Artigo original

“O MARAVILHOSO NÚMERO DAS IMAGENS”: OS PRIMEIROS “CATÁLOGOS” DE COLEÇÕES DE ARTE NO RENASCIMENTO

“The wonderful number of images”: the first “catalogues” of art in Renaissance

Giulia Crippa
Università di Bologna, Italy

“O MARAVILHOSO NÚMERO DAS IMAGENS”: OS PRIMEIROS “CATÁLOGOS” DE COLEÇÕES DE ARTE NO RENASCIMENTO

Encontros Bibli, vol. 25, Esp, e76257, 2020

Universidade Federal de Santa Catarina

Recepção: 06 Agosto 2020

Aprovação: 25 Setembro 2020

Publicado: 30 Novembro 2020

RESUMO

Objetivo: Apresentar e discutir os escritos de Marcantonio Michiel, Anton Francesco Doni, Paolo Giovio e Frei Sabba de Castiglione como exemplos de configuração pioneira de catálogos de Arte.

Método: Utiliza os métodos de pesquisa bibliográfica, com abordagem qualitativa, analisando os textos a partir de um conjunto de premissas teóricas sobre o que são listas e catálogos (BALSAMO, 2017; ECO, 2009; OTLET, 1934; SERRAI, 2001). Na premissa discute-se como tais materiais devem ser considerados.

Resultado: Observa-se que os autores selecionados produziram textos que funcionavam epistemologicamente, contribuindo para a formação do conhecimento em um campo até então não definido, isso é, o campo da Arte, colocando informações em circulação entre, principalmente, os colecionadores e os artistas, estabelecendo taxonomias e outros processos análogos, na medida em que o estudo desse tipo de genealogias ainda não é muito desenvolvido.

Conclusões: Os textos apresentados não se apresentam somente como listas, mas também como narrativas. Isso colocou a necessidade de observar o uso da linguagem em suas formulações retóricas. Observamos que os autores utilizam estilos bastante diferentes entre si e, com certeza distantes ainda das fórmulas contemporâneas dos catálogos de arte. Tais diferenças podem ser observadas quando, por exemplo descrevem uma mesma obra em situações e momentos diferente (como destacamos no caso da descrição de uma fonte presente no museu de Giovio).

PALAVRAS-CHAVE: Bibliografia+ Catálogos de Arte+ Renascimento+ Colecionismo.

ABSTRACT

Objective: To present and discuss the writings of Marcantonio Michiel, Anton Francesco Doni, Paolo Giovio and Frei Sabba de Castiglione as examples of the pioneering configuration of Art catalogs.

Methods: It uses bibliographic research methods, with a qualitative approach, analyzing the texts from a set of theoretical premises about what lists and catalogs are BALSAMO, 2017; ECO, 2009; OTLET, 1934; SERRAI, 2001). The premise discusses how such materials should be handled.

Results: It is observed that the selected authors produced texts that worked epistemologically, contributing to the formation of knowledge, putting information into circulation, establishing taxonomies and other similar processes.

Conclusions: The analyzed texts are presented not only as lists, but also as narratives. This placed the need to observe the use of language in its rhetorical formulations. We observed that the authors use styles that are quite different from each other and, certainly, still far from contemporary formulas in art catalogs. Such differences can be observed when, for example, they describe the same work in different situations and moments (as we highlight in the case of the description of a source present in the museum of Giovio).

KEYWORDS: Bibliography, Art catalogs, Renaissance, Collecting.

1 INTRODUÇÃO

Listas, inventários e catálogos, como elencos ordenados e sistemáticos de objetos da mesma espécie, sejam eles livros, obras de arte, produtos artesanais ou industriais, fazem parte do equipamento humano para lembrar de conceitos e posses materiais desde os tempos antigos. Nesse trabalho, propomos o estudo de alguns textos que antecipam a formação dos catálogos no campo da Arte. Além de se constituírem como fontes privilegiadas para pesquisar a proveniência das obras de arte, bem como a reconstituição de coleções perdidas, os catálogos e os inventários podem e devem ser investigados bibliograficamente e como coisas em si, com seus próprios quadros ontológicos, e não somente dentro de um processo de constituição da historiografia da arte.

Enquanto um inventário é uma lista de bens, que descreve sua quantidade, natureza e valor, um catálogo é uma lista que se diferencia do primeiro por apresentar algum tipo de arranjo, que pode ser sistemático, metódico, de ordem alfabética. Geralmente, se distingue do primeiro também por apresentar alguns detalhes descritivos que auxiliam na identificação do bem, apontando, por exemplo, o lugar de origem, sua colocação atual, seu histórico, seu preço no mercado das artes.

O que significa uma obra de arte estar em um catálogo? Hoje, ter uma obra catalogada significa que foi mostrada a alguma instituição ou organização dedicada à arte e que foi considerada autêntica pelos especialistas - que geralmente pertencem ao campo acadêmico, museológico ou, até, comercial, como no caso de galerias de arte ou de casas de leilões. A catalogação consiste inicialmente na aquisição de descobertas documentárias que ofereçam o maior número de dados - produção, compra, transferência, notas de passagem, escritas ou marcas em algum lugar das obras.

Na história da arte, a atribuição ou rejeição de propostas de atribuição não pode ser considerada definitiva: na medida em que a história da arte está sujeita a revisões periódicas, também através da descoberta de novos documentos, novas leituras ou novas técnicas de análise, a não aceitação no arquivo e no catálogo de uma obra não estabelece para sempre sua “falsidade” ou sua atribuição a determinado artista, mas pode ser considerado autêntico (ou falso) em um outro momento, através de novos estudos.

