Ensaio
Recepção: 10 Fevereiro 2023
Aprovação: 26 Março 2023
Publicado: 05 Maio 2023
DOI: https://doi.org/10.5007/1518-2924.2023.e92861
RESUMO
Objetivo: (Re)situar a Biblioteconomia e as bibliotecas para além das fronteiras desencantadas do Ocidente e das suas “unidades de conteúdo”, a partir de duas proposições de origem indígena:i) o conhecimento vivo do mundo é o plano epistêmico de orientação da Biblioteconomia indígena (Indigenous Librarianship) e, ii) a terra é a biblioteca dos povos indígenas.
Método: o equívoco controlado é o método do texto. Ele está articulado com a agenda metodológica indígena de pesquisa e os pressupostos do perspectivismo ameríndio e do multinaturalismo indígena, elos configuradores do cogito canibal e da autodeterminação dos povos originários.
Resultado: A gramática transformacional dos povos indígenas, encantada pela terra, desconcerta e altera os planos de configuração da teoria clássica da Biblioteconomia e do imaginário objetivista e desencantado dos saberes ocidentais. O conhecimento vivo e ancestral da terra, corpos e línguas se apresenta como um feixe contemporâneo capaz de reencantar o mundo biblioteconômico através de um resgate historiográfico de longa duração das práticas “bibliotecárias” dos povos indígenas.
Conclusões: A vida é o néctar do pensamento indígena. Instalar-se no espaço do equívoco entre os nativos e nós, e encaracolar-se, é a tarefa tradutora e conclusiva deste texto. Traduzir não para silenciar o outro ao presumir uma univocidade originária e uma redundância última entre o que ele e nós estamos dizendo, mas, ao avesso, trata-se de fazer morada no pensamento indígena biblioteconômico para que ele enquanto língua originária deforme, descolonize, subverta e transforme os destinos e as geografias conceituais da nossa língua bibliotecária, documentária, informacional e além.
PALAVRAS-CHAVE: Biblioteconomia Indígena, Pensamento indígena, Conhecimento vivo, Encantamento do mundo, Organização do Conhecimento Indígena.
ABSTRACT
Objective: (Re)situating Librarianship and Libraries beyond the disenchanted borders of the West and its “content units”, based on two propositions of indigenous origin:i) the living knowledge of the world is the epistemic plan of orientation of indigenous Librarianship and, ii) the land is the library of indigenous peoples.
Methods: controlled equivocation is the method of the text. It is articulated with the indigenous methodological research agenda and the assumptions of Amerindian perspectivism and indigenous multinaturalism, configuring links of the cannibal cogito and the self-determination of indigenous peoples.
Results: The transformational grammar of indigenous peoples, enchanted by the land, disconcerts and alters the configuration plans of the classical theory of Librarianship and the objectivist and disenchanted imaginary of Western knowledge. The living and ancestral knowledge of the land, bodies and languages presents itself as a contemporary bundle capable of re-enchanting the librarianship world through a long-term historiographic rescue of the “library” practices of indigenous peoples.
Conclusions: Life is the nectar of indigenous thought. Installing itself in the space of ambiguity between the natives and us, and curling up, is the translating and concluding task of this text. Translating does not aim to silence the other by presuming an original univocity and an ultimate redundancy between what he and we are saying, but, on the contrary, it is a matter of making a home in library indigenous thought so that it, as an original language, deforms, decolonizes, subverts and transform the destinations and conceptual geographies of our library, documentary, informational language and beyond.
KEYWORDS: Indigenous Librarianship, Indigenous thought, Living knowledge, Enchantment of the world, Indigenous Knowledge Organization.
1 INTRODUÇÃO: BIBLIOTECONOMIA INDÍGENA, UMA GRAMÁTICA TRANSFORMACIONAL ENCANTADA PELA FALA DA TERRA
Em 2012, organizei um encontro internacional sobre Conhecimentos Indígenas como parte de minha função como Presidenta da Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA). [...] Lá ouvimos de um jovem membro da comunidade Nuxalk que a terra é sua biblioteca. Ingrid Parent, Knowledge Systems for All (2015, p. 704-705, tradução e grifo nosso).
A fala do bibliotecário indígena, membro da comunidade Nuxalk das primeiras nações da Colúmbia Britânica do Canadá, assinala para uma transformação do conceito ocidental, institucional e humanista de biblioteca, mas não apenas, visto que esta transformação impacta na ordem dos saberes biblioteconômicos nutridos pelo ponto de vista indígena em seu modo terrano1 - não-ocidental e não-humanístico - de perspectivar o mundo. Para o pensamento ocidental de tradição greco-latina, o conceito é um modo de controlar as significações primitivas das palavras em sua ordem natural. A biblioteca como terra é um deslimite do conceito, um modo indígena de transver conceitualmente o modelo ocidental de atribuição de sentido às coisas do mundo. Fora do humanismo colonial do Ocidente, o bibliotecário Nuxalk anuncia uma perspectiva informe e terrana de biblioteca, alheia aos paradigmas tradicionais (fisicalistas e sistêmicos), alternativos (cognitivistas e individualistas) e, parcialmente distinto, dos paradigmas sociais dos estudos informacionais do Ocidente, que projetam no outro, o modelo da relação social de si mesmo. A fala do bibliotecário Nuxalk apresenta de modo conciso e monádico, o campo da Biblioteconomia Indígena como uma gramática transformacional encantada pela fala da terra. Transformacional (alterante), encantada (viva) e terrana (coexistente), a Biblioteconomia Indígena é regida pela imanência da vida. Parafraseando uma das teses do antropólogo Tim Ingold (2015) a respeito do pensamento indígena, a Biblioteconomia Indígena é um território de saberes cujos objetos de pesquisa têm “gente dentro”.
