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A MATERIALIDADE DA COLEÇÃO MÁRIO ARISTIDES FREIRE (MAF) SOB A ÓTICA DOS VALORES DE MONUMENTO DE RIEGL
The materiality of the Mário Aristides Freire (MAF) collection from the Riegl monument value Views
Encontros Bibli, vol. 25, Esp, e74206, 2020
Universidade Federal de Santa Catarina

Artigo original


Recepção: 25 Maio 2020

Aprovação: 12 Agosto 2020

Publicado: 30 Novembro 2020

DOI: https://doi.org/10.5007/1518-2924.2020.e74206

RESUMO

Objetivo: Discutir a potencialidade da materialidade documentária da Coleção Mário Aristides Freire (Coleção MAF) sob a ótica dos valores de Riegl e sob a perspectiva de Frohmann em relação aos contextos institucional, tecnológico, político, econômico e cultural que configuram características da informação (públicas e sociais) contemporânea

Métodos: utiliza estudo exploratório como método e a pesquisa bibliográfica como um recurso de produção de dados.

Resultados: observa que, à luz da discussão proposta por Frohmann, a Coleção MAF enquanto documento (patrimônio) demanda análise de quatro características para reconhecimento de sua condição de informatividade: da sua materialidade, do local institucional que a acolhe, das estratégias que disciplinam a sua organização e a sua contingência histórica; sob o aspecto da sua materialidade, as práticas documentárias e rotinas institucionalizadas de organização da Coleção MAF definem o poder de inércia e resistência sobre a documentação dessa coleção definindo, por consequência, a vida documentária da Coleção MAF e os efeitos da sua institucionalização; em Riegl o valor de contemporaneidade (uso e arte) do monumento (patrimônio) pelo homem contemporâneo é essencial, nesse sentido propõe a discussão sobre ações de contextualização da Coleção MAF às novas funções e gosto pelo conhecimento do homem atual, mas ainda assim levando em conta aspectos do valor de rememoração (antiguidade e historicidade) nesse uso.

Conclusões: Recomenda a análise com mais acuidade dos valores de Riegl e respectiva aplicação como critério qualitativo para avaliação de obras raras e especiais, ou como recurso validador dos critérios já utilizados.

PALAVRAS-CHAVE: Monumento, Documento, Memória e Patrimônio, Patrimônio - Conservação.

ABSTRACT

Objective: discusses the potential of the documentary materiality of the Mário Aristides Freire Collection (MAF Collection) from the perspective of Riegl's values and from the perspective of Frohmann in relation to the institutional, technological, political, economic and cultural contexts that configure information characteristics (public contemporary).

Methods: uses exploratory study as a method and bibliographic research as a data production resource.

Results: observes that, in the light of the discussion proposed by Frohmann, the MAF Collection as a document (heritage) demands analysis of four characteristics in order to recognize its condition of informativeness: its materiality, the institutional place that welcomes it, the strategies that discipline its organization and its historical contingency; under the aspect of its materiality, the documentary practices and institutionalized routines of organization of the MAF Collection define the power of inertia and resistance over the documentation of that collection defining, consequently, the documentary life of the MAF Collection and the effects of its institutionalization; in Riegl the value of contemporaneity (use and art) of the monument (heritage) by contemporary man is essential, in this sense it proposes the discussion about actions of contextualization of the MAF Collection to the new functions and taste for the knowledge of the current man, but still taking into account account aspects of the value of remembrance (seniority and historicity) in that use.

Conclusions: Recommends the more accurate analysis of Riegl values and respective application as a qualitative criterion for the evaluation of rare and special works, or as a validating resource for the criteria already used.

KEYWORDS: Monument, Document, Memory and Heritage, Heritage - Conservation.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo objetiva discutir a potencialidade da materialidade documentária da Coleção Mário Aristides Freire, doravante mencionada como Coleção MAF, sob a ótica dos valores de Riegl (1987; 2014) e sob a perspectiva de Frohmann (2008; 2012) tratando da materialidade da informação e do documento em relação aos contextos institucional, tecnológico, político, econômico e cultural que configuram características da informação (pública e social) contemporânea. A Coleção MAF representa, em sua polissemia documental, uma perspectiva histórica da sociedade capixaba durante os anos iniciais do século XX. É metáfora da materialidade documental que circundava a vida social do cidadão capixaba até a metade do século passado.

A análise deflagrada reconhece a separação entre bem documental, bem informacional e bem cultural que historicamente vem delimitando os eixos de atuação da Arquivologia (o documento), da Biblioteconomia (a informação) e da Museologia (a cultura), mas entendemos que, com a emergência dos centros de cultura e de memória cada um desses bens passaram a ser absorvidos como patrimônios (DODEBEI, 2010). É nesse sentido que desenvolvemos a discussão.

As aproximações entre Riegl (1987; 2014) e Frohmann (2008; 2012) representam um esforço de observação da perspectiva teórica desses autores tratando de aspectos da materialidade da informação: na ótica de Riegl (1987; 2014) referindo-se ao monumento e sob o olhar de Frohmann (2008; 2012) discutindo o documento enquanto informação materializada. Respeitando os contextos e as circunstâncias históricas percebemos, nas correspondentes abordagens, perspectivas discursivas de ruptura e de reposicionamento de práticas. Buscamos levantar aspectos relativos ao modo de considerar ou valorar coleções remetendo às visões de Riegl (1987; 2014) e de Frohmann (2008; 2012) utilizando, de forma ilustrativa, o valor da Coleção MAF. Cada visão, em seu respectivo contexto, mas em ambas a enunciação futurista de sentido e significação das coisas em sua manifestação.