No âmbito da produção artística do séc. XVI, assiste-se à insurgência de formas de colecionismo já dedicadas especificamente à arte. Paralelamente, surgem as primeiras tentativas de esboçar bibliografias dedicadas à arte e aos artistas, entre as quais se destacam as páginas dedicadas ao tema por Paolo Lomazzo e Antonio Possevino, dos quais tratamos em ocasião do Seminário A Arte da Bibliografia em 2017 e no artigo decorrente (CRIPPA, 2017). Um dos elementos que, ainda, deve ser discutido, é como circula o conhecimento sobre as obras que se encontravam nas cada vez mais ricas coleções dos humanistas. Nesse sentido, identificamos alguns autores em cuja produção se localizam formas de listar e descrever as obras presentes nessas coleções. Entre os autores que podem ser encontrados, mas que não encontram espaço em um artigo, escolhemos os textos de Marcantonio Michiel (1484-1552), Anton Francesco Doni (1513- 1574), Paolo Giovio (1483-1552) e Frei Sabba da Castiglione (1489-1554). Processamos, assim, esses textos, considerando-os como formas iniciais de catálogos dedicados às obras de arte.

Objetivo desse trabalho é buscar entender como os textos selecionados funcionavam como catálogos e inventários e, ao mesmo tempo, de que maneira os objetos representados adquirem significados através deles.

Os procedimentos adotados para a análise dos textos se moldam na base de algumas perguntas que consideramos necessárias para abordá-los enquanto objetos que coadunam, a nosso ver, alguns princípios destinados a se desenvolver na moderna concepção dos catálogos de arte sem, todavia, considerar os elementos constitutivos de sua historicidade.

Uma das questões que precisa ser considerada para estudar os textos selecionados para esse trabalho é que esses não se apresentam somente como listas, mas também como narrativas. Isso coloca a necessidade de se atentar ao uso da linguagem em suas formulações retóricas e em sua configuração dentro de contextos temporais, espaciais e sócio-históricos específicos, elementos, esses, que, em modelos catalográficos sucessivos, tendem a desaparecer. Tudo isso foi considerado em nossa abordagem, face às fontes escolhidas, que pertencem ao início da modernidade.

  1. 1. Formulamos, assim algumas perguntas sobre nossos textos:

    Qual é o papel dos autores desses textos, no âmbito das relações em um campo em formação, como é o da arte no séc. XVI?

  2. 2. Quem são os atores envolvidos e para que os textos foram redigidos?
  3. 3. Quem é o leitor desses textos na época de sua produção e qual sua recepção hoje? De que maneira se produz o significado desses textos através dos usos da língua?
  4. 4. Como os textos se desenvolvem, enquanto estratégias para celebração, preservação ou dispersão das coleções, além de suas finalidades para impressionar, atrair ou convencer os leitores?
  5. 5. Qual é a circulação desses textos?

Norteados por essas perguntas, nos encontramos reconsiderando a relevância da própria textualidade como constitutiva desses proto-catálogos, intentando, assim, sua exploração como gesto de natureza bibliográfica, investigando suas tradições, convenções e camadas de significado. Afinal, essas realizações moldaram os fazeres dos historiadores da arte em seu uso dos documentos como evidências para seus argumentos.

2 ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE LISTAS, INVENTARIOS? E CATÁLOGOS

Em um estudo sobre listas literárias, Belknap (2004) lembra que, na sua forma mais simples, as listas são estruturas que configuram os itens que podem ser díspares separados e/ou juntos, com critérios próprios. O autor considera que listas se apresentam como estruturas flexíveis e plásticas, nas quais os conjuntos de elementos que as constituem entram em ação através de ações específicas, por sua vez geradas por interesses selecionados de proximidade entre as várias unidades. Belknap, que se ocupa de listas literárias, as distingue daquelas pragmáticas, afirmando que essas últimas possuem finalidades utilitárias, enquanto as primeiras pertencem a textos literários, conscientemente moldados pelos autores. No caso dos autores escolhidos é necessário reduzir essa distinção, reconhecendo a criação de listas pragmáticas que, ao mesmo tempo, se inscrevem no circuito literário, como se observa pelo uso de formas retóricas, entre outros fatores. Para Belknap (2004), um catálogo apresenta informações mais abrangentes e contém um número maior de digressões do que uma lista.

A noção de que um inventário registrou o que foi encontrado em um determinado espaço não deve sugerir que essas listas sejam compilações acríticas. Os primeiros inventários modernos, muitas vezes, iniciavam sua descrição topográfica com o térreo de uma habitação urbana, para depois prosseguir para os andares superiores. Ainda, iniciavam a descrição dos quartos com as tapeçarias de couro e têxteis passando, em seguida, para os outros objetos que povoam os interiores.

As consistências frequentes na estrutura, vocabulário e aparência física nas páginas dos inventários levam à conclusão de que eles pertencem a um gênero específico. No início da Europa moderna, por exemplo, um inventário, geralmente, aparecia como uma lista discreta na qual cada entrada ocupava uma linha separada e, raramente, era articulada como prosa, como um fluxo contínuo que corria da esquerda para a direita e ocupava toda a superfície da página. Além de aderir às convenções de um gênero literário, esse dos inventários, os historiadores da cultura material nos lembram que podem ser ficcionais e funcionar como representações subjetivas.

O catálogo é uma seleção de coisas, mas, como sugere a etimologia, essas entidades não estão necessariamente relacionadas em sua existência material dentro de um espaço. Um catálogo pode funcionar como uma coleção virtual, uma antologia de objetos selecionados existentes no papel onde se inscreve.

Portanto, no início do período moderno, o catálogo define uma relação diferente para os objetos em relação ao inventário, destacando-os em sua existência espacial específica e em suas relações com outras coisas encontradas naquele lugar em particular (ECO, 2009).

Em contraste com o inventário, os catálogos evoluíram rapidamente para textos impressos, prontos para serem multiplicados e atender a públicos cada vez mais alfabetizados e com um apetite estimulado pelo crescente mercado de arte e pela fundação de museus, especialmente a partir do séc. XVIII.

Embora reconheçamos as diferenças ontológicas e materiais entre inventários e catálogos, também observamos que estabelecer e sancionar o valor das coisas fica na interseção entre as duas modalidades.

