Artigo original
BIBLIOGRAFIA LILÁS: LESBOTECA E A CONSTRUÇÃO DE UM CATÁLOGO BIBLIOGRÁFICO PARA VISIBILIDADE LÉSBICA
Lilac Bibliography: Lesboteca and the construction of a bibliographic catalog for lesbian visibility
BIBLIOGRAFIA LILÁS: LESBOTECA E A CONSTRUÇÃO DE UM CATÁLOGO BIBLIOGRÁFICO PARA VISIBILIDADE LÉSBICA
Encontros Bibli, vol. 25, Esp, e73458, 2020
Universidade Federal de Santa Catarina
Recepção: 01 Maio 2020
Aprovação: 04 Setembro 2020
Publicado: 30 Novembro 2020
RESUMO
Objetivo: Descrever o site da Lesboteca, pois se trata de um importante instrumento de visibilidade para o grupo identitário formado por mulheres lésbicas
Método: A natureza do estudo é qualitativa e quantitativa, com caráter exploratório e descritivo. Nele descrevemos o site da Lesboteca e a organização das informações apresentadas, por meio de categorias criadas e de elementos que expõem os conteúdos das obras.
Resultado: Os resultados mostram que a Lesboteca possui cerca de 307 obras catalogadas em diversas categorias, é um instrumento efetivo na organização e recuperação de informação, que possibilita a interação com suas usuárias e usuários.
Conclusões: O estudo evidencia a importância dessa iniciativa como um espaço de informação e combate à lesbofobia e visibilização da produção científica e literária de autoras lésbicas.
PALAVRAS-CHAVE: Lesboteca+ Catálogo Bibliográfico+ Visibilidade Lésbica+ Gênero+ Sexualidade.
ABSTRACT
Objective: Describe the Lesboteca website, as it is an important visibility tool for the identity group formed by lesbian woman.
Methods: The nature of the study is qualitative and quantitative, with an exploratory and descriptive character. In it we describe the Lesboteca website and the organization of the information presented, through categories created and elements that expose the contents of the books.
Results: The results show that Lesboteca has about 307 books cataloged in several categories, it is an effective instrument in the organization and retrieval of information, which enables interaction with its users.
Conclusions: The study highlights the importance of this initiative as a space for information and combating lesbophobia and making the scientific and literary production of lesbian authors more visible.
KEYWORDS: Lesboteca, Bibliographic Catalog, Lesbian Visibility, Gender, Sexuality.
1 INTRODUÇÃO
Reconhecemos que a visibilidade lésbica ainda é uma temática que precisa ser discutida na sociedade contemporânea, uma vez que, em um sistema patriarcal, os relacionamentos afetivos e sexuais entre mulheres ainda representam um tabu para muitas pessoas. Nessa perspectiva, acreditamos que é missão dos profissionais da informação apresentar à sociedade sistemas de organização do conhecimento que recuperem informações de acordo com as mais diferentes necessidades informacionais.
Nesse sentido, a Lesboteca surge enquanto um catálogo bibliográfico que tem como objetivo dar acesso a materiais bibliográficos a fim de contribuir para que mulheres lésbicas e bissexuais de todas as idades, pertencimentos étnicos, performatividade e classes sociais se sintam representadas na literatura (romances, histórias em quadrinhos, textos científicos, revistas, etc.) e com isso possam construir ou reconhecer sua identidade. Pensando nisso, este estudo tem como objetivo apresentar e descrever o site da Lesboteca, que se trata de um catálogo digital criado por uma bibliotecária paulistana. Seu conteúdo inclui a produção literária sobre a temática lésbica, visando promover uma maior representatividade e visibilidade de obras e autoras que fazem parte desta população invisibilizada.
Para justificar a relevância da existência de catálogos como este, serão discutidos os seguintes assuntos: a) o controle social da sexualidade das mulheres; b) a apresentação do movimento LGBTQIA+ e a necessidade da promoção da visibilidade lésbica; c) apresentação da importância dos catálogos bibliográficos para a recuperação de informação e indicação de fontes de informação diversas; e, d) apresentação do site Lesboteca e descrição da organização deste catálogo.
A pesquisa é de natureza qualitativa e quantitativa, de caráter exploratório e descritivo. Nela, descrevemos o site da Lesboteca bem como as informações apresentadas neste catálogo por meio de categorias criadas e de elementos que expõem os conteúdos das obras. Em um primeiro momento buscamos entender a proposta do site da Lesboteca, seu histórico e os motivos que levaram à sua criação. Em seguida, o estudo descreve a quantidade de obras presentes neste catálogo, as categorias existentes, a quantidade de obras por categoria, a estrutura hierárquica da organização do catálogo, o modo como são apresentadas as fichas catalográficas das obras, as obras mais acessadas e como acontece a interação com as usuárias e usuários. Além disso, o estudo evidencia a importância dessa iniciativa como um espaço de informação que possibilita o combate à lesbofobia através da visibilização da produção científica e literária de autoras lésbicas.
Este estudo buscou entender como os catálogos bibliográficos podem ser um instrumento para visibilização de grupos historicamente marginalizados, neste caso, mulheres lésbicas. Sendo assim, apresentamos o conteúdo da Lesboteca, como espaço de disseminação de fontes de informação em crescimento a fim de visibilizar obras sobre lesbiandade e autoras lésbicas.
2 O CONTROLE DA SEXUALIDADE DAS MULHERES
As desigualdades entre gêneros e sexualidades existem desde quando o patriarcado foi instituído como o principal sistema de controle social. Especialmente porque este sistema performa o poder nas relações através de papéis de gênero socialmente estabelecidos pela produção cultural que criou estereótipos através de imagens, mitos e metáforas sobre a identidade de gênero das pessoas na história (SCOTT, 1995, LERNER, 2019).