O conceito de transformação é central nos mundos ameríndios. Nas “mitológicas”, tetralogia escrita por Lévi-Strauss (2004, 2005, 2006, 2011) acerca do pensamento ameríndio, a transformação salta como elemento seminal da ordem simbólica nativa. Diferente de uma ação imperiosa e transcendental que “dá a forma a algo” no mundo material, como nas ontologias informacionais do Ocidente (CAPURRO, 1992; CORNELIUS, 2004; MENEZES, 2021a), os modos como os povos ameríndios informam e dão sentido aos seus diferentes mundos passam pela condição informe (MENEZES, 2021a) e transformativa de toda forma ontológica, epistemológica e expressiva (VIVEIROS DE CASTRO, 2018a). Nos mundos ameríndios, todo existente é vivo e se define exaustivamente como variação de um outro. Terra, corpo e língua estão sempre em transformação, pois partem do “princípio de que o objeto de toda transformação é sempre uma outra transformação, e não alguma substância sociocultural preexistente.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 162) A transformação indígena não é nem espacialmente hierárquica, nem temporalmente finalizada, ela é o nome do jogo (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 159), a insígnia antropofágica do ser e do mundo, sempre e a cada vez outro, como no mote cunhado pelos europeus ao chegarem em Canibalia2, o lugar onde as almas são inconstantes como os corpos: “il selvaggio è mobile” (VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p. 185). Em Canibalia, a terra é uma paisagem tecida pelos olhares perspectivos. Terra, corpo e língua fabricam o idioma simbólico ameríndio a partir da condição amplificada de suas humanidades (VIVEIROS DE CASTRO, 2018a, 2017).
Perante as metafísicas relacionais e transformativas dos povos indígenas, a mecânica sistemática de estruturação e ordenação do mundo ocidental, a partir da divisão lógica entre um polo de variação e um polo de estagnação designados ontologicamente pela classificação entre ser e ente, epistemologicamente pela diferença entre sujeito e objeto, e socialmente pelas distâncias entre cultura (civilização) e natureza (barbárie), entra em colapso, visto que “a ‘coisa’ é sempre uma variação” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 162) e a identidade não é mais do que uma das possibilidades da diferença. Nesses mundos não-coloniais, não há diferença ontológica - todo ente é vivo e possui uma agência perspectiva, logo é um ser. Reforçando o argumento de Marilyn Strathern (2014), nos mundos indígenas, todo objeto de interpretação é entendido como outra pessoa, isto é, o próprio ato da interpretação pressupõe a condição de pessoa do que está sendo interpretado, portanto, todo objeto é também sujeito. Os atributos da alma (antiguidade), do espírito (modernidade) e do trabalho intelectual (contemporaneidade), propriedades por excelência da cultura civilizada dos campos da Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação (CAPURRO, 1992; EGAN; SHERA, 1952; OTLET, 2018; SHERA, 1970), para as sociedades indígenas não são elementos de distinção entre o humano (cultura) e o animal (natureza), pois, a humanidade é disseminada entre todos os existentes terranos e não uma condição exclusiva e especista do homo sapiens. Tudo é cultural, já que humano, ao seu modo. Nas variações do corpo selvagem, o diverso é a natureza. Sob essa geografia conceitual ameríndia, Eduardo Viveiros de Castro (1996) e Tânia Stolze Lima (1996) propuseram que ao invés de falarmos em multiculturalismo entre os povos indígenas, especialmente os da América, deveríamos falar em um multinaturalismo - eis a “grande transformação” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 168) capaz de descolonizar o pensamento ocidental. Indigenização da modernidade é como se convencionou chamar estas transformações ameríndias. Desde um ponto de vista da teoria crítica, não se trata de “emancipar o nativo”, mas de nos emanciparmos da nossa própria história através da “vacina antropofágica” do nativo: “o nativo nos emancipará de nós mesmos.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 163)
A transformação provocada pela Biblioteconomia Indígena é encantada pela desobediência, transgressão, invenção e reconexão com a fala da terra. O encantamento é um princípio de integração e coexistência entre as alteridades da vida (SIMAS; RUFINO, 2020, p. 5). Diferente do paradigma acumulativo da Biblioteca de Alexandria que fundou a gramática da civilização ocidental a partir das colonizações alexandrinas (BARATIN, 2000), no mundo ameríndio, a acumulação dos saberes encontra-se disseminada na escuta dos diferentes modos de existência da terra, em corpo e língua.
