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A arte de viver e de contar histórias: experiências de professoras na Educação Básica
Art of living and telling stories: experiences of teachers in Basic Education
Educar em Revista, vol. 40, e87633, 2024
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná

ARTIGO


Received: 19 September 2022

Accepted: 28 May 2024

DOI: https://doi.org/10.1590/1984-0411.87633

RESUMO: Este artigo objetiva analisar as percepções de professoras contadoras de histórias acerca da mediação de leitura por meio da arte de contar histórias. É uma pesquisa qualitativa aplicada, realizada por meio de entrevista episódica, junto a cinco professoras que atuam na Rede de Ensino Municipal de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. Os principais aportes teóricos para a sistematização dos dados foram Sisto (2012), Neitzel; Carvalho (2016) e Zumthor (2020). O tratamento dos dados ancorou-se em abordagem descritiva à luz do escopo teórico eleito. Como resultados, indica-se que as professoras contadoras de histórias contam histórias porque acreditam na potência dessa mediação para o agenciamento de leitores; investem na contação de histórias pelo viés da leitura fruitiva que entende o texto literário como objeto estético e artístico a ser apreciado; desenvolvem a contação de histórias como mediação cultural carregada de afetos para provocar crianças e adolescentes; aprenderam a arte de contar histórias na prática da docência e ao atuarem em bibliotecas; necessitam de oportunidades para ampliar sua formação como contadoras.

Palavras-chave: Contadoras de Histórias, Formação de Leitores, Mediação Cultural.

ABSTRACT: This paper aims to analyze the perceptions of storyteller teachers about reading mediation through the art of storytelling. It is a qualitative piece of research, carried out through episodic interviews, applied with five teachers who work in the Municipal Teaching Network of Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brazil. The main theoretical contributions for data systematization were Sisto (2012), Neitzel; Carvalho (2016) and Zumthor (2020). Data processing was based on a descriptive approach in light of the chosen theoretical scope. As a result, it is indicated that storyteller teachers tell stories because they believe in the power of this mediation for readers’ agency; they invest in the storytelling through the fruitive that understands the literary text as an aesthetic and artistic object to be appreciated; they develop storytelling as a cultural mediation loaded with affections to provoke children and adolescents; they learned the art of storytelling in the teaching practice and when working in libraries; they need opportunities to expand their training as storytellers.

Keywords: Storytelling, Readers’ Education, Cultural Mediation.

Introdução

A menina deu seus primeiros passos na ponta dos pés.

Artista? Bailarina? Malabarista? - Eu quero ser equilibrista!

(Neitzel; Barros, 2021, p. 2-4).

Iniciamos este artigo com um fragmento da obra infantil Na ponta dos pés (Neitzel; Barros, 2021) porque ele nos revela o reconhecimento de quatro instâncias da enunciação discursiva que, ao longo deste artigo, vamos abordar: a quem se destinam, para que foram produzidos, quem os produziu e onde circulam. Neste caso, essa obra foi produzida para crianças da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, com o objetivo de possibilitar às crianças um encontro com a literatura pelo viés artístico e estético, de forma que se relacionem com o texto e possam refinar seus gostos e perceber suas fugas, seus interstícios, suas possibilidades de plurissignificação, como a própria autora enfatiza em entrevista disponibilizada por meio de QR Code ao final do livro: Onde circulam os livros de literatura infantil?

Duas instâncias são as principais responsáveis pela circulação dos livros: a família e a escola. Na narrativa de Na ponta dos pés, a criança é inserida no universo da leitura pelas mãos da mãe leitora de histórias e de poemas como os de Cecília Meirelles, de Sérgio Capparelli e de Roseana Murray. Forjar um leitor na família é o assunto apontado por Pennac (2008), o qual evidencia que uma ambiência de leitura pode muito e que a leitura partilhada com os familiares é um potente instrumento na construção de afetividades, de laços emocionais entre eles. Além disso, os benefícios da contação não são apenas da criança. Por meio da literacia familiar, ao ouvirem seus filhos contando uma história, os pais acabam recordando enredos conhecidos, promovem relações de afeto, conhecimento e memória revisitadas por meio da contação. Nesse sentido, a literatura é um direito inalienável da criança, porque, por meio dela, estabelecem-se vínculos e pertencimentos, os quais também seriam ampliados pela escola.

Quando o assunto é contação de histórias, normalmente se busca um resgate da contação na constituição da memória de grupos sociais que dependiam dela para propagar e garantir sua cultura, muitas vezes ágrafa. Lembremos do contador de histórias Marco Polo e de seu interlocutor Kublai Khan, da narrativa de Ítalo Calvino (1990) - As cidades invisíveis - de como o ouvido do imperador recebe o relato, a narrativa e, nesse movimento, se afeta pela narrativa do outro, aciona sua memória e imaginação, projetando-se nas narrativas, na composição de um filigrana tecido com as histórias do contador, mas também daquele que ouve essas histórias, um mundo intercambiável de subjetividades que se atravessam.

Marco Polo contava a Kublai Khan as experiências que vivia nas terras desconhecidas pelo imperador oriental. Sua memória era seu único instrumento de registro dessas histórias, e sua voz, o instrumento de comunicação. Hoje, em pleno século XXI, com a cultura impressa e digital, houve mudança radical no papel do contador de histórias, e seu espaço de atuação passou a ser, inicialmente, a escola; e, com a internet, o ciberespaço e o nosso objetivo para narrar histórias também mudaram. Por que uma sociedade como a nossa, cuja cultura escrita é ensinada e veiculada desde que nascemos em vários meios de comunicação, se interessa ainda pela contação de histórias? Neste artigo, vamos nos concentrar nas práticas de contação de histórias no contexto escolar e vamos discorrer sobre o porquê de o professor que atua em sala de aula assumir o papel de contador de histórias e como ele se percebe nessa atuação.

