838-2 (INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION, 2020).
O uso de ontologias como ferramenta para representação do contexto da produção documental arquivística possibilita a explicitação de relacionamentos complexos existentes no domínio e que nem sempre são refletidos nos sistemas de informação. Desse modo, descrever semanticamente os documentos e seus relacionamentos orgânicos e contexto pode significar uma melhora na capacidade de organização do conhecimento, bem como o desenvolvimento de ferramentas mais efetivas para gestão e recuperação dos documentos de uma organização.
IAO é uma ontologia derivada de BFO que “descreve artefatos relacionados à comunicação e ao registro de informação” (ALMEIDA, 2020, p. 305), em que o foco é o conteúdo e como ele é registrado. Em IAO, entidades de conteúdo informacional, como uma carta ou um relatório, dependem uma entidade material portadora para existir, como um papel ou um disco rígido, aos quais são afixados, de forma genérica, pois podem mudar de portador (de um papel para outro ou para um HD) e continuar existindo. Essas entidades são consumidas ou produzidas por processos. Estão relacionadas a outras coisas, são sobre elas (is-about) e, portanto, entidades dependentes (ALMEIDA, 2020).
O artigo tem como enfoque o estudo da representação semântica da produção arquivística em BFO/IAO pelos seguintes motivos: (1) BFO é uma ontologia muito usada em instituições para representar as ontologias de seus domínios, e um estudo da representação da produção documental arquivísticas em BFO pode possibilitar que instituições possam representar suas ontologias de domínio de forma integrada com a produção documental arquivística da instituição; (2) IAO é a extensão de BFO voltada para representar conteúdos informacionais, suportes (portadores) de documentos, processos e papéis, conceitos muito próximos dos desenvolvidos pela arquivologia para a produção documental; (3) A proveniência arquivística é princípio basilar da arquivologia e um estudo sobre a capacidade de estender BFO / IAO para a representação da produção documental a partir dos princípios arquivísticos possibilita compreender o alcance e a compatibilidade de BFO/IAO em representar o documento arquivístico. (4) BFO/IAO é uma ontologia realista, em que a realidade é representada por meio de ocorrentes e continentes, e a produção documental de uma instituição tem como característica o compromisso com a realidade da instituição, à medida que documentos (continuantes) são produzidos, recebidos ou acumulados (ocorrentes) por pessoas (continuantes) devidamente autorizadas pela organização, no desempenho de suas atividades (ocorrentes) que são parte do negócio reconhecido e estabelecido da instituição, como instrumento ou resultado de tal atividade.
Vários estudos abordam a representação de documentos em ontologias. FRBROO1 é uma ontologia que combina os modelos conceituais FRBR e CIDOC/CRM. FRBR é um modelo para registros bibliográficos, focado na descrição de trabalhos intelectuais ou artísticos, na perspectiva que estes se manifestam a partir da materialização de expressões que realizam obras, como uma edição em CD, que é a materialização (uma manifestação) de uma performance musical (uma expressão) que realiza uma criação intelectual ou artística (uma obra). CIDOC/CRM é focado na descrição de conceitos e relacionamentos usados na documentação do patrimônio cultural, na perspectiva que atores participam de eventos temporais do ciclo de vida de um bem patrimonial (como escrever, restaurar ou expor um livro raro), que afetam entidades físicas (como a o livro), que ocorrem em locais e em um certo período.
D-acts é a ontologia dos atos dos documentos e, “descreve documentos e os atos geradores de entidades sociais, como direitos e obrigações. Para D-acts não interessa o conteúdo, mas sim os impactos e os efeitos dos documentos na sociedade” (ALMEIDA, 2020, p. 308). Nessa ontologia, uma declaração é um ato social (um processo) que executa ou revoca uma obrigação, como o consentimento verbal de João em comprar uma TV por R$100,00. Já um ato documental é uma declaração que é feita usando um documento para temporalmente estender os efeitos da declaração, como João assinando uma ordem de compra de uma TV. D-acts estende BFO e IAO.
RiC/CM2 é uma minuta de modelo conceitual desenvolvido pelo Conselho Internacional de Arquivos para descrição arquivística, que também possui uma representação ontológica em OWL, chamada de RiC-O. As entidades básicas são aquelas essenciais para descrever documentos arquivísticos e o contexto em que esses documentos arquivísticos emergem. As entidades básicas são: recurso de documento arquivístico (como o registo de uma portaria de nomeação, na perspectiva de que a portaria pode vir a ser eliminada em um processo de avaliação documental), instanciação (como uma portaria de nomeação), agente (como o produtor devidamente autorizado da portaria de nomeação) e atividade (como a atividade que é parte institucionalizada negócio da instituição que realiza nomeações).