Comentando o esquema de classificação indígena do bibliotecário Tionerahtoken (Mohawk) Brian Deer, Alissa Cherry e Keshav Mukunda (2015, p. 550, tradução nossa) afirmam que para as sociedades indígenas, os seus conhecimentos e estruturas tradicionais de pensamento não podem ser separados da terra: “a terra é a biblioteca de nossa língua, cultura, história, modo de vida e crenças”. Segundo Cherry e Mukunda (2015), a União dos Chefes Indígenas da Colúmbia Britânica - Union of British Columbia Indian Chiefs (UBCIC) -, região do “jovem bibliotecário Nuxalk da epígrafe da primeira seção”, entende a terra como a cultura dos povos indígenas. Brian Deer, desenvolvedor do esquema de classificação indígena Brian Deer Classification System (BDC), na abertura do seu plano de classificação argumenta que o BDC foi desenvolvido em 1974 para o National Indian Brotherhood (atual Assembleia das Primeiras Nações - Assembly of First Nations), com o intuito de organizar o material informacional indígena e apoiar a pesquisa sobre os direitos à terra dos povos originários. Diferente da “lógica do assunto” fundada pelo ponto de vista aristotélico da classificação, Deer elege a disposição etno-cartográfica dos territórios indígenas no mapa como a condição de organização lógica e física dos conhecimentos indígenas. As estantes do National Indian Brotherhood foram ordenadas como um retrato cartográfico das terras indígenas norte-americanas, sendo a lógica territorial, e não a temática, o critério de vizinhança - princípio de colocação - entre os diferentes materiais indígenas.
Deborah Lee (2011), uma das principais pesquisadoras da Organização do Conhecimento Indígena (OCI) - Indigenous Knowledge Organization (IKO) - em seu texto seminal Indigenous Knowledge Organization: a Study of Concepts, Terminology, Structure and (Mostly) Indigenous Voices, a partir das vozes indígenas entrevistadas, assinala dois pontos cruciais ao pensamento indígena nos campos da Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação: o primeiro, feito um conselho, diz, “comece a partir da terra, ou seja, de uma matriz geográfica” (LEE, 2011, p. 17, tradução nossa) e, o segundo afirma que as questões ontológicas, epistêmicas e sociais dos povos indígenas estão “enraizadas na terra” (LEE, 2011, p. 17, tradução nossa). Na vivacidade da terra é onde se encontra o néctar do pensamento indígena: “pensar se faz antes na relação entre o território e a terra” (DELEUZE; GUATTARI 1992, p. 103). Entre os indígenas, a leitura da terra em sua palavramundo “se antecipa e se alonga na inteligência do mundo”, como nos ensina Paulo Freire (1989, p. 9). A terra é a gramática dos mundos indígenas e a biblioteca que fundamenta os atos biblioteconômicos dessa pesquisa-texto.
2 BIBLIOTECONOMIA INDÍGENA: ANCESTRAIS CONTEMPORÂNEOS
Com flores, Doador da Vida, \ com cantos dás cor, \ com cantos sombreias \ aos que hão de viver na terra. \ Depois porás fim a águias e jaguares. \ Só em teu livro de pinturas vivemos \ aqui sobre a terra. \ Com tinta negra apagarás \ o que foi a irmandade, \ a comunidade, a nobreza. \ Tu sombreia aos que hão de viver na terra. \ Só em teu livro de pintura vivemos, \ aqui sobre a terra. Miguel León-Portilla citando um bibliotecário-escriba forjador de cantos nahuatl em “Códices: os antigos livros do Novo Mundo” (2012a, p. 87).
