Artigo original
Recepção: 06 Agosto 2020
Aprovação: 25 Setembro 2020
Publicado: 30 Novembro 2020
DOI: https://doi.org/10.5007/1518-2924.2020.e73443
RESUMO
Objetivo: Investigar, através do pressuposto epistemológico-histórico, a formação da Ciência da Informação à luz dos discursos e dos enunciados da Bibliografia em discursos de fundamentação do campo.
Método: Trata-se de reflexão teórica, via a abordagem diacrônica da epistemologia histórica e da filosofia da linguagem, tendo como corpus obras seminais de Gabriel Peignot, Paul Otlet, Nicolas Roubakine, Shyiali Ranganathan e Robert Estivals.
Resultado: A pesquisa demonstra, a partir dos discursos coletados nas obras de fundamentação do campo, o papel estrutural e estruturante da Bibliografia na construção da Ciência da Informação.
Conclusões: A fundamentalidade da Bibliografia é afirmada pelos resultados, demonstrando, para além de seu papel epistemológico central no processo histórico de formação da Ciência da Informação, seus usos como força política e ferramenta de transformação social.
PALAVRAS-CHAVE: Bibliografia, Ciência da Informação, Epistemologia histórica, Filosofia da Linguagem, Discurso.
ABSTRACT
Objective: The research investigates, through the epistemological-historical assumption, the formation of Information Science in the light of the speeches and statements of the Bibliography in speeches of grounding the field.
Methods: This is a theoretical reflection, via the diachronic approach of historical epistemology and the philosophy of language, with the corpus of seminal works by Gabriel Peignot, Paul Otlet, Nicolas Roubakine, Shyiali Ranganathan and Robert Estivals.
Result: The research demonstrates, from the speeches collected in the field's founding works, the structural and structuring role of the Bibliography in the construction of Information Science.
Conclusions: The fundamentality of Bibliography is affirmed by the results, demonstrating, in addition to its central epistemological role in the historical formation process of Information Science, its uses as a political force and a tool for social transformation.
KEYWORDS: Bibliography, Information Science, Historical epistemology, Philosophy of Language, Speech.
1 INTRODUÇÃO À LINHA DAS ALTAS MONTANHAS: a Bibliografia na paisagem epistemológico-histórica
A proposta dessa pesquisa é debater o problema arqueológico da Bibliografia - conceito e ferramenta - dentro do escopo epistemológico da Ciência da Informação (CI). Trata-se de identificar e compreender o desenvolvimento histórico de um conceito epistêmico em nossa paisagem sócio-histórica.
O marco teórico da pesquisa está vinculado à epistemologia histórica e à filosofia da linguagem. A base investigativa sustenta a condição de uma historicidade diacrônica na constituição do campo, contrária à verticalização historiográfica sincrônica. O horizonte da diacronia é aqui composto por uma visão de desenvolvimento gradual e através de lutas conceituais para demarcações de fronteiras no campo, bem como por uma filosofia pragmática da linguagem, cujo foco está em fundamentar o sentido de nossas ações através da marca do uso da linguagem nos espaços sociais de elaboração do campo.
O enquadramento empírico da presente etapa do estudo está na identificação de epistemológos e suas obras seminais que definiram a construção da CI, à busca dos percursos da Bibliografia na fundamentação do campo informacional. Em outros termos, mais especificamente, estamos à procura do solo dos discursos de formação do campo. O percurso nos permite identificar modelos de fundamentação distintos, mas uma linha comum, que nos leva à discussão do papel da Bibliografia na invenção da CI, além do reconhecimento de uma tipologia da discursividade.
O problema arqueológico, de tom foucaultiano e estruturado na pragmática simbólica da linguagem, onde cultura, ciência e sociedade não se isolam, constitui-se na procura por discursos e seus enunciados que visam positivar o real, cada qual com seus argumentos. Assim, no plano da conceituação, normas, instituições, proposições filosóficas, morais, se articulam, através do poder da linguagem, para subsidiar a fundamentação das epistemes. Em nosso caso, o campo informacional é objeto desses discursos que operam no espaço social suas tratativas de demarcação epistemológica, manifestando-se à superfície em nomes de escolas e institutos, de departamentos e de comissões, de sociedades científicas e seus grupos de trabalho e capítulos regionais e nacionais, de temáticas de pesquisa e de objetos de estudo.