A sexualidade faz parte da vida das pessoas e está relacionada tanto às descobertas de prazeres individualmente, quanto às descobertas de prazeres compartilhados com uma ou mais pessoas (FOUCAULT, 1985). Louro (2000, p. 4) destaca que a experimentação da sexualidade de um indivíduo é influenciada por diversos fatores, tais como: “geração, raça, nacionalidade, religião, classe, etnia”. Entretanto, é preciso salientar que, ao longo da história, as maneiras como as pessoas vivenciaram sua sexualidade mudaram e seguem em constante mudança dependendo do tempo, espaço e contexto que determinada pessoa vive.
Louro (2000) explica que existem muitas formas de uma pessoa tornar-se mulher ou homem, assim como há várias possibilidades de vivenciar prazeres e desejos em relação às práticas sexuais. Todavia, a autora destaca que as manifestações de desejo socialmente aceitas “são sempre sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente [...]. Elas são também, renovadamente, reguladas, condenadas ou negadas” (LOURO, 2000, p. 4). Nessa perspectiva, acreditamos que a sexualidade humana não é natural e está em constante disputa entre os que desejam experimentá-la livremente e os que desejam regulá-la.
É necessário destacar que tanto as performances de gênero quanto a expressão da sexualidade não são naturais, mas sim historicamente produzidas. Lerner (2019) explica que a regulação da sexualidade das mulheres foi legitimada através de um processo de reificação que tinha como objetivo o controle de natalidade desde as civilizações antigas. Nessa perspectiva, a repressão sexual das mulheres pode ser entendida com uma das mais antigas práticas de dominação do masculino ante o feminino (CHAUÍ, 1991, LERNER, 2019).
Foucault (1985) em sua tese “A história da sexualidade” explica que a sexualidade e o sexo foram assuntos não só silenciados, mas proibidos. Apesar de o assunto ser representado na arte e literatura, falar sobre sexo até o início do século XX era considerado algo imoral e perverso. O autor destaca que a moral social foi um dispositivo regulador do sexo, seja através dos fundamentos de uma moral religiosa ou através de uma moral científica baseada em políticas higienistas, nas quais predominava o medo de contaminação de doenças sexualmente transmissíveis. Além disso, o controle da sexualidade pelo Estado.
[...] pretendia assegurar o vigor físico e a pureza moral do corpo social, prometia eliminar os portadores de taras, os degenerados e as populações abastardadas. Em nome de uma urgência biológica e histórica, justificava os racismos oficiais, então iminentes. E os fundamentava como "verdade" (FOUCAULT, 1980, p. 54).
A partir da citação acima, podemos perceber que as questões de gênero e sexualidade são convergentes, ambas reguladas por sistemas políticos, econômicos, culturais e religiosos, estruturas fortalecidas pelo sistema patriarcal.
Para explicar como essas questões estão presentes nas relações afetivas e sexuais trazemos a contribuição de Julia Kristeva (2004) em seu estudo sobre o amor romântico e a expressão da sexualidade presentes no livro “Histórias de amor”. A autora disserta sobre os relacionamentos ocidentais e sobre a opressão em relação à noção de amor cristão, heterossexual e androcentrado. Kristeva (2004) explica como a noção de amor romântico contribuiu e contribui para a formação de estereótipos de gênero e para a condição de dominação-submissão no comportamento sexual entre homens e mulheres.
Tal condição de dominação-submissão também é abordada por Chauí (1991) em seu estudo sobre a repressão sexual. A autora explica que a repressão sexual
[...] pode ser considerada como um conjunto de interdições, permissões, normas, valores, regras estabelecidos histórica e culturalmente para controlar o exercício da sexualidade, pois, como inúmeras expressões sugerem, o sexo é encarado por diferentes sociedades (e particularmente pela nossa) como uma torrente impetuosa e cheia de perigos - estar ”perdido de amor”, ”cair de amores”, ser ”fulminado pela paixão”, beber o ”filtro de amor”, receber as ”flechas do amor”, ”morrer de amor” (CHAUÍ, 1991, p. 9).
Kristeva (2004, p. 69, tradução nossa) também aponta que a mulher, “à medida que se apaixona, é levada à [...] dialética de enfrentamento ao falo, com todo cortejo de imagens, ideais e provas de dominação-submissão que supõem”. O fenômeno social de exaltação fálica apresentado pela autora, nos ajuda a compreender as violências sexuais sofridas por mulheres lésbicas. Kristeva (2000) aponta que a homossexualidade feminina é vista como uma afronta em um mundo androcentrado. Desta forma, a mulher ao amar outra mulher está automaticamente subvertendo duas estruturas: a heterossexualidade e a exaltação fálica.
Entendemos que o pensamento de Kristeva corrobora o de Adriene Rich (2010). Rich (2010) explica que a heterossexualidade é uma instituição política, portanto não natural, que tira o poder das mulheres. Nye (1995, p. 23) acrescenta que além da heterossexualidade compulsória, o casamento, a ginecologia e o estupro são instituições inerentes ao patriarcado “que permite aos homens reprimir a homossexualidade feminina e obrigar as mulheres à cama. A heterossexualidade imposta é a causa profunda da opressão feminina”. Nessa perspectiva, a lesbiandade deve ser entendida como uma resistência ao patriarcado.
De acordo com Foucault (1985) e Kristeva (2004), durante muito tempo houve uma erotização exacerbada da mulher e uma imposição à heterossexualidade baseada no desejo masculino. Durante a elaboração de sua tese “História da Sexualidade”, Foucault (1985) leu diversos romances eróticos populares durante o século XIX e XX para compreender como os estímulos literários foram produzidos para a formação e valorização da cultura heterossexual. Para o autor, a ideia da virilidade masculina e da mulher quase sempre à espera (do homem) muito contribuíram para a construção social de uma performance erótica baseada na exploração do corpo da mulher.