Historicamente, o catálogo tem sido uma ferramenta intelectual para as culturas ocidentais explorarem, categorizarem, apropriarem e até colonizarem culturas não- ocidentais, como Buono (2014) argumenta na primeira parte de seu ensaio sobre a História Natural do Brasil, que cataloga o conhecimento nos moldes das categorias europeias e dos interesses coloniais. Buono (2014) analisa histórias naturais e livros de receitas associados ao Brasil e ao projeto colonial, observando como se apresentam descritivos não apenas da generosidade botânica do novo mundo, mas também dos sistemas interligados com a produção do poder iconográfico, linguístico, científico e cultural de conhecimento e do poder operacional sociopolítico da época. Sua análise ilustra como a função retórica da lista afeta a importância do objeto: assim, espécimes botânicos adquirem significados diferentes quando considerados em exemplos de história natural ou como ingredientes em receitas medicinais.

Inventários e catálogos estabeleceram espaços geográficos, temporais e discursivos para a circulação e troca de cultura material e para a formação de epistemologias e taxonomias. Esses textos estabeleceram estruturas nas quais os objetos poderiam significar individualmente e dentro do contexto das coleções. Eles documentam acúmulo e perda - atos de compra, entrega de presentes, venda, penhor, roubo, etc. - que apontam não apenas para a mobilidade de objetos, mas também para processos de formação de conhecimento, padrões de consumo, mudança de conceitos de valor e relação da cultura material com expressões de identidade, que vão do pessoal ao familiar, de classe, nacional e até imperial.

Inventários e catálogos são traços indicativos de debates sobre os vínculos entre linguagem e materialidade - os limites e possibilidades que a linguagem possui para descrever as coisas. Eles nos direcionam para uma ontologia orientada a objetos e, concomitantemente, levantam questões de agência individual. Os autores de muitas dessas listas escreviam conscientemente histórias através de objetos, e esses atos de representação deveriam nos deixar criticamente alertas, à medida que empregamos esses textos ao escrever nossas próprias histórias. Como afirmamos no começo, embora inventários e catálogos sejam frequentemente usados na história da arte como ferramentas arqueológicas para escavar camadas do passado e tratados como fontes empíricas, esses textos devem ser submetidos aos mesmos modos de análise que outros objetos da cultura material.

Para nos auxiliar, recorremos à análise historiográfica de Giorgio Riello (2012), na qual o autor se dedica ao estudo dos primeiros inventários modernos. O autor solicita a adoção de uma postura crítica na análise desses textos, para que não os consideremos nem “registros contaminados de uma realidade objetiva nem, simplesmente, manifestações literárias divorciadas da materialidade” (RIELLO, 2012, p. 125). Eles não são, nos lembra, "totalmente desapegados do que descrevem" (RIELLO, 2012, p. 127). Para ele, o que deve ser observado é o fato desses textos agirem como representações, abordagem que tentaremos seguir em nosso trabalho.

Na medida em que os autores representam, no lugar de, simplesmente, descrever ou apenas apresentar, seus escritos se imbricam no contexto sócio-histórico de produção. Para Riello (2012), esses escritos são, portanto, formas de representação influenciadas por convenções sociais, pelos valores econômicos que, de maneira ainda que não explícita, são atribuídos aos objetos e, nesse sentido, consideramos que, perante esses proto- catálogos de arte, seu valor econômico se desloca para aquilo que Pomian descreve como fator essencial das coleções, isso é: os objetos atribuem status aos seus proprietários, perdendo valor de uso e adquirindo valor de troca (POMIAN, 1984).

Keating e Markey (2011) argumentam que os primeiros inventários modernos compartilham uma característica específica, que é a de buscar traduzir a materialidade das coisas em declarações linguísticas. Os escritos que selecionamos, a nosso ver, devem ser tratados como documentos de autoria realizados sob determinadas restrições temporais, retóricas e sociais que afetam sua compilação e as fórmulas como os objetos listados são descritos.

3 OS AUTORES E SEUS CATÁLOGOS

Em primeiro lugar, é preciso lembrar daquilo que catálogos de livros e catálogos de obras de arte aparentam ter em comum e, em um segundo momento, deixar às claras as razões pelas quais catálogos de arte se inserem plenamente na construção de um pensamento bibliográfico.

Segundo esclarece Darnton (2004), a bibliografia pode ser enumerativa (ou seja, dedicar-se à lista de autores e títulos) e descritiva, ou analítica. O que vale a pena destacar é que seu interesse é fortemente atrelado à materialidade do livro: seus materiais, seu tamanho, as datas e os lugares de impressão, em suma, um conjunto de informações que permitem individualizar documentos cujo conteúdo é igual ou que apresenta diferenças que, de fato, decorrem desses elementos. Basta pensar nas diferenças ligadas aos processos de apropriação de um texto produzido em papel de trapos, com expedientes tipográficos de alta qualidade, com uma tradução do original (se for o caso de textos em outras línguas) cuidadosa e revisada. O mesmo texto pode ser apropriado através de uma edição mais econômica, traduzida de língua não original, mas oferecem algum tipo de aparato crítico: qual dos dois textos favorece a leitura e apropriação do documento? A bibliografia, oferecendo um conjunto de informações sobre essa natureza ontológica de seu objeto, permite o acesso a uma constelação de materiais que gravitam em volta de formas e conteúdos bem mais fluidos do que se costuma pensar, em que o livro já é o resultado de um conjunto de operações não somente intelectuais (o autor e nossa idealização de uma criação “única”) para se tornar um universo de operações materiais, editoriais, comerciais que, querendo ou não, incidem ... Um livro não se julga pela capa, diz o mote popular, mas a capa é um elemento de peso na nossa leitura do livro, e a bibliografia analítica nos diz muito sobre isso.

O interesse pelas “formas”, pelos processos de produção dos documentos, abordagem que permite - ainda que de maneira precária - discutir a transição das inquietações bibliográficas para o mundo digital, é evidentemente compartilhado pelos catálogos de arte, desde suas primeiras elaborações na Modernidade dos humanistas.

