Informe

335Experiências de interação de brasileiras com anúncios contraintuitivos protagonizados por mulheres negras

Interaction experiences of brazilian women with counterintuitive advertising played by black women

Experiencias de interacción de brasileñas con anuncios contraintuitivos protagonizados por mujeres negras

Francisco LEITE
Universidade de São Paulo, Brasil

335Experiências de interação de brasileiras com anúncios contraintuitivos protagonizados por mulheres negras

Chasqui. Revista Latinoamericana de Comunicación, núm. 133, pp. 335-356, 2016

Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicación para América Latina

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Recepção: 17 Junho 2016

Aprovação: 26 Julho 2016

Resumo: Esta pesquisa apresenta uma proposta de explicação sobre nexos de sentido que são produzidos quando da interação de mulheres brasileiras com narrativas publicitárias contraintuitivas que apresentam mulheres negras como protagonistas de seus discursos. É uma investigação qualitativa orientada pela interligação teórica das perspectivas do interacionismo simbólico e dos estudos da recepção (midiatização, mediações e interação), com foco na influência da mídia na (re) elaboração das identidades sociais, enquanto referencial teórico basilar e, pela Grounded Theory Construtivista, como abordagem metodológica.

Palavras-chave: Publicidade, grounded theory, midiatização, racismo.

Abstract: This research presents an explanation proposal about the meaning links that are produced when there is interaction between Brazilian women and counterintuitive advertising narratives, which show black women as protagonists of their discourses. It is a qualitative investigation oriented by the theoretical interconnection of perspectives of Symbolic Interactionism and Reception Studies (Mediatization, Mediations, and Interaction), focused on influences of the media in the (re)elaboration of social identities, as basilar theoretical referential, and through the Constructivist Grounded Theory, as a methodological approach.

Keywords: Advertising, grounded theory, mediatization, racism.

Resumen: Esta investigación presenta una propuesta de explicación de los nexos de sentido que se producen en el momento de la interacción de las mujeres brasileñas con narrativas de publicidad contraintuitiva, las cuales presentan mujeres negras como protagonistas. Se trata de una investigación cualitativa guiada por la interconexión teórica entre el interaccionismo simbólico y los estudios de la recepción (mediatización, mediaciones e interacción), centrándose en la influencia de los medios en el desarrollo de las identidades sociales, como marco teórico general y la Grounded Theory Constructivista como enfoque metodológico.

Palabras clave: Publicidad, grounded theory, mediatización, racismo.

1. Introdução

Este trabalho é uma proposta de continuidade e avanços aos estudos sobre as repercussões de sentido do estímulo contraintuitivo na comunicação publicitária brasileira (Leite, 2009, 2014; Fry, 2002). As articulações produzidas pela sua execução contribuem com os estudos dos meios e da produção mediática que abordam a publicidade como objeto, visto que a originalidade desta investigação se pauta pela construção de uma teoria substantiva sobre as experiências de interação de mulheres brasileiras – brancas e negras – com a publicidade contraintuitiva, compreendendo a partir de seus olhares os significados e repercussões de estereótipos1 associados às mulheres negras. Em outras palavras, os resultados compartilhados neste artigo apresentam recortes de uma proposta de explicação sobre os nexos de sentido que são produzidos quando da interação de mulheres brasileiras com narrativas publicitárias contraintuitivas que oferecem visibilidade dos discursos de mulheres negras atuando como protagonistas.

O anúncio contraintuitivo (Leite, 2009, 2014) pode ser considerado como uma proposta do campo profissional publicitário que, estrategicamente, faz uso em suas narrativas de “outros/novos” conteúdos acerca de estereótipos dirigidos às minorias sociais2, isto é, de “moderadores contraestereótipos” (Blair & Benaji, 1996; Blair & Lenton, 2001; Dasgupta & Greenwald, 2001), com o objetivo principal de inovar e promover as suas tentativas de apelo para o consumo mercadológico, “violando expectativas intuitivas” (Upal, 2007; Boyer, 2001) dos receptores acerca dos discursos tradicionalmente veiculados pela publicidade.

É na densidade das margens do objetivo mercadológico – ao despertar a atenção dos receptores, dar visibilidade e proporcionar o contato social com discursos mais positivos acerca de grupos estigmatizados – que esta narrativa pode estimular diferenciadas leituras, direcionando percepções para outras sensibilidades com relação à presença desses indivíduos na sociedade. Isto porque, tais narrativas colaborariam cognitivamente para o deslocamento ou atualização de conteúdos (crenças) negativos que governam os estereótipos atribuídos aos membros das minorias sociais.

Em suma e, em virtude dessas possibilidades, a reflexão que estimula a construção do saber desta pesquisa é compreender como a publicidade – com suas inovações discursivas, como a estratégia contraintuitiva – pode, por meio dos usos e consumo de suas narrativas midiáticas, repercutir e contribuir socialmente para o estabelecimento de (re)orientações sociais e cognitivas em prol de indivíduos alvo de inscrições estereotipadas e preconceituosas.

