Artigo Original

POPULARIZAÇÃO CIENTÍFICA E DESINFORMAÇÃO: REFLEXÕES A PARTIR DE PERCEPÇÕES PÚBLICAS DA CIÊNCIA

SCIENTIFIC POPULARIZATION AND DISINFORMATION: REFLECTIONS FROM PUBLIC PERCEPTIONS OF SCIENCE

Andreza Pereira Batista
Universidade Federal do Ceará, Brazil
Gabriela Belmont De Farias
Universidade Federal do Ceará, Brazil
Jefferson Veras Nunes
Universidade Federal do Ceará, Brazil

POPULARIZAÇÃO CIENTÍFICA E DESINFORMAÇÃO: REFLEXÕES A PARTIR DE PERCEPÇÕES PÚBLICAS DA CIÊNCIA

Encontros Bibli: revista eletrônica de biblioteconomia e ciência da informação, vol. 27, pp. 1-21, 2022

Universidade Federal de Santa Catarina

Recepção: 20 Dezembro 2021

Aprovação: 11 Outubro 2022

Publicado: 07 Novembro 2022

RESUMO

Objetivo: Discutir acerca da popularização científica a partir do que é evidenciado no relatório da Article 19 e nas percepções públicas da Ciência e Tecnologia salientadas nos estudos do Centro de Gestão Estratégica e da Wellcome Trust. Pretende entender de que forma popularizar a ciência pode amenizar as situações visualizadas nos estudos supracitados, especialmente quando se trata da desinformação e da crise sanitária ocasionada pela Covid-19.

Método: Utiliza a pesquisa bibliográfica e documental, de nível exploratório e com abordagem qualitativa, e para a análise dos dados a análise de conteúdo. Faz uso dos relatórios The Global Expression Report 2020, da Article19, Wellcome Global Monitor 2018, da Wellcome Trust, e Percepção pública da C&T no Brasil - 2019, do Centro de Gestão Estratégica. Resultados: Identifica as relações entre o conhecimento sobre ciência, condições socioeconômicas e acesso à internet, bem como entre a comunicação e a confiança na ciência. Acerca da desinformação, percebe que pode ter seus efeitos diminuídos a partir da disseminação dos resultados dos estudos, especialmente ao se colocar sob o crivo da apropriação das informações a partir das ações de popularização científica.

Conclusões: A popularização científica pode ser um instrumento significativo no combate à desinformação e, ao promover a apropriação das informações científicas pela população em geral, auxilia sobremaneira no desenvolvimento social. Interpreta-se que preparar os sujeitos cognoscentes é a forma mais eficaz de controle das informações falsas e prejudiciais ao convívio social, com destaque para o contexto da Covid-19.

PALAVRAS-CHAVE: Comunicação da ciência+ covid-19+ desinformação+ popularização da ciência.

ABSTRACT

Objective: It discuss the scientific popularization from what is evidenced in the Article 19 report and in the public perceptions of Science and Technology highlighted in the studies of the Centro de GestãoEstratégica and the Wellcome Trust. It intends to understand how popularizing science can mitigate the situations visualized in the aforementioned studies, especially when it comes to disinformation and the health crisis caused by Covid-19.

Methods: It uses bibliographic and documental research, of exploratory level and qualitative approach, and for the data analysis the content analysis. It makes use of the reports The Global Expression Report 2020, by Article 19, Wellcome Global Monitor 2018, by the Wellcome Trust, and Public Perception of S&T in Brazil - 2019, by the Centro de GestãoEstratégica.

Results: It identifies the relationships between knowledge about science, socioeconomic conditions and internet access, as well as between communication and trust in science. About disinformation, they realize that it can have its effects diminished from the dissemination of the results of studies, especially by putting under the scrutiny of the appropriation of information from the actions of scientific popularization.

Conclusions: Scientific popularization can be a significant instrument in combating disinformation and by promoting the appropriation of scientific information by the general population, it helps social development. It is interpreted that preparing the cognizant subjects is the most effective way to control false and harmful information to social coexistence, especially in the context of Covid-19.

KEYWORDS: Communication of science, covid-19, disinformation, popularization of science..

1 INTRODUÇÃO

A ciência se desenvolve mediante as diversas interações socioculturais, assim como todos os campos de conhecimentos, haja vista que sua gênese advém dos múltiplos contextos constituintes da sociedade, que se recombina no decorrer do tempo. Dessarte, não há uma desassociação da ciência com o social, pois os objetos de pesquisa não nascem em si mesmos, especialmente quando lidamos com áreas como as Ciências Humanas e Sociais, que em suas gêneses tratam de fenômenos sociais como subsistência para o desenvolvimento do conhecimento científico e social.

Assim, pela complexidade dos fenômenos culturais, a ciência se constrói e se legitima pela vinculação das relações com o social e do que desenvolve de associações e conflitos. Há uma retroalimentação do processo que faz os pesquisadores buscarem nas conjunturas coletivas, problemáticas para serem estudadas mediante critérios técnicos e, assim, retornem conhecimentos em forma de comunicação dos resultados em prol do desenvolvimento social. A reprodutibilidade das pesquisas só é possível a partir da disseminação, e esta, por sua vez, se faz no campo das regras de controle inerentes ao meio acadêmico. Até que ponto esta coexistência influi uma sobre a outra suscita indagações complexas, mas o que se pode afirmar é que diferentes contextos atuam no resultado discursivo e nas relações estabelecidas.