A ontologia FBROO não faz parte do escopo deste estudo. FRBROO observa o documento na perspectiva de uma criação intelectual ou artística, e dos atores, eventos e locais que participam do ciclo de vida dessa criação, distanciando-se do enfoque arquivístico para documento. RIC-O, apesar de tratar da representação de documentos arquivísticos, ainda é uma minuta, e não está ancorada em nenhuma ontologia de topo (LLANES-PADRÓN; PASTOR-SÁNCHEZ, 2017), como BFO, que é foco da discussão deste artigo. D-acts se aproxima da questão da produção de documentos através do ato documental e dos poderes deônticos que um documento exerce sobre os indivíduos. Não é com foco, nesse momento do estudo, cujo enfoque é a produção do documento na perspectiva da proveniência arquivística e não os efeitos (obrigações) de um ato em que um documento está envolvido, mas pode ser analisada complementarmente em trabalhos futuros, na perspectiva que documentos arquivísticos produzidos por uma instituição, no decorrer de suas atividades, estão envolvidos em atos que geram ou revogam obrigações, isto é, em atos documentais. Este estudo enfoca a produção do documento arquivístico, e IAO é uma ontologia da família BFO que se aproxima dos conceitos desenvolvidos pela arquivologia para gestão de documentos arquivísticas, como documento, parte de documento, processos planejados (como atividades de negócio da instituição que produzem documentos) que são realizados a partir de especificações de plano (como planos de gestão documental), entre outros.
Alguns outros trabalhos enfocam a questão do documento arquivístico na perspectiva das ontologias, embora não aprofundem a discussão acerca dos conceitos de documento arquivístico e proveniência arquivística, como um estudo sobre a representação de esquemas de classificação para arquivos multimídia (VSESVIATSKA et al, 2021), um estudo sobre a representação ontológica para fundos documentais (PANDOLFO et al, 2018) e ainda um estudo sobre a representação de papéis ligados à registro de autoridade arquivística (DAQUINO et al, 2014). PROV-O3 é uma ontologia para representar informação de proveniência gerada em diferentes sistemas e sobre diferentes contextos, podendo ser especializada para modela proveniência em diferentes domínios e aplicações.
Este trabalho tem como objetivo compreender a representação em BFO do documento arquivístico a partir de princípios e conceitos da Arquivologia, com enfoque na produção documental de uma organização. Isso possibilita compreender o alcance e a compatibilidade de BFO em representar documentos sob a perspectiva da Arquivologia, permitindo, assim, que ontologias desenvolvidas em BFO possam ser compatíveis com os princípios e soluções da Arquivologia, no tocante ao documento arquivístico e sua produção, de modo a atender necessidades particulares de organizações. Trata-se de um estudo exploratório de cunho qualitativo.
Como procedimento metodológico, o estudo investiga de que forma conceitos da Arquivologia, com enfoque no documento arquivístico e sua produção, poderiam ser representados em BFO, buscando a correlação e a subsunção de conceitos arquivísticos a conceitos da ontologia de alto nível BFO, no que se refere aos aspectos: informação, documento e materialidade; produção de documento; e contextos jurídico-administrativo, administrativo, documental e de proveniência. São aspectos relevantes do documento arquivístico e sua produção, considerando que um documento arquivístico é informação registrada, independente da forma ou do suporte, produzida ou recebida no decorrer da atividade de uma instituição ou pessoa e que possui conteúdo, contexto e estrutura suficientes para servir de evidência dessa atividade (CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS, 2007), conforme identificamos a seguir:
Documento e seu conteúdo informacional: na perspectiva de que um documento arquivístico é sobre uma atividade realizada pela instituição e para tal, possui uma forma documental, que atende a regras de representação, de acordo com as quais seu conteúdo, suas partes constituintes, o seu contexto documental (como a ação no qual o documento participa) e sua autoridade são comunicados.
Documento e sua materialidade: na perspectiva de que na arquivologia o suporte é o carregador físico do documento e, como tal, imprescindível, uma vez que o documento não sem estar fixado num suporte. A evidência trazida por um documento arquivístico só pode ser considerada com a materialidade desse documento.
Documento e sua produção: na perspectiva que documentos arquivísticos, para serem confiáveis, devem ter seus procedimentos de criação bem controlados e suas atividades de criação devem fazer parte e serem reconhecidas como pertencentes ao negócio da instituição.
Documento e seu contexto: na perspectiva de que um documento arquivístico e sua produção estão inseridos em um sistema legal e organizacional (contexto jurídico-administrativo), de acordo com estruturas e funções estabelecidas do ambiente organizacional (contexto administrativo) da entidade produtora, que possui uma mandato, estruturas e funções (contexto de proveniência) e que são reunidos em fundos documentais a partir de princípios e técnicas arquivísticas de organização (contexto documental).
O artigo está dividido em cinco seções: as seções 2 e 3 contextualizam, respectivamente, documento arquivístico e BFO/IAO; a análise é realizada na seção 4; e as conclusões são apresentadas na seção 5.
Para compreender o conceito de documento arquivístico, iniciamos a análise a partir do documento. A etimologia de documento vem, por um lado, do latim, docere, significando ensino, e por outro lado, da palavra grega endeigma, que significa prova ou testemunho. Assim, considerando uma abordagem filológica do termo, documento inclui os sentidos de doutrina, ensino, diploma e testemunho (RONDINELLI, 2013).