É na busca de responder tais objetivos que esta investigação inicia o seu trabalho empírico, enfrentando a seguinte problematização aberta e gerativa: Como a publicidade contraintuitiva, com a presença de mulheres negras, repercute nas estruturas de conhecimento e experiências da mulher brasileira? Quais efeitos de sentido (significados) são produzidos pelas lógicas de interação da mulher com o dispositivo publicitário contraintuitivo nos espaços e práticas da recepção?

2. Referencial teórico

O interacionismo simbólico (Mead, 1982; Blumer, 1980) e o aporte dos estudos da midiatização, recepção, interação, mediações, com foco nas influências da mídia na (re)elaboração das identidades (Martín-Barbero, 1987; Braga, 2015; 2012 & 2006; Thompson, 1998; Hepp, 2014; Hepp & Krotz, 2014) são as perspectivas teóricas que orientam as reflexões e sustentam esta pesquisa. Para situar o leitor e a leitora, apresentaremos um breve recorte sobre os aspectos centrais desse quadro teórico, tendo em vista o limite de espaço para a comunicação dos resultados da pesquisa.

Apesar de não apresentar um aporte teórico que responda a todos os desafios impostos pela comunicação no contemporâneo, de acordo com Vera França, o interacionismo simbólico é tanto uma frutífera perspectiva quanto uma contribuição teórica insubstituível para se “pensar o processo comunicativo, a dinâmica relacional, a configuração das interações” (França, 2008, p. 90), sendo uma relevante corrente para apoiar o avanço dos estudos de recepção e as discussões do campo sobre os reflexos da midiatização nas mediações sociais.

A tradição do interacionismo simbólico (Mead, 1982; Blumer, 1986 & 1980) indica que é no proceder da mútua afetação que os significados se estabelecem, produzindo sentidos pela interação dos indivíduos. Isto é, o seu realizar é operado quando os indivíduos se relacionam buscando abstrair e interpretar as mensagens que produzem e recebem frente ao outro e que podem modificar ou não contextos e esquemas sociais mediante a reflexividade deste processo. Tal dinâmica se articula concomitantemente com a recepção de mensagens e pela produção de respostas de sentido a estas.

Verifica-se assim, nessa atividade, “a extrema importância da comunicação no pensamento de Mead; ela é inseparável do ato social que ajuda a realizar. Como componente do ato, a comunicação intervém na construção [da mente], do self e da sociedade” (França, 2007, p. 10, grifo da autora). É portanto, pela interação social, a comunicação entre indivíduos e a intracomunicação que as estruturas e os repertórios de significados desses objetos são edificados e promovidos em escalas de efeitos de sentidos.

No entanto, França ainda enfatiza que “nem toda interação, como apontado anteriormente, é comunicativa [...]As interações comunicativas [...] se utilizam de gestos significativos. É a presença da significação, da linguagem, que delimita nosso terreno – embora os limites entre os dois campos sejam tênues” (França, 2007, p. 8).

É neste contexto que se pode manifestar um entendimento sobre a midiatização, seus discursos e o seu alcance nas mediações sociais, ou seja, é possível pensar em “interações comunicativas” e em “interações mediatizadas” (França, 2007, p. 9), sendo que a primeira seria o processo de interação direta entre os indivíduos e a segunda seria uma rede interpretativa e cooperativa que se forma na sociedade integrando entre outros objetos o mercado, os profissionais de comunicação e os indivíduos receptores, produzindo afetações mútuas entre eles pela midiatização de produtos midiáticos elaborados (p. e. publicidade, telenovela, notícias, etc.) em torno de uma determinada temática, que também busca estimular interações comunicativas ao alcançar a interpretação do outro.

Logo, associar esse repertório teórico às reflexões sobre as ativações interativas que podem ser estimuladas, por exemplo, por anúncios contraintuitivos que midiatizam a imagem de mulheres negras brasileiras como protagonistas indica um caminho relevante para observar o jogo interacional exercitado pelos indivíduos para a revisão e deslocamento de conteúdos estereotípicos negativos associados a essa minoria, indicando aqui a possibilidade da auto-interação, da auto-reflexividade, bem como os seus impactos e manifestações diretas no estímulo de respostas sociais positivas ou negativas mediante os mediabuilding, isto é, pelas “formas de aprender como desenvolver sua própria vida, em relação à sociedade, em um ambiente mediatizado” (Bauer, 2010, p. 2). Considerando nessa perspectiva sentidos em construção não hierárquicos elaborados/ desenvolvidos pelas competências midiáticas dos indivíduos mediante as experiências de interação e manejo dos símbolos presentes em narrativas da mídia.

