RESUMO
Objetivo: O presente artigo propõe-se a apresentar um panorama sobre três modelos teóricos que abordam a competência em informação em sua perspectiva transformacional, enfatizando suas características e similaridades.
Método: Utiliza a revisão narrativa de literatura, enfatizando as características e similaridades dos três modelos teóricos. Foram analisados o conceito de competência em informação, assim como um breve histórico da evolução do conceito de competência em informação para embasar a análise dos três modelos selecionados, o modelo das Sete Faces (Seven Faces) da competência em informação, o modelo dos Seis Quadros (Six Frames) da competência em Informação e o modelo GeST.
Resultado: A visão transformacional da competência em informação é baseada em Foucault, cuja teoria aborda a relação entre conhecimento e poder, e nos quadros teóricos da Escola de Frankfurt, que consiste de uma visão crítica e busca transformar a realidade social por meio da mudança do status quo, principalmente para populações e sociedades vulnerabilizadas.
Conclusões: Os três modelos analisados possuem diferentes representações do fenômeno da competência em informação compreendido nas práticas informacionais em diferentes contextos, e fornecem uma visão não-hierárquica, mas de complexidade crescente no uso da informação.
PALAVRAS-CHAVE: Competência em informação, modelos teóricos, perspectiva transformacional, emancipação social, teoria Crítica.
ABSTRACT
Objective: This article aims at presenting na overview of analyzing three theoretical models that address information literacy in its transformational perspective, emphasizing its characteristics and similarities.
Methods: By using a narrative literature review, characteristics and similarities of the three theoretical models are emphasized. The concept of information literacy was analyzed, as well as a brief history of the evolution of the concept of information literacy to support the analysis of the three selected models, the Seven Faces of information literacy, the Six Frames of information literacy and the GeST model.
Results: The transformational view of information literacy is based on Foucault, whose theory addresses the relationship between knowledge and power, and on the Frankfurt School theoretical framework, which consists of a critical view and seeks to transform social reality through changing the status quo, especially for vulnerable populations and societies.
Conclusions: The three models analyzed have different representations of the information literacy phenomenon included in information practices in different contexts, and provide a non-hierarchical view, but with increasing complexity in the use of information.
KEYWORDS: Information literacy, theoretical models, transformational perspective, social emancipation, critical Theory.
Artigo Original
A PERSPECTIVA TRANSFORMACIONAL DA COMPETÊNCIA EM INFORMAÇÃO: UMA ANÁLISE DE MODELOS TEÓRICOS
The transformative perspective of information literacy: an analysis of theoretical models
Recepção: 01 Maio 2022
Aprovação: 05 Novembro 2022
Publicado: 30 Novembro 2022
A competência em informação (information literacy), segundo Bruce (2008; 1997), pode ser definida como uma forma de aprendizagem sobre as maneiras de interação com a informação. Lupton (2008) define a competência em informação como uma abordagem de aprendizagem em resposta a um dado contexto, que consiste no envolvimento com práticas de informação para fomentar o pensamento crítico, a autonomia e a aprendizagem ao longo da vida. No mesmo sentido, Belluzzo (2017) define a competência em informação como o processo contínuo de interação entre a internalização de conceitos, atitudes e habilidades referentes ao uso fluente e à compreensão da informação e sua abrangência, na aprendizagem ao longo da vida. Para Lloyd (2010a), a competência em informação catalisa todos os tipos de aprendizagem e pode ser definida como uma prática sociocultural inserida e entrelaçada por meio de práticas que constituem um dado contexto e, como tal, sujeita a arranjos e atividades colaborativas. Portanto, o domínio do uso da tecnologia é apenas um dos componentes da competência em informação, que fornece uma estrutura central para a participação e aprendizagem em todas as áreas da vida (TALJA; LLOYD, 2010), já que a competência em informação é “uma forma de saber” (LLOYD, 2021, p. 2, tradução nossa). Isso ocorre, uma vez que a competência em informação é uma prática sociocultural dependente do contexto (CABRA-TORRES et al., 2020; LLOYD, 2010a) e somente pode ser transformacional enquanto prática social (LUPTON; BRUCE, 2010)1.
