RESUMO
Objetivo: O artigo propõe refletir sobre a materialidade dos discursos e enunciados em obras de Cassandra Rios, censuradas durante a ditadura militar em virtude dos conteúdos vinculados a homossexualidades. O intuito é compreender as potências e as potencialidades dessas obras para sua configuração como bibliografia sensível.
Método: Trata-se de uma pesquisa exploratória, de natureza qualitativa, utilizando-se da Análise de Conteúdo e da Análise do Discurso para o exame das fontes. Quanto aos procedimentos é considerada bibliográfica.
Resultado: Os resultados indicam a dificuldade de identificação e (re)conhecimento da diversidade de violências sofridas pelos sujeitos LGBT+ e pelos que enunciavam homossexualidades e identidades de gênero no período da ditadura militar. Além disso, verifica-se que os documentos oficiais não garantem a retratação das violências praticadas contra os sujeitos LGBT+ nesse período, na medida em que os registros oficiais operavam para ocultamento, silenciamento e exclusão dessas condições de existência.
Conclusões: As conclusões demonstram a importância da materialidade de enunciados e discursos em documentos oficiais e não oficiais. Em complemento, conclui a relevância da compreensão das obras de Cassandra Rios como bibliografia sensível e como recurso auxiliar aos procedimentos para o (re)conhecimento de existências periféricas sujeitadas pelo Estado e pela sociedade em diferentes relações de saber/poder.
PALAVRAS-CHAVE: Bibliografia sensível, Documento sensível, Cassandra Rios, Censura, LGBT+.
ABSTRACT
Objective: This article reflect about materiality conditions of enunciates and discourses in Cassandra Rios work, censured on military dictatorship because of linked homosexualities content. The objective is understand the powers and potential of these works for her configuration how to sensitive bibliography.
Methods: It is a qualitative, of a qualitative nature, using Content Analysis and Discourse Analysis to examine the sources. As for the procedures, it is considered bibliographic.
Results: The results indicate the difficulty in identifying, knowing and recognizing the diversity of violence suffered by LGBT + subjects and by those who enunciated homosexualities and gender identities during the military dictatorship. In addition, it appears that the official documents do not guarantee the retraction of the violence practiced against LGBT+ subjects in this period, as the official records operated to hide, silence and exclude these conditions of existence.
Conclusions: The conclusions demonstrate the importance of the materiality of statements and speeches in official and unofficial documents. In addition, the relevance of understanding the Cassandra Rios works as a sensitive bibliography and as an auxiliary resource to the procedures for the knowledge and recognizing of peripheral existences subjected by the State and by society in different relations of knowledge/power.
KEYWORDS: Sensitive bibliography, Sensitive documents, Cassandra Rios, Censure, LGBT+.
Artigo original
BIBLIOGRAFIA SENSÍVEL: O LUGAR- ESPAÇO E O ESPAÇO-TEMPO DA OBRA DE CASSANDRA RIOS
Sensitive bibliography: place-space and space-time of Cassandra Rios work
Recepção: 30 Abril 2020
Aprovação: 20 Julho 2020
Publicado: 30 Novembro 2020
No cenário brasileiro a Lei nº 12.528/2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade, foi um dispositivo por meio do qual os direitos à memória e à informação, referentes aos crimes cometidos durante o período da ditadura militar (1964-1985), receberam respaldos jurídicos melhor delineados para o aprofundamento de algumas reflexões, dentre as quais: o lugar-espaço de sujeição e o espaço-tempo de “ressujeição” de autores e suas obras.
Em se tratando do lugar-espaço de sujeição, ressalta-se a censura praticada durante a ditadura militar, seja em relação às produções que contestavam a ordem vigente ou as que atentavam contra princípios morais normalizados por esse regime autoritário de poder. Sobre o espaço-tempo de “ressujeição” consideram-se dois pontos: a resistência de autores e editoras para promover publicações; e as potencialidades das obras no espaço-tempo pela sua condição de materialidade - não no sentido da fisicalidade do livro, mas da inscrição e manutenção de enunciados e discursos.
A dinâmica apresentada, observada desde as múltiplas interfaces da Bibliografia, permite o desenvolvimento de estudos ao menos a partir de duas: a material e a teórica. A primeira vinculada à fisicalidade do livro e a segunda aos “[...] aspectos históricos, repertoriais e indiciais da Bibliografia, bem como aos fundamentos.” (ARAÚJO, 2018, p. 37). Pelas considerações de Alfredo Serrai sobre as almas da Bibliografia, a técnico- indicial e a cultural repertorialística, verifica-se respectivamente: uma voltada a procedimentos de indexação e outra “[...] delegada a efetuar a seleção dos monumentos e documentos que melhor expressam e representam o estado e os desenvolvimentos do patrimônio científico, cognitivo e literário.” (SERRAI, 2010, p. 18 apud ARAÚJO, 2018, p. 43).
Conforme Capaccioni (2016, p. 16, tradução nossa), a Bibliografia exerce função “[...] na conservação do patrimônio literário e contribui para salvaguardar a memória cultural.” Nesse sentido, os livros, assim como demais documentos, “[...] participam totalmente desse processo de preservação, contribuindo não apenas para disseminar conhecimentos, mas também para garantir seu amplo uso ao longo do tempo.” (CAPACCIONI, 2006, p. 15, tradução nossa).
Em atenção as perspectivas apontadas sobre a Bibliografia e sua alma cultural repertorialística, é que o olhar sobre as obras de Cassandra Rios foi direcionado. Em um aspecto considerando-as documentos, entendidos como “[...] objeto que suporta a informação, que serve para comunicar e que é durável (a comunicação pode, assim, ser repetida)” (MEYRIAT, 2016, p. 241). Em outro viés, pela perspectiva foucaultiana, como resultado de uma série de relações de poder, as quais possibilitam análises tanto sobre a materialidade dos elementos discursivos quanto a respeito das diferentes inter-relações que influenciaram na circulação, formas de uso e condições de validação.
Portanto, as obras de Cassandra Rios são consideradas neste estudo como documentos em si e pela sua relação com demais documentos dentro de uma análise discursiva relacionada aos discursos e práticas da ditadura militar no Brasil, os quais permitiram uma ação direta para o controle de sua circulação por meio da censura.