2 A COLEÇÃO MÁRIO ARISTIDES FREIRE

Mário Aristides Freire (MAF) nasceu em Vitória (ES) no ano de 1886. Era filho de cidadão espírito-santense ativo na política e no jornalismo, o professor Aristides Brasiliano de Barcelos Freire. Herdou gosto pelo Jornalismo, mas cursou Direito. Foi servidor público no Distrito Federal (à época no estado do Rio de Janeiro) e mesmo distante de sua terra natal entre os anos de 1930 a 1940 participou intensamente da vida intelectual do Estado de origem, mantendo-se conectado e colaborativo com diversos jornais no solo capixaba (ACHIAMÉ, 2005).

Em 1932 MAF, a convite do então interventor João Punaro Bley retornou ao Estado do Espírito Santo (ES) e assumiu a Secretaria da Fazenda. Atuou em diversos cargos públicos contribuindo significativamente para a construção da identidade capixaba. MAF faleceu no ano de 1968, deixando cinco filhos e a viúva Ondina Meireles.

Durante sua vida MAF concebeu sua biblioteca particular em que intelectualidade e cultura compuseram seu perfil, um equilíbrio estabelecido entre leitor e intimidade com os livros em bibliotecas particulares. Segundo Cerne (2013) a intelectualidade de um produtor de biblioteca particular é evidenciada em sua concepção como espaço destinado à construção do conhecimento, pesquisa, produções e análises individuais e à cultura pela representatividade da produção literária no contexto no acervo e respectivas influências como fonte de informação para as pesquisas.

A Coleção MAF foi a primeira coleção fechada a ser incorporada ao acervo da Biblioteca Central (BC) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). O processo de incorporação teve início no mandato do então reitor Alaor de Queiroz Araújo, que sob égide jurídica, em 25 maio de 1971 distribuiu o Ofício nº 78/68 solicitando a avaliação (conteúdo informativo e formativo, o objeto em si e situação jurídica) do inventário bibliográfico da Coleção MAF1. O processo de avaliação perdurou por três anos sendo deferido oficialmente em 27 de junho de 1974 durante mandato de Máximo Borgo Filho que acompanhou a entrega da coleção e a relação do acervo bibliográfico da Coleção MAF devidamente avaliada e conferida e, então, transferida à Biblioteca Central da Ufes.

A institucionalização pela Ufes da Coleção MAF se deu sob processo de nº 2.907/68 no ano de 1974 fundamentado nas diretrizes da política de aquisição da Biblioteca à época. Foi incorporada ao acervo da BC por compra no valor de Cr$ 20.000,00 (vinte mil cruzeiros) pagos à Sra. Ondina da Rocha Freire, representante legal do Espólio de MAF. A aquisição da Coleção MAF tornou-se privilegiada fonte de informação por dispor de obras registradas em documentos publicados, conteúdos sistematizados em seu conjunto (sobrescritos, manuscritos, imagens, recortes de jornais, cartas, revisões de textos e apontamentos, dos quais muitos ainda são inéditos), pelas personagens e atores individuais ou coletivos que a compõem, pela leitura de seus elementos e detalhes que possibilitam compreender seu simbolismo enquanto monumento e patrimônio, fazendo com que a coleção perpasse a intencionalidade do colecionador e os aspectos físicos atribuídos ao objeto-suporte dada à sua atemporalidade.

Diante da Coleção MAF pesquisadores podem lançar-se para além do descrito, resgatando realidades em tempo e espaço circunscritos historicamente como monumentos que revelam os valores culturais e históricos da constituição da cidade de Vitória (ES) e do Estado do ES, desde meados do século XVI até as primeiras décadas do século XX. Uma combinação de elementos de produção de significados, fins e características simbólicas, cujos valores explicitam a materialidade dos documentos da coleção, da informação e de seus efeitos na sociedade, tanto quanto, desvinculando sua relação única e exclusivamente no tempo e no espaço.

As obras da coleção são datadas do período de 1858-1899, sendo a última data em relação à totalidade da coleção correspondente ao ano de 1969. Dentre as obras do século XVIII, uma tem sua data indefinida, levando-nos a entender que as obras mais antigas do acervo são datadas a partir do ano de 1858. Com 706 títulos, cuja classificação orienta sua tipologia identificando os assuntos distribuídos entre livros, folhetos, folhas soltas e periódicos, perfazendo um total de 1730 exemplares. A coleção foi submetida a processos de organização e de tratamento temático da informação sendo disponibilizada no Catálogo da Rede Pergamum. Do ponto de vista técnico, a coleção encontra-se descrita bibliograficamente, indexada por assunto e disponibilizada no catálogo do Sistema de Bibliotecas (SIB/UFES), vinculado à Rede Pergamum, sendo possível a sua recuperação por autor, título e assunto e a geração de relatórios detalhados conforme a disponibilidade do catálogo. O processo de descrição bibliográfica deu primazia as áreas temáticas e as tipologias documentais para retratar aspectos quantitativos e qualitativos ajuizando sua relevância (valor informativo, formativo e cultural).

Entre as obras destaca-se: Ensaio sobre a história e estatística da Província do Espírito Santo e história universal desde os tempos primitivos até 1850, uma miscelânea histórica estatística e geográfica e de leis da província do Espírito Santo, escrita por Vasconcellos, a primeira história a ser impressa na Província do Espírito Santo em 1858.

Um conjunto de onze títulos versa sobre relações histórica, geográfica, política, científica e cultural do Estado do ES com destaque para a obra A Capitania do Espírito Santo: crônicas da vida capixaba no tempo dos capitães-mores (1535-1822) elaborada a partir dos próprios artigos escritos por MAF à revista Vida Capichaba, contemplando assuntos referentes ao período colonial da história do Estado do ES com relevante riqueza de referências das fontes consultadas, e uma publicação em Separata;A República no Espírito Santo, no fascículo de nº 12, de 1939, da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo que desvela assinalada competência de um pesquisador com conhecimentos de critérios acadêmicos voltados à análise e interpretação do documento histórico.