O gigantismo desses gestos sociolinguísticos demarca a sequência de “pontos elevados” que permitem ao observador admirar e buscar o horizonte dos dispositivos que dão sentido ao campo. São “montanhas” discursivas, relevos de projeção e de formalização dos cenários teórico-metodológicos de um dado saber emancipado, dispostas na paisagem como convites ao poder do mirante, sua capacidade de observar ao longe a longa e sólida, porém repleta de disputas, construção de uma episteme.
A metáfora da linha de cumeada, ou seja, a linha que une os pontos mais altos de uma cadeia de montanhas, tornando-se o divisor de águas recupera, pois, essa dinâmica do horizonte montês demarcado pelo curso preponderante da bibliografia na história das ideias da CI. Trata-se de uma síntese, aqui procurada, do percurso de estudos sobre a construção bibliográfica do campo informacional como fundamento, teoria e método.
2 EPISTEMOLOGIAS HISTÓRICAS E HORIZONTALIDADE TEÓRICO- SOCIAL: o caminho da materialidade linguística
As epistemologias históricas aqui procuradas, de condição diacrônica, procuram os horizontes que estão nos meandros das formais de cumeada. Tais epistemologias são consideradas sob a base de uma intencionalidade política dos gestos informacionais. Trata-se de perceber a forma de construção do que se diz “científico” a partir de e em direção a posicionamentos políticos centrados em contextos históricos que enredam as configurações epistêmicas ditas “neutras”. Um problema de cânone aqui se coloca e não é renunciado, entretanto criticamente abordado.
A intencionalidade por trás das escolhas, a saber, Gabriel Peignot, Nicolas Roubakine, Paul Otlet, Shyiali Ranganathan e Robert Estivals, reconhece, inicialmente, o impacto histórico de tais obras na formação do pensamento informacional contemporâneo. Porém, ainda antes das mesmas, visamos ao reconhecimento germinal do olhar metarreflexivo de tais discursos, seu espírito epistemológico clássico (refletir sobre a própria reflexão de um dado conjunto de ideias e de métodos). Não se trata, de todo modo, da demarcação de três ou cinco obras centrais da formação do campo, justamente em razão do argumento diacrônico da epistemologia histórica, não interessado em demarcar pioneiros, mas em reconstruir os caminhos de luta, pela via da linguagem, de um dado campo epistêmico, não anulando pensamentos como Conrad Gesner, investigado por Araujo (2016) e Gabriel Naudé, pesquisado por Crippa (2017) em suas vertentes bibliográficas, igualmente fundacionais para o argumento que aqui se constrói.
O pressuposto da diacronia na pesquisa se sustenta também através da longa marcha da teoria crítica dos estudos informacionais. Entre, por exemplo, as bases epistemológico-históricas de Nicolas Roubakine (1998) e Robert Estivals (1975, 1978), demonstra-se o centenário teor sociocrítico de conformação do campo e de sua missão de intervenção das disputas políticas de transformação social.
A estrutura crítica do pensamento informacional sustenta-se em uma fundamentação linguística, ou ainda, a demarcação da epistemologia da CI como baseada na linguagem e em suas teorias. O enredo filosófico-linguístico aqui, sustentado centralmente a partir de Wittgenstein (1979), está atendo à ordinariedade e à primitividade dos gestos do campo manifestados pela linguagem. Por ordinariedade, compreende-se a formação e o uso cotidiano de termos dentro da esfera científica, compreendida como uma outra forma simbólica (não única, não superior), conforme Cassirer (1994), de construção do castelo epistêmico. Em relação à primitividade, a partir da terminologia wittgensteiniana, sustenta-se aqui a noção não de uma dada anterioridade, de um dado vocabulário arcaico. Por primitividade, assim, entende-se o discurso comum de um dado campo, que guarda os sentidos mais sólidos compartilhados por um grupo social, como é o caso do conceito e da ferramenta “bibliografia”.