A Biblioteconomia Indígena é ancestral, ou seja, é fruto de um saber bibliotecário passado, que não cessa de passar e acontecer nas tramas do presente e das presenças. Este saber está fundamentado sob as bases do conhecimento vivo (living knowledge) (GOSART, 2021). As relações ancestrais entre os fios vitais das diferentes existências tecem as redes que estruturam o conhecimento indígena. No campo da Library and Information Science, por exemplo, o pensamento indígena Maori concebe o processo de construção e organização do conhecimento como um trabalho ancestral e conjunto (kotahitanga) de fortalecer as conexões (whakawhanaungatanga) e as relações (kotahitanga) entre as múltiplas presenças portadoras de distintos saberes, fabricando desta maneira “cestas de conhecimento” (kete mātauranga) que estruturam o ponto de vista relacional dos saberes indígenas. Dizem os Maori: com a estrutura certa, tecemos uma cesta forte (ki te tika te hanga, ka pakari te kete) (BARDENHEIER; WILKINSON; DALE, 2015; LILLEY, 2015). Sob este sentido ancestral e contemporâneo, a Biblioteconomia Indígena semeou, semeia e semeará a vivacidade das palavras, ou, como nas palavras floridas dos astecas: “Renuente a desaparecer después de haber entregado su significado, la palabra buscaba vivir eternamente en su forma. El decir no moría en lo dicho, ni el sentir, en lo comprendido.” (JOHANSSON, 2004, p. 72)
Antes da invasão da Terra Viva (Abya Yala) pelos europeus, já havia aqui, por exemplo, entre os povos Nahuas (ancestrais dos astecas), livros (amoxtli), bibliotecas (amoxcalli) e bibliotecários (amoxcalmatini) disseminando um saber multidimensional, contido nas “palavras antigas” (huehuehtlahtolli) ensinadas pela retórica indígena nas escolas (calmecac) (BERISTÁIN; RAMIREZ VIDAL, 2004; BROTHERSTON, 1997; LEÓN-PORTILLA, 2012a; JOHANSSON, 1993). Este lugar encantado por uma Biblioteconomia terrana era denominado de Amoxtlalpan, Terra dos Livros, e os seus operadores eram chamados de tlahcuilo. O tlahcuilo3 (pintor escriba) fazia-se tlamatini (sábio) a partir das tintas negras e vermelhas (tlilli, tlapalli) dos livros (amoxtli)4: “Él mismo es escritura y sabiduría.” (LEÓN-PORTILLA, 2012b, p. 148) Os sábios bibliotecários (amoxcalmatini) de Abya Yala, a terra dos livros vivos, atuavam como tlayoltehuiani, um “endiosador de las cosas” (LEÓN-PORTILLA, 2012b, p. 147). Endeusar as coisas é atribuir a elas agência e alma através da ancestralidade das pinturas-escritas. Portador de um “corazón endiosado”, o tlahcuilo dialoga com “o coração das coisas” e desperta, através das tintas negras e vermelhas, a alma que habita neste livro comum de pinturas que é a terra para os Nahuas. O bibliotecário terrano “en sí mismo es como un libro de pinturas.” (LEÓN-PORTILLA, 2012b, p. 148).
Perante a dizimação epistemicida praticada pelos colonizadores e materializada, em um dos seus múltiplos modos, através da queima dos livros indígenas5, apenas alguns desses exemplares resistiram: Xiuhámatl: Livros dos anos, Tonalámatl: Livros dos dias e dos destinos, Temicámatl: Livros dos sonhos, Cuicámatl: Livros dos cantos ancestrais, Tlacamecayoámatl: Livros genealógicos, Tlalámatl: Livros de terras, Huehuehtlahtolli: Livros das antigas palavras, Teoamatl: Livros dos deuses, Titici: Livros médicos, Amoxmachiotl: Livros sobre livros (bibliografias), dentre outros, que possuem uma característica expressiva mista - elementos indígenas e coloniais (europeus) - posterior aos primeiros anos de colonização.
Para os indígenas da Terra Viva, o apocalipse foi endógeno, o mundo começou a ruir a partir do mau encontro com os europeus, e desde lá os saberes ancestrais dos povos originários sustentam a queda do céu. David Kopenawa e Bruce Albert (2015) em “A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami” mostram como os povos da mercadoria estão compromissados com o fim do mundo. Recorrendo à ideia Yanomami da queda do céu, Ailton Krenak (2019, p. 27) argumenta que, desde um ponto de vista indígena, “sempre poder contar mais uma história” é um ato de suspensão e resistência do mundo ancestral e vindouro, em detrimento dos desencantamentos dos negadores da vida. Diferente dos povos da mercadoria, para os povos de Pachamama: “la palabra no se vende (ahmo tlacohualli in tlahtolli)”, como já afirmava uma nobre mulher náhuatl, antes da invasão dos espanhóis (LEÓN-PORTILLA, 2004, p. 39). Sustentar a queda do céu com estórias faz parte da ética ancestral indígena. Conectar as estórias da terra narradas pelas diferentes formas de vida é a tarefa ancestral e xamânica dos indígenas, que pode ser condensada na conduta expressa por um xamã rezador (romeya) do povo Marubo do Vale do Javari, na floresta amazônica: chinã ãtinãnãi, isto é, “ligar pensamento” é o saber dos anciões da terra (CESARINO, 2012, p. 78).
A Biblioteconomia Indígena contemporânea traz consigo esta ideia ancestral de comunidade e permanência em seus modos epistêmicos. Ao lado da Biblioteconomia Negra (Black Librarianship), a Biblioteconomia Indígena (Indigenous Librarianship) (re)nasce através do marco dos direitos civis em sua luta anticolonial contra segmentação racial e os discursos supremacistas (white dominant narratives) (LEUNG; LÓPEZ-MCKNIGHT, 2021; WIEGAND; WIEGAND, 2018), além do combate aos apagamentos culturais presentes nos Processos e Sistemas de Organização do Conhecimento que classificam o conhecimento indígena de modo inadequado (discriminatório), homogêneo (a partir dos contextos ocidentais) e como relíquias de um passado selvagem, remoto e superado - não mais existente (GOSART, 2021).