Para muitos autores do campo da Arquivologia o que define o documento é a questão da materialidade e do caráter testemunhal. A importância de um suporte ou da fixação do conteúdo aparece em vários autores (CORTEZ ALONSO, 1989; HEREDIA HERRERA, 1991; RODRIGUES BRAVO, 2002; DURANTI, 1998). Assim como a função de testemunho e evidência, sua capacidade de registro de ações e fatos para comunicação, ensino, aprendizagem também é reforçada pela área (CORTEZ ALONSO, 1989; HEREDIA HERRERA, 1991; DURANTI et al., 2002). Para Sir Charles Hilary Jenkinson (1937), os documentos de arquivo estão relacionados a transações e podem ser públicos ou privados. Para o autor:
Um documento dito como pertencente à classe dos Arquivos é aquele elaborado ou usado no curso de uma transação administrativa ou executiva (pública ou privada) da qual ele próprio participou; e subsequentemente preservado sob sua custódia e para sua própria informação pela pessoa ou pessoas responsáveis por aquela transação e seus legítimos sucessores4 (JENKINSON, 1937, p. 11, grifo do autor, tradução nossa).
Autores mais recentes (COOK, 2001; HEREDIA HERRERA, 1991; DURANTI et al., 2002; YEO, 2007) abordam questões como suporte e contexto, temáticas trazidas pela introdução da tecnologia e uso de computadores na produção de documentos. Antonia Heredia Herrera entende que:
Arquivo é um ou mais conjuntos de documentos, seja qual for sua data, sua forma e suporte material, acumulados em um processo natural por uma pessoa ou instituição pública ou privada no curso de sua gestão, preservados, respeitando aquela ordem, para servir como testemunho e informação para a pessoa ou instituição que os produz, para os cidadãos ou para servir de fonte histórica5 (HEREDIA HERRERA, 1991, p. 89, grifo do autor, tradução nossa).
Luciana Duranti conceitua documento arquivístico (record) como “[...] todo documento elaborado por uma pessoa física ou jurídica no decorrer de atividade realizável como instrumento e subproduto da mesma6” (DURANTI et al., 2002, p. 22, tradução nossa). Complementando esta definição, o projeto InterPARES 3, em sua base de dados de terminologia, tem na entrada documento arquivístico (record) uma definição semelhante: “documento elaborado ou recebido no curso de uma atividade prática como instrumento ou resultado de tal atividade, e retido para ação ou referência” (INTERPARES 3 PROJECT, 2021, online). Há um entendimento de que a acumulação dos documentos arquivísticos é parte do fazer daquele produtor, sua acumulação é orgânica, ou seja, os documentos são recebidos e acumulados a partir de uma atividade por um propósito.
Rondinelli (2013), analisando autores clássicos e contemporâneos, em uma ampla revisão do termo documento arquivístico na literatura da área, argumenta que o ponto de convergência entre os diferentes autores é a natureza dos documentos arquivísticos, gerados a partir de atividades de pessoas físicas e jurídicas, e a sua organicidade. No caso dos documentos arquivísticos, devemos compreender sua origem e vinculação a um produtor, pessoa física ou jurídica, sua relação com as atividades desse produtor e razões para sua acumulação e custódia pelo produtor, ou seja, sua vinculação a ações que motivaram sua criação e sua capacidade de servir de evidência de tais ações.
A partir da análise desses conceitos da Arquivologia, alguns termos se destacam na tentativa de compreender o fenômeno: há um produtor, pessoa física ou entidade coletiva, que produz, recebe e acumula os documentos; há uma ação, atividade ou transação realizada pelo produtor, a qual origina a produção dos documentos; o documento arquivístico é a evidência material da ação realizada pelo produtor, preservada para fins de prova ou informação; e, por fim, há um contexto de produção, normas, regulamentos, procedimentos que definem a produção dos documentos de um dado produtor e sua organização como um fundo documental. Cada conjunto documental tem características próprias, que ficam claras quando os documentos são percebidos no todo. Destaca-se, então, o Princípio da Proveniência, princípio arquivístico que estabelece a relação de proveniência dos documentos, ou seja, a vinculação dos documentos ao seu produtor e a relação de organicidade, que vincula os documentos entre si e com seu contexto de produção.
BFO é uma ontologia de alto nível criada inicialmente para a área de biomedicina, mas ampliada para servir à pesquisa científica (SMITH et al., 2015). Foi desenvolvida a partir de uma estratégia de granularidade e modularidade, com uma abordagem top-down, ou seja, dos elementos superiores, mais genéricos, aos elementos mais específicos, relacionados aos elementos dos níveis superiores, considerando que o desenvolvimento de outras ontologias poderia complementar e integrar a ontologia em domínios e níveis diferentes. A figura 1 apresenta as classes de BFO e, a seguir, resume-se BFO com ênfase nos objetivos deste estudo.