Entendemos que a contação de histórias no espaço escolar se guia pela noção de que na leitura do texto literário estão constituídos não apenas aspectos do mundo verbal e não verbal (como as imagens), mas também aspectos performáticos daquele que conta e daquele que ouve o texto. O professor, ao estabelecer expectativas em relação ao texto que vai ler, ao combinar processos de uma diversidade de formas, verbais e não-verbais, pode criar uma situação comunicativa que não apenas explicita o dito, mas também trabalha o não-dito, incentivando pressuposições antecipadoras dos sentidos que vão interferir nas condições de recepção do texto.

A contação de histórias, nesse sentido, é um recurso empregado para a aproximação entre leitor e literatura, pois ela pode promover o desenvolvimento de capacidades que serão buriladas na formação do leitor, provocar a curiosidade, incitando perguntas sobre o texto, produzir hipóteses, que é o exercício fundamental para o desenvolvimento da imaginação, da criatividade e de inferências durante a leitura de textos. Neste artigo, entendemos o ato de narrar histórias como uma estratégia de mediação cultural e, para tanto, elegemos contadoras de história que são professoras, as quais não só apresentam histórias contidas nos livros, aproximando os indivíduos da literatura, mas também oportunizam a produção de pontos de vista diferentes dos quais brotam novas histórias.

Nesse contexto, a escola é percebida como espaço de habitação do livro de literatura, e a contação de histórias, como forma potente de mediação, uma prática oportuna para o desenvolvimento de leitores do literário, prática que envolve o leitor em movimento de silêncio junto ao texto, na intimidade com o texto, na interação leitor-obra, no remoer o texto, o seu conteúdo simbólico, processo de variações recriadoras que Neitzel e Carvalho (2016) denominam de movência. Esta está relacionada aos silêncios provocados no leitor pela cultura da escuta, da ressignificação e da compreensão do texto, que se dá pela intimidade que o leitor passa a ter com o literário no ato da contação, daquilo que está explícito e, também, implícito. Para as pesquisadoras, a contação de histórias envolve o ouvinte em um movimento que o provoca a tecer relações intertextuais, as quais abrem seus canais de percepção ao texto e possibilitam sua nutrição estética.

A mediação do literário pelo professor contador de histórias instiga no leitor o desejo de ouvir outras vezes a mesma história (ou uma nova), de lê-la e, por vezes, de recontá-la, mobilizando a imaginação e a memória daquele que conta e daquele que ouve a história impressa. Para isso, como Marco Polo, o professor contador de histórias necessita primeiro afetar-se pelo texto, sensibilizar-se, realizar-se nele, possuí-lo. A partir desse encontro com o texto, ele pode mostrar-se um sujeito performático, que transmite suas percepções por meio da voz, do corpo, dos gestos e dos elementos cênicos. Dessa forma, a performance está, então, presente, como aponta Zumthor (2000). Ao iniciar sua ação, o professor contador pulsa, e os alunos o acompanham, envolvendo-se com a história que, ao mesmo tempo, passa a ser sua, promovendo vibração corporal no grupo. Lê-se o texto com o corpo, como já afirmou Petit (2019), e a noção da presença de um corpo como elemento fundamental para a performance literária é importante, pois, pelo corpo e pela voz, experiências coletivas são propiciadas, percebidas e carregadas de poderes sensoriais (Zumthor, 2000), e a escola torna-se, assim, palco para o livro, local de experiências estéticas e artísticas.

Sisto (2012), ao discorrer sobre a contação de histórias, aborda a necessidade de o contador observar elementos estéticos da obra a ser lida, tendo em vista que o estilo do contador só “[…] ganhará o status de artes se ele estiver atento aos fundamentos estéticos que sustentam a obra escolhida. Sabe-se que o estilo de cada narrador ganha consistência quando a relação entre o texto e o narrador se confunde, obedecendo a mesma ideia original da obra” (Sisto, 2012, p. 150). O bom contador percebe “[...] quais elementos estão em jogo, como manipulá-los e fazê-los de forma harmônica e plástica - isso já é fazer arte. E se a obra atingir os sentidos do público para quem ela se dirige, ela será reconhecida” (Sisto, 2012, p. 150).

Temos, aqui, dois aspectos abordados por Sisto (2012): o primeiro diz respeito à leitura que o professor contador de histórias faz da obra, da percepção de seus elementos estéticos, que inclui a linguagem utilizada e as escolhas que definem o texto verbal e o texto não verbal, que são as ilustrações. Há, ainda, os paratextos e a produção gráfica que necessitam ser observados, porque interferem na recepção da obra. Café (2000) reitera que a forma como o professor descobre o texto, como ele enxerga seus detalhes, desvela suas cores e cenas, interfere na sua recepção: “Ter domínio do texto, das emoções por ele provocadas, do olhar para que os ouvintes acreditem nos acontecimentos e fatos do texto, é de fundamental importância para qualquer história, independente dos recursos utilizados pelo contador” (Café, 2000, p. 33).

A partir do olhar atento e cuidadoso sobre o texto, entra em cena o segundo aspecto observado por Sisto (2012): a escolha que o professor contador fará dos aspectos e dos recursos que empregará. Fará uma contação de histórias mostrando as imagens, destacando a ilustração ou dará ênfase a determinados trechos, fazendo suspense com a voz e/ou introduzindo algum objeto propositor como a música? Ou, ainda, quais movimentos corporais comporão esta contação performática? São escolhas que dependem do texto, mas também da leitura do professor contador, de como ele se relaciona com o texto.

Coelho (2004, p. 31) afirma que “[...] estudar a história é ainda escolher a melhor forma ou o recurso mais adequado de apresentá-la”. O contador explora seu corpo, o gestual, introduz objetos propositores que agregam qualidade na contação, enriquecem a atividade, mas o exagero ou uma escolha mal feita também é prejudicial. Nesse contexto, é fundamental que a preparação da contação coloque os holofotes sobre o livro, sobre a história, porque o professor contador de histórias o faz por conhecer a potência dessa mediação na formação do leitor.