Isto significa que a comunicação está relacionada com o uso de símbolos, os quais nós seres humanos aprendemos em nosso processo de socialização e que são principalmente “arbitrários” no sentido de que eles são baseados em regras socioculturais. Interação significa ação interrelacionada de seres humanos. Neste ponto, o termo comunicação se baseia no interacionismo simbólico, como é adaptado na pesquisa de comunicação e mídia (Krotz, 2008a). Comunicação, então, é constitutiva para a constituição humana da realidade; isso significa que “construímos” (porém não apenas) nossa realidade social mediante múltiplos processos comunicativos. (Hepp, 2012, p. 18, tradução nossa)

Nessa direção compreensiva, o aporte teórico desta investigação também considera os pressupostos da midiatização, o qual delibera sobre a compreensão de um horizonte de regulação social influenciado pelos discursos da mídia e suas negociações e construção de sentidos. Dessa maneira, ambas as perspectivas teóricas, interacionismo simbólico e midiatização, coadunam-se e complementam para o enquadramento interpretativo das reflexões edificadas neste trabalho. Ainda neste sentido Friedrich Krotz reforça que

Se seguirmos Berger e Luckmann (1980) e também George Herbert Mead (1934), o interacionismo simbólico e as posições teóricas relacionadas, nós podemos assumir que a sociedade, a cultura e todas as outras entidades sociais e culturais são socialmente construídas pelos indivíduos. Assim, podemos concluir que a comunicação é a relevante conexão entre a mudança das mídias e as mudanças na cultura e na sociedade. (Krotz, 2014, p. 82, tradução nossa).

No entanto, para Hepp e Hasebrink (2013), faz-se necessário e urgente elaborar um conceito de médio alcance que abarcasse com expressividade as nuances dialógicas e as potencialidades de conjunção dessas perspectivas, isto é, que se consiga fundamentar a ideia geral da midiatização na interação social e simbólica e que se viabilizem pesquisas científicas pautadas por essa direção. Com isso e, com base nas propostas de Norbert Elias (1978) sobre configurações3, eles sugerem o termo “configurações comunicativas” (Hepp & Hasebrink 2013, p. 18) para abarcar a amplitude reverberada pela realização de enquadramentos contextuais produzidos pela midiatização nas mediações sociais.

De acordo com Andreas Hepp, o conceito de midiatização deve ser “usado para analisar a interrelação (de longo prazo) entre a mudança da mídia e da comunicação, por um lado, e a mudança da cultura e da sociedade, por outro, de uma maneira crítica” (Hepp, 2014, p. 51). Logo, no seu olhar, a midiatização precisa ser pensada numa perspectiva mais abrangente e nesse sentido um caminho seria considerar as suas manifestações nos contextos de “mundos midiatizados” (Hepp, 2014; Krotz & Hepp, 2014). Estes que, inicialmente, devem ser entendidos como “pequenos mundos da vida” (Luckmann, 1970) ou “mundos sociais” (Shibutani, 1955; Strauss, 1978), que em sua forma presente dependem constitucionalmente da articulação realizada pela comunicação midiática.

Os mundos midiatizados são o nível no qual a midiatização se torna concreta e pode ser analisada empiricamente. A análise de tais realidades parciais “como mundos midiatizados significa pesquisar empiricamente a maneira pela qual sua construção comunicativa é institucionalizada e reificada pelas várias mídias, assim como sua construção comunicativa resulta em uma mudança das próprias mídias” (Hepp, 2014, p. 53-54).

Nesta linha, a investigação acerca da midiatização “não corresponde, então, a explicar ocorrências singulares pela indicação das lógicas supostamente inexoráveis que se encontrariam em ação. Corresponde antes estudar as experiências sociais de produção de circuitos e de dispositivos interacionais” (Braga, 2008, p. 50), tentando perceber nessas imbricações, onde se produzem os significados e sentidos, bem como estão ocorrendo as mediações comunicativas para a estruturação de uma sociedade que competentemente use e consuma a sua mídia.

Dessa forma, com o objetivo de construir uma teoria substantiva que alcance as experiências de interações de mulheres brasileiras, brancas e negras, com anúncios contraintuitivos em seus mundos midiatizados, que definimos o percurso desta investigação seguindo os procedimentos e técnicas da Grounded Theory.

3. Metodologia

Este trabalho se configura como uma proposta de pesquisa de midiatização de característica socioconstrutivista direcionadas à contribuir com os “estudos mediáticos da publicidade” (Trindade, 2007) por meio de uma proposta metodológica qualitativa, desenvolvida a partir dos procedimentos e técnicas da Grounded Theory Construtivista (Charmaz, 2009)4.

A Grounded Theory – identificada neste trabalho também como GT – é uma abordagem metodológica alicerçada em dados. Tais dados devem ser construídos e revelados a partir de um forte processo dialógico entre pesquisador e pesquisados, buscando evocar as experiências vividas dos participantes da investigação. A principal proposição fruto desta orientação metodológica é a construção de teorias substantivas5 capazes de explorar e articular explicações baseadas nas realidades em dos indivíduos, sobre determinados fenômenos socioculturais.