BFO é uma ontologia realista, ou seja, desenvolvida a partir da premissa filosófica de que a representação ontológica é possível a partir do conhecimento de entidades existentes no mundo real (ARP; SMITH; SPEAR, 2015). Nela, a realidade pode ser dividida entre aquilo que ocorre no tempo, ou seja, entidades que têm partes temporais, os ocorrentes (occurrents), e aquilo que persiste, que se mantém ou continua a existir ao longo do tempo, enquanto mantém sua identidade, os continuantes (continuants). Ocorrentes podem ser eventos e processos pontuais no tempo e no espaço, como o ato de assinar um documento. Já os continuantes podem ser objetos materiais ou imateriais estáveis no tempo ou, também, características que existam no mundo, como um documento, uma pessoa, um diretor em uma empresa, as cores da letra impressa no papel.
BFO também aborda questões relacionadas à dependência existencial. Um continuante independente, como uma pessoa, é aquele que não depende de outras entidades para existir, servindo como portador de continuantes dependentes. Um continuante especificamente dependente é aquele que necessita de um continuante independente como portador para existir, mas que não pode mudar de portador, como o diretor José, que depende existencialmente da pessoa José e não pode existir em outra pessoa. Um continuante genericamente dependente depende de um ou outro portador, o qual pode mudar de tempos em tempos. Um documento é um exemplo de continuante genericamente dependente, pois depende de um portador para existir, como uma folha de papel, mas que pode mudar de portador, como para um disco rígido. O portador é a entidade material que dá materialidade ao documento, neste caso o portador é o suporte físico, uma folha de papel ou um disco rígido, por exemplo, através do qual o conteúdo do documento pode existir.
Papel (role na figura 1) é um continuante especificamente dependente. Um papel é uma entidade realizável, isto é, realizada em certos tipos de processos. Pode ser realizada de forma intermitente e é possuída por seu portador devido a algumas circunstâncias externas, podendo deixar de existir sem que a composição física do portador seja alterada, como, por exemplo, o papel de diretor, assumido por João, que, se não mais existir, não afeta a existência de João. Entidades realizáveis são exibidas somente a partir de certos processos característicos de realização, em contraste com qualidades, que não requerem qualquer processo adicional para serem realizadas. O padrão das letras impressas na folha de papel de um documento é uma qualidade específica de um documento, impressa naquele papel, é inerente a ele.
Definida como uma ontologia de entidades de informação, IAO tem como entidades principais, no contexto desta pesquisa: entidade de conteúdo informacional (Information Content Entity - ICE), documento (Document), portador material da informação (Material Information Bearer) e carregador da informação (Information Carrier). Uma ICE é um continuante genericamente independente que “é sobre” alguma coisa. Esse conteúdo informacional concretiza-se em um portador material da informação, como em um papel, e, esse portador possui qualidades que transmitem o conteúdo de informação, como a tinta do papel. Um documento é uma ICE que é uma coleção de ICEs que são entendidas como um todo.
A seguir, faremos uma análise do conceito de documento arquivístico no contexto de BFO e IAO. Para exemplificar documentos, usaremos o domínio da produção e exploração de petróleo e gás, em especial, a notificação de uma descoberta de petróleo ou gás, realizada por um consórcio regido por um contrato de partilha da produção, conforme modelo da ANP (BRASIL, 2013).
É possível perceber que, na perspectiva de IAO, a informação de entidade de conteúdo informacional (ICE) é sobre (is about) alguma coisa da realidade (SMITH; CEUSTER, 2015). A relação “é-sobre” ou “is about”, em inglês, é definida como a relação entre a informação e a porção de realidade que é denotada por ela (SMITH; CEUSTERS, 2015). Em IAO, documento (Document, na figura 2) é uma ICE que é uma coleção de ICEs, planejadas para serem entendidas juntas, como um todo. Um documento pode ser formado de partes (Document Part, na figura 2), que são por si conteúdo informacional (ICE), mas que são entendidos em conjunto para formar o documento.

Por exemplo, uma Notificação de Descoberta se origina de uma descoberta de petróleo ocorrida no mundo real, realizada por um consórcio. Essa notificação não é propriamente a descoberta e sim a comunicação de que houve essa descoberta no contexto dos direitos e deveres de um consórcio, estabelecidos por um contrato, levando às consequências estabelecidas neste contrato. Esta Notificação de Descoberta (figura 2) precisa conter todas as partes (seções) requeridas pela Agência Nacional de Petróleo (ANP), segundo a resolução ANP 699/2017.
Na Arquivologia, as partes constituintes do documento são observadas sob a perspectiva de sua forma documental, que pode ser definida como as regras de representação de acordo com as quais o conteúdo de um documento arquivístico, seu contexto administrativo e documental e sua autoridade são comunicados. A forma documental é objeto de estudo da Diplomática e as configurações que as formas documentais assumem de acordo com a disposição e a natureza das informações nele contidas levam à classificação de documentos em espécies documentais. Notificação de Descoberta é uma espécie documental, cujas informações ali contidas estão de acordo com a disposição e a natureza requeridas pelo órgão regulador brasileiro, a ANP.
A figura 2 indica, por meio de representações pontilhadas, como uma Notificação de Descoberta e suas partes poderiam ser representadas utilizando a IAO. O artigo realiza a análise ontológica dos conceitos preliminares a proposição de uma ontologia. Por isso, nas figuras apresentadas, os diagramas em pontilhado situam-se e exemplificam de que forma conceitos da Arquivologia poderiam subsumir-se a conceitos de BFO.
