Editorial
Editorial
Este dossiê reúne artigos de pesquisas que têm sido maturadas n’O Fórum Internacional A Arte da Bibliografia. O Fórum se formou em 2014 e desde então tem fomentado a produção de conhecimento sobre a Bibliografia. Essa produção se concretiza em dois principais canais: o Seminário Internacional A Arte da Bibliografia e a publicação dos dossiês com artigos originais, e ambos ocorrem anualmente.
Diante desse movimento de pesquisa, cabe a indagação: qual discurso se consolida sobre a Bibliografia? Para tanto, é necessário um retorno ao conceito de “arte” e sua relação com a Bibliografia. É comum ao cientista da informação e ao bibliotecário associar a “bibliografia” à uma lista de referências bibliográficas que são utilizadas como base de argumentação no documento portador de tal enumeração. Mas a Bibliografia não diz respeito apenas à listagem que pode, equivocadamente, parecer um produto simples.
A noção de “arte” implica a ação de produzir, uma aplicação que necessariamente requer um trabalho e um método. A ideia de arte deriva do latim ars e do grego techné e seu sentido está originalmente ligado à capacidade humana (SHINER, 2004). Hoje, a noção de arte está associada ao domínio que a partir do século XVII adquiriu o nome de belas artes, mas no século seguinte, “belas” caiu em desuso e, com isso, a ideia de “arte” tornou- se antagônico ao de artesanato, não mais aquilo cuja produção é da ordem da natureza. Entretanto, havia antes um sistema das artes consolidado, atrelado ao trabalho humano manifestada diversamente, seja pelas mãos do escultor, do pintor, do construtor, do sapateiro, do ferreiro etc. (SHINER, 2004).
Nessa concepção pré-moderna de arte, não havia cisão entre a dimensão teórica e a aplicada (FLUSSER, 1984). A teoria era considerada como a visão de formas dadas, eternas, enquanto a práxis, a aplicação de tais formas sobre as aparências do mundo. Segundo Flusser (1984), na modernidade, o sentido de "teoria" foi alterado, pois deixou de vincular-se às "ideias" para tornar-se "modelo" de explicação, assim, a “teoria” converte-se numa representação que captura as aparências, explicando-as e permitindo aos homens seu controle.
A arte da Bibliografia passa por essas transformações inerentes à episteme moderna. Nasce enquanto um fazer e ao longo da modernidade é conduzida ao destino da cientificidade no discurso catalográfico, que instituiu os dados bibliográficos como unidades objetivas. Além disso, também foi traçado um percurso cientificista paralelo ao encontrado na Biblioteconomia e Ciência da Informação, que se consolida entre os séculos XIX e XX, principalmente no Reino Unido, e é caracterizado como uma análise materialista do texto, de forte cunho histórico e sociológico (ROBERSON, 2001; MCKENZIE, 2018).
Diz Flusser (1984) que a “técnica” é produto da concepção moderna de “teoria”, que foi promovida conforme a “arte” foi dissociada da noção de teoria científica. Destarte, se constitui um interesse tecnicista na ciência moderna, que ressoa ainda hoje nos discursos científicos e nos currículos universitários, embora não sem crítica. Ressoa ainda na Biblioteconomia e na Ciência da Informação.
O campo bibliográfico não se define na simplicidade de uma lista ou das técnicas, pois constitui-se na esteira da tradição de preservação, produção e difusão do conhecimento, nos desafios encontrados entre a representação e o acesso à informação.
A noção de “arte” evidencia que n’O Fórum Internacional A Arte da Bibliografia há uma preocupação que ultrapassa o cientificismo sobre as práticas bibliográficas. Não apenas a técnica e as tecnológicas, mas, neste dossiê, atenta-se para questões epistemológicas, culturais e históricas.
Este dossiê nutre-se em grande parte do debate realizado no VI Seminário Internacional A Arte da Bibliografia, realizado em 5 e 6 de dezembro de 2019 em Florianópolis, sob o título “Das condições materiais e epistêmicas aos dilemas socioculturais”. Como tal, o conjunto de publicações aqui encontradas é mais um capítulo sobre a Bibliografia, que tem sido promovida pelo Fórum. O uso da noção “arte” implica numa coexistência de perspectivas teóricas e aplicadas, assim, as vozes entoadas nestes textos que seguem são de pesquisadores docentes, profissionais e artífices. Da mesma forma, os temas são plurais, evidenciando assuntos como a história da imprensa jesuíta- guarani, a história de nomes de destaque no campo da Bibliografia, a preservação de conhecimentos de minorias e a mediação de informações sobre paisagens naturais.
Os autores e trabalhos envolvidos nesse número da Encontros Bibli sublinham a rede internacional de pesquisadores e a memória em conceitos e experiências relacionadas à Bibliografia que se formam colaborativamente. Flusse (1982, p. 3-4) defende que a cisão entre ciência e arte seja transpassada em favor não apenas de uma ciência e uma arte que superem suas crises institucionais, mas em nome de uma nova sociedade:
Não apenas tentativa de ultrapassar a crise da ciência e da arte, mas também a crise da sociedade. Libertar a arte de seu gueto e fazer com que substitua a técnica, e libertar a ciência de sua crise epistemológica ao abri- la ao momento estético, é também, e sobretudo, libertar a sociedade do perigo da tecnocracia e abrir campo para novas formas políticas insuspeitas.
Para Flusser (1982), essa superação requer a substituição da técnica pela arte, em reconhecer a estética na tecnologia. É esse o coro que este dossiê se junta ao evocar a arte na Bibliografia.
Igor Soares AmorimRodrigo de Salesamorim.igors@gmail.com rodrigo.sales@ufsc.br