Do ponto de vista da epistemologia histórica da Biblioteconomia Indígena, este território surge a partir dos questionamentos feitos pelo professor e bibliotecário de origem indígena Thomas Yen-Ran Yeh (1971) ao chefe da catalogação da Library of Congress, Eugene Frosio (1971). A crítica de Yeh dirigida a Frosio questionava a representação social e a condição de subalternidade dos indígenas americanos nos Cabeçalhos de Assuntos da Biblioteca do Congresso - Library of Congress Subject Headings (LCSH)6. A partir deste debate originário, a Biblioteconomia Indígena e a Organização do Conhecimento Indígena (OCI) surgiram de modo conjugado no início da década de 1970 e constituíram-se, a primeira, como um domínio de conhecimento e, a segunda, como uma metodologia analítica deste domínio. Ambas herdam a agenda das pesquisas indígenas nos campos das ciências humanas e sociais, reunidas pela pesquisadora Maori, Linda Tuhiwai Smith (2018, p. 166-187) e sistematizadas em 25 ações metodológicas: reivindicar, testemunhar, contar histórias, celebrar a sobrevivência, relembrar, indigenizar, intervir, revitalizar, conectar, ler, escrever, representar, debater gênero, imaginar o futuro, reestruturar, restaurar, devolver, democratizar, rede de contatos, nomear, proteger, criar, negociar, descobrir e compartilhar.
De maneira sintética e expositiva, Smith (2012, p. 121) resume as 25 ações metodológicas em uma agenda de pesquisa indígena estruturada em 4 categorias fundamentais (Saúde7, Descolonização8, Transformação9 e Mobilização10) e 3 camadas relacionais sobrepostas (Sobrevivência, Recuperação e Desenvolvimento), sendo as categorias e as camadas, vetorizadas pela dimensão nuclear da autodeterminação dos povos indígenas.
Por meio desta multifacetada agenda de pesquisa indígena é possível traçar uma cartografia informacional da Biblioteconomia Indígena nas veias abertas dos mundos nativos, por exemplo, com as iniciativas regionais da IFLA - IFLA Cultural Heritage Resources, IFLA Indigenous Matters Section e Indigenous Notions of Ownership and Libraries, Archives and Museums, International Indigenous Librarian’s Forum (IILF) -, da American Indian Library Association (AILA) - Rural, Native, and Tribal Libraries of All Kinds Committee -, dos protocolos de pesquisa com materiais indígenas - Protocols for Native American Archival Materials11, Traditional Knowledge Labels e Protocols for the Treatment of Indigenous Materials (American Philosophical Society) -, das Redes de Biblioteconomia Indígena - Digital Public Library of America (DPLA), iNative Research Group12, Library & Information Needs of Native Peoples -, além das plataformas dos grupos indígenas focados na Biblioteconomia, na Documentação e na Ciência da Informação Indígena - Association of Tribal Archives, Libraries, and Museums (ATALM), The Digital Atlas of Native American Intellectual Traditions (DANAIT), Mukurtu13, First Nations Interest Group, dentre outras. Uma cartografia informacional nativa também aponta para os processos e sistemas do campo da Organização do Conhecimento Indígena (OCI) a partir de iniciativas informacionais perspectivadas pelo pensamento indígena americano e mundial como o Subject Access and Classification Committee Wiki da AILA, o Library of Congress Subject Headings Related to Indigenous Peoples, o The Mashantucket Pequot Thesaurus of American Indian Terminology Project, o Maori Subject Headings Thesaurus (Nga Upoko Tukutuku), o Thesaurus of Australian Institute for Aboriginal and Torres Strait Islander Studies (AIATSIS), o First Nations Subject Headings, o Project Naming da Library and Archives Canada (LAC), a Indigenous Ontology das First Nations, Métis, and Inuit do Canadá e o X̱wi7x̱wa Library Classification System, que é uma adaptação do Brian Deer Classification System (BDCS).
Todas essas experiências indígenas contemporâneas revigoram os saberes ancestrais da Biblioteconomia, mas também da Documentação e da Ciência da Informação, que indigenizadas compartilham do horizonte cosmopolítico e acional da terra como fabricadora de um conhecimento vivo. Descolonizando o pensamento da teoria clássica da BDCI que abordava os objetos de pesquisa dos campos como representações de processos mentais e/ou linguísticos capturados como “unidades de conteúdo”, Gosart (2021) argumenta que as perspectivas indígenas são uma guinada nos saberes da BDCI, pois provocam uma transformação radical na concepção de conhecimento, reencantando-a ao nutri-la de vida.
3 VIDA: O NÉCTAR DO PENSAMENTO BIBLIOTECONÔMICO INDÍGENA
Assim está lançada a tarefa do encantamento: afirmar a vida neste e nos outros mundos - múltiplos feito as folhas - como pássaros capazes de bailar acima das fogueiras, com a coragem para desafiar o incêndio e o cuidado para não queimar as asas. Chamuscados, feridos, mas plenos e intensos, cantando por saber que a vida é voo. Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, “Encantamento” (2020, p. 15-16).