A gênese cultural de MAF é um aspecto latente ao observamos em sua coleção oito obras contemplando constituições de diversos países, com destaque para a Constituição do Espírito Santo de 1950, obra que reúne todas as Cartas Constitucionais do Estado do ES em sua ordem de publicação, didaticamente planejada para proporcionar aos estudiosos de direito da época e atualmente a oportunidade de verificar e apreciar, sob a ótica jurídica, a contribuição do poder legislativo espírito-santense às conquistas do Estado e respectiva evolução política pautadas nos princípios constitucionais brasileiros.

Assim como o acervo bibliográfico, a exuberância e bidimensionalidade do acervo fotográfico de MAF expressa sua intelectualidade e seu extremo interesse em legar às gerações futuras as imagens capturadas por suas lentes ou de outros. Este acervo está composto por centenas de imagens, cartões postais do final do século XIX e início do século XX e por outras 467 fotografias altamente relevantes que apresentam características paisagísticas e memoriais da cidade de Vitória (ES) e do Estado do ES destacando seu valor cultural e histórico, evidenciando a percepção e sentidos da preservação da memória. A ascensão do arquivo pessoal como fonte de informação e o crescimento de reflexões acerca dessa fonte, das potencialidades e limitações levaram os historiadores a incorporarem metodologias e categorias à análise dessa nova fonte e enfrentamento da sua subjetividade (SANTOS, 2012). Desta forma, os arquivos pessoais tornaram-se sob a ótica historiográfica como fontes de informação. Cartas2, datiloscritos, manuscritos3, cópias telegráficas, cartões de congratulações, relatórios4, ofícios, certidões, títulos de nomeação5 e outros documentos com características de tipos documentais diplomáticos6 também revelam intencionalidade na Coleção MAF e possibilitam contar a sua história transportando o leitor no tempo, aproximando personagens, revelando vivências, alinhavando espaço e tempo para reconstrução da rede de sociabilidade e conhecimento do genoma intelectual de MAF e fatos relativos ao Estado do ES.

De acordo com Duarte e Farias (2005), como toda fonte de informação os arquivos pessoais constituem-se como documentos de incomensurável valor informativo. Em se tratando de pessoas de destaque público, científico e histórico cultural, a documentação encontrada nesses arquivos obviamente elege-se como representativa, não por expor uma intimidade pessoal, mas por possibilitar ao historiador contextualizar e legitimar relações de seu produtor, situando assim o arquivo pessoal como autobiográfico.

Eles representam sempre o vínculo pessoal que o titular mantém com o mundo. O sentido monumental/histórico do arquivo pessoal não é descoberto pelo profissional de arquivo. Ele se encontra no próprio ato intencional de acumular documentos. O arquivo passa a representar uma espécie de pirâmide. Guarda a memória do titular e de seu tempo para as gerações futuras, podendo contar muito mais do que imagina (DUARTE; FARIAS, 2005, p. 34).

De acordo com Azevedo e Lino (2008), em bibliotecas cujos produtores já faleceram, os livros deixados têm mais força e soberania sobre nós mesmos, definitivamente tornam- se longevos e prolongam a memória de seu produtor perpetuando-o com o passar do tempo. Sob tal percepção podemos observar por toda a Coleção MAF, seja bibliográfica, fotográfica ou o arquivo pessoal: marcas de posse, dedicatórias, marginálias, dentre outras marcações ou elementos que refletem a intimidade de MAF com sua coleção, tanto quanto sua interpretação acerca do assunto ali em questão enriquecendo a massa informacional da obra. Estes aspectos a singularizam e conferem-lhe além do valor afetivo, valor de patrimônio bibliográfico e de memória institucional da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), simbolismo e materialidade com valores de monumento e de documento.

Na atualidade, os profissionais responsáveis pelos patrimônios institucionais enfrentam desafios cotidianos para garantir a proteção e propiciar um processo de mediação que resulte em apropriação e assimilação da potencialidade desse tipo de patrimônio. Os desafios não se referem tanto aos aspectos de organização ou tecnológicos em si, mas ao desvelamento das potencialidades desse patrimônio. Como singularizar o valor de uma coleção? Como propiciar um processo de mediação que possibilite criar identidades entre a coleção e o sujeito que a observa? Como dotar o sujeito ou as comunidades de capacidade crítica ou reflexiva para definir o valor ou valorar uma coleção? Quais são, na atualidade, os valores da Coleção MAF? Como qualificar a Coleção MAF à luz da teoria dos valores de Riegl? Estas questões estimulam reflexões importantes sobre as coleções na atualidade, e nos instigam a pesquisar. Quando observamos a obra de Riegl (1987; 2014) reconhecemos um perfil de autor maduro e que formula questões importantes também relativas à problemática de processos que levam um determinado período histórico a atribuir certo tipo de valor ao monumento ou ao patrimônio. Nesse sentido, nos perguntamos sobre qual seria o valor de monumento da Coleção MAF na vida social atual? Da mesma forma, quando observamos a Coleção MAF pelas lentes de Frohmann (2008; 2012) percebemos que essa coleção, assim como os documentos em geral, possuem imbricações sociais, como objetos utilizados no cotidiano, mas que em alguma medida determinam a vida social das pessoas (MURGUIA, 2010). Sob a perspectiva de Frohmann, não haveria informação sobre MAF se a documentação da Coleção MAF não tivesse materializado e constituído a pessoa de MAF (FROHMANN, 2008). Nas próximas seções trataremos desses dois eixos discursivos da perspectiva teórica desses autores com ênfase em aspectos da materialidade do monumento e do documento.