Esse exercício filosófico nos retira do foco dos centros de cálculo latourianos (LATOUR, 2008) para o que chamamos de zonas prosaicas epistêmicas, ou seja, a compreensão da dinâmica socio-cotidiana de formação de conceitos e de disputa no meio epistêmico. Para o exercício de identificação da bibliografia como linha de cumeada, essa etapa selecionou como solo empírico os discursos de fundamentação de Paul Otlet, Nicolas Roubakine, Ranganathan, Jesse Shera e Robert Estivals.
3 A BIBLIOGRAFIA NA FUNDAMENTAÇÃO DO CAMPO
A partir de obras de fundamentação selecionadas, como anteriormente mencionadas, avançamos aqui no olhar sobre o papel da Bibliografia na formação do discurso do campo. Destaca-se a vinculação objetiva entre sociedade, cultura, política, contextualidade e episteme nos modos de desenvolvimento do projeto de cada fonte, resultando na relevância seminal do gesto bibliográfico na constituição da CI.
Gabriel Peignot: Bibliografia e o projeto da Modernidade
Fruto da preocupação investigativa principal até o momento da seara bibliográfica dentro do Fórum Internacional A Arte da Bibliografia, o pensamento de Gabriel Peignot representa em nossa pesquisa um marco inicial para a configuração epistêmica do campo informacional. Como já dito, sem ater-se ao mito de pioneirismo, ou seja, sem a preocupação de definir sua condição prioritária em um dado marco temporal, faz-se entender esse papel relevante por um elemento linguístico - foucaultiano, nesse caso - (acompanhando a sustentação teórico-metodológica da pesquisa): o discurso. Trata-se de perceber a manifestação do próprio discurso introdutório de Peignot (1802a,b) em seu monumental Dictionnaire Raisonné de Bibliologie.

O discurso preambular peignotiano é direto em apontar para uma dada episteme necessária para o desenvolvimento da ciência. Tratada como Bibliologia, essa ciência tem como teria geral a Bibliografia, ou seja, toda a estrutura teórica e metodológica de tal ciência - tecida, segundo Peignot (1802), ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII - é sustentada pela experiência socio-epistêmica bibliográfica.
Como antevisto, além do discurso de introdução que sustenta o papel da Bibliografia na ciência tratada como fundamental para a própria invenção da Modernidade (principalmente perante o paradigma da prensa gutembergiana), Peignot (1802) destaca como central em seu método (científico) dicionário a fundamentação metodológico- bibliográfica na seara da luta epistêmica através do verbete (classicamente científico): “Sistemas bibliográficos”. (SALDANHA, SILVA, 2017)
Peignot (1802a,b) será influência tanto na metodologia enciclopédica quanto na fundamentação epistemológica do campo em Paul Otlet. O projeto internacional que se segue com o advogado belga terá a menção objetiva aos construtos peignotianos no território da francofonia.
Paul Otlet: a Bibliografia como política científica
O projeto de Paul Otlet (1934) nasce como força política até encontrar na Bibliografia sua marca científica. Otlet (1934) desenvolve o Instituto Internacional de Bibliografia como base de uma operacionalização mundial do conceito “bibliografia” - tanto uma teoria como método de uma revolução política.
O foco, pois, da proposta otletiana, está na configuração política da seara bibliográfica. Trata-se de um programa diplomático entre nações, sustentado pelos conceitos de mundialismo, universalismo e internacionalismo. A Rede Mundial de Informação e de Documentação de Otlet (1934), presente na folha de rosto de seu Traité, não é nada mais - não só no sentido aplicado, como também no sentido teórico - que o exercício bibliográfico em sua movimentação.