Lloyd (2021, tradução nossa, p. 35) conceitua fatores relevantes para o aprendizado e para o desenvolvimento da competência em informação:
como usar as ferramentas de informação - desenvolvendo uma compreensão da finalidade e função das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e software, e a navegação de coleções físicas e (mais recentemente) digitais;
o processo intelectual - processos de criação de conhecimento, definição de necessidades de informação, conceitos-chave, avaliação de fontes relevantes, estratégias de recuperação de informação, princípios de organização da informação e reflexão crítica da aprendizagem com a informação;
habilidades - habilidades de comunicação e interpessoais, compartilhamento de informações, trabalho em equipe, negociação, escuta, colaboração e habilidades de escrita;
normas intelectuais - conhecimento dos referenciais teóricos e métodos associados à investigação em diferentes contextos, precisão e profundidade da informação, papel dos contextos sociais.
As concepções acerca da competência em informação têm evoluído e passaram de uma conceituação tecnicista focada no simples domínio de ferramentas tecnológicas e de conjuntos de habilidades até uma concepção que envolve a capacidade de pensamento crítico para fundamentar escolhas éticas e informadas, voltadas para o bem comum (CORRÊA; CASTRO JÚNIOR, 2018; BERRÍO ZAPATA, 2012), sendo a metacognição um importante componente do pensamento reflexivo no desenvolvimento da competência em informação (PINHEIRO; GASQUE, 2022; GASQUE, 2017).
Campello (2006) propõe que a competência em informação ocorre em um continuum de letramentos que evoluem na medida em que as necessidades de conhecimento e as tecnologias para acessá-las evoluem na sociedade. Lupton e Bruce (2010) fazem uma correlação da competência em informação (information literacy) com modelos de letramento (literacy) para incorporar contribuições teóricas mais amplas à perspectiva de competência em informação, apresentando o letramento (literacy) em três grandes perspectivas: a perspectiva comportamental, em que se prioriza um conjunto de habilidades genéricas; a perspectiva situada em práticas socioculturais e; a perspectiva transformadora, baseada em práticas emancipatórias e críticas. A partir dessa correlação, é possível visualizar como os três modelos teóricos “Sete Faces da Competência em Informação”, “Six Frames of Information Literacy” ou “Seis Quadros da Competência em Informação” e “GeST”, desenvolvidos por meio de pesquisa fenomenográfica2, possuem similaridades, principalmente quanto à perspectiva transformacional, crítica, voltada para o bem comum.
Essa perspectiva transformacional da competência em informação baseia-se na tradição filosófica da escola de Frankfurt, conhecida como Teoria Crítica, que considera como foco central, as condições sociopolíticas e econômicas e visa à transformação da realidade, em contraponto à noção de tradicional neutralidade nas práticas informacionais (LLOYD, 2021; FURTADO et al., 2021; RAMOS JÚNIOR; MATA; GERLIN, 2020). Lloyd (2021) acrescenta também que são relevantes para o estudo da competência em informação em sua perspectiva transformacional teorias pós-modernistas, principalmente a de Foucault (1980), centrada na relação entre conhecimento e poder, que molda lentes pelas quais o contexto é percebido e quais informações são validadas ou não. Essa noção transformacional é corroborada nos relatórios da UNESCO (2013a; 2013b), que reforçam que a exclusão digital não é apenas física, material e técnica, mas também inclui o conhecimento. Para enfrentar esses desafios, recomenda-se o foco em aspectos informacionais, comunicacionais, midiáticos, tecnológicos e digitais, uma vez que a competência em informação é base da aprendizagem ao longo da vida (UNESCO, 2013b).
O presente artigo consiste em revisão narrativa de literatura, com o objetivo de apresentar um panorama sobre diferentes modelos teóricos que abordam a competência em informação em sua perspectiva transformacional, enfatizando suas características e similaridades e se encontra dentro do escopo de pesquisa de Doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em Sistemas de Informação e Gestão do Conhecimento na Universidade Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC).