Em IAO, um documento é uma ICE que depende genericamente de uma entidade material. A entidade material que dá suporte para a ICE é chamada de portador material da informação (Material Information Bearer, na figura 2), definido como uma entidade material na qual uma concretização de uma ICE pode existir.
O portador material da informação é um continuante independente, que em BFO significa que sua identidade e existência são mantidas ainda que haja mudança em suas qualidades ou partes (ARP; SMITH; SPEAR, 2015). Isso significa que a folha de papel continua uma folha de papel, ainda que marcas de tinta tenham sido inscritas em sua superfície, ou um disco rígido segue sendo um disco rígido, ainda que bits sejam magneticamente escritos em suas trilhas.
A dependência genérica entre ICE e o portador material da informação permite que a ICE seja migrada ou copiada de uma entidade material para outra. Assim, a informação contida em uma Notificação de Descoberta em papel pode ser migrada ou copiada para outro suporte, como para um arquivo em disco rígido, sem que a informação sofra perdas. Uma Notificação de Descoberta é concretizada na folha de papel (Material Information Bearer) através de um carregador da informação (Information Carrier), que seriam as marcas de tinta com o estilo da letra usada (figura 2). Em BFO, tais marcas são uma qualidade (Quality) daquela folha de papel, isso significa que as marcas possuem dependência específica de uma determinada entidade material, assim, a qualidade é um continuante especificamente dependente.
Pensando em termos arquivísticos, a separação entre ICE e entidade material é conhecida e explicada na distinção entre conteúdo e suporte. Entretanto, IAO adiciona a entidade que carrega a informação (Information Carrier), geralmente não mencionada pela teoria arquivística. Em IAO, essa entidade, o carregador da informação, é uma qualidade que permite a concretização do conteúdo no portador. Sendo uma qualidade, portanto dependente de uma entidade específica, deixando de existir a segunda, a primeira também cessa sua existência. Logo, um carregador de informações comunica as informações de um documento específico e não de qualquer documento, o qual, por sua vez, depende de um suporte material para existir.
O conteúdo da Notificação de Descoberta pode mudar de suporte sem deixar de ser o mesmo, assim como a folha de papel também não deixa de ser papel por receber a tinta da impressão. Entretanto, as qualidades do papel se modificam ao receber o conteúdo informacional. As marcas de tinta são feitas naquela folha, dependem daquele papel para existir. Mudando o suporte, mudam também as qualidades desse suporte. No caso da digitalização da Notificação de Descoberta, por exemplo, o suporte passa a ser o disco rígido. As marcas de inscrição que materializam o ICE são agora bits magnetizados em trilhas do disco rígido.
Podemos perceber que, na IAO, documento é representado como uma ICE que possui partes constituintes, mas que, visto como um todo, possui um suporte físico com qualidades específicas que permitem comunicar o conteúdo e resulta de uma ação para documentar algo que ocorre em dado momento temporal. Esse conceito abarca as questões de materialidade e registro presentes nos conceitos de documento analisados acima. Assim, para representar a materialidade do documento arquivístico, entendemos ser possível utilizar as seguintes entidades: portador material da informação (Material Information Bearer) e carregador da informação (Information Carrier). Para representar a estrutura de conteúdo e completude do documento arquivístico, entendemos que pode ser usada a entidade parte documental (Document Part). A figura 2 indica a materialização em papel ou em disco rígido de uma Notificação de Descoberta.
A produção do documento arquivístico é um processo de gestão documental da organização. Esse evento pode conter várias etapas: uma minuta é produzida, enviada para revisão, alterada, o documento é impresso, assinado, disponibilizado, remetido a uma unidade de controle e, por fim, arquivado.
Até aqui o termo documento foi analisado como um continuante. Entretanto, a ação de documentar aponta para o fato de que o documento tem uma existência no tempo e no espaço, significando que ele surge a partir de um processo de produção pela entidade produtora. Importante frisar que o documento arquivístico se caracteriza por ser produzido e acumulado no decurso de atividades de um produtor e mantido em conjunto com outros documentos arquivísticos para fins informacionais e probatórios. Assim, é relevante compreender as ações que levaram à produção dos documentos. Essas ações são representadas em BFO como processos, eventos que acontecem no tempo e no espaço, no ramo dos ocorrentes. É pelo processo de criação que o documento ganha uma série de atributos que vão garantir sua autoria, proveniência e confiabilidade.
Confiabilidade é um requisito importante para uso e garantia de valor probatório de um documento arquivístico em um sistema de gestão documental. Segundo o Modelo de Requisitos para Sistema Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos (E-Arq),
Um documento arquivístico confiável é aquele que tem a capacidade de sustentar os fatos que atesta. A confiabilidade está relacionada ao momento em que o documento é produzido e à veracidade do seu conteúdo. Para tanto, há que ser dotado de completeza e ter seus procedimentos de produção bem controlados (CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS (BRASIL), 2011, p. 21-22).