É preciso reconhecer que a ciência não é absoluta e não existe conhecimento totalmente verdadeiro, haja vista que sua concepção básica é pautada na falibilidade dos paradigmas e nas constantes modificações que tornam as disciplinas mais especializadas. Outrossim, as reflexões suscitadas pelas investigações perpassam pela manutenção social e individual nas formas de comunicação das mensagens, o que também pode direcionar para questionamentos acerca do controle do discurso e sua relação com a desinformação. Neste ínterim, a Ciência da Informação possui em seu cerne a relação com o humano e suas necessidades de informação (BEMBEM, 2013). Por ser um campo interdisciplinar, a Ciência da Informação apresenta subsídios para a organização e disponibilização das diversas informações, mediando-as de forma a torná-las acessíveis e úteis aos usuários, semelhante ao que é visualizado nas ações de divulgação e popularização científica.

Tendo em vista o contexto apresentado, o artigo tem como objetivo discutir como a popularização da ciência, mediante a divulgação de relatórios e estudos realizados por organizações nacionais e internacionais, podem ajudar no combate à desinformação sobre

Covid-19. Para tanto, no presente artigo serão considerados o relatório Article 19 (2021a; 2021b) e nas percepções públicas da Ciência e Tecnologia (C&T) salientadas nos estudos do Centro de Gestão Estratégica (CGEE) e com supervisão do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTI) (CGEE, 2019) e da Wellcome Trust (2019). Almeja-se evidenciar pontos de proximidade entre os documentos, de modo a entender de que forma as ações de popularização da ciência podem agir para amenizar as situações visualizadas nas pesquisas supracitadas, especialmente o cenário de desinformação.

2 DISCURSO, DIVULGAÇÃO E POPULARIZAÇÃO DA CIÊNCIA

O sistema de ensino acadêmico-científico é uma continuidade de ritos e regras passadas entre os sujeitos, que estabelecem hierarquias de saberes e se apropriam dos discursos gerados no contexto educacional. Não está diretamente relacionado com a reprodução passiva, mas se dá pela passagem de saberes entre seres em meio a contextos de grupos teóricos, hierarquizando e determinando papéis sociais, mesmo que em uma circunstância mais restrita. A ciência se faz a partir de abstrações individuais e coletivas, relacionadas entre si e com a construção identitária do indivíduo.

Nesse sentido, Bourdieu (2004) compreende que a especificidade dos diferentes campos científicos advém do que é acordado pela maioria, o que também é um tipo de controle dos discursos. A autonomia das produções culturais passa pelo crivo de quem as domina, e não se tratam somente daqueles que são hierarquicamente superiores, mas também das instituições e detentores do capital financeiro. Assim, é necessária uma ciência que escape a essas leis sociais extremas, que rompam com as estruturas sociais vigentes em prol da inovação e que passe pela restituição dos saberes para as sociedades por meio da divulgação dos diferentes discursos.

Tais questões perpassam pelas relações entre discurso, poder e verdade, e os pontos em que os discursos passam a ser exercidos e distribuídos em diferentes contextos, como ocorre na academia/ciência, abordadas em Foucault (1999). Esses discursos se colocam no plano da performance e passam por interdições e tabus, por sistemas de exclusão, caracterizados pelo policiamento constante que separa e aproxima desejo e poder, que mantém e comporta a organização e o controle. Dessarte, Foucault (1999) se aproxima de Bourdieu (2004) ao pensar os discursos da ciência enquanto próprios dos enquadramentos dos campos científicos, visto que esta possui regras próprias que o caracteriza e lhe confere a possibilidade de determinação.

Os discursos da ciência utilizam uma linguagem formalizada e técnica, responsáveis por lhe conceder identidade e gerir as interpretações dos fenômenos. Há a necessidade da aplicação de métodos que ao mesmo tempo concedem rigor às pesquisas e potencialmente as molda e ritualiza, além de permitir sua reprodutibilidade por outrem, o que garante o caráter técnico do estudo. Ressalta-se que não se defende aqui a cessação do uso das linguagens tais quais caracterizam a ciência, mas sim identificar a necessidade de ir além dos ambientes e canais formais e direcionar os discursos para vias mais democráticas de acesso pelas sociedades.

Ruiz Zafón (2017) aponta em um de seus romances que se escreve para si mesmo e reescreve-se para os outros, e nesse reescrever é que as interações e as influências advindas dos processos de construção do discurso se fazem mais presentes. Afinal, até que ponto o discurso saí da posição de outro e se torna próprio? Nesse sentido é que se entende que não existe neutralidade completa na ciência e o afastamento do autor é puramente simbólico, pois as parcialidades presentes nas mensagens são próprias de suas escolhas, percepções também encontradas em Santos (2008) ao se referir que toda ação humana é carregada de subjetividades múltiplas.

Como efeito, elas manifestam-se nas formas em que os autores divulgam e popularizam as informações em C&T. Isto posto, a “[…] divulgação científica tem por objetivo promover o entendimento da linguagem científica e tecnológica para os não especialistas, tornando as informações acessíveis para o público em geral", de acordo com Farias e Lima (2020, p. 20). Essas ações são múltiplas e interdisciplinares, e tem como foco a tradução e adequação do discurso científico à população geral e ao que o momento comunicativo exige.