A escolha das obras de Cassandra Rios foi realizada não somente pela autora ter sido a mais censurada no Brasil durante a ditadura militar, mas pelos dilemas socioculturais, tensões e formas de sobrevivência no espaço-tempo. Por esses e outros aspectos, parte-se da hipótese de que essas obras podem ser concebidas como referencial histórico e cultural na medida em que suportam, pela materialidade dos discursos e enunciados, estados de saberes, vivências e práticas de sujeitos LGBT+1.
A partir dessa hipótese, surgiu a seguinte questão: É possível considerar, pela materialidade dos enunciados e discursos sobre sujeitos LGBT+, as obras censuradas de Cassandra Rios como uma bibliografia sensível?
Para responder tal questionamento, o objetivo geral é compreender, pela materialidade de enunciados e discursos, a obra de Cassandra Rios como bibliografia sensível. Os objetivos específicos são: destacar os discursivos sobre a ditadura militar no Brasil que sustentaram a alocação das obras de Cassandra Rios, indicando para a constituição de coletivos de pensamento; abordar as potencialidades de 14 obras censuradas de Cassandra Rios; e analisar de que maneira as referidas obras, em relação aos discursos dos pareceres de censura, podem ser compreendidas como bibliografia sensível.
O marco teórico para as discussões tem respaldo na Sociologia da Ciência para tratar as noções de coletivo de pensamento (FLECK, 2010) e de gênese social do pensamento (MERTON, 2013), considerando as contingências políticas e socioculturais nos processos de formulação, circulação, validação e possibilidades de permanências de enunciados e discursos pelo documento.
Nessa perspectiva, pauta-se também nas elaborações de Foucault (1999; 2003; 2005; 2006; 2008) sobre a materialidade dos discursos provenientes de práticas sociais, indicando para a existência de interditos sociais à própria existência, por exemplo, de “sexualidades periféricas”. Pela Ciência da Informação, são abordados os campos discursivos pela materialidade do documento e suas funcionalidades no espaço-tempo: atualização, utilização e validação em diferentes relações de saber/poder (FROHMANN, 2008; LARA, 2010).
Desse modo, o presente estudo aventa possibilidades de entendimentos para verificar potências e potencialidades das obras de Cassandra Rios que elevem seu conjunto à categoria de bibliografia sensível.
Trata-se de pesquisa exploratória, de natureza qualitativa, para desenvolver noções acerca da categoria de bibliografia sensível pela noção geral de documento sensível e dos discursos que fundamentaram as práticas de censura às obras de Cassandra Rios na ditadura militar brasileira. Conforme apresentado por Gil (2008, p. 27),
Pesquisas exploratórias são desenvolvidas com o objetivo de proporcionar visão geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado fato. Este tipo de pesquisa é realizado especialmente quando o tema escolhido é pouco explorado e torna-se difícil sobre ele formular hipóteses precisas e operacionalizáveis.
Quanto aos procedimentos é considerada bibliográfica, sendo “[...] desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos” (GIL, 2008, p. 27).
O percurso metodológico foi estruturado, em um primeiro momento, pelo levantamento e análise bibliográfica para fundamentação teórica e delineamento do objeto. Nesta etapa, pela Análise de Conteúdo de Bardin (2016), teve-se como base a pré-análise, que consiste na exploração não sistemática dos documentos: leitura flutuante, escolha dos documentos e formulação de hipóteses e objetivos.
Conforme previsto por Bardin (2016), a escolha de documentos pode também ser realizada a priori. Assim, para abordagem do tema ditadura militar no Brasil, optou-se pela utilização dos volumes 1 e 2 do Relatório da Comissão Nacional da Verdade (BRASIL, 2014a; BRASIL 2014b). Para fundamentação teórica, selecionou-se obras clássicas da Sociologia da Ciência (FLECK, 2010; MERTON, 2013) para fundamentar os diálogos com as abordagens de Foucault sobre enunciados, discursos e documentos.
Posteriormente, realizou-se pesquisas sobre demais produções para a aprofundamento da abordagem do tema e dos subtemas por meio das palavras-chave: Cassandra Rios, censura e documentos sensíveis.
Na base de dados Google Acadêmico a estratégia de busca foi feita pelas palavras-chave: Cassandra Rios e censura. Por meio dessa, foram obtidos, aproximadamente, 544 resultados. Em pré-análise, foram selecionadas cerca de 45 produções, dentre as quais: capítulos de livros, artigos de periódicos, artigos publicados em anais de eventos, dissertações e teses. Para integrar este trabalho foram selecionadas 8 referências.
A busca pela palavra-chave documentos sensíveis foi realizada na Base de Dados em Ciência da Informação (BRAPCI), onde obteve-se apenas 1 recuperação. Na base de dados Scielo, obteve-se 13 resultados, sendo 2 aproximados ao objeto do atual estudo. Pelo conhecimento prévio de publicação referente ao tema, disponível nos Anais do evento da Rede Franco-Brasileira de Pesquisadores em Mediações e Usos Sociais de Saberes e Informação (MUSSI), ocorrido em 2014, optou-se pela utilização dessa fonte.
Após essa etapa de pré-análise, realizou-se, em segundo momento, a exploração do material, para a delimitação do escopo da pesquisa: análise de 14 obras de Cassandra Rios censuradas na década de 1970. Esse recorte foi estabelecido tanto pelo poder de ação do Decreto-Lei nº 1.077/1970 para censura de livros quanto pela força arbitrária do Ato Institucional nº 5/1968; dispositivo que vigorou até 13 de outubro de 1978. As contribuições de Marcelino (2006), Nóbrega (2014) e Brum e Marquetti (2018) foram fundamentais nesse processo por apresentarem de forma detalhada o conteúdo dos pareceres de censura elaborados sobre as obras selecionadas.
Para as atividades, previstas por Bardin (2016), de tratamento dos resultados, inferência e interpretação, aproximou-se da Análise do Discurso francesa, pela vertente foucaultiana, que abarca aspectos textuais, materiais e, principalmente, os efeitos relacionados ao discurso. Segundo Foucault (2008, p. 31), a Análise do Discurso visa
[...] compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar. A questão pertinente a uma tal análise poderia ser assim formulada: que singular existência é esta que vem à tona no que se diz e em nenhuma outra parte?