A IAO contempla a representação do processo de produção do documento. A ligação entre os conceitos aparece pela entidade processo planejado (Planned Process), um termo reutilizado em IAO, mas originário da OBI. É possível perceber (figura 3) o documento (Document) como um resultado em um processo planejado de documentar (Documenting). Um processo planejado (Planned Process) é aquele que realiza um plano, o qual é uma concretização de uma especificação de plano (Plan Specification).
Uma especificação de plano (figura 3) é uma entidade de informação diretiva (Directive Information Entity) que contém, como partes, especificações de ação e de objetivo que, quando concretizadas, são realizadas em um processo no qual o portador busca atingir os objetivos através das ações especificadas. Uma informação diretiva (Directive Information Entity) é uma entidade informacional, cuja concretização indica ao portador como realizá-la em um processo (Process).

A figura 3 indica, como o processo de gestão documental de produção de um documento poderia ser representado utilizando a IAO. A produção de um documento é um processo de documentar (Documenting) que tem como entrada as informações diretivas de gestão documental, como planos de gestão documental, que definem as regras necessárias para que o documento produzido seja confiável. Nessa perspectiva, a produção de um documento ocorre a partir de um procedimento controlado, que segue regras documentadas, as quais especificam que o documento seja completo, isto é, contemple a presença de todos os elementos intrínsecos e extrínsecos exigidos pela organização produtora e pelo sistema jurídico-administrativo ao qual pertence e que seja criado por pessoas autorizadas e no curso de uma atividade dessa instituição. Na figura 3, o processo que produz um documento, como uma Declaração de Descoberta, é um processo planejado, que segue as informações diretivas estabelecidas pelos planos de gestão documental, que, por sua vez, seguem diretivas maiores, como resoluções da ANP. Cabe ressaltar que o processo de documentar (Documenting) também poderia abarcar outras funções da gestão documental, como avaliação e destinação.
No contexto da produção documental da instituição, o processo planejado que cria uma Declaração de Descoberta (Documenting) é a realização de um plano, o qual é concretizado a partir de especificações de planos. No caso, resolução da ANP e o plano de gestão documental, são especificações de plano, a primeira sendo um instrumento regulatório maior, que estabelece regras para todas as instituições que exploram petróleo no Brasil, e o planejando das regras da instituição para produzir documentos, observando os princípios da gestão arquivística de documentos. Esses dois documentos, no contexto da produção documental da instituição, geram obrigações na instituição em produzir documentos arquivísticos.
Nas últimas décadas, estudos em Arquivologia resultaram em perspectivas contemporâneas sobre a representação do contexto de produção que possam lidar com documentos em ambiente digital. O projeto InterPARES 3 define contexto (context) como “the framework in which a record is created, used and maintained” (INTERPARES 3 PROJECT, 2021, online). Os pesquisadores de InterPARES identificam e definem alguns tipos de contextos possíveis na produção documental: o contexto jurídico-administrativo, o sistema legal e organizacional ao qual pertence o produtor de documentos arquivísticos; o contexto administrativo, as estruturas, funções e procedimentos do ambiente organizacional ao qual pertence o produtor de documentos; o contexto documental, o fundo ao qual o documento arquivístico pertence e a estrutura interna desse mesmo fundo; o contexto de proveniência, a entidade produtora, seu mandato ou missão, estrutura e funções; além do contexto tecnológico, que não é objeto do estudo deste artigo. Utilizaremos essa visão de contexto de InterPARES 3 para guiar a análise do contexto do documento arquivístico na IAO.
O contexto jurídico-administrativo está relacionado a aspectos normativos legais, infralegais e organizacionais. Essas entidades normativas podem ser descritas como entidades informacionais, como informações diretivas (Directive Information Entity). No caso de uma empresa produtora de petróleo, os processos para produção desses documentos deverão seguir normativos organizacionais, bem como regulamentos e legislação das agências de regulamentação das atividades, como ANP e IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), legislação e normas nacionais e internacionais, além das regras definidas para explorar e produzir petróleo.
Com relação ao contexto de proveniência, estabelecer a proveniência do conjunto documental é parte essencial do trabalho de gestão e organização de documentos arquivísticos. Isso significa identificar o produtor, seja ele pessoa, família ou organização pública ou privada, no contexto administrativo dessa produção, formado pelas atividades desenvolvidas e pelo conjunto das normas e procedimentos que subsidiaram a produção documental. A relação entre os documentos e as atividades do produtor em um determinado contexto de produção estabelecem a proveniência, no sentido arquivístico, daquela documentação. O Projeto InterPARES 3 define como produtor de documento arquivístico:
Pessoa física ou jurídica que elabora, recebe ou acumula documentos arquivísticos em função de seu mandato/missão, funções ou atividades (INTERPARES 3 PROJECT, 2021, online).
A IAO contempla a representação do produtor por meio de uma Organização (Organization, na figura 4), no seu papel (Role) de produtora de documentos. Papéis (Role, figura 4) são entidades realizáveis através de processos, as quais se concretizam em entidades materiais. Uma entidade material do tipo Empresa de Produção e Exploração de Petróleo, por exemplo (figura 4), é uma organização que, como tal, possui o papel (Role) de produtora de documentos, através do qual realiza o processo de criação de documento (discutido na seção 4.3). Esse processo, a partir de informações diretivas de gestão documental, produz um documento, como uma Notificação de Descoberta.