Território bibliográfico por excelência, o elemento enumerativo do inventário inscreve o catálogo de arte no exercício bibliográfico, no sentido documentalista que enverga os estudos a partir do design projetado por Otlet (1934) de uma bibliografia inclusiva de objetos diferentes do livro como objeto privilegiado. Por outro lado, na medida em que a bibliografia analítica incide nas transformações da antiga “História Literária”, o catálogo de arte também passa a ser considerado elemento essencial de uma história da arte em sua guinada cultural, na primeira metade do séc. XX, por obra, principalmente, de Warburg (2012) e de sua escola, à qual pertencem Panosfky, Gombrich, Yates e Saxl e que forte influência exerce em autores como Baxandall, o qual afirma que

Quando queremos explicar um quadro [...] o que de fato explicamos não é tanto o quadro em si quanto uma representação que temos dele mediada por uma descrição parcialmente interpretativa (BAXANDALL, 2006, p. 43).

Para Baxandall (2006, p. 44), “a descrição é menos uma representação do quadro [...], a descrição é uma relação entre os quadros e os conceitos”. Se pense, por exemplo, à mediação bibliográfica que perdura até hoje do quadro de Giorgione Os três filósofos (hoje no Kunsthistorisches Museum de Viêna). Vale lembrar que é na Notízia d’opere del disegno de Marcantonio Michiel (1977) que essa obra recebe seu título e a primeira descrição, destinada a permanecer até hoje: “O óleo sobre tela dos 3 filósofos na aldeia, dois em pé e um sentado que contempla os raios do sol, com aquela pedra encenada com tão grande mestria, foi começada por Giorgio de Castelfranco [...]” (MICHIEL, 1977, p. 2882)1.

Se, de um lado, no séc. XVI não existe, ainda, um campo definido para a arte, é bem verdade que suas manifestações são presentes e reconhecidas desde a Antiguidade, e não há dúvidas que Plínio, o Velho, fornece uma lista de obras de arte, apresentando suas características e peculiaridades (DE BENEDICTIS, 2015). Certo, estamos muito longe de podermos falar de um catálogo artístico nesse exercício memorial do autor.

Precisamos chegar ao começo da Modernidade, para identificar alguns autores em cuja produção se localizam formas de listar e descrever as obras presentes em coleções renascentistas, ou seja, quando o interesse por artefatos artísticos começa a se delinear de maneira mais evidente. Os autores dos quais trataremos nesse artigo são, como dissemos, Marcantonio Michiel, Anton Francesco Doni, Paolo Giovio e Frei Sabba da Castiglione.

3.1 Marcantonio Michiel e sua Notizia d’opere del disegno

Nos estudos recentes sobre o colecionismo, orientados para oferecer um panorama cultural, as testemunhas existentes adquirem um grande peso. Na Notízia d’opere del disegno (1977), escrita por Marcantonio Michiel no começo do século XVI, encontramos uma interessante crônica anterior ao Vasari (pois foi redigida entre 1520 e 1543). Filho de um senador, Marcantonio pertence a uma rica família, fato que lhe permite realizar os estudos, tornando-se humanista particularmente erudito no conhecimento do grego antigo. Veneza é, na época, a cidade que ainda domina o espaço comercial do Mediterrâneo Oriental, e nosso autor, em 1510, viaja para visitar vários desses centros dominados pela cidade (Zara, Corfù, a Dalmácia), visittando os intelectuais que lá se encontravam. Em que pese seu desejo de se dedicar à política, vários acontecimentos fizeram com que, no final, encaminhasse seus interesses para a Arte e a História. A Notizia d’opere di disegno, cujo manuscrito autógrafo encontra-se na Bibliotéca Marciana de Veneza, foi publicado pela primeira vez por Jacopo Morelli (Bassano 1800 e Venezia 1820), impondo-se como plataforma essencial nas pesquisas histórico-artísticas e sobre o colecionismo renascentista na área vêneta. O autor nos permite, através de sua experiência de humanista erudito, que visitara Florença, Roma e Nápoles, ter um vislumbre das casas patrícias do Vêneto, bem como iluminar as coleções de maneira tal que podemos avaliar as escolhas dos homens mais proeminentes entre os aristocratas, os políticos, os humanistas letrados, entre os quais Alvise Cornaro, Pietro Bembo, Marco Mantova Benavides, Andrea Odoni, Francesco Giglio, Gianantonio Venier, o Cardeal Domenico Grimani, Juan Ram.

Na crônica de Michiel encontramos um conjunto interessante de informações sobre as coleções desses ilustres humanistas do nordeste italiano: o que seu catálogo das obras presentes nessas residências permite delinear é a tipologia das preferências do colecionismo na área entre Veneza e Milão, destinada a enriquecer as maiores coleções europeias.

Michiel foi ele mesmo um colecionador, mas sua relevância reside nessa obra de catalogação das obras de arte mais importantes presentes nessa área geográfica. Em sua Notizia nos fornece ricos detalhes das esculturas, pinturas e desenhos presentes nas coleções públicas e privadas entre Lombardia e Vêneto. O texto da Notizia representa uma fonte insubstituível para o conhecimento e a compreensão do colecionismo e da cultura do norte da Itália renascentista: nela, as obras são listadas de maneira crítica, através de uma abordagem de inventário sistemático. As anotações são breves, mas densas de conteúdo informativo, apresentando datas e atribuições aos artistas, através do uso de uma terminologia cuidadosa.

As Notizia se abrem com uma descrição arquitetônica da galeria aberta, da capela, de um quarto de dormir e da fachada do palácio de Alvise Cornaro referências que revelam como o espaço, a “moldura” dos objetos é parte integrante da narrativa. Adentramos, assim, na galeria aberta em volta de um pátio, projetada por “Zuan Falconetto, pintor de Verona, que foi discípulo de Melozzo de Forlì”2 (MICHIEL, 1977, p. 2867), que também pintou, nos informa Michiel, a pequena capela e as escadas enquanto as esculturas que a ornamentam foram realizadas por Zuan Padoan, discípulo de Cristofano Solari.