Com base na Análise do Discurso realizou-se a correlação, pela materialidade dos enunciados e discursos, entre os pareceres de censura e as obras de Cassandra Rios. Assim, pelos fundamentos da Ciência da Informação, sobre a força da materialidade de enunciados e discursos nos documentos, e, pelas abordagens da Bibliografia, que indicam a potencialidade dos livros como suporte de conhecimento e memória cultural, foi possível correlacionar as noções de documento sensível para formulações acerca da noção de bibliografia sensível.
Importante ressaltar a complexidade da análise proposta, pois, apesar de quase três décadas do fim da ditadura militar no Brasil, a memória e as versões sobre o período são objeto de controvérsias. Nesse cenário, fica evidente a necessidade de tratamento dos documentos sensíveis e das obras de Cassandra Rios como bibliografia sensível para reafirmar esses acervos documentais como lugares de memória.
Entre ações persecutórias e esquecimentos durante a ditadura militar brasileira - ainda que não iniciadas em 1964 nem findas com a Constituição Federal de 1988 - é relevante o entendimento sobre as condições de existência de sujeitos LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros etc.) para a compreensão do lugar- espaço de sujeição, seja desses ou dos dispositivos a eles associados.
Conforme apresentado por Foucault (1999, p. 43), o que era denominado “sodomia”, desde o antigo direito canônico (atrelado à dimensão religiosa) até o século XVIII no Ocidente, consistia em uma prática da qual o sujeito poderia dissociar-se ou reincidir. No século XIX, a enunciação do homossexual se caracterizou inteiramente no sujeito, pois estava “[...] inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre [...]”. Por esse entendimento, nada escaparia à sexualidade do sujeito. Ainda no mesmo século, a homossexualidade também foi categorizada pela medicina, com a publicação do artigo de Westphal (1870), como “sensações sexuais contrárias”. Ou seja, ocorreu uma ligação da homossexualidade à natureza do sujeito, uma espécie de “hermafroditismo da alma”.
No entanto, quer seja pela definição patológica do discurso médico ou pela definição pecaminosa dos discursos religiosos, Foucault (1999) apontou a existência de interditos sociais à própria existência dessas “sexualidades periféricas”. Logo, os discursos predominantes na relação de força buscaram, durante o século XX, censurar quaisquer enunciados sobre a existência de sujeitos cujas sexualidades eram divergentes ao discurso predominante. Os mecanismos para tal finalidade podem ser verificados pelos seguintes encaminhamentos: “[...] não te aproximes, não toques, não consumas, não tenhas prazer, não fales, não apareças; em última instância não existirás, a não ser na sombra e no segredo [...]” (FOUCAULT, 1999, p. 81).
A lógica sob a qual ocorria essa interdição incidia em três formas: “[...] afirmar que não é permitido, impedir que se diga, negar que exista [...]” (FOUCAULT, 1999, p. 82). Ainda que essas formas evidenciem difícil conciliação, Foucault (1999, p. 82) expôs que a lógica da censura
[...] liga o inexistente, o ilícito e o informulável de tal maneira que cada um seja, ao mesmo tempo, princípio e efeito do outro: do que é interdito não se deve falar até ser anulado no real; o que é inexistente não tem direito a manifestação nenhuma, mesmo na ordem da palavra que enuncia sua inexistência; e o que deve ser calado encontra-se banido do real como o interdito por excelência.
As violências contra os sujeitos - que são “sujeitados” - associados às “sexualidades periféricas” encontram legitimidade no discurso do poder que lhes impõe obediência; relações de força que precedem o período da ditadura militar brasileira. Deste modo, o texto temático 7 “Ditadura e Homossexualidades” do Relatório da Comissão Nacional da Verdade assinala que o preconceito contra homossexuais não é algo criado pela ditadura militar (BRASIL, 2014b).
A “homofobia” estava enunciada nos discursos médicos, religiosos, criminológicos onde os sujeitos apontados como homossexuais eram vinculados à doença, pecado e perigo social, sendo considerados “[...] como anormais, instáveis e degenerados [...]” (BRASIL, 2014b, p. 300). A mínima visibilidade da existência desses sujeitos era considerada “ameaça às famílias” e ao modo de vida constituído. A censura às existências de sexualidades e padrões de gênero diferentes do predominante, sofreu ainda mais impacto com a dificuldade de gays, lésbicas e travestis de se organizarem nos anos de 1960 e 1970 devido à repressão generalizada do regime às liberdades de expressão e ação política. Logo, não havia “[...] uma rede bem-estruturada de ativistas para monitorar a situação, documentar as violações de direitos humanos quando elas ocorreram e mesmo fazer as denúncias públicas [...]” (BRASIL, 2014b, p. 300). Assim, com a invisibilidade, muitas lacunas não foram preenchidas no tocante às violências praticadas contra pessoas LGBT.
Por meio desse encaminhamento, concebe-se que as ideias que são enunciadas em documentos são discursos que se constituem de acordo com a conjuntura na qual se encontram: as ideias não surgem espontaneamente e o valor de sua legitimação é limitado. Os discursos são determinados pelo que Fleck (2010) chamou de “coletivos de pensamento”, que são formados por agrupamentos de pessoas, onde cada indivíduo “portador do saber” é considerado pertencente à diversos coletivos de pensamento, segundo seu percurso sociocultural e suas especificidades de pensamento.
As comunidades de pensamento não são formadas por indivíduos isoladamente, pois cada “[...] portador do saber é um coletivo bem organizado, que supera de longe a capacidade de um indivíduo [...]” e seus discursos são concebidos a partir do meio em que vivem (FLECK, 2010, p. 85). Desse modo, a construção dos discursos, das ideias e verdades está sujeita a essas influências em que portadores de determinados saberes desenvolvem pensamentos por meio de diferentes relações, podendo ou não as materializar em diversos dispositivos documentais.
Porém, Merton (2013, p. 95) salientou que “[...] a gênese social do pensamento não tem ligação necessária com sua validade ou falsidade [...]” e, ainda que possa “saber a verdade” existe a possibilidade de juízos dissimulados movidos por interesses de acordo com a utilidade das ideias concebidas. Além disso, a perspectiva de observação de um problema “[...] pode obscurecer várias facetas de uma situação sob escrutínio [...]” (MERTON, 2013, p. 101). Isso indica que diferentes e divergentes perspectivas de pensamento em uma mesma sociedade podem ser legitimadas por meio de sua ligação com o que Fleck (2010) chamou de coletivos de pensamento e sua incorporação institucional.