Analisando pela perspectiva do contexto documental, o conjunto dos documentos de um produtor forma um fundo documental. Esses conjuntos são arranjados e descritos de acordo com a norma de descrição arquivística ISAD-G, de forma hierárquica, em vários níveis, onde conjuntos são formados por subconjuntos e assim sucessivamente. A norma Nobrade, que aplica o ISAD-G no Brasil, prevê como níveis para a descrição de um fundo documental: seção, série, dossiê ou processo e item documental. (CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS, 2006). Práticas atuais recomendam que essa organização hierárquica de arranjo tenha como orientação a visão funcional da organização.
Em BFO, a relação membro de (member of) estabelece uma relação mereológica (relação de parte com o todo) entre um item e uma coleção ou agregação de membros. Nesse sentido, os documentos arquivísticos podem ser reunidos em agregados, relacionando os membros de cada conjunto como pertencentes àquele conjunto. Em IAO, a representação de um fundo e sua organização hierárquica seriam possíveis por meio de uma entidade de conteúdo de informação do tipo “conjunto documental”, que tem documentos como membros, e outros “conjuntos documentais” como partes (figura 4). A relação de membro de, entre um documento e um conjunto documental é uma relação mereológica entre um item e uma coleção, conforme a especificação de BFO para a propriedade membro de (member_of).

A produção documental é consequência de ações que são realizadas pelo produtor de acordo com regras, normas, procedimentos institucionais próprios daquele produtor, o que torna cada conjunto documental único. Pela ótica do contexto administrativo, a produção documental de uma organização é consequência de funções e atividades desempenhadas por ela, as quais, por sua vez, fazem parte do seu processo de negócio. No âmbito normativo, a norma arquivística para descrição de funções, ISDF, diz que a “compreensão das funções das entidades coletivas é essencial para uma percepção integral da proveniência''. Os documentos arquivísticos têm uma relação fundamental com as funções. Eles são o produto direto do exercício de funções” (CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS, 2007, p. 30).
No âmbito da gestão arquivística de documentos, a norma ISO 15489 recomenda a elaboração de um sistema de classificação funcional de atividades de negócio (INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION - ISO, 2001), que é base para o desenvolvimento de instrumentos de gestão documental, como os esquemas de classificação. A análise com a finalidade de desenvolver essa classificação funcional identifica todas as atividades de uma organização e as localiza na estrutura de sua missão ou propósito. Na sua forma plenamente desenvolvida, essa classificação produz uma representação das funções, que são decompostas em sub funções, por sua vez decompostas em procedimentos operacionais e assim sucessivamente. Segundo a norma ISDF, função corresponde a
qualquer objetivo de alto nível, responsabilidade ou tarefa prescrita como atribuição de uma entidade coletiva pela legislação, política ou mandato. Funções podem ser decompostas em conjuntos de operações coordenadas, tais como subfunções, procedimentos operacionais, atividades, tarefas ou transações (CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS, 2007, p. 10).
Em IAO, as funções de negócio (figura 4) e suas decomposições podem ser representadas por meio de processos planejados (Planned Process). Nesse caso, esses processos concretizam especificações de plano, que são os instrumentos (informações diretivas) de gestão documental que especificam hierarquicamente as funções de negócio, por sua vez construídas a partir de outras informações diretivas, como estatutos e procedimentos operacionais da organização. Em BFO, um processo planejado pode ser decomposto em sub processos, que correspondem a partes temporais do processo maior.
Por exemplo, no caso de uma Empresa de Exploração e Produção de Petróleo (figura 4), uma de suas funções de negócio seria Explorar Petróleo. Essa função seria decomposta em várias atividades. No exemplo da figura 4, a função de negócio “Explorar Petróleo” possuiria, como parte temporal, a atividade de “Programar a Exploração”, que, por sua vez, teria como parte temporal a tarefa de “Comunicar a Descoberta”. A execução dessa tarefa levaria à produção do documento “Notificação de Descoberta”, por meio do procedimento de gestão documental de produção do documento (discutido na seção 4.3).
Assim, uma pessoa, no desempenho de um papel organizacional, ao assinar o documento, desempenha também o papel de autora deste documento. Entretanto, a questão da autoridade para assinar está relacionada ao desempenho de um cargo ou função na organização e tem relação com a confiabilidade do documento produzido. Para cada produtor, a estrutura de cargos e funções precisaria ser desenhada de acordo com as especificidades daquele produtor, inclusive considerando mudanças ocorridas no tempo. Um diretor é alguém que, em determinados momentos e circunstâncias, executa um papel de “ser diretor”. O papel de diretor não se confunde com a pessoa que atua como diretor. Dito de outra maneira: aquela pessoa específica, em um papel específico, como diretor, atribuído a ela, coube assinar o documento.