A segunda coleção descrita por Michiel é a de Leonico Tomeo. Aqui, podemos observar com clareza que o estilo desse autor, que escreve nas primeiras décadas do século XVI, antes do Vasari, se aproxima da ideia de lista, com poucos comentários sobre as obras, sua proveniência e suas características.

A coleção ilustrada apresenta claramente o gosto humanista, em que prevalece a presença de objetos antigos, ainda que ladeados de pinturas contemporâneas dos principais artistas da época: 11 estatuas antigas, inúmeras moedas, vasos e pedras preciosas, além de “O retrato dele mesmo M. Leonico, jovem, agora todo descascado, amarelado e ofuscado, pela mão de Zuan Bellino. O retrato de seu pai, em guache, de perfil, pela mão de Iacomo Bellino”3 (MICHIEL, 1977, p. 2869). O autor também destaca, descrevendo-o com maiores detalhes - reveladores de certa admiração - “O rolo em pergaminho com pintada a história de Israelite e Yesu Nave, com as vestimentas e as armas em estilo antigo, com as imagens dos montes, rios e cidades humanas, com a explicação da história em grego, foi obra constantinopolitana, pintada há 500 anos” (MICHIEL, 1977, p. 2869).4 Observa-se a presença de uma pintura flamenga de Ian van Eyck, ativo como pintor entre 1368 e 1400, aqui presente com um “quadrinho em tela (...) onde está pintada uma aldeia com alguns pescadores que pegaram uma lontra com duas pequenas figuras que observam”5 (MICHIEL, 1977, p. 2868).

A coleção de Alessandro Capella, sempre descrita em um estilo sintético, por outro lado, revela um interesse maior pela pintura, listando quatro esculturas antigas, ao lado de “A cabeça de Cristo, que com a mão direita abençoa, com a esquerda carrega um livro aberto, foi feita pelo Montagna. O pequeno retrato do jovem M. Leonico foi feito por... (...).Lo Bellorofonte em bronze que segura Pégaso (...) foi feito por Bertoldo (...)6. (MICHIEL, 1977, p. 2890) É destacada também a presença de um afresco, atribuído a Cimabue, com a cabeça de São João que, como diz o autor, foi retirada da igreja dos Carmelitas, depois dessa queimar.

Podemos observar que, tanto nessa coleção, como na anterior, o autor destaca a presença de obras de época medieval (a pintura de Ian van Eyck, o pergaminho e o afresco de Cimabue, mestre de Giotto), fato interessante se consideramos que, com o Vasari, as narrativas da história da arte tendem a atribuir escasso valor aos artefatos medievais. Entre as outras coleções descritas, que seguem o mesmo ritmo de listas, encontram-se as dos humanistas Pietro Bembo e Andrea Oddoni, ambas figuras emblemáticas da cultura do Renascimento Veneziano.

Na coleção de Pietro Bembo, ao lado de doze esculturas antigas, tanto em bronze como em mármore, e das pedras preciosas, vasos e medalhas antigas, encontram-se algumas obras de artistas de grande renome: Mantegna, Raffaello, Sebastiano del Piombo, Bellini, Compagnola, além de outros menores. Aqui, também, é citada a presença de uma pintura de origem nórdica, com sua datação: “O quadrinho em duas tabuas de São João Batista (...) realizado por Hans Memling no ano de 1470”7 (MICHIEL, 1977, p. 2871). Somente outra obra, em toda a relação do Michiel, possui a data em que foi feita. Trata-se do “retrato a óleo até a cintura, menor que o natural, da Senhora Isabel de Aragona, esposa do duque Felipe de Borgonha, feito por Hans Memling em 1450” (MICHIEL, 1977, p. 2888), relatada na coleção do Cardeal Grimano que, pela lista oferecida por Michiel, revela um interesse marcado pela pintura flamenga. De fato, além desse retrato, são listados também:

  1. 1. 1)

    um autorretrato do próprio Memling em um espelho, o retrato de um casal, e “muitos outros quadrinhos de Santos, todos com pequenas portas na frente, também a óleo, feitos pelo mesmo Hans Memling” (MICHIEL, 1977, p. 2889),

  2. 2. 2)

    Vários pequenos óleos, de Ieronimo Todeschino,

  3. 3. 3)

    Várias pinturas de paisagem de Albert van de Ouvater, pintor de Harlem,

  4. 4. 4)

    Três obras de Joaquim Patenier, de Leuwen,

  5. 5. 5)

    Três telas de Jeronimous Bosch, em específico: “A tela do inferno com a grande diversidade de monstros (...). A tela dos sonhos (...). A tela da Fortuna com a baleia que engole Jonas (...)”8(MICHIEL, 1977, p. 2889),

  6. 6. 6)

    Uma série de gravuras de Albrecht Dürer,

  7. 7. 7)

    Uma gravura de Gherard de Ghent.

Ao lado desses pintores nórdicos, é citado Barberino Veneziano que, apesar da origem, “foi para a Alemanha e a Borgonha, e prendida aquela maneira fez muitas coisas”.9 (MICHIEL, 1977, p. 2889.

Na coleção do Cardeal é relatado também um breviário produzido em área flamenga. Ao lado das antiguidades se destacam as obras de artistas venezianos como Giorgione (“la tela a olio delli tre filosofi” - o óleo sobre tela dos três filósofos - que se encontrava na casa dos Contarini), Bellini, Ticiano, Palma, Lotto, Catena, Sebastiano del Piombo, bem como Mantegna, Túlio Lombardo, Rafael, além de telas flamengas de boa qualidade de Memling, Bosch, Scorel e alemãs, como Dürer.

Há uma presença escassa de obras toscanas: um Cimabue na residência da família Capella, uma cópia da Monalisa na casa de Bembo, os Gigantes de Paolo Uccello na casa Vitellioni. O autor também mostra escassa presença de artistas anteriores ao século XV, enquanto assinala um bom número de retratos e quadros “pitorescos”.