3 A EMERGÊNCIA DA PESQUISA

Utilizamos estudo exploratório como método norteador da pesquisa. Para coleta e produção de dados elegemos pesquisa bibliográfica e documental. A pesquisa foi realizada inicialmente com o objetivo de contextualizar a Coleção Mário Aristides Freire sob a ótica dos valores de monumento proposto por Riegl, mas posteriormente recebeu esforço de ampliação incluindo a discussão sobre sua materialidade à luz das proposições de Frohmann. Os dados da Coleção MAF foram obtidos a partir: relatórios gerados pelo Catálogo da Rede Pergamum disponibilizado pelo Sistema de Bibliotecas da Ufes, documentos do processo de transferência/aquisição da coleção pelos representantes legais de Mário Aristides Freire à Biblioteca Central da Ufes, registro de observações e comentários pontuados pela equipe que atua no Setor de Coleções Especiais da Biblioteca Central da Ufes, diagnóstico da coleção in loco e de fontes bibliográficas tratando de MAF e do respectivo espólio.

4 O LEGADO DE RIEGL

A obra de Alois Riegl, historiador da arte vienense, aponta para uma coordenada histórica que precisa ser contextualizada e bem caracterizada. Ao final do séc. XIX o império austro-húngaro buscava a construção de uma identidade nacional como recurso integrador7 dos diversos grupos étnicos e culturais (italianos, alemães, croatas, húngaros, eslovenos, ucranianos e checos) que viviam no território e meio para assegurar sua legitimidade e integridade enquanto estado-nação. Discursos e narrativas foram construídos na busca de maior coesão social. Evocaram também as tradições culturais e assim, as instituições e objetos culturais passaram a representar esse espírito nacional e identitário. Instituições (museus, monumentos e bibliotecas) e institucionalidades (leis, normas de proteção e salvaguarda) foram criados para selecionar, colecionar e conservar objetos representativos dessas tradições, das origens e raízes das nações constituindo, evolutivamente, o patrimônio cultural (AMARO, 2018). Foi uma época de florescimento para as práticas de restauração, mesmo diante dos riscos de apropriação política e ideológica do patrimônio cultural e de sua instrumentalização como recurso para legitimação do império.

Fora da língua alemã o pensamento de Alois Riegl sobre a proteção aos monumentos chegou em traduções tardias às mãos dos estudiosos da temática. Somente ao final da Segunda Guerra Mundial e, em fase posterior, ao início da década de 1980. Desde então, sua obra tem sido intensamente discutida e revisada como de vanguarda e futurista (SALVO, 2018). O legado de Riegl permitiu que, ao início do séc. XX, as noções de conservação, restauração e patrimônio fossem valorizadas a partir de um novo posicionamento. A começar pela concepção de patrimônio como um bem universal e da humanidade, da associação dessa concepção ao patrimônio natural, da ampliação e relativização do conceito de monumento para abarcar uma perspectiva de multiculturalidade que representava a sociedade da época. Renovou o estudo das artes promovendo rupturas: com o enfoque positivista, com a distinção hierárquica entre as artes aplicadas e decorativas, superiores e inferiores, com as explicações materialistas e mecânicas dos estilos, dentre outros temas também polêmicos (AMARO, 2018).

Discutimos, no presente artigo, a obra O culto moderno dos monumentos, escrita por Alois Riegl em 1903. A obra foi produzida quando encontrava-se sob a condição de presidente da Comissão de Monumentos Históricos da Áustria. Em sua intencionalidade a obra representava a compreensão dos valores que os monumentos possuíam para as sociedades uma vez que, para ele, somente após a compreensão dessas práticas responsáveis poderiam ser elaboradas as ações de proteção, e não mais de conservação ou restauro no patrimônio. Constitui-se como uma obra central para a definição da teoria dos valores por referir-se a três pontos centrais, segundo Salvo (2018): a) o deslocamento do debate do objeto para o sujeito que observa; b) a distinção entre monumentos intencionais e não intencionais; e c) a interpretação distinta que desenvolve entre o valor do antigo e do histórico utilizando termos diferentes dos valores de memória.

A preservação dos monumentos deve levar em consideração esse valor presente, pois sendo até certo ponto o valor atual prático oposto ao valor histórico de memória do passado, necessita de atenção mais urgente, uma vez que ele acaba por eliminar o conceito de ‘monumento’ (RIEGL, 2014, p. 36).

O impacto de sua obra ainda é dimensionado a ponto de classificá-lo como um precursor da cultura de proteção pós-moderna (SALVO, 2018). A Unesco utilizou os seus fundamentos para definir, em 1972, a Convenção para a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural (MATTOS, 2018).

En perfecta coherencia con la misión de la UNESCO dedicada a mantener la paz en el mundo mediante la afirmación y el reconocimiento mutuo de las diferentes identidades culturales del planeta, el pensamiento de Riegl representó -y todavía representa- una premisa formidable (SALVO, 2018, p. 332).

Uma obra que, de fato, reposicionou o estudo da conservação como uma disciplina autônoma. A obra condensa um conjunto de reflexões destinadas a constituir, à época, uma nova prática ou um radical repensamento para orientar a tomada de decisão e sustentar a formulação de políticas dirigidas às problemáticas em relação à memória e ao patrimônio ou para estimular um repensar sobre as razões do ato de conservar.

4.1 Os valores de Riegl

Em Riegl o monumento8 é percebido como objeto social e filosófico (AMARO, 2018). A palavra monumento significa recordar, do latim monere. Na percepção de Riegl (1987; 2014) o monumento é produto da atividade humana no passado, que sobreviveu e ainda mantém o poder de evocar ou atrair uma consciência da memória do passado (AMARO, 2018). Sob a interpretação de críticos e estudiosos da obra de Riegl tal definição revela uma concepção não dogmática e relativista (plural) do monumento histórico (CHOAY, 2006; AMARO, 2018).

No conceito atribuído ao monumento, Riegl realizou uma expansão significativa na definição até então aceita ao incorporar qualquer artefato (mesmo sem propósito ou significado) que revelasse os traços do período. Nesse sentido a idade assumiria a condição de signo para definir o objeto como um monumento (AMARO, 2018).