Sob os auspícios do positivismo e da fundamentação simbólica do livro, Otlet (1934) propõe a constante troca de metarrepresentações do real mediado no mundo gráfico. É do espírito bibliográfico - principalmente, das práticas de catalogação e de classificação - de onde retira o advogado belga a metodologia para seu trabalho.
II y a lieu d'elaborer rationnellernent et de répandre efficacement un langage universel. De nombreuses tentatives ont été faites depuis trois siècles. Elles ont chacune mis en lumière des elements précieux, soit en formulant mieux certains desiderata, soit en présentant des solutions de plus en plus adéquates a ceux-ci. En forme finale, on tend vers une élaboration nettement consciente du langage synthétique [...] (OTLET, 1934, p. 91)
Essa língua universal procurada por Otlet (1934) é justamente baseada no espírito da catalogação e da classificação, cujas práticas já estavam em curso, principalmente a partir da experiência da geração miraculosa de 1876 dos Estados Unidos.
Faz-se importante lembrar que o método visa a macropolítica mundial. As redes dependem dos acordos nacionais, de instituições parceiras fundamentadas em marcos legais de diplomacia. A ascensão dos espíritos via intelecto, outra marca positivista, faz-se com que a Bibliografia seja aqui tratada como ferramenta da paz e da epistemologia. Os métodos enciclopédico-universais, tão aclamados por Otlet (1934) ao longo de sua fundamentação da Bibliologia remontam, centralmente, o projeto bibliográfico relatado anteriormente por Gabriel Peignot (influência epistemológica direta para a obra otletiana), como a Bibliotheca Universalis de Conrad Gesner, investigada por Andre Araujo (2016).
Nicolas Roubakine: o método científico-político da bibliografia como revolução social
De modo não linear, o caminho de Roubakine (1998) se demonstra inverso ao projeto de Paul Otlet. Com o percurso roubakiniano, a busca por um método científico- político constrói-se a partir do papel das ações bibliográficas no meio social como forma epistêmica.

A partir de sua principal obra, Introduction a la Psychologie Bibliologique, publicada originalmente em língua francesa, no ano de 1922, o teórico russo sintetiza a principal percurso de seu pensamento e sua proposta epistêmica.
Conforme discutido no decurso da pesquisa, em Saldanha (2019), Otlet (1934), reconhecerá em Roubakine a base metodológico-epistemológica da constituição do campo ali chamado “bibliológico”. Apesar de ter consultado dois trabalhos fundadores do pensamento de Otlet no início do século XX, a saber, L’avenir du livre et de la bibliographie, publicado no Bulletin de l’Institut International de Bruxelles, em 1911; e L’organisation des travaux scientifiques, apresentado como conferência em Paris no dia 25 de fevereiro de 1919, Roubakine (1998) já concebia anteriormente a experiência de aplicação de seu método.
Em síntese, tal método, a partir de uma vasta influência do exercício bibliográfico cotidiano, está em mapear todos os “passos oculares” do leitor, de modo a compreender o que podemos chamar da “alma” da vivência social da Bibliografia, ou seja, a circulação de ideias através da leitura.
Em Otlet (1934) encontramos a síntese do trabalho bibliográfico roubakiniano:
L’étude des rapports mentaux entre auteurs et lecteurs à l’intermédiaire du livre, étude du livre considéré comme une cristallisation des idées, des sentiments des volontés de qui le produit, une cristallisation qui a son tour va influencer cette autre cristallisation, plus souple et susceptible de modification qu’est l’utilisateur du livre. [O estudo das relações mentais entre autores e livros via a intermediação dos livros, um estudo do livro considerado como uma cristalização das ideias, os sentimentos provocados pelo livro, uma cristalização que a seu modo vai influenciar essa outra cristalização, mais flexível e suscetível de transformação no usuário do livro] (OTLET, 1934, p. 23)
Faz-se, assim, relevante demonstrar a procura de Roubakine (1992). Como uma crítica à “bibliografia” tomada como descrição direta dos livros, o olhar roubakiniano busca uma expressão maior, pela via de sua Bibliopsicologia, que visa “Mais que signifie l’expression ‘transformer les fiches bibliographiques en phénomènes biblio- psychologiques’?” [Mas o que significa a expressão ‘transformar as fichas bibliográficas em fenômenos biblipsicológicos?] (ROUBAKINE, 1998, p. 122)
Em outros termos, como visto em Saldanha 2019), a primeira preocupação roubakiniana está em isolar a epistemologia da Bibliopsicologia perante a Bibliografia e a Bibliologia. Em seus termos, a primeira se constitui como uma ciência independente, com seus próprios métodos e arcabouço teórico - movimento este próximo objetivamente daquele projetado por Gabriel Peignot (1802a,b) um século antes.