Vari mai nãko / Nãko osõatõsho / Wení katsiinã | Néctar da terra-sol / Dentro do néctar / Surgimento começa. Pedro Cesarino, “Cânticos Marubo da Formação do Céu e da Terra” (2018, p. 54-55)
Elemento expressivo do pensamento indígena, em específico o ameríndio, o néctar é a fonte de onde o “surgimento começa”. Os Marubo dizem que o néctar é o chinã da terra, ou seja, a vida/pensamento que faz a terra falar (mai vanainai) (CESARINO, 2013, p. 55-68). No princípio do mundo, quando a “‘terra era nova’ (mai vená), tudo falava” (CESARINO, 2013, p. 58). Os desencontros e as más decisões trouxeram o desencantamento - “minha vida enfraqueceu” (ea china natsoai) - e então a terra deixou de falar (vana enemativo). Reencontrar o néctar para reencantar de vida o mundo é uma tarefa ética ancestral dos povos indígenas, sob diferentes faces e nomes.
Os mundos ameríndios trazem elementos para uma crítica decolonial da Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação, a partir da diferença do princípio da relação social baseado no outro. A diferença é um princípio de relacionalidade. Sob esta perspectiva que se insere a dimensão vitalista da “lei do antropófago” segundo Oswald de Andrade (2011, p. 67) - “só me interessa o que não é meu”, ou seja, só me interessa o outro. Não há objetivação ou desencanto que limite a relação à uma identidade objetiva ou subjetiva. O que há é uma constante variação destinada à aglutinação do outro como um princípio agentivo de aprendizado e diferenciação cultural da humanidade. Ao invés da identidade fraternal e especista, a relação social ameríndia é marcada pela dimensão diferencial com um outro qualquer com quem se deseja estabelecer uma relação genérica. O outro é “o termo que cria a relação onde nenhuma existia. É a forma pela qual o desconhecido é tornado conhecido”, ou, em outras palavras, através do caminho ou do método da equivocação controlada do perspectivismo: “a relação ameríndia é uma diferença de perspectiva. Enquanto tendemos a conceber a ação de se relacionar como um descartar de diferenças em favor de semelhanças, o pensamento indígena vê o processo por outro ângulo: o oposto da diferença não é a identidade mas a indiferença.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2018b, p. 261) Diferenciar-se é marcar o seu ponto de vista perante toda a humanidade de humanos, animais, plantas, minerais, mortos e espíritos. Neste território localiza-se o encantamento da fala do bibliotecário Nuxalk - a terra é a nossa biblioteca - e o voo da Biblioteconomia terrana dos indígenas como uma transformação, não dos nomes, mas na natureza das coisas - uma epistemologia constante com ontologias variáveis, as mesmas representações para outros objetos, um mesmo significado para múltiplos referentes. A biblioteca como terra é uma diferença indígena metódica e furtiva na ordem dos significados biblioteconômicos.
O perspectivismo projeta uma imagem da tradução como um processo de equivocação controlada - ‘controlada’ no sentido que caminhar pode ser descrito como um jeito controlado de cair. O perspectivismo indígena é uma teoria da equivocação, ou seja, da alteridade referencial entre conceitos homonímicos. A equivocação aparece aqui como o modo de comunicação por excelência entre posições perspectivas diferentes. (VIVEIROS DE CASTRO, 2018b, p. 251)
Portanto, como contraponto à percepção desencantada do mundo dos ocidentais, a crítica ameríndia está marcada pela insígnia decolonial do encantamento da vida. Desde um ponto de vista dos campos da BDCI, o pensamento indígena ameríndio socialmente anima os nossos artefatos culturais. Em oposição ao desencantamento objetivo do mundo que engloba os campos modernos da BDCI, a vida é a rebeldia indígena que descoloniza, desobstrui e vitaliza outras relações possíveis para os “objetos” dos nossos campos, através da vivacidade do conhecimento presente nas plantas, animais, pedras, árvores, montanhas, rios, lagos e em uma série de outras entidades vivas14.
Neste sentido, Ailton Krenak (2019, p. 17) argumenta que “tudo é natureza”, tudo o que consegue pensar é natureza - as paisagens têm sentido, o rio canta, dança e se alegra com os seres que com ele compartilham vida. “O rio é nosso avô”, diz Ailton Krenak (2019, p. 40). Como narrado por Krenak, Philippe Descola (2016, p. 13) relata que para os povos Achuar da Amazônia equatoriana, as plantas e os animais são pessoas como nós. Em termos ontoepistêmicos, para os povos logocêntricos do Ocidente, a condição comum entre os humanos e os animais é a natureza e a forma geral do Outro é a coisa | o ente. Conhecer é dessubjetivar/objetivar. Para os povos ameríndios, a condição entre os humanos e os animais é a humanidade cultural. Humanidade é o nome da forma geral do Outro: a Pessoa (Sujeito) | o Não-Ente. Conhecer é personificar (VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p. 358).
Desta paisagem indígena nasceu a proposição do “livro vivo” (MENEZES, 2021a, 2021b), uma inspiração ancestral e um legado do povo Huni Kuĩ, em especial, da obra compilada pelo pajé Agostinho Manduca Mateus Ika Muru (2012) denominada “Huna Hiwea, o Livro Vivo”.