O termo competência em informação (information literacy) surgiu nos anos 1970, com os trabalhos de Paul G. Zurkowski (1974), Lee G. Burchinal (1976) (BEHRENS, 1994; LOMBARD, 2010; WHITWORTH, 2014) e Cees Hamelink (1976) (BEHRENS, 1994; WHITWORTH, 2014). Segundo Whitworth (2014), Zurkowski (1974) representa a abordagem da competência em informação focada na gestão do conhecimento; Burchinal (1976) representa a abordagem focada na educação e Hamelink (1976) representa a abordagem transformacional (WHITWORTH, 2014), voltada para a emancipação política.
Para Whitworth (2014), os trabalhos de Zurkowski (1974) e Burchinal (1976) concentram-se no treinamento e na aquisição de habilidades e competências desejáveis para o mercado de trabalho, enquanto o trabalho de Hamelink (1976) aborda a competência em informação como um instrumento político de emancipação social. Nessa ótica, o autor considera a competência em informação não como um conjunto de habilidades ou capacidades genéricas, mas uma meta-competência capaz da emancipação do indivíduo por meio da prática voltada às necessidades informacionais específicas de cada contexto.
A “informação” funciona como uma ferramenta opressora, pois, pela sua forma de apresentação, impede as pessoas de moldarem o seu próprio mundo. Os fragmentos incoerentes excluem a perspectiva holística que permite o insight sobre a interdependência entre os acontecimentos, o envolvimento do próprio contexto e a possibilidade de agir de acordo com o desafio assim apresentado. As explicações prontas impedem o insight do mundo como algo problemático e mutável. (HAMELINK, 1976, p. 120, tradução nossa).
Behrens (1994) cita ainda o trabalho de Major R. Owens (1976 apudBEHRENS, 1994), que assim como Hamelink (1976), compreende a competência em informação como um instrumento de emancipação política, ao afirmar que:
Além da competência em informação para maior eficácia e eficiência no trabalho, a competência em informação é necessária para garantir a sobrevivência das instituições democráticas. Todos os homens são criados iguais, mas os eleitores com recursos de informação estão em posição de tomar decisões mais inteligentes do que os cidadãos não-competentes em informação. A aplicação de recursos de informação ao processo de tomada de decisão para cumprir responsabilidades cívicas é uma necessidade vital. (OWENS, 1976, p. 27 apudBEHRENS, 1994, p. 310, tradução nossa).
Whitworth (2014) ressalta que os diferentes eixos se desenvolveriam de formas distintas, pois o trabalho de Zurkowski (1974), principalmente, e Burchinal (1976) pertencem à vertente predominante, enquanto as ideias de Hamelink (1976), voltada à emancipação social seriam pouco desenvolvidas nos anos seguintes à sua publicação.
Segundo Vitorino e Piantola (2011), há quatro dimensões mutuamente complementares que compõem a competência em informação, as dimensões técnica, estética, ética e política. Essas dimensões são interdependentes e complementares, passando desde os saberes práticos de acesso e uso de sistemas informacionais, pela capacidade criativa do indivíduo de valorar e dar significado à informação, pela compreensão de aspectos éticos de uso responsável da informação, chegando, por fim, à compreensão do contexto social, histórico, político no qual o indivíduo se insere.
A dimensão técnica envolve o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos de um determinado fazer, incluindo o domínio das tecnologias (VITORINO; PIANTOLA, 2011). Entretanto, a dimensão técnica não significa uma ideia de habilidade neutra, desvinculada do contexto sócio-histórico, mas sim um domínio da tecnologia que reflete escolhas críticas e conscientes a respeito de suas consequências éticas, políticas e sociais (VITORINO, 2020). A dimensão estética envolve a criatividade e a capacidade de ressignificar a informação (VITORINO; PIANTOLA, 2011), isto é, a própria experiência do indivíduo com a informação e a forma com que é capaz de valorá-la e externá-la no âmbito coletivo, sendo essa dimensão ligada à motivação pessoal (VITORINO, 2020). A dimensão ética envolve o uso responsável da informação (VITORINO; PIANTOLA, 2011), por meio de um julgamento de valor e reflexão crítica, em que o uso da informação se dá para alcançar o bem comum ao se lidar com questões tais como a propriedade intelectual e direitos autorais, o acesso à informação e preservação da memória (VITORINO, 2020). A dimensão política da competência em informação envolve o exercício da cidadania (VITORINO; PIANTOLA, 2011), principalmente ao promover meios para que o indivíduo reconheça que a informação é organizada de forma a silenciar certos grupos e privilegiar outros e compreenda essa dinâmica, superando tais barreiras (VITORINO, 2020; DOHERTY, 2007).