Dessa forma, pensamos a contação de histórias no ambiente escolar como um momento de fruição que aproxima a criança e o adolescente do livro, pelo viés do entretenimento, da educação estética e artística, da mediação cultural. Não cabe, nesses momentos, a exploração do livro pelo viés pedagógico e didático, em que se quer colher o que a criança entendeu da história, ou melhor, plantar um entendimento pré-determinado. Neitzel e Carvalho (2016) afirmam a importância de a contação de histórias ser um momento em que a criança se relaciona com a história, com o livro, também pelo silêncio; em outras palavras, momento em que ela percebe “coisas no texto”, as quais nem sempre necessitam ser partilhadas, porque dizem respeito ao fórum íntimo. As pesquisadoras defendem que, nessa relação silenciosa tecida entre contador, leitor e obra, se apreendem, ou se constroem, os múltiplos sentidos do texto e “[...] não apenas aqueles que os signos escancaram, mas também aqueles que estão escondidos, enviesados, marcados na linguagem, nas entrelinhas" (Neitzel; Carvalho, 2016, p. 150). Afinal, quem acompanha uma história bem contada, percebendo-se acarinhado com a atividade da mediação realizada, busca de imediato o livro, pela relação de afeto que se instituiu entre o contador, o livro e o leitor.

A seguir, vamos nos enveredar pelo caminho metodológico desta pesquisa que aponta como a desenvolvemos, com quais sujeitos, como construímos os dados e os analisamos.

O caminho metodológico

Mas meu avô desejava que toda a cidade o visse com dois olhos,

o que de fato era uma meia-verdade.

Mas, com o passar dos anos o povo esquecia qual

olho era o de ver e qual olho era o de enfeitar.

(Queirós, 2004, p. 8).

Bartolomeu Campos de Queirós, na obra O olho de vidro de meu avô, convida-nos a enxergar os fatos que nos rodeiam não apenas com o olho da racionalidade, mas também com o olho da sensibilidade. Nossa tendência, com o passar dos anos, é de embrutecer-nos, de embotar os nossos sentidos e de esquecermo-nos como enxergar com o “olho de enfeitar”. Uma pesquisa qualitativa exige que façamos o exercício do ver com os dois olhos, porque ela se ocupa, também, dos diversos significados que emergem da pesquisa.

Foi essa a nossa opção para analisar as percepções das professoras contadoras de histórias acerca da mediação de leitura por meio da arte de contar histórias, na Rede Municipal de Ensino de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. Optamos por uma pesquisa qualitativa, de abordagem descritiva. Para iniciar o estudo, solicitamos à Secretaria Municipal de Educação do município a indicação de cinco professoras que atuassem em sala de aula e eram contadoras de histórias na rede, da Educação Básica, a fim de entrevistá-las.

A partir de indicações recebidas, foi planejada a realização de entrevista semiestruturada, porque essa modalidade de interlocução permite que, por meio das respostas às questões, pudéssemos confrontar suas colocações, à luz do nosso objetivo geral. Entendemos que a entrevista não deveria ser rígida, mas contemplar perguntas abertas e um roteiro flexível, para que o entrevistador mobilizasse a memória das entrevistadas. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da instituição executora e previa a realização de entrevista narrativa com cada contadora. O roteiro da entrevista foi formado por sete tópicos expressos na forma de perguntas:

  1. 1. No seu ponto de vista, o que é indispensável para a contação de histórias?
  2. 2. Narre um pouco sobre como surgiu o seu interesse pela contação de histórias?
  3. 3. Como escolhe uma história? Como prepara a contação? Quais são seus objetivos com a contação de histórias?
  4. 4. Como realiza a contação de histórias no espaço escolar? Com que frequência?
  5. 5. O que ocorre com os alunos, geralmente, após a contação de histórias? Os alunos participantes retiram os livros com as histórias contadas?
  6. 6. Você costuma contar, ou já contou, uma mesma história para públicos diferentes? Se afirmativa a resposta, para quais públicos? Como foi a reação do público?
  7. 7. Como vê a importância da contação de histórias no espaço escolar para diferentes públicos?

Ao entrarmos em contato com os sujeitos, esclarecemos seu objetivo e cada interlocutor assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Por meio da entrevista, traçamos o perfil das cinco professoras da Rede Municipal de Ensino de Caxias do Sul e, para preservar a identidade delas, atribuímos pseudônimos (nomes de flores). As entrevistas foram realizadas individualmente em espaços disponibilizados pelas interlocutoras, seja em sua residência ou local de trabalho.

Quadro 1:
Perfil das professoras contadoras de histórias

Fonte: Elaborado pelos autores.

Cabe destacarmos que todas as entrevistadas trabalham há mais de 18 anos na rede de ensino, possuem idade acima de 41 anos e atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental como professoras contadoras de histórias há mais de 12 anos, com exceção de Amor-perfeito que atua há sete anos. As professoras Amor-perfeito, Íris e Açucena já atuaram também nos espaços das bibliotecas escolares. Os dados oriundos das entrevistas presenciais foram gravados e transcritos por um dos pesquisadores, o responsável pela entrevista.

Na sequência, efetuamos a análise dos dados segundo a Análise de Conteúdo (Franco, 2008), em busca de responder ao problema de pesquisa: Quais as percepções das professoras contadoras de histórias acerca da mediação de leitura por meio da arte de contar histórias? Para atingir o objetivo desta pesquisa, dividimos as análises em duas categorias que emergiram da própria fala das entrevistadas: a) Por que contar histórias; e b) A formação das professoras contadoras de histórias. Na primeira categoria, visamos a identificar o que move esse grupo de professoras a contar histórias na sala de aula e na escola, observando qual a sua relação com o livro de literatura e como elas percebem o envolvimento das crianças com os livros por meio da contação de histórias. Na segunda categoria, buscamos entender a histórias dessas professoras contadoras, como elas assim se constituíram, como a contação entrou em suas vidas e como ela se manifesta na sua subjetividade e se fortalece no exercício da docência.

Narrativas das professoras contadoras de histórias

Eunice continuou e aprofundou o trabalho de meus pais.

Com ela, a leitura da palavra, da frase, da sentença,

jamais significou uma ruptura com a “leitura” do mundo.

Com ela, a leitura da palavra foi a leitura da “palavramundo”.