4. Contextualização e participantes

O trabalho empírico desta investigação foi realizado, no período de agosto de 2013 a outubro de 2014, junto a mulheres negras e brancas, acima de dezoito anos, de diferentes classes econômicas, na Grande São Paulo, Brasil. Elas colaboraram fornecendo dados relevantes à pesquisa, que indicavam “opiniões, sentimentos, intenções [...], bem como os contextos e as estruturas de suas vidas” (Charmaz, 2009, p. 30).

De início, para a organização do corpus da pesquisa, ou seja, para começar a construção da amostra teórica6, foram localizadas duas informantes, uma branca e uma negra, por indicação de mediadores – indivíduos terceiros, conhecidos e próximos do pesquisador. Posteriormente, a ampliação do corpus foi realizada mediante a aplicação da técnica snowball (Baldin & Munhoz, 2011, p. 332).

Em conformidade com os procedimentos da GT, o número de entrevistadas não foi estabelecido a priori, pois como informado a amostragem desta investigação atendeu a perspectiva da amostragem teórica. Assim, foram entrevistadas vinte e quatro mulheres (entre dezenove e sessenta anos), sendo que três delas foram convidadas para novas entrevistas com o objetivo de aprofundamento de temas emergidos. Dessa maneira, a pesquisa agregou vinte e sete entrevistas sendo as informantes quinze mulheres que se autodeclararam negras e doze que se autodeclararam brancas.

Os nomes das informantes foram preservados, garantindo assim a confidencialidade. Elas estão identificadas ao longo deste texto pelas iniciais de seus nomes e sobrenomes.

5. Materiais e métodos

Para a “produção dos dados” (Richards & Morse, 2007) foi utilizada principalmente a técnica de entrevista em profundidade apoiada pela técnica de observação7. As observações foram registradas no caderno de campo do pesquisador se constituindo como material para a produção de memorandos sobre o processo de experiência do pesquisador em relação aos conteúdos e reflexões produzidos nas entrevistas.

Após a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a entrevista era iniciada, com questões gerais sobre o entendimento das informantes com relação à publicidade brasileira. Na sequência, para suportar a produção de dados junto à informante, eram apresentados os nove anúncios considerados contraintuitivos (figura 01). Essas peças foram escolhidas pelo autor e seu orientador de doutorado, do qual esse artigo é fruto, mediante uma pesquisa documental realizada na base de dados de anúncios contraintuitivos organizada pelo pesquisador desde 20048.

Conjunto de nove anúncios utilizados nas entrevistas
Figura 1
Conjunto de nove anúncios utilizados nas entrevistas
Revistas Isto é (2013), Exame (2011), Isto é (2012), Exame (2010), Exame (2011), Veja (2013), Veja (2013), Época Negócios (2012) e Rolling Stones Brasil (2008).

O critério para a escolha dos anúncios foi a visibilidade que suas narrativas davam à mulher negra em contextos de protagonismo qualificados de representação de trabalho, educação, finanças, realização/conquistas e sucesso profissional. Esse critério contextual, definido para as narrativas dos anúncios escolhidos, pautou-se fortemente pelos dados da Pesquisa das Características Étnico-raciais da População, realizada em 2008, que revelou ser a vida dos indivíduos influenciada por sua cor ou raça, sendo que tal influência era observada principalmente nas dimensões do trabalho, convívio social, espaço escolar etc.

Considerando tal direcionamento, os anúncios foram extraídos da mídia impressa – especificamente de revistas brasileiras – e não necessariamente veiculados nos “fluxos midiáticos” (Piedras, 2009) no período em que as entrevistas foram realizadas. Dessa forma, tais anúncios foram selecionados especialmente para se compreender os significados que podem ser produzidos quando do momento inicial de interação das mulheres com as suas narrativas.

Portanto, observando essa lógica, o conceito de “ponto de contato” (Trindade, 2008; Di Nallo, 1999) se apresenta mais pertinente para se entender o contexto de interação produzido quando das entrevistas, visto que o entendimento desse termo aponta para uma situação específica de interação com uma mensagem midiática, ou seja, uma situação distinta de uso e consumo mediático do discurso publicitário.

Retornando à dinâmica da entrevista, com a apresentação dos anúncios, o entrevistador solicitava às entrevistadas que escolhessem de início apenas um deles, conforme seus critérios. Com a escolha feita, o diálogo sobre as motivações da escolha e a sua compreensão sobre o anúncio eram desdobrados. Após os comentários sobre o primeiro anúncio, era solicitado que, também conforme seus critérios, ordenasse os anúncios, inclusive o escolhido inicialmente, considerando a escala numérica de um a nove. As entrevistadas também eram questionadas sobre as razões que as motivaram a fazer suas organizações e, posteriormente, considerando distintamente cada anúncio, a entrevista prosseguia com o suporte de um roteiro semiestruturado.