Souza, Bahia e Vitorino (2020) apontam a relação entre as dimensões técnica, estética, ética e política da competência em informação preconizadas por Vitorino e Piantola (2011), com o conceito de competência proposto por Zarifian (2001). Para Souza, Bahia e Vitorino (2020), a dimensão técnica pode ser relacionada ao saber-fazer e ao “ser competente em relação à”. A dimensão estética relaciona-se com a criatividade, sensibilidade, espírito de inovação e imaginação. As dimensões ética e política, por sua vez, são relacionadas com a noção de responsabilidade, valores e interação coletiva. Essas dimensões se manifestam de forma interdependente e não-linear e permitem o desenvolvimento da inovação, criatividade, domínio técnico, reflexão ética e interação coletiva, orientados ao desenvolvimento contínuo do indivíduo em prol da coletividade e em meio ao contexto laboral, na medida em que há uma diluição da essência da noção originária do termo “competência”. Esta se refere ao desenvolvimento de habilidades e treinamento profissional e uma maior aproximação ao conceito de competência em informação, no sentido de preparar o indivíduo às demandas informacionais diversas no ambiente laboral (SOUZA; BAHIA; VITORINO, 2020) e nos demais contextos sociais.
Portanto, a competência em informação, por servir de base para o aprendizado ao longo da vida e por moldar práticas sociais, passou a ser considerada em um contexto mais amplo, não só limitado à biblioteca (SILVA; NUNES; TEIXEIRA, 2020; SNAVELY, 2001; BRUCE, 2000). No mesmo sentido, para Ottonicar, Valentim e Feres (2016), a competência em informação influencia diferentes contextos sociais por estar intrinsecamente ligada à aprendizagem. Dessa forma, para os autores, a inter-relação da competência em informação com outras áreas do conhecimento enfatiza a sua interdisciplinaridade, especialmente nos contextos político, tecnológico, educacional e organizacional.
Em síntese, o contexto político envolve saber como buscar, analisar criticamente e usar a informação; o contexto tecnológico envolve saber acessar, buscar, interagir e utilizar as tecnologias disponíveis; o contexto educacional envolve desenvolver o trabalho colaborativo ao longo da vida e; o contexto organizacional envolve saber identificar necessidades informacionais, selecionar e usar informação de qualidade para a tomada de decisão (OTTONICAR; VALENTIM; FERES, 2016).
Do ponto de vista epistemológico, Corrêa e Castro Júnior (2018) analisam que o estudo da competência em informação evoluiu de uma abordagem cognitiva-construtivista, centrada no indivíduo e com foco nos processos de aprendizagem individual que visam ao desenvolvimento de habilidades, competências e comportamentos apropriados que o indivíduo deve alcançar (LLOYD, 2010a), para uma abordagem social-construtivista ou sociocultural, em que o principal foco da aprendizagem se dá por meio de interações sociais em comunidades discursivas (CORRÊA; CASTRO JÚNIOR, 2018). Wang, Bruce e Hughes (2011) esclarecem que as teorias social-construtivistas seguem os seguintes princípios básicos: o conhecimento é socialmente construído por meio das interações sociais; as ferramentas desempenham um papel importante nessas interações sociais e; o processo de aprendizagem envolve a internalização dessas etapas. Dessa forma, o foco não são os conjuntos de habilidades a serem aprendidos, mas sim os aspectos colaborativos e compartilhados da construção de significados sobre a prática informacional (LLOYD, 2010a). Para Lloyd (2010b), a competência em informação é uma prática de informação básica, que fornece uma base central de sustentação para a participação e aprendizagem em todas as áreas do trabalho, educação e vida cotidiana.