Para compreender a opressão social em torno da sexualidade, discutiremos o dispositivo da sexualidade em Foucault (1985) e o conceito de heterossexualidade compulsória de Butler (2003). Foucault (1985) escreveu que este dispositivo determina o comportamento sexual das pessoas e essa determinação cultural de comportamento foi reforçada tanto pela religiosidade quanto pela lógica econômica das condutas de procriação. Na medida em que a sociedade precisa de herdeiros, são estimulados casamentos, a monogamia e a heterossexualidade. Isso ocorre porque a homossexualidade não gera, num contexto biológico e biopolítico, herança para o capital (FOUCAULT, 1985).
Assim, se produziu culturalmente uma visão erótica da verdade que estimulou a heterossexualidade primeiramente nos romances literários e posteriormente no teatro, cinema, radionovelas, telenovelas, séries, músicas etc. Essa perspectiva também produziu uma cultura altamente opressora na qual homens (em sua maioria heterossexuais) estão a todo o tempo querendo satisfazer suas necessidades sexuais e, desta forma, propaga-se o mito do instinto selvagem, de um comportamento sexual incapaz de ser contido, que nada mais é que uma justificativa para reforçar o privilégio masculino referente à liberdade no exercício da sexualidade (BEAUVOIR, 2014; FOUCAULT, 1985).
O privilégio masculino diante da erótica da verdade moldou uma cultura do sexo violenta - e não apenas simbolicamente violenta. A afirmação forçada da heterossexualidade é considerada por Butler (2003) uma das maiores formas de violência de gênero e sexualidade. A autora diz que a “heterossexualidade compulsória e o falocentrismo são compreendidos como regime de poder/discurso” (BUTLER, 2003, p. 10) e por isso estabelecem um regime de verdade sobre o exercício da sexualidade.
Este regime impôs e ainda estimula a formação de padrões a serem seguidos através da heterossexualidade compulsória. Nele, ser heterossexual é considerado um padrão de normalidade e não ser, um antipadrão, um erro, um "outro". Butler (2009, p. 323, tradução nossa) diz que “a ideia de 'precariedade' determina o que politicamente induz uma condição na qual uma determinada parcela da população sofre com a falta de redes de apoio social e econômica, sendo marginalmente exposta a danos, violência e morte”. No contexto da expressão e liberdade no exercício da sexualidade, a população LGBTQIA+1 e as mulheres, principalmente as mulheres negras, são as pessoas que mais se enquadram no conceito de vida precária, pois têm constantemente sua liberdade de ser e viver ameaçadas. Sendo assim, é importante que questões de gênero e sexualidade sejam estudadas em uma perspectiva interseccional, pois são muitas as categorias de análise que impactam as discussões sobre a opressão e violência experenciada por diversos sujeitos (CRENSHAW, 2002).
Na próxima seção será discutida a construção das identidades e lutas da população LGBTQIA+. Para atender ao grupo focalizado nessa pesquisa também destacaremos a importância de defender a visibilidade lésbica.
3 IDENTIDADE LGBTQIA+ E VISIBILIDADE LÉSBICA
A história do movimento LGBTQIA+ assim como outros movimentos identitários cresceu a partir da segunda metade do século XX durante o período histórico-sociológico conhecido como pós-modernidade, que teve início durante a Guerra Fria. Neste período, no ocidente, grandes mudanças sociais ocorreram com o objetivo de fragmentar pautas sociais e ampliar debates em oposição à cultura patriarcal, imperialista, racista, cisgênera e heteronormativa (BUTLER, 2003, HALL, 2003).
Eventos como a ascensão e queda das ditaduras militares na América Latina durante os anos de 1960, 1970 e 1980 (RAMIRÉZ, 2012); o fim da segregação racial nos Estados Unidos da América (EUA) e fortalecimento do movimento negro nas Américas (ROMANELLI, TOMIO, 2017); inserção e participação das mulheres na política (VIOLA, SCHNNEIDER, 2018), a rebelião de Stonewall e o desenvolvimento movimento LGBTQIA+ (SILVA, 2019) movimentaram a estrutura social configurando novas políticas civis, econômicas e identitárias. Entretanto, cabe ressaltar que apesar de ampliar o debate nos movimentos sociais, o capitalismo como sistema político econômico não caiu, pelo contrário, foi reestruturado adotando teorias neoliberais que por vezes se favoreceu das políticas identitárias para produção de bens e serviços assim como estabeleceu novas formas de estímulo ao consumo, direcionado a determinados públicos.
Hall (2003) explica que em meados do século XX o mundo atravessou um período de crise cultural, pois se acreditava que era preciso romper com teorias sociais vigentes que não contemplavam as novas características culturais que surgiam. Neste bojo, além dos estudos culturais britânicos, se formaram e/ou fortaleceram pautas identitárias em diversos países devido à facilidade de compartilhamento de saberes no novo mundo globalizado.
Esses novos saberes, aqui chamados de estudos culturais, impactaram na ascensão de movimentos sociais em oposição a velhos pensamentos hegemônicos que não valorizavam a multiplicidade cultural dos sujeitos. Hall (2003) lembra que a fragmentação do indivíduo moderno enfatizada no surgimento de novas identidades (tais como movimentos étnico-raciais, feministas, LGBTQIA+) modificou a cultura, sujeitando o sistema político e econômico a se adaptar às novas configurações no plano da história, política, representação e diferença.
Para atender a essa pesquisa focaremos na história e desenvolvimento do movimento LGBTQIA+ e na visibilização de determinadas pautas identitárias incluindo as vivências, dificuldades e subjetividade nas trajetórias de mulheres lésbicas.
O movimento LGBTQIA+ nem sempre foi reconhecido com essa sigla. Assim como a cultura e o fortalecimento de identidades culturais ela foi agregando novos sujeitos e ampliando as pautas para atender as necessidades de diferentes pessoas no que diz respeito à identidade de gênero e sexualidade. Sendo assim, o movimento que hoje conhecemos como LGBTQIA+ já foi chamado de movimento gay, movimento de “gays, lésbicas e simpatizantes” (GLS), movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e travestis), movimento LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) e movimento LGBTQIA+ que inclui lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queer, intersexuais, assexuais e mais identidades de gênero como pessoas não binárias e de sexualidade como pessoas pansexuais, demissexuais etc. As mudanças na sigla aconteceram a partir de conquistas políticas de determinados grupos que possibilitaram a ascensão de outros. Uniram-se, desta forma, as populações que integram a diversidade de gêneros e sexualidade historicamente marginalizados (ROMEIRO, 2019).