Por conseguinte, os processos comunicadores especializados baseiam-se em canais formais, como a publicação em revistas científicas e anais de eventos, que podem não serem acessíveis ao público geral não pela sua disponibilidade, visto que atualmente a maioria é hospedada em sites na internet, mas devido sua linguagem técnica. Outrossim, Targino e Torres (2014, p. 07) afirmam que “[…] a facilidade de circulação de informações nem sempre é sinônimo de divulgação científica. A delimitação do que é ou não científico está irremediavelmente sujeita a complexo julgamento de valores”, podendo assumir a forma de reforço de ideias particulares, o que torna a discussão complexa em decorrência da acessibilidade das informações dispostas nos canais formais de comunicação científica. Não se trata necessariamente da divulgação científica como um fim em si, mas de sua inserção e apropriação em âmbito coletivo, bem como as mudanças nas dinâmicas de consumo das informações provenientes dos estudos especializados.

Não é uma tarefa simples realizar esta atividade, visto que no processo de adaptação podem ocorrer inúmeras alterações não intencionais. Muller (2002, p. 2) compreende que “Sob o ponto de vista estritamente técnico, a dificuldade mais visível está em reduzir conceitos complexos, que demandam domínio de conhecimento e linguagem especializada, a uma linguagem compreensível para pessoas sem treinamento específico”, pois uma tradução nunca consegue ser completamente fiel ao original. Contudo, dada as especificidades do fenômeno, essa questão está mais relacionada à popularização científica do que à divulgação.

A popularização da ciência se refere ao processo de comunicação voltado à disseminação para o público geral, doravante audiência de massa, e envolve estruturas grandes e difusas que variam a partir do grupo, bem como intermediários responsáveis por criar uma representação abstrata das informações em C&T direcionadas à essa audiência, como os jornalistas (CARIBÉ, 2015). Aprende-se que ao popularizar o foco está no receptor das mensagens, o que exige do pesquisador despir-se das formalidades dos discursos técnicos e adaptar conceitos complexos à formas entendíveis, prezando a manutenção do seu significado. Destarte, Motta-Roth (2009, p. 193) afirma que a popularização tem três eixos centrais que justificam sua necessidade de existência:

1. o dever dos meios de comunicação (mais e menos acadêmicos) de informar a sociedade sobre o avanço do conhecimento; 2. a responsabilidade do mediador (seja jornalista ou autor de livros) em explicar princípios e conceitos para que a sociedade avance na transformação conjunta do conhecimento; e 3. a necessidade da sociedade entender a relevância da pesquisa para que continue financiando a empreitada científica.

Tais eixos direcionam para o entendimento de três atores que se relacionam para que a popularização ocorra: meios de comunicação, mediador e sociedade. Há uma relação direta entre o intermediador e os meios de comunicação, haja vista que a mediação ocorre por meio da utilização de recursos diversos para que essas ações possam ocorrer, sejam mediante linguagem escrita, verbal, visual, dentre outras. A transformação conjunta suscitada pela autora remete à participação da audiência nas ações - e nisso se incluem o planejamento, a execução e a posterior avaliação -, pois o conhecimento só é construído quando há uma internalização de informações e vivências.

Contudo, quanto ao ator social, segundo o estudo Wellcome Global Monitor, de 2018, as sociedades civis estão cada vez mais se distanciando da ciência, de modo que, globalmente, 18% das pessoas possuem um nível ‘elevado’ de confiança nos cientistas, enquanto 54% têm um nível 'médio', 14% afirmam ter um nível 'baixo' e 13% disseram 'não sei’ acerca do questionamento (WELLCOME TRUST, 2019)1. Embora a maior parte do que está relacionado positivamente com esse nível de confiança não possa ser explicada, de acordo com o documento, a aprendizagem da ciência na escola ou em instituições de ensino superior e a confiança nas principais instituições organizadas, como o governo, são fatores fortes que podem influenciar no cenário exposto.

Com efeito, esses dados indicam à necessidade de se fazer a comunicação da ciência de forma consciente, a fim de permitir que o conhecimento não seja excludente e restritivo a determinadas comunidades, mas integrados às diversas populações. Destarte, possibilita-se o pleno exercício da cidadania e a liberdade de expressão de forma completa, com entendimento de seus direitos e deveres no âmbito das coletividades. Para isso, cabe também aos pesquisadores das diferentes áreas reconhecerem seu papel nas ações, de modo a evitar distorções, interpretações equivocadas e desinformação em relação à C&T.

Além das informações visualizadas no relatório da Wellcome Trust (2019), o CGEE (2019) realizou um estudo sobre a percepção pública em C&T no Brasil, em 2019. Foram entrevistadas 2.200 pessoas com idade superior a 16 anos em que foram obtidos dados passíveis de comparação tanto com suas edições anteriores (1987, 2006, 2010 e 2015) quanto com indicadores de pesquisa em outros países.

Segundo o relatório, 73% dos entrevistados acreditam que a C&T traz mais benefícios que malefícios para a sociedade, mantendo uma visão otimista. No entanto, poucos souberam citar o nome de um pesquisador ou de instituições de pesquisas e universidades. Já sobre a confiança nos intermediários, cientistas de universidades/institutos públicos de pesquisa e/ou de empresas encontram-se em terceiro lugar (34%), jornalistas (38%) e médicos (49%). Há, também, uma relação proporcional entre a alta escolaridade e o interesse pela C&T, e apesar da maioria dos brasileiros não a buscam diretamente, compreendem que a ciência é a chave para o futuro (CGEE, 2019).