Para Pinheiro e Gasque (2022), a aprendizagem envolve o pensamento reflexivo e consequentemente a metacognição, constituindo-se de aspectos procedimentais (habilidades, destrezas e técnicas), atitudinais (posturas, valores e comportamentos) e de conteúdos conceituais (fatos, situações e conceitos). De forma complementar, Berrío Zapata (2012) sugere a existência de três níveis de concepções acerca da competência em informação, sendo o mais básico o primeiro nível de manipulação dos meios, que envolve o domínio das ferramentas de codificação e comunicação verbal e tecnológica; o segundo nível de domínio de meta-análise, a capacidade de compreender sentido e intencionalidade ligados ao pano de fundo da informação e; o terceiro nível da ação crítica e ética, a capacidade de construir significado a partir da informação, por meio de uma posição crítica e propostas que permitam uma diversidade de representações coletivas.
Essa evolução do conceito de competência em informação também pode ser observada nos principais marcos políticos, representados por declarações, manifestos e recomendações relacionados à promoção da temática da competência em informação e oriundos de organizações tais como as Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization - UNESCO), a Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (International Federation of Library Associations and Institutions - IFLA), a Associação Americana de Bibliotecas (American Library Association - ALA), ou a Federação Brasileira das Associações de Bibliotecários, Cientistas da Informação e Instituições (FEBAB).). Tais documentos são relevantes, pois estabelecem princípios e padrões e têm a capacidade de influenciar governos e a sociedade (DUDZIAK; FERREIRA; FERRARI, 2017). Esses documentos partem da simples conceituação e delimitação do escopo da competência em informação, tendo evoluído para recomendações que buscam o enfrentamento de questões contemporâneas que geram impactos sociais positivos, tais como aquecimento global, a segurança e privacidade de dados, o discurso do ódio, a desinformação, a inclusão de pessoas com deficiência e de grupos indígenas, imigrações forçadas e a intolerância religiosa, nas políticas e programas sobre competência em informação (SANTOS; MAIA; KERR PINHEIRO, 2022a). Dudziak, Ferreira e Ferrari (2017) enfatizam a convergência desses documentos e o desafio em transformar as recomendações desses marcos políticos em efetivas políticas públicas de Estado, para transformação social e o bem comum.
Em relação aos indicadores e padrões de competência em informação, Lloyd (2010a) ressalta que a competência em informação não consiste na descrição de conjuntos de habilidades, ainda que padrões descritivos de habilidades sejam elementos importantes para a competência em informação. Existem diversas diretrizes definidas como padrão em diferentes países, enfatize-se o Padrão da Associação de Bibliotecas Universitárias e de Pesquisa Norte-Americana (Association of College and Research Libraries - ACRL) (ACRL, 2000; 2015). O primeiro padrão de competência em informação publicado pela ACRL, intitulado “Information Literacy Competency Standards for Higher Education” (ACRL, 2000), recebeu críticas por seguir uma abordagem positivista, em que a informação é objetiva e mensurável, e ignorar os aspectos sociopolíticos da competência em informação, ao definila como um conjunto de habilidades universais detalhadas que o estudante competente em informação deveria ser capaz de realizar (FOASBERG, 2015). Em 2015, a ACRL publicou seu Quadro Estrutural (Framework), intitulado “Framework for Information Literacy for Higher Education”, adotando nesse documento uma abordagem socioconstrutivista, que sustenta que o conhecimento é construído e reconstruído por meio de interações sociais (FOASBERG, 2015). Na perspectiva do Quadro Estrutural da ACRL (2015), a competência em informação é abordada em seis quadros que delineiam conceitos nucleares, que consideram a informação como um fenômeno social a ser compreendido dentro de determinado contexto e comunidade informacional:
A autoridade é construída e contextual: envolve saber reconhecer e determinar a credibilidade das fontes de informação, compreendendo a forma como as várias comunidades reconhecem e valorizam ou não diferentes tipos de vozes de autoridade autoral, podendo, inclusive, questioná-las.
Criação de informação como um processo: envolve a compreensão sobre a escolha de diferentes métodos e formatos de disseminação de informação e como eles podem mudar, para se adequar ao contexto.
A informação tem valor: envolve a compreensão das várias dimensões de valor da informação, uma vez que a propriedade intelectual é um construto social e legal que varia de acordo com a cultura, para o uso ético e legal da informação.