(Freire, 1989, p. 11).

Freire (1989), ao recordar sua passagem pela escola, relembra com carinho da professora Eunice e pontua o mérito da família na sua iniciação aos livros, confirmando o que dissemos no início deste artigo, acerca das duas instâncias responsáveis pela formação do leitor, a família e a escola. O autor utiliza dois verbos ao registrar essa memória: “continuou” e “aprofundou” trazendo à baila a ideia de que cabe à escola não apenas despertar o gosto pelos livros, mas também mobilizar estratégias que levem esse leitor a ampliar sua leitura de mundo não estando apartada desse mundo, mas sendo “palavramundo”.

Assim como Paulo Freire encontrou a professora Eunice, nós, nesta pesquisa, encontramos cinco professoras na cidade de Caxias do Sul, que, mediante a contação de histórias, buscaram concretizar a “palavramundo”, pois elas entendem que, por intermédio da mediação de leitura, elas poderiam favorecer que a literatura habitasse o espaço da escola, oportunizando aos seus estudantes fazerem experiências com a leitura do literário e, por meio delas, mudarem sua forma de se relacionar com o mundo e com o outro. Para melhor compreendermos o que levou as professoras contadoras a investirem no ofício de contadoras durante sua prática em sala de aula, vamos apresentar a análise de suas falas a partir das categorias criadas.

Por que contar histórias

Desde a década de 1980, no Brasil, vimos defendendo que a literatura seja escolarizada de forma adequada, que sua função estética seja respeitada. Lajolo (1986), Perrotti (1986), Soares (2001), Yunes (1994), entre outros, foram pioneiros, no Brasil, em defesa da entrada da literatura na escola pelo viés da fruição, reafirmando que ela ensina sempre, mas pelo viés artístico. Amor-perfeito é uma professora contadora de histórias que entende a contação como uma mediação que pode auxiliar nessa empreitada, porque ela compreende que é preciso criar o gosto pela leitura pelo viés do prazer, o que implica não associar a contação a outras atividades pedagógicas, mas, sim, pelo deleite e pela apreciação, os quais podem levar os alunos, inclusive, a superar problemas. Petit (2012), ao analisar a relação de muitos jovens com a leitura, observa que a leitura do literário tinha o poder de, em cenários de crise, oportunizar aos leitores algum conforto emocional diante das adversidades do cotidiano.

Os objetivos para mim eram sempre os mesmos, criar o gosto pelas histórias, criar o gosto pela leitura, mas isso sempre enquanto prazer é trabalhar a contação de histórias sem a cobrança depois, como momento de deleite, momento de puro prazer, de entrar no mundo das histórias e, por alguns momentos, esquecer do cotidiano, da vida real (Amor-perfeito).

Essa percepção da literatura como objeto estético e artístico que Amor-perfeito revela ressoa nas palavras de Hortênsia, ao afirmar que literatura é arte, uma arte potente no movimento de humanização dos seres. Para Candido (2017), essa humanização está relacionada ao direito à literatura - um bem fundamental como a saúde, a alimentação, a moradia. Ter o direito à leitura do literário é essencial porque ela é um poderoso instrumento na educação do homem, pois, por meio dela, construímos formas de “vivermos dialeticamente os problemas” (Candido, 2017, p. 177). Assim, quando Hortênsia declara que contar histórias é fazer a escola respirar literatura, ela anuncia sua crença no direito à literatura, pois ela não é privilégio de poucos. Para a professora, por meio da mediação literária, podemos olhar mais para o aluno, um olhar que revela ao outro que alguém se importa com ele, que o percebe naquele contexto, que ele tem vez e voz. Hortênsia evidencia a contação de histórias como uma estratégia de mediação cultural carregada de afetos e que, ao provocar as crianças e os adolescentes, pode oportunizar que se sintam amados, e a escola necessita ser também território habitado pelo amor.

É fundamental uma escola que respire literatura para todas as pessoas, fazendo disso momento especial. Esta escola evolui, porque a contação de histórias tem a ver com esse olhar para o indivíduo e, ao mesmo tempo, para o coletivo, mas esse indivíduo passa a se sentir importante porque, naquele momento, existe um profissional ali para contar uma história. Quando tu estás contando uma história, tu olhas para essa pessoa e a gente não imagina o que faz quando tu consegues olhar para todos, nesse momento que a história está indo chegando até esse outro. Esse momento talvez seja o único momento na vida dessas crianças e adolescentes, em que eles se sintam tão especiais porque eles têm a tua atenção. Então essa carga de afeto que nos liga através da arte, seja a arte de contar ou outra arte, é que vai fazer a diferença lá adiante. As pessoas, as crianças que são alimentadas pelas histórias são adultos diferentes e adultos melhores, mais bem resolvidos emocionalmente (Hortênsia).

Íris também pensa a literatura como um direito inalienável, não apenas das crianças, mas também dos familiares. A literacia familiar é identificada por ela como possibilidade de ampliar o universo leitor. Por meio da leitura oral, aprofundam-se conhecimentos e usos da língua, criando, com as famílias, interações discursivas que, além de serem possibilidades de afetos, repercutirão na apropriação da escrita da criança em fase de alfabetização. Ela apresenta um bom exemplo de como a literatura educa pelo viés artístico: a contação de histórias, ao mobilizar as crianças e os adolescentes para o livro de literatura, amplia as possibilidades de o leitor melhorar sua proficiência linguística, sua autonomia leitora. Há uma associação na fala de Íris entre a leitura e a escrita, como processos que, se caminharem lado a lado, auxiliam o acesso a este bem imaterial - a cultura letrada que também é um direito humano. Nessa linha, reiteramos com a posição de Candido (2017, p. 193): “Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável”. Nesse sentido, Íris relatou:

Promover a leitura e trazer as crianças para esse universo, não só as crianças, tanto que eu conto histórias da [...] educação infantil ao nono ano e para os pais também […]. Como a base, eu acho que não pode ter um espaço escolar sem contação de história e para diferentes públicos inclusive, aberto para a comunidade escolar. Quer trazer a comunidade, os pais para escola? Conte histórias para seus filhos e peça para que os filhos contem em casa. O momento em que tu os trazes para o livro, para a leitura, eles te dizem: professora tu dizias que se eu lesse mais eu ia escrever melhor, a minha professora disse que eu já estou escrevendo melhor, é automático se dá o efeito, é magia mesmo (Íris).