Ademais, “Os resultados indicam o quanto é importante investir em divulgação da ciência e tecnologia” (CGEE, 2019, p. 17). Há uma carência na divulgação do que é feito nas instituições de pesquisa, mas, indo além, isto não significa que é preciso só difundir, mas sim, fazer com que as informações cheguem de modo entendível ao público, e nesse momento é que a popularização da ciência se justifica ao criar possibilidades de apreensão das informações em C&T, reduzindo a desinformação.

3 DESINFORMAÇÃO, INFORMAÇÃO ERRADA, INFODEMIA E COVID-19

As revoluções tecnológicas trouxeram consigo inúmeros benefícios e desenvolvimentos sociais, culturais e científicos, entretanto também impulsionaram diversos fenômenos vinculados à circulação de informações em massa, como a desinformação (disinformation), a informação errada (misinformation) e a infodemia (infodemic). Fallis (2009) afirma que indivíduos podem adquirir falsas crenças como resultado de informações inexatas e enganosas, sendo a desinformação aquela destinada a realmente enganar a audiência e a informação errada um erro “honesto” ou acidental. Logo, a principal diferença entre ambos repousa nas intenções de quem comunica.

De acordo com o Fallis (2009), a desinformação não é um fenômeno novo, mas vem se tornando uma ameaça à qualidade da informação devido às facilidades advindas das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Este fenômeno, segundo Vignoli, Rabello e Almeida (2021, p. 8), “[…] não necessita proceder de quem a cria, e mesmo que tenha sido criada ou divulgada de forma inocente, ainda é desinformação. A informação não necessita ser precisa para ser desinformação, mas necessita ser enganosa”. Trata-se de um produto do planejamento cuidadoso e tecnicamente sofisticado para se passar por idônea, frequentemente verbal ou escrita e distribuída de forma mais ampla, como em mídias sociais na internet. É tido como um problema crítico para a Ciência da Informação.

Já a informação errada, conforme Vignoli, Rabello e Almeida (2021, p. 7), é advinda da carência de informação, não se caracterizando como informação semântica, mas como uma “[…] pseudoinformação. Portanto, sua confiabilidade é prejudicada” (ressalta-se que os autores se utilizam da tradução de misinformationcomo misinformação). Quando vinculada à produção do conhecimento acadêmico, ela “[…] se afirma ingenuamente respaldada na aceitação social de algo, supostamente, verificável racionalmente”, entretanto é uma representação ilusória do discurso factual. Por conseguinte, conteúdos enganosos podem se passar por confiáveis, “[…] mas a checagem é um critério essencial para demonstrar como delírios e ficções originam ou se convertem em misinformação e/ou em desinformação, à luz da intencionalidade envolvida”.

A desinformação e a informação errada “[…] afetam e provocam ações e práticas”, a partir da materialidade e intencionalidade dos discursos enunciados (VIGNOLI; RABELLO; ALMEIDA, 2021, p. 10). Assim, ambas podem ser compreendidas enquanto fenômenos próximos e por vezes complementares, fundamentadas na aceitação social da informação veiculada enquanto verdadeira.

Ainda nessa perspectiva, as discussões sobre desinformação e informação errada aparecem constantemente associadas ao conceito de pós-verdade. Para Cooke (2017), a era da pós-verdade compreende o momento contemporâneo em que os sujeitos tendem a aceitar com mais facilidade de informações fundamentadas em emoções e concepções pessoais em detrimento daquelas baseadas em fatos. Nesse contexto, as notícias falsas encontram terreno fértil para se reproduzirem, além de dificultar o combate à desinformação e impulsionar fenômenos como a infodemia.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a infodemia como a superabundância de informações, precisas ou não, que acontecem numa epidemia, vinculadas ao seu consumo e divulgação em plataformas e canais de comunicação social. O fenômeno “Espalha-se entre seres humanos de forma semelhante a uma epidemia, através de sistemas de informação digital e física. Torna difícil para as pessoas encontrar fontes de confiança e orientação fiável quando dela necessitam” (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020, p. vii, tradução nossa)2. No contexto da pandemia de Covid-19, a situação se agrava devido à escala global de emergência.

A despeito da pandemia, no ano de 2020 os países tiveram que lidar com a crise sanitária provocada pelo vírus SARS-CoV-2, síndrome respiratória aguda grave altamente transmissível que ocasiona a doença Covid-19. Tal cenário culminou no fechamento de fronteiras e demais medidas de restrição em prol de evitar a propagação do vírus e a escalada de mortes. Houve esforços coletivos de cientistas e jornalistas em disseminar informações idôneas acerca da doença, entretanto, pela sua condição emergencial, a infodemia, a desinformação, a informação errada e as notícias falsas também se reproduziram em proporções preocupantes e perigosamente próximas ao caos social. Dito isso, um relatório publicado pela Article 19 (2021a; 2021b) apresenta o cenário da liberdade de expressão referente ao ano de 2020 em 161 países, em que aborda não somente o contexto da pandemia do coronavírus, mas também sua relação com a informação errada, a desinformação e as notícias falsas. O documento é enfático ao afirmar que na conjuntura imposta pela doença, os supracitados fenômenos se tornam uma questão de vida ou morte, associada também à crise na liberdade de expressão e na confiança nos meios de comunicação e em autoridades, como os cientistas. Frequentemente, os conteúdos verdadeiros são manipulados e reconfigurados para representarem discursos inverídicos, o que torna os efeitos nocivos da desinformação palpáveis.