6. Análise dos dados

A análise dos dados foi realizada conforme os procedimentos sistematizados de comparação constante da GT, considerando as etapas de (1) codificação inicial, que pauta-se pela construção de códigos abertos; (2) codificação focalizada, quando os códigos iniciais são agrupados em conformidade com suas consonâncias e dissonâncias conceituais, bem como é nessa fase que se originam as primeiras categorias da pesquisa; (3) codificação teórica, que tem a proposta de integrar as categorias construídas sobre o fenômeno investigado. Nesta etapa também se busca identificar e definir a core category que tenha o potencial de integrar todas as categorias elaboradas permitindo, dessa forma, o desenvolvimento de um quadro explanatório fundamentado nos dados.

Esse proceder comparativo iniciou-se, especialmente, com a transcrição verbatim do áudio de cada entrevista. A análise dos dados e o processo de codificação também foram apoiados pelo uso do software de análises qualitativas NVivo.

Nos próximos tópicos serão apresentados apenas alguns recortes dos resultados da investigação que como produto final construiu o modelo teórico “Experiências de interação de mulheres brasileiras com anúncios contraintuitivos”. Neste trabalho, entretanto serão compartilhadas as dimensões de sentidos que articulam a categoria “Percepções e alertas sobre interpretações diversas e adversas dos anúncios”. Para a compreensão da estrutura dessa categoria o leitor e a leitora devem considerar que o nome está redigido em letras maiúsculas, as subcategorias com letras minúsculas e grifadas com negrito enquanto os componentes das subcategorias estão destacados em itálico e sublinhados.

7. Resultados

A categoria Percepções e alertas sobre interpretações diversas e adversas dos anúncios busca refletir primeiramente o posicionamento sobre a diversidade de interpretações que podem ser produzidas quando da interação com o discurso publicitário contraintuitivo no social. E a partir dessas interpretações, especialmente ao considerarem a imagem da mulher negra como protagonista, direcionam-se olhares que problematizam os significados do uso e consumo da presença qualificada de mulheres negras nos anúncios. Tais olhares consideram tanto às intenções dos anunciantes bem como os seus reflexos de consumo e produção de significados junto aos indivíduos nas mediações sociais.

Para elucidar o conjunto teórico dessa categoria, serão explicitadas sua relação com duas subcategorias denominadas Interpretações dos Anúncios Dependem do Ponto de Vista do Indivíduo . Identificação e Alerta de Mensagens Ocultas e Adversas no Uso Positivo da Imagem do Negro.

Categoria Percepções e Alertas sobre Interpretações Diversas e Adversas dos Anúncios
Diagrama 1
Categoria Percepções e Alertas sobre Interpretações Diversas e Adversas dos Anúncios
Elaboração própria.

Interpretações dos Anúncios Dependem do Ponto de Vista de Cada Indivíduo traz a consciência das mulheres sobre a diversidade de interpretações que uma narrativa, sendo publicitária ou não, pode ter. Isto porque cada indivíduo quando interage com um estímulo narrativo o interpretará de acordo com os seus repertórios de conhecimentos e crenças construídos ao longo de suas experiências sociais.

Desse modo, é latente nos discursos das mulheres o entendimento sobre a singularidade e a capacidade que cada indivíduo tem ao produzir os seus contextos interpretativos.

Cada um tem uma leitura diferente. Eu não sei falar, pois o que eu falar será a minha leitura e não a de nenhuma outra pessoa. Eu acho que todas elas [publicidades] podem ser interpretadas de maneiras diferentes. Isso vai de pessoa. (SA, mulher negra) É difícil abrir a boca e falar qualquer coisa, pois cada um vai entender diferente. Cada um tem um ponto de vista. Eu entendi desse jeito e outra pessoa já vai entender diferente. Eu entendo de várias formas. Outras pessoas vão ter várias leituras, cada uma pensando do seu jeito. (MALA, mulher branca)

Portanto, pode-se compreender que seria consenso para as mulheres que nem todos os indivíduos entendem um anúncio da mesma forma, pois a compreensão e a defesa das mensagens e seus significados se estabeleceriam diversamente, em conformidade, por exemplo, com as crenças, o esclarecimento educacional e cultural dos seus receptores. Portanto, não existiria uma unanimidade interpretativa.

Nesta linha, é na arena dessas múltiplas interpretações possíveis que a subcategoria Identificação e Alerta de Mensagens Ocultas e Adversas no Uso Positivo da Imagem do Negro se projeta. Esta subcategoria é articulada por cinco componentes que fortalecem o seu entendimento e indicam um avanço na compreensão dos usos e consumos da presença da mulher negra como protagonista em anúncios contraintuitivos, a saber: Observando Mensagens Obscuras - Parece e Não Parece; Exploração de Mensagens Intrínsecas à História do Negro; Imagem do Negro Desperta Atenção de Pessoas Comuns; Comunicação da Mensagem - Todos Podem - pela Imagem do Negro.