Assim, a gênese de ideias também está atrelada aos “fatores existenciais” - práticas sociais permeadas de interesses, sentimentos, preferências de valor - que incidem cognitivamente no desenvolvimento do pensamento. No entanto, Merton (2013, p. 147) evidenciou que o conteúdo das ideias não é criado ou determinado por esses fatores existenciais, mas diferenciado entre sua “potencialidade e atualidade”, obscurecimento, recordação ou, ainda, agilidade na “atualização de idéias (sic) potenciais”.
As práticas sociais no processo de desenvolvimento do pensamento podem gerar novos problemas e objetos de análise. Para Foucault (2003, p. 8), tais práticas podem fazer “[...] nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento [...]”. Ou seja, a constituição de sujeitos está relacionada com os dispositivos onde são enunciados os discursos, possui relação com um objeto e uma história. No contexto histórico do pensamento e, em Foucault (2006), da reflexividade, são constituídos os sujeitos e a própria ideia de verdade.
Conforme Foucault (2005, p. 23), os discursos estão condicionados às relações de poder político dos grupos que disputam a enunciação das ideias, as quais estão ancoradas em “[...] relação de força estabelecida em dado momento, historicamente precisável (sic), na guerra e pela guerra.” Os resultados dessa relação de força determinam quem são os sujeitos enunciados nos discursos através de “guerra silenciosa”. O objetivo é “[...] reinserir perpetuamente essa relação de força [...] nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos corpos de uns e de outros”. Ou seja, por meio das relações de poder se estabelecem os discursos predominantes para a constituição de sujeitos enunciados em dispositivos.
A enunciação de discursos necessita de uma organização, de modo que o conhecimento enunciado pelos coletivos de pensamento seja registrado e recuperado. Na construção de discursos do saber histórico sobre a ditadura militar brasileira coexistem discursos diferentes e divergentes sobre esse período que impactam nas construções de memórias sobre sujeitos e fatos. Tais discursos, por sua vez, são registrados e têm por base discursiva os documentos.
Para Foucault (2008, p. 7), o documento não era para a história apenas “matéria inerte” sobre feitos do passado, sendo que a história “[...] procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações [...]”. Ou seja, o documento se constitui enquanto registro das relações de força dos discursos que enuncia. Conforme Lara (2010, p. 38),
O documento se relaciona ao enunciado, é materialidade no sentido de suporte de uma articulação. A materialidade é relativa ao enunciado e ao documento: não se restringe apenas à substância ou suporte da articulação, mas trata do que foi efetivamente dito, registrado, que é passível de uso ou de reutilização a partir de técnicas, práticas e relações sociais.
Assim, o documento se configura como dispositivo criado em conformidade com o que os coletivos de pensamento responsáveis pela enunciação e circulação do enunciado desejam instituir enquanto verdade. Entre os discursos referentes à ditadura militar brasileira, pode-se verificar os registrados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída pela Lei nº 12.528/2011, que se somam a
[...] todos os esforços anteriores de registros dos fatos e esclarecimento das circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, a partir de reivindicação dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, em compasso com demanda histórica da sociedade brasileira. (BRASIL, 2014a, p. 20).
O amplo trabalho realizado pelos coletivos de pensamento engajados na CNV teve que lidar com problemáticas próprias à enunciação de existências periféricas sobre as quais os discursos são permeados de traumas, tabus e ressentimentos.
Os discursos de poder do regime autoritário pós-1964 enunciaram uma ideologia conservadora e de segurança nacional. Com base nessa ideologia os coletivos de pensamento ligados ao poder justificaram o golpe de 1964, o autoritarismo, a violência contra opositores e a supressão de direitos. Nesse cenário, a perseguição contra pessoas LGBT+ se intensificava pelo discurso predominante ao relacioná-las ao campo progressista e, desse modo, “às esquerdas e à subversão” (BRASIL, 2014b, p. 301). Outro elemento discursivo observado foi a ampla generalização das diversas existências de sexualidade e de gênero como “homossexualidades”, também inerente ao processo de interditos sociais e invisibilidade tratados por Foucault.
A partir dessa caracterização subversiva da homossexualidade - e de outras orientações sexuais e identidades de gênero diferentes do discurso de poder predominante - ocorreram investidas do Estado contra quaisquer manifestações da existência de sujeitos “desviantes”. Ações que afetaram sujeitos da elite econômica: diplomatas cassados por “[...] prática de homossexualismo, incontinência pública escandalosa [...]”; ou ainda sujeitos em evidência na mídia, nas artes, na imprensa, que também sofreram com a censura (BRASIL, 2014b, p. 303-304).
Dentre as censuras, se destacam: a da escritora Cassandra Rios, considerada “[...] a artista mais censurada deste país durante a ditadura militar [...]” por suas obras de ficção que retratam, por exemplo, a lesbianidade; e o jornal “Lampião da Esquina”, o primeiro a defender os direitos de homossexuais de forma aberta, incentivando, assim, a formação de grupos ativistas (BRASIL, 2014b, p. 305). Todavia, a censura também foi extensiva a quaisquer manifestações que de algum modo “normalizasse a homossexualidade”. O que culminou, por exemplo, nos inquéritos abertos no estado de São Paulo contra o jornalista Celso Curi, do jornal “Última Hora” e contra onze jornalistas da revista “IstoÉ” por “[...] fazer apologia malsã do homossexualismo [...]” (BRASIL, 2014b, p. 306).
Nos coletivos de pensamento ligados à “resistência” e em oposição ao regime, há indícios de que os discursos predominantes sobre a sexualidade também estavam presentes. Nos anos 1960 e 1970, o discurso de poder se evidencia por meio de silêncios, da não oposição às violências cometidas pelo Estado e pela sociedade contra lésbicas, travestis, transexuais, transgêneros, bissexuais e gays. O Relatório da CNV evidencia que “[...] artistas e intelectuais que geralmente se mobilizavam contra os atos arbitrários da ditadura não chegaram a se solidarizar com Cassandra Rios [...]”. Ainda, os indícios presentes no relatório revelam que a motivação para o silêncio foi o conteúdo das obras (BRASIL, 2014b, p. 304-305).
