RESENHAS
QUAL O PAPEL DO CONSUMO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA CAPITALISTA?
QUAL O PAPEL DO CONSUMO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA CAPITALISTA?
Revista de Administração de Empresas, vol. 58, núm. 2, pp. 212-213, 2018
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo
![]() | ArrudaFontenelle Isleide. CULTURA DO CONSUMO. Fundamentos e formas contemporâneas. 2017. Rio de Janeiro, RJ. Editora FGV. 220 ppp. |
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Como explicar o papel do consumo na sociedade contemporânea capitalista a partir de uma visão mais holística que aquela habitualmente ensinada nas escolas de negócio? É essa a meta ambiciosa que a professora Isleide Fontenelle busca no livro Cultura do consumo: Fundamentos e formas contemporâneas. A partir de sua trajetória de pesquisadora e professora do tema na Fundação Getulio Vargas, a autora sintetiza 150 anos de história da relação entre consumo e capitalismo e propõe dois eixos teóricos que sustentam essa relação.
Fontenelle toma os estudos de Marketing, Publicidade e Comportamento do Consumidor como parte do objeto de análise, e não como campo próprio de investigação. Ela vai além da abordagem mais tradicional da Consumer Culture Theory (CCT), que procura compreender as escolhas e comportamentos dos consumidores a partir de uma perspectiva social e cultural, e não apenas econômica e psicológica. O livro é ambicioso justamente porque une essas duas perspectivas. Enquanto toma os campos do Marketing, Publicidade e Comportamento do Consumidor como objeto de análise, utiliza eixos teóricos da Economia e da Psicologia/Psicanálise para explicar o arcabouço estrutural da sociedade capitalista contemporânea.
Ainda que o livro seja composto por cinco capítulos, fica nítida a intenção da autora em dividir o trabalho em duas grandes partes. A primeira (capítulos de I a III) abarca quase dois terços da obra e faz uma retrospectiva de cerca de 150 anos das transformações do capitalismo e do consumo. Adotando uma subdivisão própria, porém inspirada em autores de referência, Fontenelle divide essa história em três fases: a primeira, fundamentos da cultura do consumo (1880-1945); a segunda, consolidação da cultura do consumo (1945-1990); e a terceira fase, a contemporânea, de 1990 até hoje. Essa primeira parte do livro tem um caráter mais descritivo, sem grande aprofundamento teórico. Já a segunda parte do livro (capítulos IV e V) traz uma perspectiva teórica mais aprofundada, sintetizando o desenvolvimento histórico do capitalismo e do consumo em dois eixos teóricos.
O capítulo I (Fundamentos) constitui aquilo que a autora denomina primeira fase da cultura do consumo, de 1880 a 1945. Essa fase é resultado de dois movimentos históricos essenciais, um econômico, a Revolução Industrial, e outro político, a Revolução Francesa. Juntos, esses movimentos deram forma à chamada "Era Moderna" e, consequentemente, ao "indivíduo moderno". A Revolução Industrial foi fundamental por dois motivos: aumentou a quantidade de bens produzidos que precisavam ser escoados e estabeleceu as bases de um tipo de consumo que, no capitalismo, funciona de uma forma diferente do consumo em outros modos de produção, o consumo de mercadorias. As mercadorias, no sistema capitalista, podem tomar formas distintas e sofrer ressignificações, em comparação à sua forma inicial. Isso faz com que o novo significado de uma mercadoria possa satisfazer necessidades mais amplas do que aquelas previstas quando ela foi produzida. A Revolução Francesa foi fundamental para a sustentação desse novo papel das mercadorias no sistema capitalista, pois instituiu novas possibilidades de mobilidade social e permitiu que os indivíduos fossem mais livres nas suas escolhas identitárias. Assim, o consumo das mercadorias deixou de ter o sentido histórico de destruição e passou a ter novos significados positivos, sustentando um mundo de liberdade e de expressão individual.