Ter o livro, nosso Livro Vivo, porque os antigos, quando surgiu doença, se preocuparam em se transformar em ervas para socorrer o seu povo. Como o primeiro pajé, que descobriu como se transformar em ervas dos grupos Dua, Banu, Inani e Inu, para socorrer os Huni Kuĩ, assim eu também me preocupei em deixar esta mensagem de conhecimento para o meu povo, meus filhos e netos; para toda a comunidade e para os que vão ver esse documento da identidade e do conhecimento do nosso povo antepassado. [...] o Livro Vivo não é para acabar mais nunca [...]. Por que Livro Vivo? Porque a natureza está viva, as ervas que se transformaram estão vivas e os pesquisadores estão vivos, e os autores deste livro, que tiveram a experiência de fazer esta documentação. [...] E tem os parques: tem essa quantidade de famílias de plantas, que são essas 352 espécies no parque que eu criei. Então o Livro Vivo é também o parque onde mora nosso povo ancestral, que são as famílias de ervas que se transformaram. (IKA MURU, 2012, p. 6-7)
O livro vivo é um corpo indígena, portador de grafismos classificadores das relações com o mundo sociocósmico15, cuja instituição bibliográfica é a vida. Em um mundo habitado por diferentes espécies de sujeitos, pessoas humanas e não-humanas, dotadas de pontos de vista distintos, cuja condição geral é a humanidade, o livro não deixa de ter lugar. O que lhe ocorre é que este deixa de ser um ente dessubjetivado para afetar-se pela alteridade radical: a vida. O que há é uma variação na natureza do livro, não na ordem linguística do nome, mas na dimensão pronominal e significativa da coisa. O livro deixa de ser uma coisa cultural, um ente existencialmente destacado da natureza - uma técnica cultural, diria Briet (2016) -, para tornar-se naturalmente um corpo dotado de pessoalidade, que varia conforme os usos dos seus desenhos, das suas pinturas escritas, grafadas nas peles do mundo pelos tlahcuilos ancestrais e contemporâneos. O livro da Terra Viva é vivo e, ao inscrever a alteridade, a interpreta como pessoa encantada, seja ela viva, morta ou espiritual: nunca desencantada. O livro indígena é afirmado no devir, avesso ao livro como representação (OTLET, 2018, p. 55) e distinto do “despersonificado” livro mallarmaico, “instrumento espiritual” de “expansão total da letra”, lugar do “sentido sepultado”, onde: “tudo, no mundo, existe para culminar num livro.” (MALLARMÉ, 2010, p. 180) Diferente, o livro vivo dos povos indígenas co-existe com o mundo em uma zona viva de diferença.
4 CONCLUSÃO: UM CARACOL DE POSSIBILIDADES, OU, UM DEVIR OUTRO BIBLIOTECONÔMICO PARA A DOCUMENTAÇÃO E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
O Doador da Vida é um tlahcuilo (pintor-escriba), um poeta que declara que tudo o que existe na Terra está pintado e inscrito em um amoxtli (livro) que se encontra nas mãos de quem também é Tloque Nahuaque (Dono da Cercania e da Proximidade). Em seu papel de criador, o Tloque Nahuaque é um tlahcuilo. O mundo está pintado e só existe em seu portentoso livro. Flores e cantos lhe dão vida. Mais tarde quando a vida se conclui, sua página se fecha no livro. Miguel León-Portilla citando um bibliotecário-escriba forjador de cantos nahuatl em “Códices: os antigos livros do Novo Mundo” (2012a, p. 262).
Comum no mundo ameríndio mesoamericano, o caracol é um ser de possibilidades e uma imagem metafórica do tempo indígena cujo princípio e o fim são indeterminados, feito uma biblioteca16. Esta indeterminação própria da vida e do inacabamento das bibliotecas, desde um ponto de vista indígena, porta um “devir outro”, como expresso por Kopenawa e Albert (2015, p. 66) em seu livro vivo, ou, utupayasiki - sua pele de imagens. Trata-se de encaracolar a Biblioteconomia Indígena e o livro vivo nas dimensões espessas da Documentação e da Ciência da Informação para transformar os olhos ontoepistêmicos e imbuir de espírito o desencantado mundo das “unidades de conteúdo”.
Sob esta perspectiva de um mundo todo vivo, Geir Grenersen, Kjell Kemi e Steinar Nilsen (2016) assinalam para uma perspectiva indígena da Documentação Viva (Living Documentation) inscrita nas paisagens do mundo e no documento vivo (living document)17. Dovdat18 ou dow’dat são as palavras Sámi para a documentação/documento (GRENERSEN; KEMI; NILSEN, 2016, p. 1181). O documento para o povo indígena Sámi é multimodal e pode ser entendido a partir de duas perspectivas: i) o modo forte de documentação, alcançado quando se vê, ouve e sente as coisas com os próprios sentidos e ii) o modo fraco de documentação, aquele que é produzido fora da natureza - o modo ocidental. Neste último, o objeto ganha status de documento a partir da sua “mortificação” (desencantamento), da sua desvinculação com os processos vivos do mundo. Diferente de dovdat - o documento segundo o modo forte de documentação -, o documento artificial é chamado por um termo não-Sámi, dokumeanta - um empréstimo substantivo. Para ser considerado verdadeiro e confiável, o documento Sámi deve ser vivo, estar conectado com os fluxos de conhecimento, de experiência e com a vitalidade das relações que lhes são constitutivas. O dovdat (documento) é fruto do pensamento linguístico Sámi, onde os verbos possuem funções mais proeminentes que os substantivos, isto é, a linguagem para um Sámi é um instrumento de observação de pessoas e seu conceito de documento tem uma tendência a enfatizar a vivacidade do processo e das interações mais do que a representação dos objetos e substâncias.