No entanto, entre os sujeitos mais pobres principalmente travestis, lésbicas e gays, cuja expressão de sexualidade e de gênero eram mais visíveis em seus corpos, existem apenas fragmentos de registros das violências sofridas. Um exemplo do registro dessas violências ocorreu em 1980, no período que antecedeu a visita do papa João Paulo II à cidade de São Paulo. Devido a essa visita, houve pressão dos grupos conservadores - inclusive na imprensa - para que ocorresse uma “limpeza” nas ruas de São Paulo, removendo os sujeitos considerados imorais, pervertidos, pecaminosos e subversivos (BRASIL, 2014b).
Pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade, constata-se que, além da destruição de documentos pela ditadura, não houve produção de registros para mensurar a gravidade das violências praticadas pelo Estado, em específico, as direcionadas aos sujeitos objeto do atual estudo. Somente na década de 1980, com o processo de abertura democrática, houve registro de ações persecutórias e de extermínio dessas populações e mobilizações por parte dos movimentos sociais opositores ao regime. Finda a ditadura, ainda que com maior possibilidade de articulação política, sujeitos LGBT+ continuaram submetidos aos interditos sociais enunciados por Foucault. A relação de força nas disputas de discursos sobre o período ditatorial se manteve em favor dos coletivos de pensamento conservadores, ainda que enunciados em oposição ao regime ditatorial possam ser identificados com a abertura democrática.
O direito à enunciação e materialização pornográfica e erótica. O direito à enunciação, materialização e (re)conhecimento de homossexualidades e identidades de gênero. O distanciamento do “sagrado”, de “pseudo-normalidades” (patológicas), de prerrogativas morais e de dispositivos legais normalizadores e punitivos.
Esses encaminhamentos podem ser identificados nas narrativas de Cassandra Rios (1932-2002), pseudônimo para Odete Rios Pérez Perañez Gonzáles Hernández Arrelano, que publicou a sua primeira obra aos 16 anos, Volúpia do pecado (1948). Em função desses direcionamentos, a censura perpetrada sobre as suas obras antecedeu a ditadura militar no Brasil.
No entanto, durante esse período os mecanismos para tal finalidade possibilitaram práticas mais efetivas. Além disso, a censura de livros e periódicos recebeu maior aporte com a promulgação do Decreto-Lei nº 1.077/1970, que vigorou até fevereiro de 1980, o qual considerava haver um entendimento generalizado quanto a publicação e divulgação de livros que ofendiam a moral comum. Conforme ordenado pelos artigos 1º e 2º:
Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação.
Art. 2º Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior (BRASIL, 1970).
As 14 obras selecionadas de Cassandra Rios que foram censuradas na década de 1970 pela Divisão de Censuras de Diversões Públicas (DCDP), na seção de Publicações (PUB), podem ser verificadas no Quadro 1. Para além dessa seleção, o relatório da Comissão Nacional da Verdade adverte que ao todo a autora teve 36 obras censuradas durante a ditadura (BRASIL, 2014b).

Sobre a natureza do conteúdo das obras, o Relatório da Comissão Nacional da Verdade apresenta que são ficções que retratam homossexualidades, não agradando “[...] os cães de guarda da ‘moral e dos bons costumes’.” Dessa forma, “As acusações iam sempre no sentido de que seus textos continham conteúdo imoral e aliciavam o leitor à homossexualidade.” (BRASIL, 2014b, p. 304).
Marcelino (2006, p. 186) indica que o parecer elaborado sobre Volúpia do Pecado tentava depreciar a obra, considerando-a uma criação “subliterária”. Além disso, esse sugere que a autora estava mais preocupada em enfatizar os segredos do “amor lésbico” do que abordar os sinais de desvios (psicológicos, patológicos) da conduta moral.
Lima (2009, p. 36) apresenta Volúpia do Pecado como
[...] uma história de amor entre duas adolescentes, Lieth e Irez, que buscam no dicionário as palavras que definissem o sentimento “desnatural” de uma pela outra: lesbianas, tríbadas, homossexuais. [...] A temática e os detalhes que chocaram a moral conservadora (o casamento em frente ao presépio, as relações sexuais detalhadas, o prescindir do sêmen, através da simbologia do leite morno, o suicídio) foram os mesmos que encantaram os leitores. Daí em diante, Cassandra Rios foi cada vez mais solicitada por seu público.
A censora de Copacabana Posto 6 (A madrasta) menciona que a obra é uma “infeliz subliteratice”, que trata o homossexualismo como: “[...] mensagem negativa, psicologicamente falsa em certos aspectos de relacionamento, nociva e deprimente, principalmente pela conquista lésbica da heroína junto à madrasta e o duplo suicídio final”. (BRASIL, 1975 apud MARCELINO, 2006, p. 189). Conforme Piovezan e Fontoura Jr. (2015, p. 2409) inferem, as personagens do livro “[...] deixam claro que conhecem seu lugar marginal dentro da sociedade”. Pela apreciação dos autores, o texto permite reflexões sobre como, por exemplo, o lesbianismo tornou-se ponto de discussão durante o regime militar frente a determinada heterossexualidade normativa.
O “submundo da prostituição” foi retratado na obra A sarjeta, que deveria ser censurada por apresentar características da degradação humana, erotismo e pornografia. Georgette e A borboleta branca teriam para os censores a mesma linha de “aspectos negativos” da prostituição. Sobre Tessa, a gata, o texto retrataria também, entre outros temas, a “degradação do ser humano” (MARCELINO, 2006, p. 189).
O teor erótico e pornográfico pode ser fortemente verificado em A paranóica. A obra aborda a história de Ariella que, em seu caderno (uma espécie de diário), narra os desejos mais secretos e a tortura psicológica sofrida em decorrência da sua sexualidade. Apresenta um misto de prazer e culpa da personagem obcecada pela sua iniciação sexual, incluindo aspectos da ciência médica (FARIA, 2009). A censora, Maria Helena Dourado dos Santos, de A Breve Estória de Fábia, apresenta-a como “[...] um prelúdio à relação sexual entre duas mulheres, sem contudo, apelar para a pornografia [...]” (BRASIL, 1976 apud MARCELINO, 2005, p. 188). Sobre as duas obras, os censores indicam, de certa maneira, a qualidade literária da narrativa da autora.