3.2 Paolo Giovio e o Museo Gioviano

Bem diferente é o trabalho realizado por Paolo Giovio no seu Museo Gioviano, no qual ele coletou os retratos dos homens e dos deuses mais famosos. O primeiro a comentar a empreitada foi Anton Francesco Doni, através de duas descrições de 1543, bastante diferentes entre si (DONI, 1977). A primeira, em forma de carta escrita ao pintor Tintoretto, oferece uma leitura em chave “grotesca”, distorcendo os nomes e as imagens dos heróis e das divindades. A segunda, uma carta endereçada ao conde Agostino Landi, por outro lado, é bem cuidadosa e de tom elevado, centrando sua atenção sobre os motes e as alegorias.

Na primeira descrição das obras presentes no Museu de Giovio, encontramos trechos desse tipo como descrição de um conjunto de esculturas de mármore:

E havia também uma coisa bonita: uma mulher [...] tinha mais mamas que uma cadela, e na cabeça uma cesta de frutas, como se viesse do mercado. Mas ela não tinha nem pés nem mãos, e pelas suas tetinhas bonitinhas brancas como orvalho, mijava água em uma grande bacia; e duas mulheres que pareciam querer se lavar tiravam a camisa10 (DONI, 1977, p. 2893).

A mesma obra, na versão “erudita, é assim descrita: “[...] há uma fonte que, em grande quantidade, jorra água pelo peito de uma pequena figura em pedra como a natureza. Há certas mulheres [...] as quais, tirando a camisa, fingem querer se lavar”11 (DONI, 1977, p. 2899). Ainda, observe-se os dois registros diferentes utilizados para descrever uma pintura que representa a metamorfose de Dafne perseguida por Apolo: “[...] vi uma moça gostosa que parecia um carvalho ou uma madeira nas mãos e nos cabelos, e um homem queria agarra-la”12 (DONI, 1977, p. 2893) é a descrição que se lê na carta de Doni ao pintor Tintoretto, enquanto escreve, na carta ao conde Agostino Landi, a referência direta ao mito, designando a pintura pelo título “Dafne” (DONI, 1977, p. 2899).

A descrição do quadro da coleção de Giovio que retrata Apolo que tira a pele ao sátiro Mársia apresenta elementos irônicos nas duas versões. Na primeira carta, Doni brinca, trasladando o mito na sua versão cristã: “O primeiro me parecia um São Bartolomeu; mas não carregava a pele no ombro, um homem que tinha uma ribeca, o pendurava em uma árvore; e depois era amarrado como um São Sebastião. Que deus era ele?”13 (DONI, 1977, p. 2893). Na segunda versão, a descrição fala do relato mitológico, mais não poupa o humor: “[...] Mársia, que Apolo lhe tira a pele do corpo (talvez porque suava) por ter ganha a competição de tocar”14 (DONI, 1977, p. 2899).

Nos dois “catálogos” de Doni, que relatam as mesmas obras presentes na coleção, o uso da linguagem nos devolve descrições bastante diferentes, mas ambas caracterizadas por um olhar atento e crítico, sem deixar de lado, mesmo na redação mais erudita, a leveza de um olhar rico de humor em sua erudição

O cardeal Giovio, de fato, tinha se aplicado “quase por diversão” (GIOVIO, 1977, p. 2761) à sua empreitada de colecionador. Ele se apresentando como pioneiro na valorização da problemática singular relativa ao ut pictura poësis do mote e da imagem. Sua combinação implica em condições peculiares, ligadas às prerrogativas das linguagens diferentes, impondo a exigência de um equilíbrio sutil no qual se espelhavam as diversas aspirações literárias, filosóficas e figurativas de sua época. No registro específico da empreitada, a “justa proporção” (GIOVIO, 1977, p. 2759), que Giovio deseja entre alma (o mote) e corpo (a imagem) leva à distinção entre a materialidade da linguagem figurativa e a imaterialidade daquela literária. Giovio, mais especificamente, concentra sua atenção nos retratos. Nenhuma das duas descrições de Doni, tão diferentes e, ao mesmo tempo, extremamente eruditas, corresponde às finalidades prosopográficas clássicas do próprio fundador do museu.

É com Giovio que, pela primeira vez, o termo museu é utilizado para indicar o lugar físico destinado a hospedar algum tipo de coleção (DE BENEDICTIS, 2015). Para entender a empreitada de Giovio, queremos aqui inicialmente, oferecer o trecho em que se refere à fonte anteriormente descrita por Doni: “uma escultura [...] para a deusa Natureza, de cujas mamas gotejando, [a água] se verte no grande vaso de mármore”15 (GIOVIO, 1977, p. 2910).

Giovio descreve a estrutura de seu museu, deixando claro que, com essa palavra, ele designa um espaço físico destinado a hospedar e expor obras de arte. A intenção de Giovio era de constituir uma galeria de personalidades para erguer uma espécie de hall of fame que espelhava seus interesses históricos e literários.

Giovio oferece ao leitor a sequência de salas do andar térreo, dedicadas às divindades e seres mitológicos, e as obras nela colocadas. Ao lado dessas, encontram-se as primeiras figuras de eminentes personalidades de sua galeria: Plínio o Velho e Plínio, o Jovem; Cecílio e Rufo Canino, poetas; O gramático Atílio; Fabato, conhecido por ser inimigo de Nero. Dessas primeiras salas, dedicadas a Apolo e a Minerva, Giovio passa para a sala de Mercúrio, onde alega se encontrar uma pequena, porém excelente e selecionada biblioteca.

3.3 Os Ricordi de Frei Sabba

Mais genéricos se apresentam os Ricordi (Lembranças) do Frei Sabba da Castiglione, publicadas em 1546, depois do autor passar a residir na pequena cidade provinciana de Faenza, entre 1518 e 1519 .