Açucena é outra professora contadora. Ela entende que a contação de histórias oportuniza às crianças e aos adolescentes um momento de relaxamento (que podemos associar à fuga das adversidades da vida real) e, também, possibilita se perceberem no mundo e os ajuda a lidar com seus problemas. Quando ela afirma que a contação mexe com o interior da criança, Açucena está evidenciando que entende que o trabalho com a literatura é potente no sentido de desenvolver o conhecimento e o saber acerca do mundo e de si, como afirmam Franco e Balça (2018). Agregada às atividades de leitura silenciosa na biblioteca, aos projetos de leitura de livros em casa, a professora contadora argumenta acerca do potencial da contação para transformar os estudantes. Isso porque os significados do texto são negociados na relação com a obra, no jogo que se institui entre leitor e obra, jogo que, ao ser mediado pelo contador de histórias, pode ampliar a transação do leitor com o texto, movimento que a professora contadora conceitua como transformação, o qual é desenvolvido por Petit (2012). Nessa perspectiva, Açucena afirmou:

É trazer à tona isso da transformação, de mexer com o interior da criança. Quando eu comecei aqui nesta escola, e na escola Bento, por exemplo, não se contava história para os maiores, os maiores não ouviam histórias, eles simplesmente vinham para a biblioteca, faziam a hora da leitura silenciosa ou simplesmente vinham e retiravam livros e voltavam para sala de aula. Aí eu comecei a trabalhar isso com os professores, dos maiores, do Fundamental dois, que é de quinto ao nono ano, que eles pudessem vir para a biblioteca e fazer um momento de relaxamento e ouvir histórias (Açucena).

A transformação apontada por Açucena encontra eco na voz de Papoula que a denomina como “despertar para essa coisa mágica que é a leitura”. A narrativa de Papoula sinaliza sua intimidade com o livro, reforçando que o bom contador necessita, antes de tudo, se familiarizar com a obra, ser um leitor encarnado que, segundo Nhoque (2019), é aquele leitor cujo saber experienciado pela leitura transborda no outro e na vida e, por ser uma leitura que transborda, ela “[…] move os sentidos, [...] aflora a sensibilidade e faz com que a experiência leitora não seja esquecida pelo leitor” (Nhoque, 2019, p. 24). Esse movimento é percebido na voz de Papoula, seu amor pelos livros transborda e envolve as crianças, e ela se mostra feliz e realizada com os avanços da criança pequena diante do livro. Papoula revela que conhece a potência da literatura no movimento de alfabetização com os pequenos que ainda não sabem ler palavras, mas podem, por meio das imagens, construir narrativas próprias, as quais os encaminharão para a leitura da palavra.

É o despertar para essa coisa mágica que é a leitura, ela é uma companhia, é viver outras vidas e outros mundos, é isso que acontece comigo e acho que é isso que pode acontecer com eles. […]. Esse momento de tu despertares a vontade de pegar um livro, de ler aquela história, às vezes os pequeninhos, os bem pequenos, a gente vai ensinando-os a lerem a imagem, aí eles leem a imagem e vão passando a página: “O que será que aconteceu aqui?”, depois eles vão começar a descobrir as palavrinhas (Papoula).

Com Amor-perfeito, Hortênsia, Íris, Açucena e Papoula, entendemos que contar histórias é prazer e envolvimento, é relacionar-se com o livro não apenas pelo aspecto inteligível, mas também sensível, com a alma. Os sentimentos vivenciados por meio das histórias são despertados nas crianças, e os leitores repercutem na sua relação com o livro. As vivências do professor contador interagem com as experiências dos estudantes que acompanham a narração e inúmeras possibilidades de relação com a obra se abrem. Constatamos que todas as professoras contadoras de histórias destacaram a importância de o contador afetar-se pelo livro, de ele cultivar essa relação de amor com esse objeto estético e artístico. Outros relatos seus evidenciam que, ao término de suas contações, muitos estudantes se organizavam para retirar as obras contadas ou emprestavam aos seus colegas, revelando o interesse pela leitura. Elas conhecem e acreditam na potência desse objeto na proficiência linguística e na autonomia leitora, e, sobretudo, falam sobre como a prática da contação pode aproximar o professor da criança e do adolescente e estes dos seus familiares. Por isso, a contação de histórias é descrita por elas como uma ação de sensibilização, e, por meio dela, constrói-se o interesse e o desejo pelo livro, um dos movimentos de projetos de formação de leitores.

A formação das professoras contadoras de histórias

Na categoria anterior, conhecemos o motivo que levou essas professoras a fazerem uso da contação de histórias nos espaços de docência, identificando o que as mobilizou a abraçar o livro pelo viés da contação. Nesta categoria, desejamos entender como elas se constituíram contadoras e como desenvolveram a técnica da contação. Sisto (2007, p. 40) assegura que “[...] a arte de contar exige um fazer anterior, um preparo, um domínio prévio, um conhecimento, estudo, ensaio, profundidade. E é, evidentemente, exercício de longo prazo”. Entendemos que Sisto se refere ao ato de preparar a história, de adentrar o livro, os seus meandros, para que, por meio de leitura profunda, o professor contador consiga construir nuances de voz adequadas, gestos corporais convidativos e organizar uma cena de contação que possa nutrir esteticamente o leitor.

Conforme Sisto (2012, p. 150), o estilo “[...] de narrar ou contar uma história determina a identidade do artista e a forma como ele se mostra perante o observador de sua obra”. Os recursos que o professor contador escolhe para apresentar a obra vão marcar como ele a percebe. Há contadores que exploram, principalmente, os recursos da voz e do olhar, outros buscam seduzir o leitor com adornos no corpo, como vestimentas que caracterizam as personagens; outros inserem objetos propositores, como música, sons do cotidiano, imagens; outros preferem, além de investir na voz, fazer uso de performances que acentuam gestos corporais. A forma de contar depende do estilo de cada professor contador, assim como do que ele quer mostrar da obra.