Para Nóbrega (2014, p. 669), pelo parecer da censora do livro Macária, é possível perceber a preocupação “[...] em relação às transformações comportamentais [...]”, que incluem relações pervertidas e homossexuais, tendo como finalidade primeira o prazer sexual. A descrição de relações apimentadas foi um dos fundamentos para a censura de Veneno, conforme apresentado por Marcelino (2006).
Em As traças, as relações mantidas entre uma professora e as suas alunas foram julgadas como impróprias, dentre outros aspectos, por normalizar o lesbianismo. A naturalidade dos atos homossexuais foi uma das justificativas para a censura de Nicoleta Ninfeta. Já, sobre Marcella, o parecer menciona que faz apologia ao lesbianismo (MARCELINO, 2006).
Por fim, considera-se relevante uma abordagem mais pormenorizada da obra Uma mulher diferente. O censor dessa obra diz que
[...] os livros da autora acima citada, há muitos anos vem sendo vendidos clandestinamente, onde concluímos que, até os próprios editores não ousavam lançá-los abertamente ao público, devido ao seu conteúdo altamente atentatório a moral e aos bons costumes (BRASIL, 1975 apud BRUM; MARQUETTI, 2018, p. 154).
Sobre a obra, a trama se desenrola para desvendar o crime cometido contra Ana Maria, mulher loira muita bem vestida, cujo corpo foi encontrado boiando em um rio fétido da zona oeste da cidade de São Paulo (PEREIRA, 2019).
Ao longo da investigação, conduzida por Dalton Levi, descortina-se uma série de elementos. Ana Maria, conhecida como “a vedetinha” que se apresentava em casas noturnas e possuía muitos fãs, era uma mulher “diferente”. Tal condição torna-se central no percurso das investigações que passou a ter como foco não apenas desvendar o crime, mas a vida da personagem e as motivações para o assassinato (PEREIRA, 2019).
Conforme concebido por Pereira (2019, p. 18), “[...] o intuito é revelar a vida da vítima: as mazelas, a exclusão, o preconceito, o silenciamento, etc.”. A partir da apropriação do gênero policial, Cassandra Rios investiga vidas impedidas de existir, permitindo reflexões acerca de identidades de gênero, do que pode ser considerado mulher e sobre “[...] quem pode filiar-se a essa categoria?” (PEREIRA, 2019, p. 119).
A morte física, enunciada no início da narrativa, amplia-se para outras noções de morte, as quais a personagem foi acometida ao longo de sua vida, como a morte social. Para Pereira (2019, p. 151),
Essa mulher que Ana Maria reivindica ser, porque assim o deseja, não pode, evidentemente, existir em um meio cultural referendado por um contrato heterossexual. Sua emancipação, a vitória do seu corpo representa uma ameaça ao próprio contrato, à sua soberania, pois desorganiza suas leis. A personagem cassandriana é a representação de uma incoerência, de uma desobediência e, por isto, não pode ser entendida ou tolerada a menos que se mantenha em lugares obscuros, fétidos, escondidos, sob controle. Por esse motivo, por não ser inteligível, já havia sido imposta uma forma de morte para ela muito antes do golpe que provocou uma fenda em sua cabeça: a morte por não ter direitos, por ser excluída de um contexto social, por ser caçada, por não ter dignidade, por ser considerada improdutiva e descartável.
A breve explanação do conteúdo de algumas obras censuradas de Cassandra Rios possibilita a compreensão, frente aos preceitos morais e intelectuais (literários) da época, dos motivos que impulsionaram as ações para retirá-las de circulação. Tais obras enunciam existências cerceadas, impedidas de ser e viver; são materialidades que podem ser consideradas pontos de referência para inferências sobre memórias vividas. Essas obras, seja pelo seu conteúdo ou mesmo por terem sido objeto para produções documentais oficiais, como os pareceres de censura, passam a adquirir um status diferencial.
Cabe esclarecer que não há confusão entre fatos, representações e enunciações, mas que se pretende sugerir que alguns enunciados motivam a emergência de fatos e atos jurídico-administrativos, os quais geram documentos que imprimem em obras de ficção valores e potencialidades que essas não teriam, exceto por meio de determinadas normativas e correlações de forças.
Decerto, com base em epistemes científicas positivistas (históricas, diplomáticas e arquivísticas), os documentos bibliográficos abordados nesse estudo não poderiam ser elevados ao status de fonte ou prova para comprovação de crimes físicos cometidos contra os sujeitos LGBT+ durante a ditadura militar. Todavia, é possível o deslocamento de olhar sobre os documentos oficiais em sentido amplo, considerando suas potencialidades de poder (sujeição) e contra poder (ressujeição).
Pela perspectiva da Sociologia da Ciência e da Teoria Crítica do Documento, pode- se indicar as potências do documento e as potencialidades para o seu vir a ser: tanto pela função precípua de gerar ação no presente, dada a motivação da sua criação e vinculação institucional; quanto para impulsionar novas buscas por evidências, na medida em que se configuram como construções discursivas e enunciações materializadas sobre sujeitos (FROHMANN, 2008).
Assim, pela materialidade dos enunciados e pela “vida institucional” dos documentos, pode-se verificar os seus efeitos para as práticas de censura bem como para transferências e modificações por meio, entre e à parte das instituições de saber/poder normalizadoras e punitivas. Segundo Frohmann (2008, p. 24), as práticas documentárias institucionais dão à análise do discurso “[...] massa, peso, inércia e estabilidade que materializam a informação [...]”, podendo configurar a vida social. Assim, pela concepção do autor, em consonância com Fleck e Bruno Latour, é necessária a materialização da informação por meio de práticas que concedam aos enunciados possibilidades de resistência.