O movimento LGBTQIA+ emergiu no final da década de 1960 nos EUA, especialmente após a revolução de Stonewall na qual as pessoas pertencentes à população LGBTQIA+, no dia 28 de junho de 1969, lutaram contra a truculência policial no bar Stonewall in localizado na cidade de Nova York. Esse evento foi tão marcante para a população que até hoje o dia 28 de junho é reconhecido como o dia mundial de combate a LGBTQIA+fobia e é comemorado em 140 países em todo o mundo (VANIN; OLIVEIRA, 2019).
A partir desse evento, diversos grupos ativistas pelos direitos da população LGBTQIA+ foram criados e foram se espalhando em diversos países do mundo. No Brasil, o movimento LGBTQIA+ emergiu durante o período de ditadura militar no ano de 1978,
[...] quando foi criado em São Paulo o Grupo Somos de Afirmação Homossexual, a primeira organização de homossexuais a reivindicar um espaço de respeitabilidade pública para a homossexualidade. Reconhecendo que a luta por libertação homossexual deve se opor ao autoritarismo alienante que oprime pessoas LGBTQIA+, e reprime toda e qualquer manifestação sexual ou política que vá contra os padrões patriarcais machistas, sexistas e reacionários da nossa sociedade, o Grupo “Somos” fez ecoar em todo o país a palavra de ordem do movimento gay norte americano: “saia da gaveta”, “saia do armário” (SILVA, 2019, p. 13).
Apesar da criação e ascensão do movimento LGBTQIA+ no Brasil, é preciso destacar que esse movimento ainda não tem visibilidade em todo o território nacional. Existem imbricações dentro do próprio movimento como, por exemplo, problemas relacionados à classe e raça/etnia. Outro fator que dificulta a inserção do movimento LGBTQIA+ em determinadas regiões é a oscilação entre avanços e retrocessos políticos vivenciados pela sociedade brasileira nos últimos quatro anos. O movimento também não está presente em todo o território nacional, por ser o Brasil um país continental que preserva, em algumas regiões, valores de religiões judaico-cristãs conservadoras. (ROMEIRO, 2019).
É necessário destacar também que a identidade LGBTQIA+ ainda é sub-representada na política. Atualmente, apenas oito cadeiras nas câmaras2 de deputados e senadores são ocupadas por pessoas LGBTQIA+ (seis deputadas/os estaduais, um deputado federal e um senador). Nas cadeiras que representam os governos dos estados há uma única representante mulher, negra, lésbica e feminista: a governadora Fátima Bezerra3 do Partido dos Trabalhadores (PT) no estado do Rio grande do Norte.
Para que os direitos civis da população LGBTQIA+ sejam garantidos e ampliados é necessário que esse número aumente não só na política, mas também no acesso à educação, saúde, cargos públicos e inserção dessas pessoas no mercado de trabalho.
Reconhecemos que a visibilidade LGBTQIA+ é importante para a existência e resistência dessas pessoas. Entretanto, é preciso salientar que dentro desse movimento também existem embates que configuram a representação de poder-discurso dando mais visibilidades a determinados sujeitos em relação aos outros. Destacamos que os eixos interseccionais de subordinação também atuam no ativismo LGBTQIA+, privilegiando, assim como em outras estruturas, quem mais se aproxima esteticamente do perfil hegemônico masculino, branco e cisgênero. Nessa perspectiva, reconhecemos as existências de mulheres trans negras, como as mais vulneráveis haja vista que o racismo, o machismo e a heteronormatividade ainda não foram superados nas sociedades.
Como o foco deste trabalho é dar visibilidade à lesbiandade através da análise do catálogo da Lesboteca, focaremos na representação da letra L nas identidades de sexualidade representadas na sigla LGBTQIA+. Quando falamos em lesbiandade, nos referimos às mulheres cisgêneras e transgêneras que se relacionam afetivamente e/ou sexualmente com outras mulheres cisgêneras e/ou transgêneras. Romeiro (2019) destaca que
[...] o relacionamento entre mulheres não foi bem aceito pelas sociedades ocidentais. Desde que as sociedades e culturas passaram a privilegiar os homens e o capital, os relacionamentos entre mulheres foram classificados como inadequados. Isso ocorreu, pois essas relações subverteriam três “normas” do sistema patriarcal capitalista essenciais para a sua existência: a exaltação fálica, a heterossexualidade compulsória e a geração de herdeiros para o capital (ROMEIRO, 2019, p. 127)
Romeiro (2019) também destaca que a existência e segurança mulheres lésbicas está em constante ameaça, pois além dos fatores descritos na citação acima a coerção religiosa em torno da sexualidade ainda é um problema de difícil solução. É comum, nos dias de hoje, a prática de estupros corretivos com a finalidade de reverter a sexualidade lésbica em heterossexual, inclusive essa é uma prática realizada por representantes de diferentes doutrinas religiosas.