IAO define organização (Organization) de forma a poder representar entidades complexas e com regramento próprio. Uma organização (Organization) é uma entidade capaz de desempenhar papéis, a qual possui membros e tem um conjunto de regras organizacionais. Os membros de uma organização podem ser pessoas bem como outras organizações. Membros podem desempenhar papéis específicos, determinados pelas regras organizacionais. As regras da organização também determinam como as decisões são tomadas em nome da organização pelos seus membros.
Em BFO, entidades capazes de gerar um documento ou poder assiná-lo ou, ainda, ser um produtor, no sentido arquivístico, podem ser representadas como entidade realizável (Realizable Entity) em processos nos quais um portador (uma entidade material) participa. Um diretor é uma entidade realizável que é inerente a uma pessoa (entidade material) na realização de atividades de negócio (processos) da organização. Esse diretor depende especificamente de uma pessoa. É uma atribuição dada a uma pessoa por um determinado período. Ser nomeado diretor é uma circunstância externa que permite a realização do papel de diretor a uma determinada pessoa.
Por exemplo, uma Notificação de Descoberta poderia ser assinada pelo diretor presidente da empresa. Esse diretor é uma pessoa no papel (Role) de Diretor Geral que, naquele momento, ocupava uma posição organizacional à qual cabia essa atribuição de responsabilidade na realização da atividade Comunicar a Descoberta, que é parte da função de negócio Explorar Óleo e Gás. As pessoas que a assinaram exerceram o papel de representantes da Empresa de Produção e Exploração. É possível, então, apontar como produtor a própria Empresa de Exploração e Produção de Petróleo. É ela a pessoa jurídica que faz, recebe e acumula documentos em razão de sua missão como responsável pela exploração e produção de petróleo, e que gera a agregação de mais alto nível ao qual os documentos arquivísticos pertencem.
Os resultados deste estudo demonstram que conceitos estabelecidos pela Arquivologia para o documento arquivístico, no contexto de sua produção em uma organização, podem ser alinhados com BFO e a IAO, em uma relação de subsunção, no que diz respeito aos aspectos analisados: informação, documento e materialidade; produção de documento; e contextos jurídico-administrativo, administrativo, documental e de proveniência.
Observamos que documento arquivístico como informação, como evidência, com suas partes constituintes (sua forma), seu suporte (materialidade) e sua representação são conceitos que se subsomem a BFO. Por outro lado, pela análise do documento arquivístico sob a perspectiva dos fundamentos de BFO, observa-se também que a dependência genérica entre informação e suporte e a dependência específica entre a concretização da informação em um suporte estão presentes no documento arquivístico. Além disso, observa-se que o documento arquivístico é fundamentado pelas percepções da realidade de BFO: ocorrente, continuante, dependência genérica e específica, processos, entidades realizáveis, qualidades, papéis, entre outros.
Subsomem-se a BFO, a produção e o produtor do documento arquivístico, por meio da representação em BFO do processo de produção, dos planos e das normativas de gestão, do produtor e do fundo documental. BFO proporciona uma interpretação da produção de documento arquivístico pela perspectiva de que esta ocorre como resultado de um processo planejado, que é realizado pela organização no papel de produtora de documentos, na concretização do que foi especificado em planos.
O contexto administrativo subsome-se a BFO por meio da representação das funções do negócio e suas partes, da estrutura organizacional e suas partes, de seus membros, dos papéis que estes desempenham e das regras organizacionais que regulam tudo isso. BFO traz a perspectiva de que regras são estabelecidas por informações diretivas e que regulam a execução de funções organizacionais. Traz também a perspectiva de que as funções de negócio são realizadas por pessoas que, quando atribuídas a papéis, fazem com que essas pessoas sejam institucionalmente reconhecidas na autoria dos documentos.
Conceitos da Arquivologia subsomem-se a BFO no que diz respeito à produção documental, mas BFO, por ser uma ontologia de alto nível, não aborda as especificidades do domínio da produção documental arquivística. Entretanto, como pudemos observar nesse estudo, a extensão de BFO para atender às demandas arquivísticas ocorreria de forma simples, natural e estritamente alinhada com BFO, com a especialização direta de conceitos de BFO como documento (para documento arquivístico), papel (para criador de documento e papéis administrativos), processo planejado (para processo de criação e processos de negócio), informações diretivas (para instrumentos de gestão documental e documentos que registram o contexto jurídico-administrativo), entre outros. Isso demonstra o poder de BFO como ontologia de alto nível.
Agradecemos à equipe do Projeto “Geologia digital: Busca integrada de dados geocientíficos heterogêneo”, que oportunizou e contribuiu com o desenvolvimento deste estudo, em especial à Viviane Pereira Moreira, coordenadora.
Coleta de dados: M. M. Löw
Análise de dados: M. M. Löw, R. P. Rocha
Discussão dos resultados: M. M. Löw, R. P. Rocha, M. Abel, L. Garcia
Revisão e aprovação: R. P. Rocha, M. Abel
marietalow@gmail.com.brmarabel@inf.ufrgs.brrafael.rocha@ufrgs.brluan.garcia@inf.ufrgs.br