Pesquisa como inquérito: envolve saber formular questões e determinar o escopo da busca informacional, seja ela no contexto acadêmico, profissional ou societal, organizando e sintetizando informações obtidas de múltiplas fontes para gerar sentido.
Conhecimento como conversação: envolve compreender como comunidades de acadêmicos, pesquisadores ou profissionais se envolvem em um discurso sustentado, construído ao longo do tempo como resultado de perspectivas e interpretações variadas, desenvolvendo familiaridade com fontes de informação, métodos e modos de discurso de autoridade para fazer contribuições à área de conhecimento.
Busca como exploração estratégica: envolve a compatibilização de diferentes métodos de pesquisa e uso de tecnologias à necessidade informacional, conforme situação e tipo de questão, sendo a busca informacional geralmente não linear e iterativa.
Em relação aos contextos de uso da competência em informação, Bruce (2000) previu uma expansão da pesquisa em competência em informação para além do setor educacional, com foco principalmente no local de trabalho e em questões sociais. Entretanto, a literatura sobre o tema é ainda prioritariamente ligada ao âmbito educacional, tanto no Brasil quanto no exterior (WITHORN et al., 2020; WITHORN et al., 2019; JOHNSON et al., 2018; REYNOLDS et al., 2017; REYNOLDS et al., 2016). No contexto educacional, a competência em informação deve ser transversal e complementar ao desenvolvimento de habilidades e competências acadêmicas, ligada a um processo de aprendizagem contínua (ALONSO-ARÉVALO; LOPES; ANTUNES, 2016; SANCHES, 2013). No contexto laboral, a competência em informação, ainda que pouco conhecida, é capaz de motivar o desenvolvimento de novas competências e habilidades profissionais e gerar vantagem competitiva para as organizações, relacionando-se com a gestão do conhecimento, a aprendizagem organizacional e a inteligência competitiva (COELHO, 2017). Em relação ao contexto social, em que se concretiza a cidadania, Belluzzo (2018) advoga que as discussões sobre competência em informação sejam extrapoladas para a dimensão de política pública permanente no país, que deve contextualizar a competência em informação em um contexto maior de práticas de informação em geral. Para Belluzzo (2017), há a necessidade de mobilização da sociedade civil organizada e dos órgãos governamentais em relação à competência em informação, pois, para avançar com o seu desenvolvimento no contexto social, é imprescindível a compreensão de critérios de qualidade da informação e a capacidade de detectar tendências, ambiguidades, inconsistências (BELLUZZO, 2007), principalmente nas informações disponíveis na internet ou em mídias sociais, sendo os atributos de qualidade da informação propostos por Tomaél, Alcará e Silva (2008) uma perspectiva norteadora para o desenvolvimento da competência em informação no contexto social. Santos, Maia e Kerr Pinheiro (2022b) elencam estudos primários sobre a competência em informação que possuem abordagem transformacional.
Bruce (1997) apresenta o modelo das Sete Faces da Competência em Informação, em que se evidenciam processos sociais de uso informacional, práticas informacionais e a reflexão sobre a informação. As sete faces da competência em informação propostas por Bruce (1997) são: (i) concepção baseada nas tecnologias de informação para recuperação e comunicação da informação; (ii) concepção baseada nas fontes de informação, que enfoca a habilidade de acessar fontes de informação e recuperar a informação de forma independente ou mediada; (iii) concepção baseada na informação como processo, isso é, as estratégias aplicadas pelos usuários quando confrontados com situações de falta de conhecimento ou informação; (iv) concepção baseada no controle da informação, que foca na organização, no armazenamento e na recuperação de informações em diferentes mídias; (v) concepção baseada na construção do conhecimento, que foca na capacidade de uso crítico da informação para a construção de uma base pessoal de conhecimento; (vi) concepção baseada na extensão do conhecimento, que enfoca o uso do conhecimento e das perspectivas pessoais associado à intuição e à reflexão criativa de forma a se obter novos pontos de vista e; (vii) concepção baseada no saber, que foca na utilização da informação para o bem comum. Nesse modelo, pode-se perceber que a tecnologia de informação passa de foco principal (concepção i) até uma posição marginal (concepção vii), enquanto, em sentido contrário, o uso da informação passa de marginal (concepção i) até ser foco principal (concepção vii) na percepção de diferentes usuários (BRUCE, 1997).