Para uma compreensão mais adequada dos componentes dessa subcategoria, no diagrama 2 eles são apresentados de modo a ilustrar as suas correlações teóricas de sentido.

Observando Mensagens Obscuras – Parece e Não Parece revela os olhares das mulheres sobre a identificação de alguns traços confusos nas narrativas publicitárias em relação ao uso da imagem da mulher negra. Apesar de apresentarem a mulher negra em posições positivas, os anúncios em certas perspectivas, possibilitam uma elasticidade interpretativa dúbia, isto é, positiva e ao mesmo tempo negativa.

Subcategoria Identificação e Alerta de Mensagens Ocultas e Adversas no Uso Positivo da Imagem do Negro
Diagrama 2
Subcategoria Identificação e Alerta de Mensagens Ocultas e Adversas no Uso Positivo da Imagem do Negro
Elaboração própria.

A abertura para essas interpretações ambíguas se estabeleceu devido aos contextos não muito explícitos das mensagens em relação à imagem da mulher negra, o que ocasionou inclusive desconfortos cognitivos, ou seja, abertura para dúvidas sobre as posições e papéis sociais propostos na utilização da imagem da mulher negra nas representações das narrativas publicitárias escolhidas.

Dessa forma e, devido a esta ambiguidade, os anúncios estimulam as mulheres receptoras a questioná-los sobre a possível existência de preconceitos associados às mulheres negras, pois ao interagirem com os anúncios muitas delas numa primeira leitura não percebem expressões de preconceito, mas num segundo momento sim, porém de modo incerto, duvidoso. É uma controvérsia que não deveria existir e/ou ser provocada pelos anúncios. Dessa maneira, tal dissonância precisa ser observada com mais atenção pelos produtores da publicidade, tendo em vista a expressiva sensibilidade que demanda o uso da imagem da mulher negra em tais enquadramentos midiáticos.

Não sei o que pensar não. Parece preconceito, mas também não parece. Ela está de social, mas por que ela está na grama? Não sei parece que é tipo um preconceito, mas não um preconceito [expressando dúvida]. Por que na grama? Eu não entendi isso. (GLSS, mulher negra, sobre o anúncio da MBA FGV)

Ela [publicidade] é muito bonita. Mas, eu não sei. O recado dela é meio dúbio. [pensando sobre o anúncio]. Do mesmo modo que eu vi essa negra linda e maravilhosa aqui com essa bacia de chocolate, que dá até água na boca, com esses docinhos mostrando que ela é uma empresária. Tá certo!? [...] A publicidade também me fez pensar numa negra na cozinha. (NMA, mulher branca, sobre o anúncio Itaú Franquias)

As interpretações acima auxiliam a compreensão acerca dos questionamentos sobre as controvérsias dos anúncios, pois quando as mulheres interagem com as narrativas, diversas tentativas para compreendê-las são pré-ativadas pela imagem da mulher negra.

Como se observa, para algumas das entrevistadas a associação controversa pode ser traduzida na desconexão entre o contexto no qual a mulher negra está inserida e os outros elementos discursivos do material, pois de acordo com suas leituras, a lógica dos anúncios é expressada de modo confuso. Por exemplo, no anúncio do MBA da FGV a mulher negra representa uma provável executiva e estudante de MBA, entretanto sua imagem foi inserida num cenário que não guarda relação direta com o ambiente empresarial, o que seria mais adequado para a oferta do anúncio e sua linha criativa. Outra ambiguidade observada se estabelece no anúncio do Itaú Franquia, onde a mulher negra é identificada na redação como empresária, porém todos os elementos criativos do contexto direcionam para associação a uma cozinheira e não a empresária, proposta pelo anúncio. O anúncio Caixa Investidor também produz certo desconforto após a leitura da mensagem publicitária, ao associar à imagem de uma mulher e homem negros a expressão “qualquer que seja seu perfil”.

São nestes pontos de exemplificação que se estabeleceriam as dúvidas do que parece preconceito e não parece, expressadas pelas leituras dos anúncios que tentam utilizar as imagens de mulheres negras como protagonistas. Percebe-se assim um direcionamento para novos usos da imagem dos negros nos discursos publicitários, porém tais usos continuam atravessados por polêmicas.

No entanto, apesar desses desvios interpretativos, as mulheres enfatizam que só o fato de mulheres negras protagonizarem anúncios deve ser visto como algo positivo, pois essas inserções estimulariam uma percepção social diferenciada dos negros e das negras na sociedade, mesmo sob os riscos das interpretações dúbias promovidas.