As pautas identitárias das mulheres lésbicas foram durante muito tempo negligenciadas tanto no movimento gay quanto no movimento feminista. No primeiro por vivenciarmos uma estrutura patriarcal que privilegia os homens (mesmo os homossexuais) e o segundo por focar durante muito tempo na garantia de direitos reprodutivos acabaram priorizando os discursos de pessoas heterossexuais, negligenciando assim tanto a identidade de sexualidade das mulheres lésbicas como as opressões vivenciadas por mulheres negras e mulheres trans (CRENSHAW, 2002, BUTLER, 2003, KRISTEVA, 2004). Essa desconexão do movimento gay e do feminismo com a lesbiandade só foi superada quando uma movimentação de ativistas lésbicas exigiu mais voz no movimento. Sendo assim, nos anos 1990 a sigla que se refere à diversidade de gênero e sexualidade passou a ter as lésbicas (L) como primeiras sujeitas representadas. Apesar dessa conquista, culturalmente a lesbiandade ainda é vista como algo pejorativo. Mesmo que a existência e o protagonismo lésbico tenham sido conquistados, a linguagem e a cultura midiática ainda representam e direcionam seus discursos à população caracterizando as lésbicas de forma pejorativa (BRANDÃO, 2010).
Brandão (2010) destaca que o uso de adjetivos como “caminhoneira”, “invertida”, “ativa ou passiva”, “mulher-macho”, “chupa-charque” “sapatão”, entre outros, contribuem para a perpetuação da opressão e sub-representatividade das vivências lésbicas. Além disso, o machismo presente no imaginário masculino em relação à performance identitária e prática sexual entre lésbicas também contribuem para que essas mulheres ainda não tenham respeito enquanto pessoa.
Rich (2010), uma das principais teóricas que discute a lesbiandade e a visibilidade lésbica destaca que a cultura ainda representa as lésbicas no cinema e na literatura com uma visão estereotipada ou voltada para o olhar heterossexual. A propagação insensata da ideia de que mulheres lésbicas desviantes da performance de feminilidade desejam ser homens revelam que tanto o patriarcado quanto o capitalismo e valores religiosos judaico-cristãos subsidiam a opressão contra lésbicas. Além disso, Rich (2010) também destaca que a indústria pornográfica muito contribuiu para essa opressão. A autora responsabiliza a indústria literária, cinematográfica e pornográfica pela produção de conteúdo com cenas de relacionamento e sexo entre mulheres voltadas esteticamente para o prazer dos homens.
Outro problema identificado pela autora está na representação de casais lésbicos com uma mulher “feminina” e outra “masculina”, criando assim o estereótipo da lésbica feminina passiva apontada como “lésbica falsa” e da mulher masculina ativa considerada a “lésbica verdadeira”, pois assim como homens gostariam de mulheres “femininas”. Essa distorção da identidade lésbica que inclui dinâmicas heterossexuais e heteronormativas nas performances de sexualidade precisa ser desconstruída. A lesbiandade é uma identidade de sexualidade que inclui diversas performances e estas não devem ser usadas como validação para determinar se uma mulher é ou não lésbica (RICH, 2010).
Acreditamos a mudança cultural ocorrerá efetivamente em respeito à diversidade de gênero e sexualidade somente quando os produtos culturais forem diversificados. Nessa perspectiva, é necessário que os produtores culturais, bem como pesquisadoras/es, escritoras/es, artistas plásticas/os, musicistas, profissionais da informação e cineastas produzam conteúdos nos quais a subjetividade das existências lésbicas e dos relacionamentos entre mulheres sejam retratados respeitosamente.
4 DO IMPRESSO AO ON-LINE: A IMPORTÂNCIA DOS CATÁLOGOS BIBLIOGRÁFICOS PARA OS USUÁRIOS
Uma das ferramentas mais importantes do fazer bibliotecário são os catálogos bibliográficos, considerados verdadeiros índices de uma coleção existente em uma biblioteca, eles têm como principal função recuperar a informação e da localização a uma fonte informação ou item, dentro do espaço da biblioteca, onde quer que ela esteja arquivada. Assumpção, Santos e Zafalon (2017) lembram que os catálogos bibliográficos são comprovações palpáveis dos procedimentos descritivos e temáticos da Catalogação oriundos concretizados nas bibliotecas.
Na visão Rosado e Dias (2020) o catálogo bibliográfico é um produto da catalogação, sendo também, uma fonte de informação e de comunicação entre o pesquisador e os documentos, que tem como principal função agrupar itens que tem relações e ponto de acesso em comum. Para Araújo (2011, p. 18) um catálogo bibliográfico tem como objetivo “[...] atender o consulente, para que este tenha saciada sua necessidade de informação, seja ela expressa ou latente” Em outras palavras, um catálogo bibliográfico tem como finalidade identificar, localizar, recuperar e dar acesso à informação, que responderá as demandas informacionais de um(a) usuário(a) ou grupos de usuários(as).
Mey (1995) afirma que o catálogo pode ser considerado como uma das ferramentas mais antigas na história para a descrição e organização da informação, estando ele presente em diversos momentos da história das bibliotecas. Sendo assim, percebemos que “[...] muitas das concepções que envolvem ideias e funções relacionadas aos catálogos de bibliotecas determinaram os desenvolvimentos e uso dos catálogos nos dias de hoje” (BASTOS, 2013, p. 34).
De acordo com Shera e Egan (1969) os catálogos bibliográficos, que começaram como simples inventários, sempre participaram da evolução das bibliotecas e estiveram presentes em seu contexto histórico. Já na visão de Figueiredo (1996) os catálogos têm uma existência secular. Entretanto, foi na década de 90 que se teve uma preocupação em avaliá-los como instrumentos de buscas bibliográficas. Araújo (2011) lembra que,
A preocupação apresentada pelos pesquisadores da Ciência da Informação e áreas correlatas é não apenas expor o acervo, mas auxiliar melhor o usuário na sua busca. No início da década de 90, um movimento em torno da consolidação de parâmetros ou medidas, que auxiliassem na melhoria da prestação de serviço fez com que os bibliotecários avaliassem seus catálogos nos seguintes aspectos:
a) quanto à preocupação por parte dos bibliotecários em avaliar os serviços e produtos da biblioteca;
b) quanto à necessidade de saber como o catálogo atua, quais as deficiências existentes e como se pode aumentar o uso do catálogo pelos usuários; e
c) quanto aos catálogos manuais (em fichas/impressos), que aos poucos estão sendo substituídos pelos catálogos em linha (ARAÚJO, 2011, p. 18).