Os dados indicam que diversos governos fizeram uso da pandemia para deixar a opinião pública em segundo plano, preocupando-se mais com o controle das narrativas do que da doença, de modo que “[…] tomaram decisões sem fazer consultas, enfraqueceram a supervisão, centralizaram os poderes e limitaram a prestação de contas” (ARTICLE 19, 2021a, p. 5), o que representa um ataque ao estado democrático de direito. Houve violações quanto ao compartilhamento e acesso às informações, especialmente no que concerne a ataques à imprensa, com imposições diretas de restrição em relação à disseminação de notícias (dois terços dos países), que ferem a prerrogativa da liberdade de expressão e fomenta a desinformação e a informação errada.

Ressalta-se no documento que no continente americano há um ambiente de negação e desinformação quanto à crise sanitária. Das Américas, o texto se debruça sobre o México e o Brasil, e em relação a este último, aponta que ele decaiu de less restricted (menos restrito) para restricted (restrito) em cinco anos (2015-2020), passando a ser considerado um país em crise democrática com agressões diretas a diversas instâncias não vistas desde o fim da ditadura militar, em 1985. “O Brasil é a tempestade perfeita de questões de expressão contemporânea: populismo autocrático, desinformação, desigualdade aguda, e controle tecnológico” (ARTICLE 19, 2021b, p. 65, tradução nossa)3.

Trata-se de uma conjuntura preocupante, em que a própria validade da ciência e dos cientistas são colocadas à prova, com um movimento anticiência crescendo alarmantemente. Desse modo, faz-se necessária a visibilidade mais ostensiva dos produtos advindos das pesquisas, e a popularização científica é um caminho viável. Bourdieu (2004) acredita que os pesquisadores deveriam trabalhar na restituição do saber às massas, ou caso não o façam, tentar controlar a forma como os discursos são realizados, evitando distorções e más condutas no uso dos saberes especializados, haja vista que o desenvolvimento da ciência pressupõe a comunicação dos resultados dos estudos especializados.

4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O presente estudo é uma pesquisa bibliográfica e documental, de nível exploratório e com abordagem qualitativa, e utiliza para a análise dos dados a análise de conteúdo. O uso da pesquisa exploratória se justifica por ela "[…] proporcionar visão geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado fato" (GIL, 2008, p. 27). A abordagem qualitativa foi empregada pela análise subjetiva dos dados, pois, conforme Prodanov e Freitas (2013, p. 70), ela lida com a interpretação de fenômenos e considera que há "[…] um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito", mostrando-se adequada para o objetivo da pesquisa.

Segundo Silveira e Córdova (2009, p. 37), “tem como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses” e envolve o levantamento de materiais já publicados, o que coloca o pesquisador em contato com o que já foi difundido sobre a temática de estudo. Já a pesquisa documental, conforme Marconi e Lakatos (2013), abrange documentos de fontes primárias, sejam agrupados pelos próprios pesquisadores, sejam compilados por órgãos governamentais ou privados, como é o caso dos relatórios aqui utilizados.

Para a construção do aporte teórico, o levantamento bibliográfico contou com a busca nos campos ‘título’ e ‘palavra-chave’ da Base de Dados em Ciência da Informação (BRAPCI) no mês de agosto de 2021. Adotou-se os termos “popularização da ciência”, “discursos da ciência”, "infodemia" e "desinformação", e emprego de truncamentos, com os resultados ordenados por relevância de acordo com os critérios da base. Após a retirada das duplicadas, foram recuperados 52 artigos, entretanto, selecionou-se 25 mediante a leitura do título, resumo e palavras-chaves, a identificação do idioma em português, inglês ou espanhol, disponibilidade integral do texto e sua adequação para os objetivos do estudo. Deste total, alguns documentos apresentaram problemas no arquivo, sendo necessária a busca na fonte original, como nas revistas.

Também se fez uso do repositório institucional e do acervo do Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Ceará (UFC), bem como a observação das referências dos materiais lidos. A fim de inferir convergências entre os documentos e os fenômenos em apreciação, avaliou-se os relatórios com abrangência global: “The Global Expression Report 2020", da Article 19 (2021a; 2021b), tendo em vista a sua relevância perante o contexto de crise sanitária ocasionada pela Covid-19 e as relações que estabelece ao longo do documento com a ciência, a sociedade e a desinformação em âmbito global; e “Wellcome Global Monitor 2018”, da Wellcome Trust (2019), uma vez que apresenta o cenário da confiança e da importância da ciência e da saúde para as diversas populações ao redor do mundo; além do relatório realizado com a população brasileira “Percepção pública da C&T no Brasil - 2019”, do CGEE (2019), pois avalia, em uma perspectiva local, a relação dos brasileiros com a C&T. Ao visualizar os supracitados documentos, pode-se interpretar como a ciência atua na realidade dos sujeitos em diversas realidades sociais, especialmente quanto ao consumo dos discursos especializados.