No campo educacional, Bruce, Edwards e Lupton (2006) desenvolveram o modelo conceitual denominado Six Frames of Information Literacy, ou os Seis Quadros da Competência em Informação, que visam diferentes formas de ensino e aprendizagem por meio da adoção de práticas de informação. Esses quadros são lentes pelas quais as experiências de ensino e aprendizagem podem ser vistas, objetivando-se um aprendizado informado (BRUCE, 2008). Os Six Frames são os seguintes: (i) quadro de conteúdo, em que se acredita que a informação é transmissível; (ii) quadro da competência, em que se adota uma orientação comportamental centrada em um conjunto de habilidades que devem ser aprendidas; (iii) quadro do aprender a aprender, em que a informação é subjetiva, internalizada e construída pelo usuário; (iv) quadro da relevância social, em que a competência em informação é contextual para apontar informação relevante para o usuário; (v) quadro do impacto social, em que o foco é como a competência em informação impacta a sociedade e o ensino; e, por fim, o (vi) quadro relacional, em que a competência em informação é um complexo de diferentes formas de interagir com a informação, que por sua vez, é percebida como objetiva, subjetiva ou transformacional (BRUCE; EDWARDS; LUPTON, 2006). Bruce, Edwards e Lupton (2006) esclarecem que o quadro relacional engloba os quadros anteriores, pois considera o aprendiz/usuário e a informação como uma entidade indissociável, portanto, o foco está na relação entre a informação e o usuário.
No contexto laboral, Lupton e Bruce (2010) desenvolveram um modelo conceitual que, segundo elas, sugerem que a competência em informação pode ser associada a três diferentes perspectivas, sendo (i) um conjunto de habilidades genéricas (comportamentais), (ii) situada em práticas sociais (socioculturais), e (iii) transformacional para o próprio indivíduo e para a sociedade (crítica). Essas três perspectivas, denominadas GeST por reunir orientações genéricas, situadas e transformadoras para a competência em informação, têm uma aplicabilidade mais ampla em todos os setores, em comparação com os Six Frames (BRUCE; EDWARDS; LUPTON, 2006) para a aprendizagem informada. O modelo GeST (LUPTON; BRUCE, 2010) é pensado para o âmbito laboral, mas segundo as autoras, tem uma aplicabilidade mais ampla em todos os setores, inclusive o contexto social, por reunir orientações genéricas, situadas e transformadoras para a competência em informação. As perspectivas GeST podem ser adequadas a diferentes necessidades de aprendizagem, no contexto laboral e de solução de problemas sociais, enquanto que os Six Frames foram projetados especificamente para aplicação na educação formal.
Segundo Lupton e Bruce (2010), na perspectiva genérica, a competência em informação é funcional e representa um conjunto de habilidades discretas a serem aprendidas pelo indivíduo, sendo ela “neutra, objetiva, textual, apolítica, reprodutiva, padronizada e universal [e] [...] ligada à produtividade do trabalhador e ao desenvolvimento econômico de uma nação” (LUPTON; BRUCE, 2010, p. 5, tradução nossa). Na perspectiva situada, a competência em informação é fundamentalmente um ato social, contextual, autêntico, colaborativo e participativo, envolvendo indivíduos e grupos na tomada de decisões, na produção de sentidos e na resolução de problemas nas esferas pessoal, profissional e social. Por ser subjetiva, variar com o contexto e ser diferente para cada pessoa ou grupo social, pode-se falar em multi-competências. A perspectiva transformacional da competência em informação, vai além da prática sociocultural e abarca tanto os processos e habilidades da perspectiva genérica como as práticas. Por abordar processos e resultados emancipatórios, que questionam o status quo e buscam a mudança social, essa ótica da competência em informação (LUPTON; BRUCE, 2010).