Para Frohmann (2008), em Fleck foi possível perceber, pelos estilos de pensamento e pelo pensamento coletivo, como o papel da documentação estabiliza a informação científica, indicando para a importância da materialidade da informação. Nessa perspectiva, verifica-se que a condição da existência de homossexualidades, desde as perspectivas de Foucault e Ian Hacking, pode ser tratada pela materialidade da informação sobre categorias documentadas de pessoas. Nesses termos, o que merece atenção especial são as possibilidades de sobrevivência de uma enunciação em meio às ameaças a sua existência, uma esperança de “rematerializar” o que tende a desaparecer.
Em certo sentido o olhar passa a ser direcionado ao que pode parecer menos categórico pelas perspectivas jurídicas, científicas e literárias, mas que se eleva ao status de objeto de validação e (re)conhecimento ao ponto em que passa a motivar ações que operam para exclusão, eliminação ou ocultamento. Em outro sentido, ao mesmo tempo em que os documentos oficiais agem para o silenciamento de obras ficcionais que retratam existências periféricas, esses trazem à luz indícios que merecem observação exatamente por terem sido objeto de exclusão.
O que havia de tão perigoso nas obras de Cassandra Rios: os desvios morais, as homossexualidades, as diferentes identidades de gênero, os suicídios, os assassinatos, as mortes? O que incomodava tanto os censores e os intelectuais da época, que não se posicionavam contra as práticas de censura: a pornografia, o erotismo ou uma “subliteratura” pobre e de pobre? (LONDERO, 2013, grifo nosso) Qual a verdade histórica que se pode buscar nos documentos oficiais, em específico nos documentos sensíveis?
Conforme indagado por Thiesen (2014, p. 81), ao analisar documentos diplomáticos de natureza arquivística produzidos em regimes de exceção: “Como estabelecer a verdade histórica? Como interpretar as informações produzidas e contidas nessas informações?” Sobre esses documentos, denominados “sensíveis”, a autora apresenta que
O atributo “sensível” relacionado a temas, documentos e arquivos nasce, ao que parece, relacionado a episódios políticos de grande impacto social, ocorridos no século XX. [...] São “sensíveis” porque tais acontecimentos produziram pistas capazes de revelar fatos, nomes, experiências e circunstâncias que podem comprometer personagens da vida pública e privada (THIESEN, 2014, p. 83).
Para a autora, a noção de documento sensível está relacionada a uma “[...] tipologia documental própria e que se define por sua proveniência institucional, seu caráter histórico e memorialístico, mas também jurídico e simbólico [...].”. (THIESEN, 2014, p. 81). Thiesen (2014) recorre a Pierre Nora para destacar que os “arquivos sensíveis” revelam ao mesmo tempo a memória (histórica e vivida) e a história, o que desponta para o desafio dos arquivos contemporâneos.
Segundo Nora (1993), a valorização dos vestígios, através da vigilância comemorativa, seria um dos únicos meios que garantiria que a História não fosse varrida. Com isso, o papel das festas, dos museus, dos cemitérios, dos arquivos, dos aniversários, dos tratados e dos monumentos, enfim dos lugares de memória, é serem marcos testemunhais de outra era. Esses seriam rituais de uma sociedade sem ritual, sacralização de sociedades dessacralizadas e, por último, sinais de pertencimento de grupo em uma sociedade que só reconhece indivíduos iguais e idênticos.
Com essa constatação, o autor conclui que antes que o lugar de memória exista é fundamental que se tenha uma vontade de memória. O que o autor entende como vontade de memória seriam as manifestações que indicariam que um determinado local deveria ser digno de uma concentração de lembranças (NORA, 1993). Nesse cenário, perceber a obra de Cassandra Rios como bibliografia sensível afirma esse conjunto documental como lugar de memória.
Com base nesses apontamentos, verifica-se que os documentos sensíveis produzidos pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), estabeleceram o lugar-espaço para as obras de Cassandra Rios. Um lugar-espaço existente pela materialidade, no documento, dos discursos de verdade desse período. Pela dimensão jurídica, buscou-se a materialização e validação de verdades para reprimir “desvios” da conduta moral comum ou “vazios culturais”; com os tabus e ressentimentos dos agentes das violências e da sociedade que as legitimam nos processos de sujeição (NAPOLITANO, 2015).
O modo como os ressentimentos se manifestam nas disputas de discursos de memória pode ocorrer, para Ansart (2004), de quatro modos: esquecimento, rememoração, revisão e intensificação. Para observação de tais configurações, permeadas por relações de poder, o percurso para o entendimento se estabelece na perspectiva
[...] não somente de analisar os ódios, mas de compreender e explicar aquilo que precisamente não é dito, não é proclamado; aquilo que é negado e que se constitui, entretanto, como um móbil das atitudes, concepções e percepções sociais. O objeto esquiva-se; é preciso formular a hipótese de sua importância e reconstituir o invisível que, se não é totalmente inconsciente, ao menos em parte é não consciente. É preciso formular a hipótese do papel do inconsciente na política, hipótese audaciosa em seu princípio e em suas realizações. (ANSART, 2004, p. 29)
Nesse ponto é que se observa as obras de Cassandra Rios como bibliografia sensível, aproximando tal entendimento aos de documento sensível formulado por Thiesen. O que eleva a obra de Cassandra Rios como ponto de referência e categoria de bibliografia sensível são os documentos oficiais que lhes atribuem esse valor e que operam com o poder de sujeição.
O conjunto das obras de Cassandra Rios pode ser considerado bibliografia sensível porque possui características que as elevam a essa categoria na medida em que os enunciados e discursos materializados foram objeto de ações institucionais para o seu apagamento. Ou seja, bibliografia sensível pelo seu caráter histórico, memorialístico e simbólico que aponta para temas, tensões e dilemas socioculturais que deveriam ser silenciados (THIESEN, 2014).
Em diálogo com Frohmann (2008), verifica-se que as possibilidades de sobrevivência de enunciados sobre condições de existências, como as de homossexualidades e identidades de gênero, podem ser por meio da migração bem- sucedida de uma rede documentária para outra. Uma migração que, talvez, não seja da mesma natureza das estruturas políticas, sociais, culturais, normativas, científicas e categóricas que as sujeitaram. Essa é uma das possibilidades de sobrevivência no espaço-tempo, ou seja, o deslocamento possível para a ressujeição.