O componente Exploração de Mensagens Intrínsecas à História do Negro corresponde à atenção das mulheres sobre um possível jogo utilizado pela publicidade para inserir o negro nas suas narrativas como protagonistas. Esse caminho para a inserção se estabelece pelos significados das marcas que os negros carregam de sua história acerca da superação da escravidão.

Desse modo, estrategicamente e de forma sutil, quando as narrativas dos anúncios utilizam negros como protagonistas, tentariam transmitir a expressão simbólica de luta dos negros para a superação da escravidão e suas conquistas de oportunidades sociais. Obviamente, essa mensagem seria transmitida de modo estético e eticamente sutil, buscando alcançar a memória coletiva social sobre tais conquistas, sob uma contextualização contemporânea alinhada à abordagem do anúncio.

Grosso modo e, pela leitura destes anúncios, busca-se conduzir ao seguinte entendimento: os negros antigamente tinham uma realidade sofrida (devido à escravidão), porém eles lutaram, hoje conquistaram (a liberdade) e estão conquistando os seus objetivos de realização social. Esta leitura procuraria promover a mensagem: Você também pode! Isto é, se até o negro conseguiu com todo esse histórico de luta, você (a sociedade em geral, que não enfrentou os desafios vividos pelos negros) também pode conquistar o que está sendo ofertado no anúncio com apoio da imagem da mulher negra.

Esta interpretação alerta para o entendimento de um provável uso estratégico de viés cognitivo da imagem dos negros na publicidade. Pois, em tais discursos ele teria a sua imagem, indissociavelmente marcada pelo histórico da escravidão, explorada nos anúncios para atingir e estimular outros indivíduos, inspirando-os e motivando a buscarem aquele produto e seus benefícios, como o negro fez no espaço simbólico dos anúncios. Ou seja, para tais indivíduos não negros a conquista dos contextos ofertados nos anúncios seria, diga-se pela alusão publicitária, mais fácil do que para os negros.

De um lado, a percepção dessa possível estratégia utilizada pela publicidade incomoda as mulheres, tendo em vista que os anúncios explorariam a imagem do negro por meio da continuidade com o histórico da opressão. Por outro lado, há também o reconhecimento que o uso da imagem da mulher negra, por exemplo, carregaria para os anúncios uma mensagem mais convincente, de otimismo e força.

Diante desta disparidade, cabe amadurecer essa interpretação, tendo em vista que mesmo frente ao uso velado da imagem dos negros como protagonistas e destaques, essa seria uma forma de estimular novas aberturas para a circulação adequada da imagem deles em discursos midiáticos como o publicitário, para além do lugar comum das representações subalternas que lhes é geralmente reservado. Assim, apesar da possibilidade do “efeito subliminar disfarçado”9, talvez, seja mais desafiador enfrentar tais possibilidades para compartilhar e aprimorar “novas/outras” perspectivas de circulação da imagem dos negros nos espaços da mídia. Portanto, a atividade seria enfrentar tais ocorrências simbólicas para as ressignificar.

Como desdobramento dessa percepção, tem-se a representação interpretativa Imagem do Negro Desperta Atenção de Pessoas Comuns, que marca o entendimento sobre a quem os anúncios com a imagem de negros seriam direcionados. Para as mulheres, a imagem do negro nos anúncios comunica diretamente com indivíduos comuns do dia a dia, com o povo ou mais precisamente os indivíduos que formariam a classe econômica C no Brasil, a quem a imagem do negro transmite a mensagem de incentivo “se lutar, consegue”.

Com a imagem do negro não fica mais aquela coisa que só pessoas ricas e brancas conseguem alcançar seus objetivos na vida. Todos agora se lutar conseguem. Então eu acho que seja uma forma de incentivo também. [...]. Não foi ingenuamente, pois esta população é a maioria da população brasileira. (VL, mulher negra)

Ser uma “pessoa comum” não expressaria nenhuma conotação negativa, apenas refletiria o sentido de povo, de massa. É nesse gancho que a imagem do negro seria geralmente usada para alcançar e estimular as pessoas comuns, que formam “o povão”. Logo, os anúncios com indivíduos negros estimulariam esse conjunto de indivíduos a lutar pelos seus objetivos para desse modo ganharem destaque socialmente, via consumo das ofertas publicitárias.

Fortalecido por essas interpretações, é que se revela o componente Comunicação da Mensagem - Todos Podem - pela Imagem do Negro. Pelas interações das mulheres negras e brancas com os anúncios contraintuitivos com a presença de mulheres negras em papéis de protagonistas, algumas questões foram salientadas, como o uso da imagem da mulher negra (e do negro) para expressar para a sociedade a possibilidade de que quaisquer e/ou todas as pessoas poderiam alcançar os seus objetivos de consumo indicados nas narrativas da publicidade. Porém, o que isso significaria?