Açucena é uma professora contadora que revela, pela sua narrativa, que aprendeu a contar histórias na prática da docência, mostrando que não separa a docência da contação. Sua atuação na sala de aula e na biblioteca foi o território fértil para sua formação como contadora. Ela traz memórias da infância que marcaram sua trajetória, reafirmando o que Petit (2012, p. 52) alerta em uma de suas obras, de que, na infância, a criança se mostra mais acessível para as “[...] descobertas das palavras, das histórias, dos livros ou dos objetos amados”, momento cujas memórias afetivas podem ressoar em suas experiências futuras. Açucena também relata que aprendeu o ofício escutando contadores, expondo que, para além da prática como professora e bibliotecária, buscou observar aqueles que dominavam o ofício da contação.

Estou na Rede Municipal há vinte e três anos e sempre trabalhei com os pequenos. [...]. Eu sempre contei histórias; entre a sala de aula e ficar na biblioteca, fazem uns quinze anos e, durante esse período, eu sempre contei histórias. [...]. “A menina e o monstro” é uma história que eu trago da minha vó, e eu contei para diferentes públicos (Açucena).

Gosto muito de ir a Festivais de Contação de Histórias para escutar, ver o que os contadores contam, porque aí tu vais tendo uma base (Açucena).

Ao falar de si como contadora de histórias, Açucena ativa sua memória de infância e cita uma das histórias que ouviu de sua avó, confirmando o que Nhoque (2019) apresenta em sua tese sobre o leitor do literário. Para a pesquisadora, ele se constitui pelos encontros em sua vida, os quais o aproximam da literatura, caminhos que podem ser iniciados na família, com bibliotecários, professores, amigos etc. e que repercutem.

A posição de Açucena leva-nos a Gregório Filho (2002, p. 136), o qual assegura: “Não somos passivos às experiências e, a cada uma aprendida, incorporamos informações, transformados, acrescentamos parte de nossa própria experiência e vamos construindo nosso jeito de olhar a nós mesmos e ao mundo”. A professora contadora Açucena nutre-se da ação concreta na escola, que é seu palco, e de festivais, nos quais ela tanto se apresenta quanto é, também, plateia.

Assim como Açucena, Amor-perfeito também tem uma história de contadora cerzida com as funções de mediadora cultural na biblioteca. Esse espaço é palco de realizações e de desafios: contar histórias também para os anos finais do Ensino Fundamental. Neitzel, Ferri e Borba (2018) discutem sobre a potência cultural das bibliotecas escolares, argumentando que elas, além de serem espaços dedicados à pesquisa e à leitura, podem contribuir para a educação estética dos estudantes quando o espaço promove a convivência, a produção de sentidos e a experiência pelo viés da cultura. Amor-perfeito relatou:

Trabalho na Rede Municipal há trinta anos e, atualmente, atuo como responsável pela Biblioteca na Escola Américo Ribeiro Mendes onde já fiz contação de histórias por vários anos. Inclusive só entrei para a biblioteca com esse objetivo, de que eu pudesse fazer a hora do conto e o desafio maior, para os alunos dos anos finais (Amor-perfeito).

A experiência como docentes e como contadoras de histórias respalda a prática dessas professoras contadoras. Há uma relação de paixão pelas histórias que justifica a escolha dessas professoras, assim como a ideia de que uma história pode transformar momentos da vida de um indivíduo, como afirma Petit (2013) acerca das mudanças que um mediador pode causar nos destinos de uma pessoa. Para muitos que pouco têm, a contação de histórias é um alento, um conforto, um alívio, um ponto de encontro que insere o ouvinte em um grupo que partilha a paixão pelas histórias. É essa paixão, citada pela professora Hortênsia, que a legitima como contadora que busca a essência da história. Para ela, tanto a contação como a escuta precisam ser movidas pelo coração, afastando a ideia da contação como uma performance estritamente técnica. Apesar de Hortênsia citar a necessidade de o contador trabalhar o corpo e a voz, em seu discurso lemos uma defesa a favor da experiência, sem mencionar formas de aperfeiçoar sua postura de contadora:

O meu interesse veio justamente dessa paixão que eu tenho pelas palavras, por esse encantamento que as histórias provocam, por aquele olhar, aquele brilho e essa comunicação que se faz pelas histórias e o quanto ela pode transformar a vida das pessoas, se não a vida, o momento da vida das pessoas. […]. Tu tens que buscar a essência da história para ver se essa história pode ser contada para esse grupo, porque nós não temos como saber se vai bater, como é que vai bater no coração de cada um. […]. O trabalho de corpo, de voz é fundamental! (Hortênsia).

Sisto (2012) também compartilha a ideia de que a formação de um contador de histórias necessita ser lúdica, envolver o contador de corpo e alma, de forma a abrir seus olhos e seu coração, mas o pesquisador não prescinde da importância de o contador refinar suas estratégias, principalmente no que diz respeito ao uso da voz e do movimento cênico. Para ele, a contação requer estudo, ensaio, profundidade, o que implica dois movimentos: a relação do contador com a obra a ser contada e o trabalho cênico do contador, que necessita estudar como vai traduzir a obra lida. Nas narrativas das professoras contadoras, é evidenciada a preocupação com a obra, mas não com a sua tradução. Íris relatou:

Sou apaixonada pela contação de histórias, é um trabalho que só faz quem ama. […]. Estou na biblioteca já há dez anos e na mesma escola estou há treze, entrei no laboratório de aprendizagem e depois assumi a biblioteca. [...]. A minha mãe e meu pai me contavam muitas histórias quando eu era pequena, não história de livros, histórias de vida, histórias sobre meus avós, então, já tinha a sementinha ali. […]. Eu me preparo para a contação de história, contando muito e repetindo muitas vezes a história, assim ela se torna viva […] (Íris).