Embora seja um contrassenso a proibição de obras que materializam algo não existente de acordo com as definições impostas durante a ditadura militar no Brasil, é exatamente pela possibilidade dinâmica de coletivos de pensamento e estilos de pensamento que as obras de Cassandra Rios têm potencialidades para ressujeição. Conforme apresentado por Londero (2013, p. 144-145), se autores como Cassandra Rios “[...] cumpriram alguma função sob um regime autoritário, talvez seja a de enfrentar abertamente a censura [...] publicando ininterruptamente e mostrando, a cada livro censurado, o desrespeito do Estado à liberdade de expressão.”.
Portanto, o reconhecimento das obras de Cassandra Rios como bibliografia sensível é um passo importante, em meio as tantas relações de poder e contra poder que ameaçaram a sua circulação, apropriação e manutenção, para o deslocamento de seu lugar-espaço de sujeição para o espaço-tempo de ressujeição.
Nessa proposta, é que se verifica o poder político da Bibliografia e da Ciência da Informação para mapear, preservar e garantir formas de acesso a conhecimentos - materializados em documentos - que, em dados momentos históricos, foram sujeitados.
Na concepção de Capaccioni (2016, p. 16, tradução nossa), a Bibliografia, entendida como uma metaciência, “[...] não apenas fornece um quadro mais ou menos completo da produção de um determinado autor ou de qualquer assunto, mas também produz um quadro geográfico autêntico de um ou mais territórios do conhecimento.”
Pelas abordagens de Chartier (2002, p. 248) sobre o valor simbólico dos signos e das materialidades, em diálogo com as propostas de Donald Francia McKenzie, a Bibliografia pode ser compreendida como um estudo das práticas simbólicas, sendo um “[...] espaço intelectual novo que articula o estudo dos textos, a análise de suas formas e a história de seus usos”. Para o autor, essa história é permeada de conflitos que implicam em relações de poder, as quais podem ser verificadas tanto no poder de quem materializa enunciados e discursos quanto no poder de quem os controla.
Assim, ao analisar as obras de Cassandra Rios, em associação com outros documentos, e ao apresentar características para sua classificação como bibliografia sensível, ampliam-se as possibilidades para o desenvolvimento de práticas bibliográficas que possam inseri-las em outras ordens discursivas.
Pelas indicações dos relatórios da Comissão Nacional da Verdade, verifica-se a dificuldade em enunciar as violências sofridas pelos sujeitos LGBT+ na ditadura militar. Dentre tantos aspectos, esse fato pode ser observado como resultado dos procedimentos para garantir a invisibilidade desses sujeitos em meio a sociedade conservadora, o que permite a aproximação com as formulações de Michel Foucault sobre a existência de “sexualidades periféricas”.
Assim, se a condição de existência desses sujeitos foi negada e ocultada. Mais, se não foram produzidos documentos oficiais ou mesmo documentos nos coletivos de pensamento de oposição ao regime para comprovar as violências (físicas e simbólicas), como podemos apurar os crimes do Estado contra os sujeitos LGBT+? Ainda, pelo entendimento de que as violências contra os sujeitos LGBT+ não cessaram com o retorno à democracia, como analisá-las? Quais seriam as materialidades que podem ser reconhecidas e elevadas ao status de documento e ponto de referência para, ao menos, possibilitar a recuperação de rastros e vestígios do ser, viver, agir e pensar, em meio e à parte, das ações direcionadas ao ocultamento, silenciamento e exclusão promovidas pelo Estado?
Por certo, os relatórios da Comissão Nacional da Verdade e programas vinculados aos trabalhos de história oral são ações significativas no processo de recuperação e produção de registros sobre a ditadura militar para a compreensão das práticas de sujeição e dos atentados (físicos e simbólicos) direcionados a sujeitos LGBT+. Além disso, as práticas desses coletivos evidenciam uma mudança na relação de força dos discursos relativos ao (re)conhecimento das existências de sujeitos LGBT+ e das violações dos direitos desses pelo Estado e pela sociedade brasileira durante o regime militar. Todavia, os ressentimentos contra os sujeitos LGBT+ e os direitos humanos, ainda que evidenciados com a criação do documento em 2014, permanecem na memória hegemônica social brasileira.
Desse modo, concebe-se que ao direcionar olhares diferenciados sobre os registros das práticas de censura do Estado, pode-se recuperar, senão os atentados físicos, os indícios materializados para o (re)conhecimento da condição de existência de sujeitos LGBT+. Portanto, da necessidade de silenciá-los e tirá-los de circulação por meio de medidas legais e policiais. Infere-se que por esses documentos foi realizada uma operação para sujeição, para o estabelecimento do lugar-espaço - institucional, social e cultural - de certas obras e autores. A sujeição das existências LGBT+, verificada na censura à obra de Cassandra Rios, assinala mais do que às instituições: demarca os agentes detentores do poder censor no período da ditadura militar e a autoria das violências pela supressão de direitos.
As obras de Cassandra Rios, enquanto bibliografia sensível, apontam aos coletivos de pensamentos e agentes detentores do poder institucional, social e cultural - que permaneceram no poder após a redemocratização - bem como a permanência de ressentimentos contra os sujeitos LGBT+.
A construção dos discursos de memória sobre violências sofridas por sujeitos LGBT+ na ditadura militar ultrapassam diacronicamente os enunciados dos documentos da época da ditadura e da memória hegemônica construída com a redemocratização. Esses envolvem elementos de ódio na dimensão inconsciente que não se ocupou em evidenciar as violências praticadas e findá-las.
A partir da redemocratização não houve ruptura institucional com os sujeitos detentores do poder vigente na ditadura e as obras de Cassandra Rios, enquanto bibliografia sensível, são capazes de, novamente, destacar as permanências ressentidas do lugar-espaço a que agentes do poder institucional, social e cultural impuseram a sujeitos LGBT+.
Apoio financeiro da Universidade Federal do Espírito Santo para a participação no VI Seminário Internacional “A arte da Bibliografia”.
Coleta de dados: M. C. Grigoleto, G. M. Soella, P. E. Fagundes
Análise de dados: M. C. Grigoleto, G. M. Soella, P. E. Fagundes
Discussão dos resultados: M. C. Grigoleto, G. M. Soella, P. E. Fagundes
Revisão e aprovação: M. C. Grigoleto, G. M. Soella, P. E. Fagundes
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