Sabba da Castiglione é conhecido come colecionador graças a estudos relativamente recentes. Nasceu em Milão, provavelmente em 1480, na mesma família à qual pertencia Baldassarre Castiglione, o autor do Cortegiano e que foi a ele contemporâneo. Após interromper os estudos de direito em Pavia, provavelmente porque mais interessado nas letras e nas artes, Sabba ingressou na ordem dos Cavalheiros Jerosolimitanos de São João Batista. Sabba foi encarregado por Isabela d’Este, que conhecera em Mântua, de procurar objetos antigos nos lugares que atravessou durante sua permanência no Oriente grego.

Em seu tempo livre da atividade militar, Sabba dedicou-se com afinco à tarefa que lhe fora confiada, como documentado pelas cartas entre ele e Isabela (RAMBALDI, 2018). Nessa correspondência se encontram as primeiras testemunhas, as mais significativas, da postura para com a herança material do mundo antigo por parte de Frei Sabba que, mesmo sintético em suas descrições das testemunhas que encontrava, reclamava do estado de abandono e ruína em que se encontravam, bem como do desinteresse completo de seus companheiros. É possível que a missão que Isabela lhe confiou, com todos os cuidados necessários que tinha que tomar para garantir o envio dos objetos, tenha exercido um papel importante em despertar no jovem cavalheiro o interesse para o colecionismo, em seguida cultivado em primeira pessoa por ele.

Em um dos Ricordi (109), acerca dos ornamentos das residências, Sabba fornece os exemplos de um “verdadeiro e bom cavalheiro” de província, atraído em primeiro lugar pelos gêneros artesanais mais na moda. Entre os semióforos preferidos se colocam as antiguidades, os instrumentos musicais, as moedas, os camafeus, as gravuras, as tapeçarias, os couros, as armas e os livros. Tudo isso sem, porém, ignorar Donatello, Michelangelo, Verrocchio, Pollaiolo, Lippi, Mantegna, Bellini, Leonardo, Perugino, Giulio Romano, ladeados por artistas mais lombardos, como Cristoforo Romano, Alfonso Lombardo e Guido Mazzoni. Se a essa orientação do gosto as perspectivas de Piero della Francesca e Melozzo da Forlì pareciam excessivamente intelectuais, por outro lado os fáceis enganos visuais da marchetaria de Giovanni de Monteoliveto, de Raffaello da Brescia e, principalmente, de Frei Damião suscitavam a admiração do peculiar frei connoisseur.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A lista pragmática conjuga-se com seus irmãos literários em torno do conceito de valor, uma vez que o valor geralmente impulsiona a formação de uma lista: em outras palavras, inventários e catálogos foram compilados, historicamente, para selecionar ou distinguir objetos particulares acima de outros e reunir essas partes em um novo todo coletivo com capacidade significante. Como Belknap (2004) afirma, a lista é simultaneamente a soma de suas partes e das partes individuais. Por acréscimo, as unidades separadas cumprem alguma função como um todo combinado e, pela descontinuidade, a individualidade de cada unidade é mantida como uma instância específica, um atributo específico, um objeto ou pessoa específico. A lista, uma vez construída, muda os objetos que inclui, imbricando-os dentro de um novo discurso e definindo relações entre essas coisas, bem como entre essas coisas e seus donos, e entre essas coisas e o autor ou leitor da lista. Os inventários e catálogos históricos de arte geralmente funcionavam para preservar a memória e a existência material das coisas ou para mobilizá-las através de formas de troca, porque esses objetos eram considerados valiosos. Essas listas tornaram-se, assim, o meio textual para sancionar o valor, pois essas listas podem ser vistas como agentes ativos capazes de definir e construir valor através da linguagem, imagem e materialidade do texto.

Mesmo durante a Idade Média, como demonstra Joseph Salvatore Ackley (2014), os inventários de tesouros costumavam ser incluídos em evangeliários, lecionários ou pontífices - os livros mais preciosos da igreja. A mise-en-livre, como argumenta Ackley, simboliza e define o valor colocado nesses registros textuais, além do valor dos próprios objetos. E inventários e catálogos, ao registrar a formação de coleções, poderiam significar capital cultural.

Ao criar e atribuir valor, inventários e catálogos, como afirmam vários autores aqui, também funcionavam epistemologicamente, contribuindo para a formação do conhecimento, colocando informações em circulação, estabelecendo taxonomias e outros processos análogos. Além disso, ao definir padrões de valor estético, material e monetário, além de formar, negociar e evoluir convenções descritivas, inventários e catálogos contribuíram para a formação de discursos sobre arte e sua historiografia. O vocabulário usado nos catálogos pode revelar abordagens ontológicas dos objetos representados e enriquecer nossa compreensão das abordagens teóricas e históricas da arte, estilo, materiais e materialidade.

As obras das quais Michiel fala são listadas como em um catalogo raisonné, em um inventário cuja abordagem é sistemática, seguindo a topografia das cidades visitadas e, em cada cidade, de palacete para palacete, de coleção para coleção. Michiel exibe uma percepção apurada, através de um olhar que se traduz em breve anotação, na qual busca condensar os conteúdos informacionais colocando, quando possível, a data das obras e sua atribuição autoral, através de uma linguagem terminologicamente aprofundada através de um grande cuidado no uso dos adjetivos.

Giovio dedica uma parte consistente de sua descrição à “ordem” seguida para as imagens colecionadas e expostas: “As imagens que, em muitas pinturas pintadas com muita arte, mostram expressamente as verdadeiras faces dos homens ilustres [...] estão distintas em quatro ordens”16 (GIOVIO, 1977, p. 2915). Na primeira ordem se encontram aqueles que se distinguiram pelo engenho e que deixaram suas obras por escrito. Na segunda ordem, encontram-se os retratos dos homens ilustres ainda em vida, Na terceira, os retratos de pintores e escultores. A quarta ordem é dedicada aos “sumos pontífices, aos reis e aos duques, os quais, na paz e na guerra tendo conseguido glória imortal, deixaram aos seus descendentes exemplos raros de suas gestas notáveis”17 (GIOVIO, 1977, p. 2918).