A definição de monumento propiciou a criação de um sistema de classificação dos tipos de valores outorgados aos monumentos pela sociedade, de uma forma geral. O autor, primeiramente, define o que seja monumento, diferenciando os monumentos intencionais daqueles não-intencionais9. Para Riegl (2014, p. 31) “[...] no sentido mais antigo e original do termo [...]” monumento é uma obra criada pela mão do homem com o intuito preciso de conservar para sempre presente e viva na consciência das gerações futuras a lembrança de uma ação ou destino. Nesse sentido, o monumento, em seu sentido original, relaciona- se com a manutenção da memória coletiva de um povo, sociedade ou grupo e está associado a uma obra de arte ou de escrita. Argumenta que não é a este tipo de monumento que a sociedade moderna se refere quando se utiliza do termo, mas aos monumentos artísticos e históricos, ou seja, trata-se daqueles monumentos não-intencionais, aos quais: “Seu significado e importância não provêm da sua destinação original, mas daquilo que nós sujeitos modernos atribuímos a eles” (RIEGL, 2014, p. 36).

O monumento histórico é para Riegl (2014) uma criação da sociedade moderna, um evento histórico localizado no tempo e no espaço. Após um período em que não se conhecia senão os monumentos intencionais, a partir do século XV, na Itália, as obras da Antiguidade começam a ser valoradas por suas características artísticas e históricas, não mais apenas por serem símbolos ou memoriais das grandezas de Grécia e Roma. Assim, é a partir dessa mudança de atitude que se verifica o despontar de um novo valor de rememoração (RIEGL, 2014), não mais aquele ligado à memória coletiva, mas ao valor histórico-artístico.

Nesse sentido, o passado adquiriu um valor de atualidade para a vida moderna e para o trabalho Seriam necessários vários séculos até que adquirisse a configuração moderna que apresenta hoje, principalmente entre os povos germânicos: o interesse de todos, mesmo por fatos e acontecimentos os mais insignificantes de povos separados da nossa própria nação por inconciliáveis diferenças de características; um interesse pela história da humanidade, na qual reconhecemos cada indivíduo em particular como parte de nós mesmos (RIEGL, 2014, p. 41).

Ou seja, o valor que é atribuído ao monumento, e daí a forma específica que este culto irá assumir, está diretamente relacionado com outro conceito-chave do pensamento de Riegl, a kunstwollen - vontade artística - de cada época.

Comparando a visão de Riegl à de Le Goff, percebe-se que elas não se assemelham, pois Le Goff deixa a entender que a edificação do documento/monumento, está condicionada a legar, tornar legítimo ou perpétuo o símbolo do poder da época (LE GOFF, 1994).

Já para Riegl (1987; 2014), ocorre o inverso, o monumento intencional e o que ocasionou sua edificação/produção pouco lhe interessa, pois ao significarmos um documento/monumento em seu início raramente este o determinará, entendendo assim que, para a determinação da obra como documento/monumento os significados a ele atribuído serão consequências do tempo. A teoria riegliana é a primeira a considerar valores como instrumento de estudo e classificação dos patrimônios.

O primeiro capítulo da obra O culto moderno dos monumentos apresenta os valores atribuídos aos monumentos e sua evolução histórica; o segundo capítulo discute os valores que denomina de rememoração (valor de antiguidade, valor histórico e valor de rememoração intencional) e sua relação com o culto aos monumentos. O valor de antiguidade determina como pressuposto de ação conservativa exatamente a não- intervenção; o valor histórico parte do reconhecimento de que um determinado monumento representa um estado particular e único no desenvolvimento de um domínio da criação humana (RIEGL, 2014), ou seja, o monumento passa a ser identificado como documento histórico e, por essa razão, deve ser mantido o mais fiel possível ao estado original, como no momento preciso de sua criação, causando implicação direta no método de conservação adotado, que deve, por oposição ao postulado pelo valor de antiguidade, buscar a paralisação do processo de degradação sofrido pela obra, ainda que admita as transformações já impostas pelo tempo como parte da história do próprio monumento. O valor de rememoração intencional é, para Riegl, o que mais se aproxima dos valores de contemporaneidade; o terceiro capítulo contextualiza os valores de contemporaneidade e sua relação com o culto aos monumentos. A diferença que se coloca entre valor de rememoração, seja de antiguidade ou intencional, e os valores de contemporaneidade, reside em que

Desde el punto de vista del valor de contemporaneidad, se tenderá desde un principio a no considerar el monumento como tal, sino como una obra contemporánea recién creada, y a exigir por tanto también del monumento (viejo) la apariencia externa de toda obra humana (nueva) en estado de génesis, es decir, la impresión de algo perfectamente cerrado y no afectado por las destructoras influencias de la naturaleza (RIEGL,1987, p. 69).

Do ponto de vista desse valor, existirá desde logo a tendência de considerar o monumento não como tal, mas como uma estrutura moderna, exigindo que o monumento antigo tenha a aparência externa de toda obra humana em estado de formação, ou seja, que dê a impressão de integralidade e de não ter sido afetado pelas influências naturais (RIEGL, 2014, p. 65).

Os valores de contemporaneidade dividem-se em dois tipos: valor de uso prático ou apenas valor de uso e valor de arte, sendo que este divide-se em valor de arte relativo e valor de novidade.

A grande contribuição dessa obra do historiador da arte vienense reside no fato de apresentar, através dos diferentes tipos de valor atribuídos aos monumentos, decorrentes das distintas formas de percepção e recepção dos monumentos históricos em cada momento e contexto específicos, os contrastantes meios para sua preservação. E, ao indicar essas múltiplas possibilidades, impõe ao sujeito da preservação a necessidade de fazer escolhas, as quais devem ser, necessariamente, baseadas num juízo crítico. Dessa forma, o pensamento riegliano insere definitivamente as práticas da restauração no debate sobre a cultura, considerando-a deliberadamente como ato de cultura antecipando-se às propostas defendidas a partir da segunda pós-guerra europeia pelo chamado restauro crítico, que tem nas figuras de Roberto Pane, Renato Bonelli e Agnol Domenico Pica seus protagonistas e, paralelamente, a marca da contribuição teórica de Cesare Brandi (AMARO, 2018).