No entanto, o que se vê na estrutura metodológica roubakiniana é a aplicação das mais diferentes técnicas bibliográficas - e, logo, o arsenal de sua construção epistêmica de meio milênio, mapeada por Peignot (1802) - na vivência dos leitores. Em outros termos, uma reinvenção da Bibliografia - do olhar sobre o livro pelo livro, ao olhar pelo livro pelo leitor.
Shiyali Ranganathan Bibliografia como teoria social (ou a Social bibliography)
A vasta e reconhecida obra de Ranganathan guarda um olhar específico sobre a Bibliografia. A partir das cinco leis da Biblioteconomia, Raganathan (1952) procura estabelecer os modos de construção da prática bibliográfica. A obra, como explica o filósofo, busca princípios não estanques que permitem a construção da escrita. Trata-se, pois, de um trabalho destinado aos autores. Seu objetivo social é questionar para quem os textos de seu tempo são destinados a servir. Assim, o método bibliográfico em questão visa tornar os livros aceitáveis para o maior espectro de leitores, a partir daqueles recém- alfabetizados dentro de um contexto específico, ou seja, a Índia de meados do século XX.
Desenvolve-se aqui, como em modos distintos antevisto em Roubakine (1998) e Otlet (1934), uma teoria social se preocupa com a vivência dos indivíduos e os princípios de políticas públicas. Assim, a seleção de livros é, de modo claro, para Ranganathan (1952) uma prática intencional política de compreensão da sociedade e de possibilidade de sua transformação.
Como o clássico princípio metametodológico da Bibliografia, Ranganathan (1952,
p. 12), “This book may be described as a book on books from the angle of the distributor of the thought embodied in them.” A partir de sua primeira lei, Ranganathan (1952) procura a bibliografia a partir da questão pragmática do uso, dos sentidos sociais do livro na vivência dos indivíduos. Por isso, a bibliografia social é, pois, fruto de uma teoria da comunicabilidade, mas dentro de um processo vinculado ao que chamamos de “pragmática transcendental” (SALDANHA, 2016) na filosofia ranganathaniana, pensamento expresso em sua bibliografia social na definição de livro:
A book may, then, be taken to be a trinity of soul (=atma), subtle body (=sukshma sarita) and gross body (= sthula sarira). In association with each of these members of the trinity, the term ‘Bibliography' gets a different meaning. Even when associated with anyone of these members, the meaning of the term, changes with purpose. We have to distinguish the various meanings by prefixing to the term, 'Bibliography' a qualifying epithet setting its kind. (RANGANATHAN, 1952, p. 23, grifo nosso)
A trindade entre alma, corpo sutil e corpo bruto, que define o livro, conduz-nos na filosofia da Ranganathan (1952) a uma concepção distinta de Bibliografia. Em termos objetivos, a bibliografia pode significar uma lista macro ou micro de pensamentos incorporados, ou seja, livros ou artigos referentes a um ou mais assuntos. No entanto, via a trindade, percebe-se o livro como objeto social, a bibliografia se avança em uma intencionalidade democrática.