É assim que Giovio deseja que “O maravilhoso número das imagens desses, com sua estonteante variedade”18 (GIOVIO, 1977, p. 2918), dispense um incrível prazer aos visitantes.

Por sua vez, observamos que Doni não nos oferece uma lista de títulos e autores, mas uma descrição arguta das obras, em ambas as versões de seu “catálogo” do museu de Giovio. O uso da retórica nos obriga a participar de um jogo erudito, em que somos levados a recuperar conhecimentos e referências que nem sempre são explícitas. As referências que o autor oferece necessitam que o leitor seja um humanista, erudito, já antes da leitura, que possa completar, através de seus próprios conhecimentos, as informações presentes nos textos.

Sabba da Castiglione, em seu Ricordi, cuja função geral é fornecer o percurso para educação de um perfeito cortesão, dedica uma parte inteira de sua obra ao lugar das coleções, desenhando seu retrato ideal e oferecendo aos leitores seus conteúdos, rico em esculturas antigas e modernas, pedras preciosas, joias, retratos, histórias.

O que se pode afirmar é que, em seu conjunto, esses primeiros catálogos de arte apontam para o fato de que a tradição do studiolo e do tesouro, para esses autores, já se tornou sinônimo de coleção, cada vez menos reservado ao recolhimento privado e mais aberto aos olhares dos visitantes.

O pequeno recorte aqui oferecido permite também observar que a forma de declinar as coleções, com o uso de artifícios retóricos. Isso bem pode ser observado, por exemplo, nas duas “versões” de Doni que descrevem a coleção de Giovio, em que o registro linguístico desenha um retrato tanto do autor, como do próprio colecionador. De fato, temos a descrição dos mesmos ambientes e das mesmas peças, mas em um caso prevalece um registro humorístico, enquanto no outro a retórica è utilizada de maneira cortês. Considerando que essas obras circulavam entre os próprios colecionadores e cultores, que pertencem a uma rede destinada a se ampliar aos poucos, esse retrato se torna o de uma época inteira, onde o conhecimento desse novo campo, o da Arte, começa a se dotar de seus instrumentos de divulgação. Tais instrumentos são, necessariamente, um reflexo da sociedade que os produz e de seu entendimento do valor que se atribui tanto à arte como a seus cultores. Nesse sentido, avançar no estudo dessas produções por um viés bibliográfico amplia a compreensão não somente de seus percursos históricos, mas da importância de refletir sobre sua capacidade de nos fazer compreender de maneira mais aprimorada quem somos e como descrevemos nossos conhecimentos de maneira não somente “técnica” mas substancialmente “social”: a maneira como construímos nossas bibliografias, assim como observamos pelo prisma da história, é capaz de ampliar nossa consciência sobre nossos valores e princípios como sociedade.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 La tela a oglio delli 3 filosofi nel paese, dui dritti et uno sentado che contempla li raggii solari, cum quel saxo finto così mirabilmente, fu cominciata da Zorzo da Castelfranco.
2 (…) Zuan Falconetto pittor Veronese, che fu discipulo de Melozzo da Furlì.
3 Lo ritratto di esso M. Leonico, giovine, ora tutto cascato, inzallito et ofuscato, fu di mano di Zuan Bellino. Lo ritratto di suo padre a guazzo, in profil fu di mano di Iacomo Bellino.
4 Lo rotolo in membrana che ha dipinta la istoira de Israelite et Yesu Nave, cun l’abiti et arme a l’antica, cun le immagini delli monti, fiumi et cittadi umane, cun la explicazione della istoria in grecco, fu opera constantinopolitana, dipinta già 500 anni
5 Lo quadretto in tela (…), ove è dipinto un paese cun alcuni piscatori che hanno preso una lodra cun due figurette che stanno a vedere”.
6 La testa dil Cristo che cun la man dextra dà la benedictione, cun la sinistra tien un libro aperto, fu di mano dil Montagna. Lo ritratto piccolo di M. Leonico giovine fo di mano di… (…).
7 El quadretto in due portelle del San Zuan Batista (…), furon de man de Zuan Memglino, l’anno 1470”.
8 La tela de l’inferno cun la gran diversità de monstri (…). La tela delli sogni (…). La tela della Fortuna cun el ceto che inghiotte Giona (…).
9 Andò in Alemagna e Borgogna, e presa quella maniera fece molte cose.
10 O v’era pure una bella cosa: una donna […] c’haveva più poppe assai d’una cagna, e in capo una paniera di frutte, come la venisse dal mercato. Ma ella non aveva ne’ mano ne’ piedi e per le sue tettine belline bianche com’una rugiada, la pisciava acqua in un catino grande; e due donne che parevano che si volessero lavare si cavavano la camicia.
11 [...] è una Fontana che in gran copia getta acqua per il petto di una figuretta di pietra come la natura. Ci sono certe donne […] le quali traendosi la camiscia, fingono voler lavarsi.
12 […] vidi una fanciullaccia che pareva un cerro o una rovere con le mani e co’ capegli, et un uomo la voleva brancicare”.
13 Il primo mi pareva un San Bartolomeo; ma non aveva la pelle sulla spalla, ch’uno uomo che portava la ribeca, l’appiccicava a un albero; e poiu gli era legato come un San Bastiano. Che domine era egli?
14 […] Marsia, che Apollo gli leva la pelle di dosso (forse perché sudava), per averlo vinto a suonare.
15 [...] in statuam Deade naturae erectam et per papillas erumpit, ut in marmoreum labrum effundatur.
16 Imagines veros clarorum virorum vultus in tabulis pictis exprimentes [...] quatuor omnino classibus distinguuntur.
17 Quarta erit maximorum pontificum, regum et ducum, qui pace et bello gloriam consecuti, praeclara ingentium facinorum exempla [...] tradiderunt.
18 Harum imaginum populus stupenda varietate mirabili.
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PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Publicação no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.
EDITORES Enrique Muriel-Torrado, Edgar Bisset Alvarez, Camila Barros, Igor Soares Amorim, Rodrigo de Sales.

Autor notes

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Declaração de interesses

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