No que se refere aos catálogos manuais, destacamos que eram utilizados na maioria das bibliotecas nos formatos livros e/ou de fichas. Sua função principal era atender a atividades de organização do acervo “[...] como os boletins de aquisição da biblioteca, o catálogo acumulado em forma de livro e o catálogo de folhas soltas.” (BASTOS, 2013, p. 40). Para Sousa e Fujita (2012) estes catálogos nasceram com intuito de fazer o armazenamento e registro de informações de documentos existentes em um acervo de uma biblioteca, porém com o aumento da produção de materiais impressos, o foco destes catálogos passou a ser a recuperação de informação. Bastos acrescenta que
[a] interação dos usuários com esses catálogos pode ser considerada pré- determinada pelo sistema, pois o usuário tem um contato direto com o catálogo, porém não exerce influência sobre ele. Esses catálogos manuais eram vistos apenas como um depósito de informação, ocupando uma estrutura física dentro da biblioteca. Em sua maioria, nem sempre eram mantidos atualizados e padronizados. Além disso, restringiam o usuário a realizar suas buscas apenas pelos pontos de acesso de autor e título. (BASTOS, 2013, p. 40-41).
Em relação à organização destes catálogos, ela vai depender de alguns fatores como: o código de catalogação, o sistema de classificação, lista de cabeçalhos de assuntos ou tesauros e as normas de alfabetação. Sua organização no formato impresso ocorre em um formato padrão pelas fichas de catalogação, que podem ser organizadas por uma variedade de pontos de acesso como o autor, o título, a forma física, o tempo, o lugar, o idioma, as características dos materiais e o assunto. (SHERA; EGAN, 1969).
Os catálogos também possuem uma tipologia variada e podem ser descritos em dois grupos: o primeiro é destinado para o uso público como os catálogos de autores, catálogo de títulos, catálogos de assuntos, catálogo dicionário, catálogo sistemático ou classificado, catálogo de coleções especiais, catálogo geográfico, entre outros. O segundo é proposto para uso de profissionais de uma biblioteca e são apresentados como catálogo topográfico, catálogo de registro entre outros. Sousa e Fujita (2012) afirmam que:
Em decorrência dos tipos de catálogos que a biblioteca comporta, as fichas catalográficas deverão ser confeccionadas de acordo com o elemento que serve de entrada principal do documento, com os respectivos pontos de acesso. A mesma deverá ser desdobrada quantas vezes forem necessárias, de acordo com cada entrada escolhida, sendo condizente com o tipo de catálogo que irá abarcá-la. Assim, serão formados registros ordenados dos documentos de um acervo, em detrimento a sua descrição física (representação descritiva ou bibliográfica) que também englobará os pontos de acesso necessário para a sua recuperação, que poderá ser por autor, título, assunto, entre outros (SOUSA; FUJITA, 2012, p. 63)
Para Moraes, Gasparinib e Araújo (2020) os catálogos manuais tiveram um papel fundamental para muitos processos de gestão de coleções e bibliotecas e esse “[...] papel fundamental não foi perdido com a evolução tecnológica ocorrida nos últimos anos, mas modificou-se e ganhou novos contornos, funções e possibilidades” (MORAES; GASPARINIB; ARAÚJO, 2020, p. 111).
Com o passar dos tempos os catálogos manuais foram automatizados, passando de sua forma manual para on-line. No formato on-line, os usuários tiveram a possibilidade de “[...] ampliar suas buscas através do número de chamada de classificação, descritores de assuntos adicionados às entradas do catálogo e abreviações de títulos de periódicos, por exemplo.” (BASTOS, 2013, p. 64). A literatura mais especializada chamou este tipo de catálogo de OPAC (Online Public Access Catalog), eles, em relação aos catálogos impressos, oferecem vantagens para o acesso de informação, como a aceleração no processo de busca e recuperação da informação, uma maior probabilidade de padronização das informações, entre outros fatores (ARAÚJO; OLIVEIRA, 2005).
Sousa e Fujita (2012) e Rubi (2008) lembram que a automatização dos catálogos das bibliotecas possibilitou muitas melhorias, tais como: a integração das funções bibliotecárias de consulta, empréstimo individual, empréstimo entre bibliotecas, processamento técnico, recuperação de informação, realização de pesquisas por autor, assunto e título de forma dinâmica e rápida.
Ademais, é preciso destacar que
[...] [n]os catálogos digitais atuais, de modo geral, qualquer dado presente em um registro bibliográfico pode ser utilizado para sua recuperação, por exemplo, a data de publicação ou o idioma do recurso informacional representado pelo registro. Ao longo da história da Catalogação, no entanto, restrições de ordem prática e tecnológica limitaram quais dados seriam utilizados para a recuperação dos registros bibliográficos nos catálogos. Assim, de modo geral, os dados escolhidos foram o título do recurso informacional, os nomes dos responsáveis por ele e os termos referentes aos conceitos tratados em seu conteúdo. (ASSUMPÇÃO; SANTOS; ZAFALON, 2017, p. 85).
Para usuários(as) de uma biblioteca que necessitam de informação e vão à busca de uma fonte que responda a sua precisão informacional, os catálogos, na sua forma on-line, são utilizados como um recurso que potencializou o acesso à informação, pois permitiu a consulta dos catálogos de outras instituições, a disponibilização do acesso à informação no ambiente web, o acesso público ao documento em sua forma digital ou impressa, envio de críticas e sugestões, entre outras possibilidades. Na concepção de Bastos (2013) os catálogos on-line possibilitaram aos usuários(as) também a se identificar ao entrar em um sistema e visualizar suas informações pessoais e consultar o material que a ele foi emprestado, a data de devolução, as multas, reservas e renovações.