Quanto à análise de conteúdo, Marconi e Lakatos (2013) afirmam que ela trabalha com a manipulação das mensagens (conteúdo e expressão) e leva em consideração suas formas, significações e distribuição. Segundo Bardin (2011), essa análise compreende três etapas: a) a pré-análise; b) a exploração do material e tratamento dos resultados; e c) a inferência e a interpretação. A pré-análise abrange a organização do material, sistematização da ideia original e estabelecimento das categorias, enquanto a exploração engloba codificar, enumerar e administrar as técnicas sob os materiais. A última parte abrange a síntese, inferências e interpretações dos resultados, de modo que respondam a problemática estabelecida e surjam resultados passíveis de serem alocados em novas análises.

Para este estudo foram estabelecidas as seguintes categorias: 1) entendimentos e interesse da audiência de massa sobre C&T; e 2) relações entre a confiança, a comunicação da ciência e a desinformação. A primeira categoria apresenta três indicadores, a saber: relação entre escolaridade, idade, renda e interesse sobre a C&T; Conhecimento sobre ciência; e acesso a tecnologias digitais/internet e busca por informações em C&T. A segunda categoria também contempla três indicadores, composta por: 1) linguagem e tradução dos discursos; 2) confiança nas fontes científicas/midiáticas e nos cientistas; 3) benefícios da ciência e relação com a desinformação. Todos os métodos e tipos de pesquisa apontados subsidiaram a análise e interpretação dos dados realizados na seção adiante.

5 APONTAMENTOS SOBRE AUDIÊNCIA DE MASSA EM C&T, COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA E DESINFORMAÇÃO

A partir do objetivo estabelecido e na observação dos dados dispostos nos relatórios, as categorias abrangem a relação da ciência com a audiência de massa. Na primeira,“Entendimentos e interesse da audiência de massa sobre C&T”, vê-se que a pesquisa da CGEE (2019) e a da Wellcome Trust (2019) apresentam semelhanças em relação aos três indicadores estabelecidos. Não foram identificadas equivalências diretas no relatório da Article 19 (2021a; 2021b), entretanto é possível aferir relações a partir do que foi visualizado no documento, conforme o quadro 1.

Quadro 1
- Indicadores relacionados à categoria 1 “Entendimento e interesses da audiência de massa sobre C&T”
- Indicadores relacionados à categoria 1 “Entendimento e interesses da audiência de massa sobre C&T”
Fonte: elaborado pelos autores (2021).

O primeiro indicador “Relação entre escolaridade, idade, renda e interesse sobre a C&T” aponta que o Brasil segue a tendência mundial quanto à proporcionalidade entre escolaridade e renda com o interesse e entendimento sobre C&T. Esses dados são esperados ao concatenar a interpretação aos discursos científicos com o aumento da progressão na educação. Ainda assim, não devem ser restritos a comunidades específicas. Por mais que haja uma facilidade na transmissão para as audiências que estão mais preparadas para entender a C&T, isso não isenta a atenção ao traduzir conceitos complexos, pois as distorções mesmo que não intencionais podem ocasionar a informação errada e a diminuição da confiança na ciência, além de tornar o receptor mais suscetível a acreditar em notícias falsas e que vão ao encontro de ideias e opiniões pessoais.

Em relação à idade, é demonstrado que o Brasil reflete o índice mundial em relação ao interesse em C&T, com a maior concentração advinda da faixa etária jovem, especialmente entre 15-29 anos. A Wellcome Trust (2019) afirma que os dados podem estar relacionados com a proximidade dessas pessoas com o ambiente escolar, e aqui se incluem tanto a educação básica quanto a superior, pois o CGEE (2019) também apresenta que o desinteresse pela C&T cai para quase zero entre indivíduos de nível superior.

Outrossim, também pode-se direcionar a interpretações para os investimentos governamentais em educação e em políticas públicas de subsistência. A preocupação com o que é desenvolvido no campo científico diminui quando há outras prioridades vinculadas a sanar necessidades básicas como a alimentação, de modo que as questões suscitadas perpassam pelo envolvimento coletivo em proporcionar condições para que o interesse possa existir.

O segundo indicador “Conhecimento sobre ciência” mostra que os dados sobre o Brasil estão aquém do índice mundial e da própria América do Sul, uma vez que 35% dos entrevistados pela Wellcome Trust (2019) dizem saber algumas informações sobre ciência. Apesar disso, a pesquisa nacional aponta que os brasileiros entendem a ciência como “chave para o futuro” e responsável pelo desenvolvimento industrial e tecnológico (CGEE, 2019).

Há uma vontade advinda das audiências em querer conhecer mais sobre a C&T, de forma que a popularização da ciência é uma solução legítima para incorporar nos discursos coletivos o fazer científico, visto que não é vinculada a uma área ou a um grupo de pesquisadores, mas sim à responsabilidade dos cientistas em retornar à sociedade o que é produzido nas instituições de pesquisa. Possibilitam mecanismos não somente de apropriação, mas bases críticas para questionar o que está posto com fatos validados e provenientes de métodos com respaldo técnico.

O terceiro indicador “Acesso a tecnologias digitais/internet e busca por informações C&T” apresenta que o acesso à internet é um fator importante na busca por informações em C&T e saúde, o que pode direcionar para um comportamento autônomo informacional. Entretanto, o acesso por si só não garante que há a prática de pesquisa sobre tais temáticas, pois apesar de 70% dos brasileiros declararem acessar todos os dias a internet, a maioria não as procura diretamente (CGEE, 2019). Desse modo, a questão é muito mais complexa do que só tornar localizável e acessível a informação, mas desdobra-se em despertar na audiência o interesse pela C&T, conforme é dito por Targino e Torres (2014) ao se referirem à facilidade de circulação das supracitadas informações.