Como meio social de comunicação, os princípios bibliográficos estão vinculados diretamente a luta de oportunidades iguais para todos em um dado contexto de cidadania. Assim a reflexão sobre a bibliografia física (material),
from this angle - the angle of the future, the angle of the democracy, the angle of the team-work of thinkers working-in-series, in short the angle of the library as a social institution charged with serving books for self- education and self-entertainment for the masses as well as the classes and for conservation of social energy in the pursuit of knowledge-such a study of physical bibliography may be called Social Bibliography. (RANGANATHAN, 1952, p. 47)
Em síntese, a “Social Bibliography is physical bibliography for librarians whose role in social economy is to implemente the demands or the Five Laws of Library Science.” (RANGANATHAN, 1952, p. 47)
Jesse Shera Bibliografia como epistemologia social
Dentre as inúmeras releituras da epistemologia social a partir de Jesse Shera e Margareth Egan está a um detalhe frontal: a condição epistêmica para a qual nasce a proposta epistemológica coloca nos anos 1950. Em grande medida, a teorização em questão remonta a proposta de Gabriel Peignot, de Paul Otlet, de Nicolas Roubakine e do contemporâneo Ranganathan (que em 1952, como visto, desenvolvera o conceito de social bibliography). Mas centralmente o foco da epistemologia social tem um horizonte: a Bibliografia. O detalhe em questão está no título da proposta: a epistemologia social é apresentada no artigo Foundations of a theory of bibliography.

Segundo Budd (2002), a Epistemologia Social significa o estudo dos processos da sociedade em sua procura para a apreensão da relação perceptiva e compreensiva do ambiente em sua totalidade. As práticas bibliográficas, como classificar e catalogar, são vistas sob uma teoria da comunicabilidade no seio social. Deste modo, como fenômeno da comunicação, a dinâmica dos contextos produz e interfere na formação de cada dado bibliográfico.
Shera (1970) concebe a epistemologia social como uma interdisciplina dedicada a conhecer o conhecimento sob o ponto de vista de sua condição social. Assim, essa teorização sobre o real provê um quadro para a investigação do complexo problema da natureza do processo intelectual na sociedade. O foco da reflexão da epistemologia social é, pois, a compreensão da totalidade dos fenômenos da atividade registrada do intelecto, perpassando produção, fluxo, integração e consumo.
Estabelece-se aqui uma base praxiológica para a CI, pela via do olhar do fundamento bibliográfico, com foco na cognição social - o modo como mente e os registros do intelecto atua no mundo. Assim, a epistemologia social providenciaria aos sistemas bibliográficos as construções sociais que antecedem e que estão contidas no movimento dos registros do conhecimento.
Robert Estivals: a Bibliografia (questionada) como epistemologia
Como discutido em Saldanha e Couzinet (2018), a trajetória de Robert Estivals pressupõe uma epistemologia histórica capaz de rever grande parte da linha de cumeada de formação do campo. E aqui reconhecemos a bibliografia em sua dimensão de fundamentação na CI. Um dos exercícios de percepção dessa condição está no papel da classificação bibliográfica para a conformação dos campos científicos, incluindo o próprio campo informacional.
Os discursos de Estivals (1975, 1978a), incluindo os trabalhos de fundamentação em parceria com Jean Meyriat, dois dos mais reconhecidos fundadores da CI na França, demonstram a bibliografia como macro-categoria epistemológica. Assim, seu papel vai muito além da condição técnica, como inicialmente explorada em Saldanha e Couzinet (2019). A bibliografia se manifesta em esquemas mentais, sociais e visuais, chegando ao escopo de síntese de uma e de todas as ciências. Essa metateoria e suas metametodologias demonstram a centralidade epistêmica da Bibliografia na formação da CI e na sua atualidade. O desenvolvimento dessa perspectiva leva a pesquisa estivalsiana até a construção da Maison de l’Écrit, centro de documentação que guarda a memória do movimento epistemológico-histórico do campo, com grande centralidade para a Bibliografia, com referências formais a Gabriel Peignot, Gabriel Naudé e Paul Otlet, por exemplo.