A mesma paixão pela contação citada por Hortênsia é visível na narrativa de Íris. Como Açucena, as memórias da infância, das histórias contadas pelos pais, repercutem em si, e, assim como Açucena e Amor-perfeito, Íris desenvolveu atividades de mediação cultural na biblioteca que marcaram sua trajetória de contadora de histórias. O ofício de contadora aparece, também, na voz de Íris entrelaçado à experiência de leitora na família e na prática do dia a dia. Íris ressaltou que repete, muitas vezes, a história que vai contar para que ela seja internalizada por ela, mas também pelo ouvinte. Neitzel e Carvalho (2016) falam do processo de sedução que envolve o ato de contar, um movimento estésico que passa pela linguagem verbal e gestual, e, por isso, as professoras contadoras ressaltaram tanto a paixão, o contar com o coração, pois a estesia vem dos sentidos que a história provoca. A história é traduzida pelo corpo, pela voz, pelo olhar, pelos sorrisos, tudo isso ressignifica o texto e provoca o ouvinte à interação. Neitzel e Carvalho (2016) apontam para a necessidade dessa tradução ser poética, a partir de um conjunto de ações que não reproduzam o texto, mas o ampliem para que, dessa performance, emerja um outro texto, aquilo que as autoras chamam de “movência”, como já afirmamos.

Nossa pesquisa revela o quanto uma ambiência de leitura ressoa e repercute no professor contador de histórias. Papoula também traz à baila a influência de um familiar que lia romances e que se tornou exemplo a ser seguido. Isso ela mostrou ao falar de sua admiração pela performance da irmã mais velha que lia muito, assim como nos deixou conhecer sobre a influência que recebeu de uma professora na infância que contava trechos de um livro. O exercício da leitura confunde-se com o exercício da contação de histórias, e esses são movimentos alinhavados com o exercício da docência. Novamente, a biblioteca surge como um espaço de leitura e de contação decisivo na sua formação, um espaço habitável. A biblioteca, no imaginário dessas professoras contadoras de histórias, é habitada por elas e está viva em suas memórias, fazendo parte de sua intimidade, produzindo imagens de aconchego, causando ressonâncias, que se dispersam “[...] nos diferentes planos da nossa vida no mundo” (Bachelard, 2000, p. 7) e elas reverberam.

Eu acho que é desde pequena, eu sempre tive em casa um exemplo da minha irmã mais velha que lia muito e eu queria sempre ser como ela, porque eu achava bonito ela lendo e eu não tinha livros da minha idade pra ler, ela lia romances Sabrina, Julia, esse tipo de coisa, mas eu achava lindo ela lendo, e, na minha escola, nós tínhamos uma professora que eu encontrei na faculdade depois. Ela vinha uma vez por semana na minha sala de aula, eu estava na quarta série, e ela contava um pedaço do livro a “Montanha Encantada”. […]. Tudo começou na sala de aula, enquanto professora de português, eu contava história e depois passei para a Biblioteca e vi que este é o meu chão, mais propício para mim (Papoula).

Observamos que cada professora entrevistada se tornou contadora de histórias por desejo próprio, e, na docência, reconheceram a potência da mediação de leitura como elo entre os livros e seus alunos. Assim, seja atuando nas salas de aula, seja nas bibliotecas, foram desenvolvendo perfil de contadoras de histórias para fazer o texto literário vibrar. Suas narrativas revelam seus trajetos a partir da experiência cotidiana vivida e dá-nos a oportunidade de pensar na necessidade de investimentos na formação de contadores de histórias nas redes educacionais, pois, apesar desse ofício ser aprendido por elas na prática, mesmo realizando a atividade com paixão e prazer, a contação de histórias pede um exercício prático aliado aos fundamentos teóricos que sustentam essa modalidade de mediação de leitura. Sendo realizado no espaço escolar, a contação passa a ser um movimento tanto de formação de leitores, de aproximação da criança com o livro de literatura, quanto de educação estética e artística pela leitura do literário.

Neitzel e Ramos (2022) compreendem que uma experiência com a leitura do literário é estética quando provoca os sentidos, quando leva o leitor não apenas à interpretação racional dos textos, mas considera a leitura pelo corpo, pela emoção, pela sensibilidade. Uma relação estética com o texto preza pela fruição com a obra, observando seus efeitos de sentido, porque reconhece que os textos literários possuem uma dimensão lúdica, de encantamento, de apreciação que extrapola os sentidos dicionarizados, que mobiliza nossas percepções, sem negligenciarmos que todo esse movimento está unificado à reflexão, à razão. Não podemos pensar a função estética como algo que mobiliza apenas os sentidos ou a nossa subjetividade, visto que ela promove a integração, a unificabilidade da razão e da sensibilidade. A contação de histórias, ao lidar com o texto literário, necessita ser uma experiência estética porque a literatura tem uma função poética e não instrumental, a qual mobiliza o sensível e o inteligível. Nesse sentido, as professoras contadoras de histórias demonstraram o entendimento de que o movimento de contação de histórias necessita estesiar, que, nas falas delas, é traduzido pela paixão e pelo encantamento que elas têm pelas palavras.

Para Neitzel e Ramos (2022), além de ser uma experiência estética, a leitura do literário é uma experiência artística porque a literatura é arte, é resultado de um fazer humano, e a arte literária não é uma instrumentalização do uso da palavra, mas a elevação da palavra à potência, a uma conotação que torna o texto plural. As autoras refletem que: “Assim como o artista plástico transforma a pedra em uma obra de arte, ou a tinta em pintura, o escritor trabalha a palavra para torná-la literária, para transformá-la e tirá-la do espaço referencial no qual ela se institucionalizou, se dicionarizou” (Neitzel; Ramos, 2022, p. 4). Desse modo, a contação de histórias - ao trabalhar com este objeto estético e artístico que é a literatura - é uma potente mediação para não apenas mobilizar nos leitores o gosto pela leitura, mas também educá-los estética e artisticamente.