A apropriação do conhecimento advindo da C&T pelos cidadãos ao acessar as diversas mídias digitais abre precedentes para que tal uso seja possível mediante o contato destes indivíduos com fontes especializadas, mesmo sem entender o que estavam consumindo, visto que a divulgação e popularização da ciência se valem da propagação em vocabulário semântico aproximado à realidade dos sujeitos. Ademais, a compreensão dos indivíduos sobre o que de fato seria ciência sucinta discussões próprias quanto ao consumo e compreensão dela em mídias digitais, como em relação a validação do discurso divulgado, de modo que a complexidade do tema desperta a necessidade de um estudo específico para avaliar tal percepção.

Além disso, quando se coloca em pauta a pandemia de Covid-19, a infraestrutura digital criou um distanciamento entre os diferentes grupos sociais e prejudicou o combate ao vírus. A Article 19 (2021b, p. 32, tradução nossa) entende que a decisão dos governos em “[...] confiar na tecnologia e na distribuição online de informação agravou a marginalização de alguns grupos, e particularmente afetou as crianças, cuja escolaridade estava, de repente, inteiramente on-line”. Não significa dizer que se deve privilegiar o uso de outras formas comunicacionais em detrimento das tecnologias (uma vez que muitas pessoas se informam por meio de mídias sociais4), mas sim observar as questões sociais que foram aprofundadas em decorrência da crise sanitária.

A busca autônoma por informações em C&T é mostrada nas pesquisas, entretanto esbarra na questão da linguagem dos discursos e na necessidade de tradução apontada por Farias e Lima (2020) e Muller (2002). Desse modo, a segunda categoria, “Relações entre a confiança, a comunicação da ciência e a desinformação”, apresenta três indicadores e, embora novamente não haja encadeamentos diretos com o relatório da Article 19 (2021b), foi possível estabelecer conexões entre o texto e as percepções públicas da C&T, a saber (quadro 2):

Quadro 2
- Indicadores da categoria 2 “Relações entre a confiança, a comunicação da ciência e a desinformação”
- Indicadores da categoria 2 “Relações entre a confiança, a comunicação da ciência e a desinformação”
Fonte: elaborado pelos autores (2021).

O primeiro indicador “Linguagem e tradução dos discursos” depreende que a linguagem científica pode se tornar compreensível quando explicada ao público geral, isso porque, conforme já apontado anteriormente, os discursos acadêmicos são envoltos em estruturas semânticas formais e subjetivas, ininteligível a uma parcela das comunidades. Ao fundamentar os caminhos para a apreensão da ciência, retoma-se o que afirma MottaRoth (2009), a popularização é parte do dever de propagar o avanço do conhecimento e transformá-lo em benefício do progresso coletivo.

A subjetividade, na concepção de Santos (2004), é carregada de significâncias múltiplas que leva os pesquisadores a compreender, ou melhor, tentar entender as relações construídas socialmente e, por conseguinte, o conhecimento advindo delas, não ignorando o senso comum enquanto celeiro de fenômenos sociais a serem colocados sob a ótica da ciência. Assim, a popularização das informações em C&T encontra seu lugar no fazer científico, em trazer o senso comum, reformulá-lo e permitir a apropriação das informações pelos seres sociais, além de facultar aos cidadãos o reconhecimento da desinformação, em conformidade com a Article 19 (2021b).

O segundo indicador “Confiança nas fontes científicas/midiáticas e nos cientistas” apresenta que as pessoas mantêm a confiabilidade nos pesquisadores. Os dados do CGEE (2019) constatam que os cientistas de universidades/institutos públicos só estão atrás dos médicos, ao qual vale destacar a manutenção da alta credibilidade das instituições financiadas por recursos públicos, visto que elas são responsáveis por boa parte da produção de conhecimento científico.

Em contrapartida, globalmente, apenas 18% dos participantes possuem uma confiança alta na ciência, índice próximo daqueles que têm confiança baixa, com 14% (WELLCOME TRUST, 2019). Os outros 54%, de confiança média, podem corresponder a parcela que entende os discursos em C&T, mas não o suficiente para confiar integralmente. Não se coloca aqui como uma atitude prejudicial, pois ele talvez seja alusivo ao pensamento crítico e questionador tão necessário para os avanços sociais. Claro que a opinião não se sobrepõe aos métodos consolidados, quando se fala da ciência, mas o posicionamento analítico é basilar na construção dos estudos especializados.

A crise na confiança nos meios de comunicação social (ARTICLE 19, 2021b) impulsiona a desinformação, a informação errada e a infodemia. Os discursos provenientes deste fenômeno são perigosos quando visualizados sob a ótica da experiência, e ao se adotar a visão de Foucault (1999), perpassam também pelos mecanismos de controle e manutenção dos sistemas, o que acaba por mostrar que há uma proliferaram consciente e ao mesmo tempo inconsciente das diversas mensagens. Tal cenário pode trazer consigo características prejudiciais para a sociedade a depender da posição hierárquica do emissor do discurso e de suas intenções, como vem ocorrendo na pandemia no que confere as colocações de lideranças políticas de diversos países acerca dos desdobramentos da crise sanitária, como em relação às vacinas.