Fujita (2009) considera que os catálogos tendem a atuar como bases de dados, dando acesso a textos completos. Entretanto, existem hoje catálogos on-line que apenas oferecem a descrição da obra não disponibilizando ela para o acesso aberto. Muitos destes catálogos estão relacionados com obras de grupos historicamente marginalizados como as mulheres, negros, indígenas, população LGBTQIA+, entre outros. A ideia desses catálogos é levar o conhecimento da existência de determinadas obras, possibilitar a sua visibilidade e despertar em seus usuários(as) o desejo do acesso à informação, seja fazendo aquisição em livrarias ou através do contato direto com uma unidade de informação.
4 LESBOTECA: UM CATÁLOGO PARA A PROMOÇÃO DA VISIBILIDADE LÉSBICA
Quando nos deparamos com algumas palavras desconhecidas do nosso vocabulário é natural fazer algumas associações e ir à busca do seu significado. Sendo assim, termos como mapoteca (coleção de mapas), videoteca (coleção de fitas de vídeo), discoteca (coleção de discos), hemeroteca (coleção de periódicos), entre outros, nos remetem geralmente a palavra biblioteca, que consiste em uma coleção de livros e outros documentos, organizados para serem conservados e utilizados. Nessa lógica, o que seria uma Lesboteca? Uma coleção de mulheres lésbicas? Uma biblioteca lésbica? Uma coleção de documentos lésbicos? Talvez seja tudo isso ou nada disso.
Criada no ano de 2019, a Lesboteca trata-se de um espaço de informação, reconhecido como “a biblioteca das lésbicas”, por possibilitar o conhecimento de algumas fontes de informação necessárias para promover a visibilidade deste grupo identitário marginalizado historicamente. É um site “[...] criado para servir como um catálogo e agrupar, em um único local, obras literárias de temática lésbica [...]” (LESBOTECA, 2020), com o intuito de “[...] poder ajudar as leitoras (e leitores) que procuram por representatividade e tropeçam nas dificuldades da invisibilização [...]” (LESBOTECA, 2020).
Ao ler o conteúdo da categoria “Sobre” e subcategoria “A Lesboteca” localizada na página inicial do site, reconhecemos que as pautas identitárias de mulheres lésbicas assim como o acesso a conteúdos científicos e literaturas para lazer, serviram como base para a criação do projeto. Com isso, reforçamos a relevância dos estudos culturais e científicos para o fortalecimento de identidades e promoção cultural de conteúdos que promovam a visibilidade lésbica (HALL, 2003, RICH, 2010).
A Lesboteca é o que chamamos de catálogo digital ou catálogo on-line de registro da literatura lésbica. O catálogo foi idealizado pela paulista Débora Mestre, bibliotecária e escritora que destaca a lesbiandade como o principal assunto de seus escritos. Trata-se de um site que está em constante construção e edição. Por isso, com o objetivo de aperfeiçoar o conteúdo e a organização do conhecimento para recuperação da informação, a bibliotecária propõe a interação com usuárias (os) do site. Nas palavras da idealizadora, “Se você não encontrou aqui a obra que procurava, ou leu algo que ainda não foi registrado aqui, mande-me um e-mail e conte-me sobre ela.” (LESBOTECA, 2020).
Para além do registro de informação o catálogo é também uma ferramenta de busca e recuperação da informação. Com a promoção da interação entre a bibliotecária e usuárias/os, os catálogos on-line podem indicar um caminho para que profissionais da informação identifiquem as necessidades informacionais de seu público, nesse caso, formado por mulheres lésbicas e por pessoas que têm interesse pela temática. A aproximação entre profissionais e usuárias(os) de informação é essencial para o desenvolvimento de acervos e organização de sistemas de organização do conhecimento, tais como os catálogos que atenda a um público específico.
Encontramos na página dessa biblioteca virtual cerca de 307 obras organizadas nas seguintes categorias: romances, contos, histórias em quadrinhos, crônicas, poesias, revistas, contos e crônicas, biografias, acadêmicos, infanto-juvenil e teses, dissertações e artigos com a temática lésbica ou de autoras lésbicas, como mostra o Gráfico 1 abaixo.

A categoria que tem mais obras catalogadas é a de romances, com 163 títulos, o número grande de registros de romances neste catálogo pode está relacionado com seu objetivo, que é disponibilizar obras de literatura escritas por autoras lésbicas ou sobre lesbiandade. A segunda maior quantidade de conteúdos está na categoria Contos e Crônicas com 46 resultados. Em seguida destaca-se a categoria Biografias com 31 resultados. Posteriormente, seguem respectivamente as categorias: Poesia com 26 conteúdos, Acadêmicos com 22, História em Quadrinho com oito, Infanto-Juvenil com cinco, Teses, Dissertações e Artigos com três, e Revista com três resultados.
Ao analisarmos a categorização do catálogo, nos intrigamos com a forma em que os materiais foram agrupados. Acreditamos que os sistemas de organização do conhecimento possuem diferentes naturezas e foram planejados para diferentes fins (MEY, 1995). Entretanto, compreendemos que como se trata de um sistema de organização do conhecimento hierárquico, como todo sistema de classificação, alguns assuntos poderiam ser organizados como subcategorias de outros. Assim, a categoria Acadêmicos contemplaria conteúdos como livros acadêmicos de diferentes áreas do conhecimento (categorizando os assuntos em classes e subclasses dentro das áreas do conhecimento), teses, dissertações e artigos, pois tratam de resultados de pesquisa ou ensaios teóricos acadêmicos. Assim como as obras literárias identificadas nas demais categorias deveriam ser organizadas hierarquicamente em classes e subclasses.
É preciso destacar que a Lesboteca não disponibiliza obras para acesso aberto. No site, encontramos indicação de conteúdos presentes em diferentes fontes para consulta, compra ou download dos materiais bibliográficos. Por isso, e por possuir características que buscam reunir, organizar e indicar o acesso a determinadas obras, tanto nós quanto a idealizadora do projeto chamamos a Lesboteca de catálogo bibliográfico e não biblioteca (FUJITA, 2009, ARAÚJO, 2011).