Considerações finais

Mas quando a aventura parece chegar ao fim,

as boas recordações vêm para lembrar…

...que o passeio sempre pode continuar.

(Lugones; Rampazo, 2017).

Lugones e Rampazo (2017) propõem, em seu livro de literatura infantil intitulado O passeio, uma odisseia que nos oportuniza a pensar, entre tantas coisas, na efemeridade da vida, na necessidade de aproveitarmos todos os movimentos dessa complexa jornada, de olharmos para aqueles que nos acolhem, lembrando que todo livro ensina, mas pelo viés artístico e estético, marca de toda boa literatura. Se a história chega às mãos de muitas crianças neste imenso Brasil, é, principalmente, pela voz das professoras contadoras de histórias que se reinventam a cada dia de docência para fazer brilhar os olhos de seus alunos diante de um livro. São elas, as professoras contadoras de histórias, que foram nossos sujeitos de pesquisa. Com elas, buscamos analisar as suas percepções acerca da mediação de leitura por meio da arte de contar histórias.

Pensamos ser pertinente pesquisar essa temática porque entendemos que a contação de histórias pode mobilizar muitas aptidões, entre elas a valorização dos conhecimentos historicamente construídos sobre o nosso mundo, visto que, por meio da literatura, o ouvinte pode entender melhor sua realidade. Além disso, a contação de histórias é um excelente exercício para a curiosidade intelectual, pois, ao mobilizarmos a imaginação, ativamos a criatividade, a reflexão, e, por meio dessas histórias, aparentemente despretensiosas, podemos criar soluções para os problemas de nossa vida cotidiana.

Não se trata, assim, apenas de pensarmos na contação como uma forma de ampliar o repertório cultural da criança ou a sua capacidade argumentativa e linguística. Muito já se escreveu sobre como o acesso à literatura pode levar o sujeito em formação a posicionar-se eticamente em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do nosso entorno. Ao trabalhar com diversas linguagens, verbais e paralinguísticas, essa forma de mediar o texto literário por meio da contação cria grupos de interação que podem oportunizar a compreensão do outro, partilhar informações e entender como as relações entre as pessoas se constituem e de como elas fazem parte de nossos projetos pessoais. Por isso, a contação de histórias é uma forma de valorizarmos e fruirmos a nossa produção artístico-cultural e, sobretudo, é um direito inalienável da criança à humanização promovida por este bem imaterial que é a literatura.

Como resultados, indicamos que as professoras contadoras de histórias contam histórias porque acreditam na potência dessa mediação para o agenciamento de leitores. Pudemos evidenciar, nas entrevistas, que a contação de histórias é ação fundamental para a relação do estudante com a literatura e o espaço escolar. O livro escolhido é um herói, como aponta Ramos (2010, p. 22). Nesse caso, além das instâncias de seleção para publicar um texto, entram as exigências da professora contadora. Escolher o livro é o primeiro passo, um livro cuja história seja potente esteticamente, que se configure, assim, como objeto estético e artístico, que possa desenvolver o senso estético da criança pelas literariedades que apresenta. Depois de o contador ler e familiarizar-se com a obra, entrar na sua intimidade e deixá-la entrar em si, é necessário estudar formas de traduzi-la, mantendo sua potência literária.

Vimos ao longo desta pesquisa que as professoras contadoras de histórias investem na contação pelo viés da leitura fruitiva, a qual entende o texto literário como objeto estético e artístico a ser apreciado. Diferentemente de um texto de outro gênero textual, o texto literário é um material carregado de conotações, de plurissignificações, um “texto estrelado” que invoca sentidos outros como acentua Barthes (1992, p. 18). A contação, quando pensada como mediação para a formação de leitores, necessita primar por este aspecto literário, provocar suspenses, estimular a relação de fruição entre público e obra, uma relação que se constrói, também, pelas fugas do texto, pelos seus silêncios.

Nossos sujeitos de pesquisa revelaram que desenvolvem a contação de histórias como uma mediação cultural carregada de afetos para provocar as crianças e os adolescentes. Suas narrativas apresentam como a contação repercutiu em suas vidas e, também, nas vidas dos estudantes, tendo em vista que seus relatos evidenciaram que, ao término de suas contações, muitos estudantes se organizavam para retirar as obras contadas ou emprestavam aos seus colegas, revelando o interesse pela leitura. Um desejo pelo texto que se origina na paixão, criando um sentimento de pertencimento naqueles grupos, laços afetivos que enredam e multiplicam olhares sobre a literatura.

Nossa pesquisa evidencia que as professoras contadoras de histórias aprenderam a arte de contar na prática da docência em sala de aula e ao atuarem em bibliotecas, demonstrando como esses dois espaços são potentes para a mediação cultural. Acreditar na sala de aula e na biblioteca escolar como espaços não apenas de pesquisa e de aprendizagens, mas também de trocas, de convivência, de encontros, de compartilhamento de experiências, torna possível reinventá-los dando lugar à criatividade e à liberdade.

Por fim, sinalizamos a necessidade de as redes de ensino oportunizarem formações aos seus professores para ampliarem suas posturas de mediadores culturais, encontros de estudo e partilha acerca daquilo que fundamenta essa prática. A escola pode ser mais do que um espaço de aquisição de conhecimentos, ela necessita ser um espaço de trocas culturais, de lazer, de beleza, de enriquecimento cultural, de desenvolvimento integral, de criação e de multiplicação de ideias, de inspiração e, claro, de produção de sonhos - muitos.

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Notes

FINANCIAMENTO Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Universidade de Caxias do Sul (UCS).
DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA Não se aplica.
COMO CITAR ESTE ARTIGO RAMOS, Flávia Brocchetto; VASCONCELOS, Roger Andrei de Castro; NEITZEL, Adair de Aguiar. A arte de viver e de contar histórias: experiências de professoras na Educação Básica. Educar em Revista, Curitiba, v. 40, e87633, 2024. https://doi.org/10.1590/1984-0411.87633

Author notes

O presente artigo foi revisado por Janete Bridon. Após ter sido diagramado foi submetido para validação do(s) autor(es) antes da publicação.


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