É importante ressaltar que os modelos de competência em informação Sete Faces (BRUCE, 1997), Six Frames (BRUCE; EDWARDS; LUPTON, 2006) e GeST (LUPTON; BRUCE, 2010) possuem diversas similaridades (BRUCE et al., 2017; LUPTON; BRUCE, 2010; BRUCE, 2008). O modelo das Sete Faces (BRUCE, 1997) foi desenvolvido primeiro, como resultado da tese de doutoramento da autora que pesquisou as diferentes formas pelas quais a competência em informação era percebida por docentes universitários. O modelo Six Frames (BRUCE; EDWARDS; LUPTON, 2006) foi desenvolvido para representar o ensino e aprendizagem da competência em informação e serviu de base para o modelo GeST (LUPTON; BRUCE, 2010), voltado para o ambiente laboral. O quadro 1 a seguir demonstra as principais similaridades das categorias de cada modelo.

A partir da análise do quadro acima, é possível verificar as semelhanças entre os modelos, sendo possível encontrar orientações transformacionais em todos os contextos, ao se analisarem, principalmente, os modelos Six Frames e GeST, cujo quadro relacional e janela transformacional, respectivamente, são voltados para o bem comum e englobam as visões e práticas anteriores. Relevante ressaltar também o fato de que os três modelos foram desenvolvidos a partir de pesquisas fenomenográficas na Austrália.
O primeiro modelo a ser desenvolvido foi o das Sete Faces da competência em informação, a partir da pesquisa fenomenográfica de Bruce (1997). Acredita-se que pela similitude entre os modelos teóricos e pelo fato de Bruce ser co-autora dos modelos ao Six Frames e ao GeST, a representação das Sete Faces foi essencial para compreender a competência em informação e formular os modelos Six Frames e GeST em contextos diversificados, aprofundando-se a compreensão sobre as suas sete categorias.
Os três modelos teóricos analisados possuem diferentes representações categoriais das visões acerca do fenômeno das práticas informacionais em diferentes contextos. Eles fornecem uma perspectiva não-hierárquica, mas que certamente cresce em complexidade e sofisticação por parte do usuário da informação, permitindo uma visão mais ampla do que constitui a competência em informação nesses cenários. Os três modelos partem de uma visão tecnicista, fundamentada na crença de que a informação é neutra e objetiva, para, nas últimas etapas, chegarem à visão crítica do uso informacional, que permite transformação social por meio da mudança no status quo.
O presente estudo buscou, por meio de revisão narrativa de literatura, apresentar um panorama sobre três diferentes modelos teóricos que abordam a competência em informação em sua perspectiva transformacional, desenvolvidos por meio de pesquisa fenomenográfica enfatizando suas características e similaridades. Foram analisados o conceito de competência em informação, um breve histórico da evolução do conceito de competência em informação para embasar a análise dos três modelos selecionados.
Essa visão permite considerar a competência em informação como prática sociocultural, em que se faz necessário compreender como a informação é buscada, criada, difundida, sancionada e gerenciada nos diversos contextos e como esses processos refletem os interesses intersubjetivos que estruturam um dado espaço social, para que se atinja o ideal de emancipação e transformação sociais, principalmente para populações e sociedades vulnerabilizadas. É importante também verificar como os três modelos corroboram a existência das visões baseadas no tecnicismo e na crença sobre a informação neutra e objetiva, passando pela perspectiva situada e, por fim, chegando às categorias que representam a perspectiva transformacional, crítica e emancipatória da informação.
O artigo não buscou esgotar o tema e pretende contribuir para os estudos sobre a competência em informação, analisando três modelos teóricos reconhecidos na literatura anglófona acerca da temática. Como sugestão de trabalhos futuros, recomenda-se o aprofundamento a respeito de estudos que visem à perspectiva transformacional da competência em informação por meio de estudos bibliométricos sobre o tema, para apontar principais autores nessa vertente. É relevante também a sugestão de estudos empíricos voltados para a competência em informação como prática capaz de promover transformações sociais, buscando o desenvolvimento de competência em informação.
Coleta de dados: A.S. Santos
Análise de dados: A.S. Santos
Discussão dos resultados: A.S. Santos
Revisão e aprovação: L.C.G. Maia
alessandra@mpmg.mp.brluiz.maia@fumec.br