Quando analisamos as fichas catalográficas dos conteúdos, identificamos também a ordenação de categorias que têm como objetivo dar mais informações aos autores sobre determinada obra. Cada ficha possui as seguintes classes: data de catalogação do item no site, autoria, título do livro, título original da obra (quando houver), ano de publicação, país de publicação representando o local de origem, editora, publicado no Brasil através de determinada editora, conteúdo que é uma breve descrição do conteúdo ou sinopse da obra e por fim, uma imagem da obra - capa ou folha de rosto da publicação.
Outra proposta da Lesboteca é registrar o número total de acessos ao catálogo e as obras mais visualizadas em cada mês. Em nossa pesquisa realizada no mês de abril/2020 foram registrados mais de 30.000 acessos, sendo que, as obras mais consultadas foram: Tereza e Isabel: uma paixão (romance - 34 acessos), Memórias de armário (biografias -25 acessos), Terra molhada (romance - 19 acessos), Irmã outsider: ensaios e conferências (teses, dissertações e artigos - 15 acessos) e Viva Sapata (romance- 13 acessos). Tais obras possuem diferentes naturezas, haja vista que estão localizadas diferentes categorias. Com base nisso, identificamos que usuárias/os de informação do site buscam conteúdos para os mais diferentes fins, tanto para lazer quanto para estudo. Isso corrobora a necessidade de aumentar e diversificar o acervo, pois através produtos culturais diversos, se ampliarão as representações das mulheres lésbicas enquanto sujeito, assim como cada conteúdo pode incluir outras pautas identitárias além do movimento lésbico e movimento LGBTQIA+. A forma como cada texto é apresentado, afetará usuárias(os) de diferentes maneiras, pois cada sujeito é subjetivo e pode se identificar com as pautas identitárias que mais se reconhece ou que mais se aproxima da sua existência e/ou ativismo.
No site, há um ícone denominado “arquivo” no qual as obras podem ser consultadas de acordo com mês/ano em que foram catalogadas e outro ícone denominado “artigos recentes”, que mostra as obras mais recentes registradas no site, promovendo assim, a visibilização de novos conteúdos. Tudo o que descrevemos e analisamos em relação à Lesboteca nos mostra que, o site tem uma arquitetura das informações atrativa, o que permite facilidade no acesso aos conteúdos do catálogo. Além disso, este catálogo cumpre sua função principal, que é promover a visibilidade lésbica por meio do conhecimento de obras e autoras que pertencentes a este grupo identitário. Entretanto, reconhecemos que o catálogo ainda está em construção e, portanto, a quantidade de conteúdos disponibilizados é pequena, porém tende a crescer. Por ter apenas uma bibliotecária responsável pela alimentação do site, e possivelmente a atividade de manutenção do catálogo não ser a única ocupação da criadora, pode ser que a frequência de inserção de conteúdos bem como as análises e interações com usuárias(os) aconteçam com uma periodicidade mais espaçada.
Além da Lesboteca, existem outros catálogos com o objetivo de destacar a visibilidade lésbica, tais como: “Lésbicas que pesquisam”4 (com o propósito de visibilizar pesquisadoras lésbicas de diferentes temáticas e áreas do conhecimento) e o “Lesbian Herstory Archives”5, (um catálogo que inclui mais de 11.000 conteúdos bibliográficos sobre lesbiandade e movimento LGBTQIA+). A partir da criação e popularização de sistemas de organização do conhecimento especializados em conteúdos que visam a o fortalecimento de pautas identitárias, acreditamos que as mulheres lésbicas serão representadas na arte, na música, nas teorias, nas pesquisas científicas e no protagonismo enquanto produtoras de conhecimento, escritoras, artistas e cientistas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em uma sociedade onde é evidenciada a desigualdade de gênero e sexualidade, foi destacado neste estudo um grupo identitário que compõe a população LGBTQIA+. Este grupo é formado por mulheres cisgêneras e/ou transgêneras, nomeadas como lésbicas, que tem relacionamentos afetivos e/ou sexual entre si e vem sendo silenciadas e invisibilizadas em diversos espaços.
Numa perspectiva contrária a invisibilidade e o silenciamento do grupo lésbico, esta pesquisa buscou entender como os catálogos bibliográficos podem ser importantes ferramentas para promoção da visibilidade deste grupo historicamente marginalizado. Assim, foi apresentado a Lesboteca, catálogo on-line que registra informações sobre a produção literária da temática lésbica, entre outras fontes de informação, que visa promover a maior representatividade de obras e autoras que fazem parte desta população.
Apesar do pouco tempo de existência e da pequena quantidade de conteúdos catalogados, a plataforma registra mais de 30.000 acessos e tem se tornado um instrumento efetivo na organização do conhecimento através da busca e recuperação de informação, onde há, além do serviço prestado, a interação com usuárias e usuários. Deste modo, consideramos que investigações como esta são essenciais para o entendimento de outros espaços de informação, que contribuem para visibilidade e representatividade de grupos historicamente oprimidos, como é caso das mulheres lésbicas.
AGRADECIMENTOS
Ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCI/UFMG); ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal da Bahia (PPGCI/UFBA); e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
REFERÊNCIAS
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ASSUMPÇÃO, F. S.; SANTOS, P. L. V. A. C.; ZAFALON, Z. R. O controle de autoridade no domínio bibliográfico: os catálogos em livros e em fichas. Biblios [online], n.67, p.84-98, abr./jun., 2017.
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Notas
Autor notes
Coleta de dados: N. L. Romeiro, B. A. Santos.
Análise de dados: N. L. Romeiro, B. A. Santos.
Discussão dos resultados: N. L. Romeiro, B. A. Santos.
Revisão e aprovação: N. L. Romeiro, B. A. Santos.
ntromeiro91@gmail.com brunosorrisog3@hotmail.com
Declaração de interesses