Desde o ponto de vista informacional, o giro indígena nas tradições físicas e cognitivas se dá, dentre outros aspectos, por meio da concepção do conceito de informação. Tanto a tradição física quanto a cognitiva estão encerradas no paradigma da consciência que constitui a moderna dinâmica fundante da teoria do conhecimento entre sujeitos e objetos. Objetivamente, o fisicalismo informacional se dá através de uma percepção humana ou não-humana (autômata) das realidades físicas do mundo a ser conhecido. O objeto é apreendido pelo sujeito (O(S). Subjetivamente, o mentalismo ou cognitivismo informacional é uma relação que se constitui por meio da imposição interpretativa do sujeito acerca do objeto de conhecimento. O sujeito produz o objeto (S(O). Já o paradigma social da informação, de viés ocidental, inova ao se colocar na relacionalidade social entre o sujeito e o objeto (S(So(O). Sujeito e objeto, categorias por excelência do conhecer, são construídas seletivamente por meio da partilha informacional de um mundo comum de ações sociais. A pragmática social gera política e epistemologicamente os sujeitos e os objetos do conhecimento. As bases de fundamentação da perspectiva informacional indígena não são parte do paradigma da consciência, como as tradições físicas e cognitivas, e diferem da percepção social do outro como uma alteridade de si mesmo. Nos mundos indígenas, a dimensão xamânica, inconsciente e onírica informa a vida. Sonhar à maneira dos povos ameríndios, com nossos livros, informações e documentos, é um modo de estudá-los, de preencher-se de lembranças, muitas vezes mutiladas pelos empreendimentos coloniais. O sonho não é um modo de alienação do mundo real, nem uma renúncia da vida prática, mas a via régia do conhecimento indígena. Trata-se de um modo concreto de aprendizado e onirismo especulativo, onde as questões da vida prática encontram-se abertas como possibilidades.
Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades. [...] instituição do sonho não como uma experiência onírica, mas como uma disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as outras pessoas. (KRENAK, 2019, p. 52-53)
O social é sonhado através do espelho perspectivo do outro. Pela via subjetiva do meu semelhante, minha irmã é para meu cunhado sua esposa. Pela via objetiva das coisas, onde vejo sangue, a onça vê cerveja, a carne assada está para os humanos assim como a carniça está para os urubus. A diferença de perspectiva não altera a linguagem da palavra, mas o estatuto das coisas por ela nomeadas. A terra é a biblioteca indígena. O corpo indígena é seu modo de informar-se. A língua, a sua maneira de documentar as estórias das humanidades multinaturais. “Nós do povo Guarani estamos dentro das palavras, para que vivas façam com que arandu (conhecimento tradicional) permaneça”, visto que, “vivemos dentro da escrita viva, pois para o ‘bem viver futuramente’ (teko porã rã) nosso modo de ser precisa falar o que vivemos e vivemos dentro das palavras e sentimos as palavras que falamos”, testemunha de Sandra Benites, antropóloga Guarani (2018 apud FRANCHETTO, 2018, p. 94-95). A busca por esta chama viva é o destino da Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação Indígenas.
A estória marginal dos conceitos de livro, documento e informação compõe-se de personagens conceituais dissidentes, de línguas menores provocadoras de multiplicidades, diferenciações, acontecimentos e devires na extensão da língua maior da informação. Este texto visou estabelecer agenciamentos com camadas outras de interpretação do livro, do documento e da informação. Trata-se de um programa vitalista, ou seja, por meio da abundância de vida dos mundos indígenas, untar com o néctar animista os nossos objetos - livro, documento e informação -, os nossos campos - Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação -, as nossas instituições - bibliotecas, centros de documentação e redes e sistemas informacionais - e as nossas profissões - bibliotecários, documentalistas e cientistas da informação -, desencantadas pela colonialidade ocidental. Instalar-se no espaço do equívoco entre eles e nós, e encaracolar-se, é a tarefa tradutora perseguida por este texto. Traduzir não para silenciar o outro ao presumir uma univocidade originária e uma redundância última entre o que ele e nós estamos dizendo, mas, ao avesso, fazer morada no pensamento indígena para que ele enquanto língua originária deforme, descolonize, subverta e transforme os destinos e as geografias conceituais da nossa língua.
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Notas
Autor notes
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