Vê-se no pensamento de Estivals (1975, 1978a) a recorrente retomada do pensamento bibliográfico como centralidade epistêmica do campo informacional. Se o termo “bibliografia” - desde Peignot (1802a,b), passando por Roubakine (1998) e Otlet (1934) no discurso francófono - não ganha o peso de léxico epistêmico-institucional (o nome do campo), é sob o mesmo que as mais diferentes abordagens do campo avançam em sentido centrípeto e centrífugo.
Dois movimentos que comprovam essa ação nas revisões epistemológico- históricas de Estivals (1978a) são a cientificidade bibliométrica e a teoria crítica do esquema. No primeiro caso, via o desenvolvimento positivista do campo, vê-se o poder da bibliografia estatística e sua emancipação através das métricas sustentadas por leis da primeira metade do século XX apresentarem-se como estrutura cientifizante do campo em sua busca pelo status de maioridade epistêmica. No segundo caso, sob a principal procura de todo o pensamento estivalsiano, a noção de esquema e sua linha sociocrítica, a bibliografia leva-nos ao argumento do modo como os esquemas mentais se transfiguram em esquemas visuais, permitindo a compreensão da realidade sob a via de um fundamento dialético, como em sua reflexão sobre as luttes de classe e a esquematização, em Estivals (1978b).
4 Das considerações finais entre a necessidade e a discursividade: a altitude da Bibliografia
A presença da Bibliografia na paisagem discursiva de distintas obras de fundamentação do campo demonstra sua condição como fundamento filosófico, intersubjetivo, metodológico e científico. A constância dos enunciados formados pelo gesto bibliográfico aponta como aqui e acolá, a Bibliografia sustenta a constituição do que hoje se coloca sob a expressão “ciência da informação”.
Dos sistemas de conceituação às práticas de organização do conhecimento, dos esquemas mentais aos esquemas formais visuais de apresentação de sínteses do real, a Bibliografia se configura como teoria e método da cartografia epistemológica. Para além dessa formação, é preciso atentar-se que, entre Peignot e Otlet, entre Otlet e Ranganathan, entre Ranganathan e Shera, entre Shera e Estivals, a Bibliografia é antevista como fenômeno social e político, forma de luta em contextos de transformação.
Se, por um lado, é fato que o termo “bibliografia” não alcança a autonomia epistêmica, sendo “traído” em diferentes contextos, como visto em Saldanha e Couzinet (2018), âmbito que se dá desde Peignot e o uso epistêmico do termo “bibliologia” como ciência “acima” da bibliografia; por outro, é justamente sob um âmbito de identidade conceitual extrema - a concretude simbólico-social dos gestos políticos -, que a Bibliografia se configura. Os processos de institucionalização, no sentido de políticas públicas, desde o projeto otletiano do Instituto Internacional de Bibliografia até chegarmos aos auspícios da Unesco pelo mundo, colaborando para a criação de centros como o caso do Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD), hoje Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), são metáforas vivas do poder vinculado à historicidade da Bibliografia. É, pois, sob a noção, sob sua teoria e sob seus métodos, que a formação do campo se traduz, do positivismo, demarcado pela revisão de Crippa (2019) no solo brasileiro, a uma teoria crítica de fundamento roubakiniano e estivalsiano, do estruturalismo ao pós-estruturalismo, em uma longa marcha de disputa epistêmica.
Como uma linha de cumeada, a Bibliografia integra abordagens centrais de demarcação epistemológica do campo, tornando-se em sua primitividade e em sua ordinariedade, um enunciado estrutural e estruturante da invenção de uma dada “ciência para a informação” no Oriente e no Ocidente. Eis uma “necessidade” do campo, em sentido filosófico estrito e em contexto estruturalista, e ao mesmo tempo, uma discursividade comum, de ordem pós-estruturalista, capaz de permite a rever (do alto das montanhas) os lentos processos de conformação da luta por emancipação do campo informacional.
AGRADECIMENTOS
Às sugestões de Andre Araujo e Giulia Crippa
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Notas
Autor notes
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Declaração de interesses