Como efeito, o terceiro indicador “Benefícios da ciência e relação com a desinformação” abrange que os participantes dos estudos observam proveitos da C&T para a economia e o bem-estar. Contudo, essas vantagens só conseguem ser percebidas quando as informações são disseminadas e visualizadas, inclusive quando se pretende minimizar os impactos da desinformação. Na busca da restituição do saber pontuada por Bourdieu (2004), o controle da propagação das comunicações científicas deve ser realizado com cuidado e abranger diversas instâncias de transmissão das mensagens.

Oliveira (2007, p. 18) acrescenta ainda que o conhecimento científico não é simplesmente constituído e reelaborado levando em consideração o social, mas produzido a partir de normas, valores e condutas de quem o escreve, expressando-as em algum nível.

Dessarte, alimentar com diferentes vozes os discursos científicos, inclusive aqueles que se pretende popularizar, entende "[…] múltiplas representações uns dos outros, de si mesmos, da ciência e da realidade social". Constitui um processo de representação simbólica das comunicações no âmbito das coletividades e pode evitara desinformação, especialmente ao constituir elementos para que os atores sociais se apropriem das diversas comunicações da ciência.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A profusão do conhecimento permeia a cognição do sujeito à medida que este compreende e internaliza as distintas práticas comunicacionais e que moldamsuas opiniões. Nesse contexto, a ciência se constitui de fenômenos provenientes da natureza, da sociedade, e, muitas vezes, inicia seu processo investigativo a partir do que é dito pelo senso comum. Assim, há uma responsabilidade dos pesquisadores em retornar às audiências os resultados da progressão das informações em C&T, sejam a partir de canais formais (comunicação científica) ou por ações de popularização da ciência.

Isto posto, expôs-se interpretações e reflexões acerca da popularização científica e da desinformação a partir dos dados presentes nos estudos da Article 19 (2021a; 2021b), do CGEE (2019) e da Wellcome Trust (2019). Os documentos analisados revelam que as instituições educacionais são importantes para haver educação e popularização dos conhecimentos científicos, de modo que é essencial que os pesquisadores atuem nesses ambientes tendo em vista despertar e manter o interesse pelas informações em C&T.

Há a necessidade de dar visibilidade às autoridades como medida de combate à desinformação, diminuindo os efeitos da infodemia. Trata-se de uma assertiva repetitiva, entretanto, a crise sanitária advinda da Covid-19 demonstrou que os discursos envoltos em informações falsas e que vão ao encontro do aspecto emocional dos sujeitos cresceram em índices alarmantes, especialmente por ser um assunto que trata da vida de pessoas.

Pela complexidade das questões aqui suscitadas, sugere-se que sejam realizadas investigações acerca da relação entre a popularização da informação em C&T e a desinformação a partir de questionamento às distintas audiências, de modo a entender se as reflexões teóricas se reproduzem no campo empírico. Além disso, enquanto parte do domínio do campo da Ciência da Informação, a mediação da informação pode estar relacionada com os processos comunicativos em quaisquer âmbitos, sejam da própria ciência, seja desta para a sociedade, podendo assumir a forma de divulgação e popularização científica. Assim, indica-se também como perspectiva de pesquisa, o aprofundamento das relações teóricas e empíricas entre a divulgação e popularização da ciência e a mediação da informação.

Apesar de o discurso ser tratado como abstrato e imaterial, ele se faz no ser. Preparar os cidadãos para lidarem com as diversas mensagens é a providência mais eficaz no controle da desinformação. Nesse ínterim, a popularização da ciência, ao promover a apropriação das informações em C&T pela população em geral, pode ser um instrumento significativo de combate ao fenômeno, auxiliando sobremaneira no desenvolvimento social e no aumento dos índices de confiabilidade nas instituições científicas e nos próprios pesquisadores.

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Notas

1 “Globally, 18% of people have a ‘high’ level of trust in scientists, while 54% have a ‘medium’ level of trust, 14% have ‘low’ trust and 13% said ‘don’t know” (WELLCOME TRUST, 2019, p. 50).
2 “It spreads between humans in a similar manner to an epidemic, via digital and physical information systems. It makes it hard for people to find trustworthy sources and reliable guidance when they need it” (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020, p. vii).
3 “Brazil is the perfect storm of contemporary expression issues: autocratic populism, disinformation, acute inequality, and technological control” (ARTICLE 19, 2021b, p. 65).
4 Segundo a CGEE (2019, p. 17), “Na internet, a busca ou o acesso a informações sobre C&T por parte dos brasileiros é dominada(o) por três meios: sites de busca (21%) e as plataformas Facebook (13%) e Youtube (11%)”, dados que demonstram a preferência por mídias sociais. De maneira geral, isso pode estar relacionado à simplicidade com que as informações aparecem nas redes, pois precisam prender a atenção do usuário enquanto este navega pela plataforma.
CONJUNTO DE DADOS DE PESQUISA Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
FINANCIAMENTO O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Ceará (FUNCAP).
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PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Publicação no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.
EDITORES Edgar Bisset Alvarez, Ana Clara Cândido, Patrícia Neubert e Genilson Geraldo.

Autor notes

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA Concepção e elaboração do manuscrito: A. P. Batista, G. B. Farias, J. V. Nunes

Coleta de dados: A. P. Batista

Análise de dados: A. P. Batista

Discussão dos resultados: A. P. Batista

Revisão e aprovação: A. P. Batista, G. B. Farias, J. V. Nunes

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