Para que pudesse haver essa transformação no significado do consumo e para que o sistema capitalista pudesse continuar se expandindo, várias outras transformações sociais ocorreram, por exemplo: melhorias na urbanização, dos transportes, nos sistemas de comunicação e de distribuição, criação das lojas de departamentos e do crédito ao consumidor, aceleração do ciclo de vida dos produtos e, principalmente, a criação das Relações Públicas (RP), do Marketing, da Propaganda e da Pesquisa de Mercado. É possível que alguns leitores discordem da separação feita pela autora sobre o papel do Marketing, RP e Propaganda, mas é inegável que, de maneira conjunta, eles ajudaram a construir as bases para o funcionamento contemporâneo do capitalismo.
O capítulo II retrata a consolidação da cultura do consumo, entre 1945 e 1990. Esse período tem como uma de suas características marcantes a abundância e a consequente busca da diferenciação das mercadorias por meio da transformação de sua imagem. Para que isso ocorresse, a pesquisa de mercado, o anúncio comercial (advertising ) e o branding (gestão das marcas) foram essenciais para a gestão do consumo, uma vez que a gestão da produção já havia sido equacionada. O capítulo traz mais exemplos sobre como as empresas geriram os investimentos em imagem do que uma análise teórica sobre o tema.
O capítulo III (formas contemporâneas do consumo) analisa como a cultura do consumo vem se reinventando, a partir de dois eventos centrais, as novas tecnologias da informação e a crise ambiental. A autora sintetiza as mudanças recentes em duas grandes "formas": o "consumo da experiência" (ou consumo hedônico) e o "consumo responsável". O primeiro reflete a busca das empresas para, além de satisfazerem necessidades utilitárias, proporcionarem experiências de consumo. O consumo da experiência baseia-se na noção de que vivemos a passagem de uma economia de compra e venda para uma economia do acesso. Já o consumo responsável é ancorado nas implicações ambientais, sociais ou individuais do ato de consumir. Ou seja, é uma reação ao consumismo exacerbado e predatório que prevaleceu ao longo da maior parte do capitalismo.
O ponto alto do livro, para os leitores com perfil mais acadêmico, provavelmente será o capítulo IV, já que o quinto e último capítulo traz apenas uma breve síntese da obra. É no capítulo IV que Fontenelle faz um aprofundamento mais teórico e menos descritivo sobre a cultura do consumo. Ela sintetiza essa cultura em dois eixos teóricos interligados, a Teoria do Capitalismo e a Teoria das Paixões. A Teoria do Capitalismo é baseada na noção de que existe um eixo econômico central na constituição da cultura do consumo. Ou seja, é preciso entender o funcionamento do sistema capitalista para poder compreender a cultura de consumo, especialmente que a essência desse sistema é a produção de excedente de capital e sua expansão permanente. A Teoria das Paixões sustenta que o escoamento das mercadorias e a expansão permanente do capital só podem ocorrer mediante a mobilização das "paixões" humanas. Ou seja, as pessoas precisam renovar seus desejos de consumo constantemente. Para sustentar seu argumento, a autora faz um mergulho nos principais teóricos do capitalismo e da Psicologia/Psicanálise, trazendo uma boa articulação entre as duas vertentes teóricas.
O livro é ambicioso, pois tenta descrever, em cerca de 200 páginas, a cultura do consumo. Obviamente, tal espaço limitado de páginas não permitiria uma análise aprofundada, o que não significa que o livro não tenha virtudes. Ele tem várias. Primeiro, é uma boa fonte para o leitor que quer ter uma visão rápida, porém bem articulada, sobre um processo histórico complexo. Segundo, traz um conjunto relevante de obras e autores de referência para quem quer se aprofundar no entendimento do consumo, seja em seu contexto mais histórico, seja sobre as teorias econômicas e psicológicas/psicanalíticas que explicam sua existência. Terceiro, ele é bem escrito, organizado e estruturado, proporcionando ao leitor uma agradável experiência didática de viajar no tempo para entender o mundo do consumo contemporâneo. O livro destaca-se por uma visão mais "horizontal" que "vertical" sobre a cultura do consumo. Ou seja, o leitor mais iniciante no tema, possivelmente, dar-se-á por satisfeito com a abordagem. Entretanto, é provável que os leitores já iniciados considerem o livro superficial em alguns pontos.
Autor notes
brei@ufrgs.br