5 A MATERIALIDADE DA DOCUMENTAÇÃO EM FROHMANN

Bernd Peter Frohmann constitui-se como um autor proeminente no campo da Ciência da Informação e da Biblioteconomia. Autor de inúmeros artigos e pioneiro na construção de novas abordagens no campo da comunicação científica. Alemão com formação em Biblioteconomia, Ciência da Informação e Filosofia. Professor emérito na Western University of Ontário, Faculty of Information and Media Studies (FIMS). Atuou em várias associações profissionais e científicas no campo da Ciência da Informação e Biblioteconomia e na organização de conferências.

Na atualidade, encontramos citação do seu nome como um expoente do neodocumentalismo justamente por apresentar um novo posicionamento em torno do conceito de documento e da ampliação do conceito de materialidade, para além da razão fisicalista, mas regulado por uma perspectiva culturalista (SALDANHA, 2013; 2014; GUGLIOTTA, 2017).

Frohmann (2008) discutindo o caráter público, material e social do fenômeno informação na atualidade parte de uma crítica ao conceito mentalista de informação, concebida como algo presente na mente em estado constante de compreensão que privilegia o indivíduo como agente porque esta percepção impulsiona processos que reforçam a imaterialidade dessa informação abstrata e mentalista.

Imaginar a informação comunicada por um membro do universo de documentos em rápida expansão como um conteúdo abstrato e nobre, indiferente à transformação de seus veículos e despojada de todos os suportes materiais, institucionais e sociais, é imaginar que ela pertence à mesma categoria ontológica que a substância imaterial, intencional e mental presente em uma mente individual em condições de compreender tal documento (FROHMANN, 2012, p. 229).

Em contraposição, propõe o conceito de materialidade (aplicado à documentação) porque permite o entendimento, em sua visão muito mais rico, dos aspectos públicos e sociais da informação porque tal materialidade é nomeada pelo documento ou pela documentação. Frohmann (2008) aponta para a documentação, para além da função comunicativa. Salienta o papel da documentação na estabilização da informação a partir do pensamento de Foucault sobre os enunciados tratando não do que eles representam, ou da informação que revelam, mas pela sua existência em si. Utiliza a discussão sobre os enunciados desenvolvida por Focault para exemplificar a condição dos documentos, que tal qual os enunciados, têm uma materialidade pronunciada capaz de disparar eventos de acordo com os usos e apropriações. “Estudar a documentação é estudar as consequências e os efeitos da materialidade da informação” (FROHMANN, 2008, p. 22).

Nesse sentido, considerando a crítica ao modelo mentalista de informação, são as práticas documentárias (as rotinas institucionalizadas) que estabilizam a materialidade da informação nas coleções documentárias e “[...] a informatividade10 do documento deve ser analisada sob outras perspectivas e não pela imagem mental da informação” (FERRANDO; FREITAS, 2017, não paginado). Por exemplo: na ciência (o poder da escrita estabilizando a informação científica); nas instituições (definindo categorias de pessoas e fatos na vida social); e na web (o monitoramento de dados produzindo enunciados sem a presença do indivíduo).

5.1 A materialidade da Coleção MAF em Riegl e Frohmann

Sob a perspectiva de materialidade discutida por Frohmann, a Coleção MAF é uma construção, produto de diversas associações. Um dispositivo que pode provocar recordações por gerações, segundo Focault (2008) e conforme descrito por Frohmann (2008, p. 25) “[...] um meio de comunicação de informação [...]”, mas principalmente, “[...] um meio de transmissão de poder [...]” “[...] através do qual indivíduos que podem ser conhecidos são constituídos institucionalmente”. Os documentos foram organizados e justapostos por MAF a partir de formas de permanências espontâneas ou organizadas dependendo das intencionalidades (FOCAULT, 2008). Quando disponibilizada por instituições, ao longo do tempo e em diferentes contextos, novas “[...] associações discursivas e instituições haverão de sustentá-la para seus agenciamentos” (MURGUIA, 2010, p. 129), de acordo com usos e apropriações que serão atribuídos.

Qualquer objeto da Coleção MAF pode vir a ser documento, dependendo apenas da intencionalidade de registro e dos agenciamentos que a sua institucionalização vai estabelecer. A Coleção MAF, então, passa a ser o espaço instituído para que os documentos possam ser vistos e descritos: constituindo-se enquanto coleção como um “[...] modo de vincular as coisas ao mesmo tempo ao olhar e ao discurso” (FOCAULT, 2000, p. 148). Nas coleções os documentos podem ser arranjados, classificados, dispostos para produção de significados “[...] pelos vínculos que se querem mostrar na sua proximidade ou afastamento” (MURGUIA, 2010, p. 133).

Em Riegl (1987; 2014) o documento, enquanto patrimônio, também possui um valor (significado) atribuído pela sociedade. Um valor (de uso e de arte) sempre contextual independente dos valores de rememoração (antiguidade, histórico e intencional) que lhe foram atribuídos no tempo/espaço de sua produção. Os valores de Riegl permitem observar uma coleção sob o ponto de vista do observador/do sujeito, distinguir na coleção a diferença entre o passado e o presente nos diferentes contextos e aplicar diferentes estratégias de ação (para proteção) de acordo com o juízo crítico (e respectivo significado que se deseja atribuir) do sujeito responsável pela preservação (ALVES, 2018). Nesse sentido o valor de memória da coleção resulta atribuído pelo presente, “[...] dependendo da abundância da documentação existente, longe do valor original dado pelo seu criador” (ALVES, 2018, p. 163).

Conforme argumentado por Ortega (2010), a materialidade do documento nos termos de Frohmann (2008) apresenta informatividade11 conforme características dessa materialidade, lugares institucionais em que se encontram, modos como tende a ser disciplinado e contingência histórica. Significando que, as ações institucionais tenderão a construir novos documentos a partir da coleção objetivando processos de mediação entre os documentos (potencialmente informativos) e os usuários (potenciais) (ORTEGA, 2010). “A instituição é o lugar onde a ordem ou a tradição se atualizam pelos seus agentes, com suas práticas e suas representações” (MURGUIA, 2010, p. 137).

Nestes termos, a análise do posicionamento de Frohmann (2008), quando justaposto ao de Riegl (1987; 2014), nos permite identificar, em ambos, uma preocupação basilar sobre o valor contextual e cultural atribuído ao monumento (em Riegl) e ao documento (em Frohmann). Em ambas postulações reconhecemos a preocupação com as condições materiais de utilização prática dos monumentos (em Riegl) e documentos (em Frohmann) e dos respectivos papéis que podem desempenhar nos sistemas sociais contemporâneos.

Ambos apontam para a importância da materialidade na dimensão contemporânea do patrimônio (documento e monumento). Identificamos, também, um esforço de observação não apenas da materialidade, mas do seu contexto e evolução. Em Frohmann (2008), o material ou a materialidade manifestam estabilidade e durabilidade, mas não significa apenas a sensibilidade tátil, conforme argumenta Saldanha (2014). Segundo Frohmann (2008, p. 27) a “[...] informação não pode sobreviver apenas da autoridade cognitiva”, mas por sua vez, “[...] o imaterial não é a ausência de uma relação de contato sensível - ou seja, a informação não é subjetiva ou imaterial pelo fato de não estar fisicamente presente” (SALDANHA, 2014, p. 6).

Em Riegl (2014) a materialidade dos monumentos era secundária, mas assim como Frohmann, percebia que o homem contemporâneo com a sua carga social, histórica e cultural produziria ações (eventos) sobre essa materialidade de acordo com os usos e apropriações do seu tempo. Assim, Riegl (2014), nas postulações da obra O culto moderno dos monumentos, atribui peso/valor sobre as ações do sujeito na relação/proteção dessa materialidade. Frohmann (2008) ao observar essa materialidade atribui também peso às práticas documentarias (ações do sujeito) como recurso de estabilização dessa materialidade:

[...] vemos que os documentos que circulam através e dentre as instituições têm uma materialidade pronunciada. Requer muito esforço produzí-los, instituir prática com eles, substitui-los por diferentes documentos, e instalar documentos manufaturados e disponibilizados por uma instituição em outra (FROHMANN, 2008, p. 24).

Riegl e Frohmann são futuristas. Riegl (1987; 2014) propôs reflexões de âmbito global tratando da conservação da memória, dos enfrentamentos ao consumo massivo do patrimônio cultural, da consideração do valor de uso no âmbito da conservação dos bens contemporâneos e das distinções que se aplicam aos patrimônios (material e imaterial, tangível e intangível).

Frohmann se constitui, na atualidade, como um renomado teórico no Campo da Ciência da Informação sendo considerado um expoente da denominada corrente neodocumentalista, dado ao posicionamento que assumiu em relação à reconstrução do conceito de documento e à crítica que desenvolve sobre o caráter social do fenômeno informação (SALDANHA, 2014; GUGLIOTTA, 2017). Como síntese de aspectos já levantados ou sinalizados apresentamos no Quadro 1 percepções sistematizadas relativas à materialidade do monumento e do documento.

Quadro 1
A materialidade do monumento e do documento.

Fonte: produzido durante a pesquisa.

Apesar de justapostas, as percepções de Riegl e de Frohmann, expostas no Quadro 1, cabe salientar que não foram analisadas de forma comparada, apenas aproximadas para melhor visualização e leitura. Os pesquisadores podem lançar-se para além do descrito, resgatando realidades em tempo e espaço circunscrito historicamente, pelos documentos em si. Como monumento revelando os valores históricos de época, pelo conteúdo sistematizado em seu conjunto, pelas personagens e atores individuais ou coletivos que compõem a coleção. Pela leitura de seus elementos e detalhes é possível compreender seu simbolismo e fazer acréscimos à diversificação interpretativa da história.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final deste percurso de pesquisa podemos observar na literatura dos autores pesquisados: uma crítica dirigida aos modelos teóricos como um recurso para orientar o manejo ou trato do monumento (em Riegl) ou do documento (em Frohmann) nas práticas documentárias orientadas à memória e à preservação e a natureza interpretativa que constitui as ações ou operações sobre o monumento e o documento.

Resta analisar com mais acuidade se os valores de Riegl (1987; 2014) podem ser aplicados como critérios qualitativos para avaliação de obras raras e especiais, ou como um recurso validador dos critérios já utilizados. Entendemos que os valores de contemporaneidade apresentam algumas referencialidades importantes para melhor contextualizar as usabilidades e estratégias de informatividade ou da capacidade informativa, que potencializam a Coleção MAF justamente porque buscam conectar a coleção à vontade artística de cada época, ou ao gosto12 pelo conhecimento de cada época.

Por outro lado, os valores de rememoração conduzem as práticas documentárias às ações de conservação que, em geral, tendem a preservar o documento, enquanto patrimônio, das ações deletérias do tempo e da intervenção humana. Os valores propostos por Riegl permitem refletir sobre o equilíbrio necessário durante a gestão da coleção e, principalmente da gestão da coleção sob a ótica do sujeito observador que demanda para a instituição necessidade ou gosto pelo conhecimento.

Identificamos em Riegl (1987; 2014) que o deslocamento do debate do objeto para o sujeito observador reposiciona a forma como podemos perceber uma coleção: perde valor apenas a percepção da materialidade histórica, estética ou do valor em si da coleção para a valoração da atividade reflexiva, dinâmica e relacional do sujeito ou da comunidade, da capacidade crítica de perceber, de apropriar-se da coleção e de atribuir valor ou valores (SALVO, 2018). Nestes termos, discute-se muito mais a proteção e não a conservação ou restauração do patrimônio pelo valor que lhe é atribuído no presente.

Fica para reflexão a questão: Como sistematizar uma perspectiva de proteção a partir de processos de interlocução mais abertos e flexíveis dando voz ao sujeito observador? (SALVO, 2018).

Em Frohmann (2008; 2012), observamos o deslocamento intencional do foco na informação para a materialidade que atribui informatividade a essa informação. Assim, a Coleção MAF enquanto documento demanda análise de quatro características para reconhecimento de sua condição de informatividade: da sua materialidade, do local institucional que a acolhe, das estratégias que disciplinam a sua organização e a sua contingência histórica. Sob o aspecto da sua materialidade, as práticas documentárias e rotinas institucionalizadas de organização da Coleção MAF definem o poder de inércia e resistência sobre a documentação dessa coleção definindo, por consequência a vida documentária da Coleção MAF e os efeitos da sua institucionalização: como institucionalmente a Coleção MAF inventa MAF?

Em Riegl (2014) o valor de uso do monumento pelo homem contemporâneo é essencial. Nesse sentido, nos parece razoável a discussão sobre a necessidade de adaptação da Coleção MAF às novas funções do homem atual, mas ainda assim levando em conta aspectos de segurança e cuidado nesse uso.

As percepções que sistematizamos revelam aproximações. Devemos justificar que este artigo é na realidade o começo do percurso de análise, reflete as primeiras aproximações a um tema instigante e que apresenta horizontes discursivos e interpretativos. Porém, ao apresentá-lo deixamos em aberto as suas possibilidades enunciativas. Talvez seja este o seu mérito, apenas enunciar as possibilidades investigativas.

AGRADECIMENTOS

Agradecimentos ao Setor de Coleções Especiais da Biblioteca Central da Ufes.

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NOTAS

1 As informações foram coletadas de documentos do processo de transferência/aquisição da coleção à Biblioteca Central da UFES, disponibilizados junto à Coleção MAF.
2 No conjunto de cartas e ofícios diversos foram destinados a Mário Aristides Freire, emitidos e assinados por João Punaro Bley.
3 Caderno de poesias em português colonial do ano de 1893 escrito por Aristides Freire, pai de MAF.
4 Relatório ao Interventor Federal expondo as necessidades das secretarias do Estado do Espírito Santo, no qual são expostas necessidades que abrangem as Bibliotecas públicas e escolares e o Arquivo público.
5 Dentre as nomeações de Mário Aristides Freire encontra-se a do cargo de Secretário da Fazenda do Estado do Espírito Santo assinado por João Punaro Bley em 1932.
6 Resolução que designa Mário Aristides Freire como substituto ao Interventor Federal do Espírito Santo assinada pelo presidente da República Getúlio Vargas em 1943. O ato de exoneração de Mário Aristides Freire do cargo de Secretário do Interior e Justiça assinado por Jones dos Santos Neves em 1944, dentre outros.
7 Esse recurso integrador foi utilizado em quase toda a Europa influenciados pelos apelos ideológicos do romantismo, idealismo e positivismo (AMARO, 2018).
8 O monumento em Riegl (2014, p. 24) é uma obra de arte ou escrita (documento), criada pelo homem e que “[...] presentifica na consciência das gerações posteriores um evento ou pessoa”.
9 Os intencionais referem-se àqueles monumentos criados (arte ou escrita) para rememorar um momento ou personagem e os não-intencionais referem-se aqueles que suscitam “[...] um valor de memória histórico, independentemente de ter valor artístico ou de sua importância relativa à época de sua composição” (RIEGL, 2014, p. 24).
10 Segundo Ortega (2010, p. 69) o conceito de informatividade para Frohmann “[...] refere-se aos fatores que devem ser levados em conta para compreender como documentos tornam-se informativos”.
11 A informatividade se relaciona ao valor de uso da coleção ou do documento (ORTEGA, 2010).
12 A noção de gosto foi tomada de Schneider (2019, p. 104,105) como parte da expressão gosto informacional, uma articulação dialética da “[...] noção mais universal de necessidade com aquelas ligadas a culturas particulares e experiências singulares, numa perspectiva histórica” tomada pelo autor para expressar aproximações entre saber e sabor, “[...] entre a valoração sensível e intelectual de seja o que for”. Esta noção aproxima-se da expressão vontade artística (kunstwollen) utilizada por Riegl (1987; 2014) para expressar a vontade, ou o desejo artístico de cada época.
CONJUNTO DE DADOS DE PESQUISA Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
FINANCIAMENTO Não se aplica.
CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM Não se aplica
APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA Não se aplica
LICENÇA DE USO Os autores cedem à Encontros Bibli os direitos exclusivos de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution (CC BY) 4.0 International. Estra licença permite que terceirosremixem, adaptem e criem a partir do trabalho publicado, atribuindo o devido crédito de autoria e publicação inicial neste periódico. Os autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalho publicada neste periódico (ex.: publicar em repositório institucional, em site pessoal, publicar uma tradução, ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial neste periódico.
PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Publicação no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.
EDITORES Enrique Muriel-Torrado, Edgar Bisset Alvarez, Camila Barros, Igor Soares Amorim, Rodrigo de Sales.

Autor notes

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA Concepção e elaboração do manuscrito: L. A. de L. do Nascimento, J. A. F. Martins

Análise de dados: L. A. de L. do Nascimento, J. A. F. Martins

Discussão dos resultados: L. A. de L. do Nascimento

Revisão e aprovação: L. A. de L. do Nascimento, J. A. F. Martins

lucileidelima@gmail.com etenaj-heitor-jh@live.com

Declaração de interesses

CONFLITO DE INTERESSES Não se aplica


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