De um lado, isso talvez signifique que provavelmente o uso “mais qualificado” da imagem do negro esteja demarcado estrategicamente na publicidade, ou seja, a veiculação da imagem do negro e da negra servem à publicidade como um facilitador na comunicação com a sociedade, especialmente junto às classes econômicas mais populares. De outro lado, este motivador positivo pode provavelmente esconder uma estratégia preconceituosa e velada, que utiliza o histórico de superação dos negros, marcado pela profunda opressão da escravidão no Brasil. Em outras palavras, a publicidade exploraria a memória coletiva acerca da história de exploração e opressão social do negro. Isso, para demonstrar que, se até esses indivíduos com todas as dificuldades enfrentadas cotidianamente conseguiram e estão conseguindo atingir os objetivos ilustrados nos anúncios, também você – qualquer outra pessoa não negra –, até com certo nível de facilidade, poderia alcançar.

Desse modo, a imagem do negro carregaria a mensagem intrínseca (priming) de superação que é explorada pelo campo publicitário para estimular um provável jogo cognitivo no processamento informativo dos indivíduos frente aos contextos dos anúncios, associando a imagem do negro a estímulos de conquistas sociais e econômicas.

Porém, essas lógicas apontadas revelam alguns pontos de interesse que precisam ser problematizados. O primeiro é a potencial existência de ressignificação do preconceito direcionados aos negros pela publicidade, que ao fazer uso de suas imagens em papéis de protagonistas os direcionam sempre para mensagens de conquistas, especificamente, localizando-os no início de situações de conquistas. Dificilmente os negros aparecem nos contextos publicitários em representações mais avançadas e usufruindo dos benefícios das conquistas celebradas nos anúncios.

Outro ponto é o apelo que explora as questões históricas de opressão associadas aos negros para explicitar superação. Esse uso sinaliza um disfarce do discurso publicitário para atender a uma demanda de mercado, porém a imagem do negro frente a tais abordagens continua fortemente associada a contextos negativos, pois para mostrar um avanço social do negro, a publicidade (in) voluntariamente explora elementos associados à superação, estimulando para o seu entendimento um resgate cognitivo nas bases da memória coletiva acerca das condições da escravidão.

Logo, isso pode ser considerado como a promoção direta de um preconceito disfarçado, que abrange um contexto confuso e, que (in)diretamente, é responsável por reforçar conteúdos negativos ressignificados mediante um discurso esteticamente positivo acerca do negro na sociedade.

8. Discussão dos Resultados

A percepção das relações de sentido da publicidade como estrutura de vínculos e conexões complexas é compartilhada nos discursos das mulheres que a compreendem plenamente como um discurso multifacetado de origem mercadológica, com relevante expressividade, ou seja, como uma fonte de polarização de experiências mediadas, potencialmente (re)modeladoras dos selves dos indivíduos que interagem com o universo simbólico dos seus discursos.

Com a compreensão desta lógica, entre “as experiências vividas e experiências mediadas” (Thompson, 1998), o conhecimento produzido nesta pesquisa ganha relevo para ser discutido e considerado sob bases catárticas de articulação multifacetada. Nesta condução, pelos olhares das mulheres brasileiras – brancas e negras –, outros pontos a serem observados são os fatores que organizam a percepção delas para identificação e alerta de mensagens ocultas e adversas na sugestão do uso positivo da imagem do negro nos anúncios contraintuitivos.

Esses dados são interessantes, pois deflagram o entendimento das mulheres sobre algumas potenciais mensagens ambíguas que podem promover uma reflexibilidade interpretativa, ou seja, eles refletem alertas e questionamentos das mulheres sobre as intenções e os efeitos dos anúncios diante da imagem de mulheres negras como protagonistas.

Essas imagens podem estar articuladas por discursos sofisticados que promovem desvios interpretativos, isto é, eles produzem propositalmente leituras dúbias e contrastivas, que possibilitam questionamentos acerca da existência ou não de preconceito no percurso discursivo publicitário apresentado.

Tais desvios interpretativos podem ser promovidos por um processo criativo publicitário desatencioso que, por exemplo, não se pauta quando do uso da imagem de negros em suas criações narrativas, por desconsiderar as sutilezas e sensibilidades que tal imagem exige.

Nesta linha, outro ponto original trazido à tona pelas mulheres é a sensível questão da exploração estratégica pela publicidade das mensagens intrínsecas que os negros carregam devido à sua história de luta e superação da escravidão. Essas mensagens servem como um pré-estímulo10 – apoiado por uma lógica atencional –, para indiretamente instigar os seus receptores a conjeturar sob as possibilidades de se alcançar as posições sociais promovidas nos anúncios pela representação de mulheres negras.

Essa utilização da imagem de negros representa um jogo demarcado que busca alcançar uma audiência que, de um lado, não integra a categoria social negro, pelas margens de uma mensagem subentendida que expressa o seguinte significado: se os negros, com o histórico de sofrimento e atraso para conquistas sociais devido à escravidão, como demonstra o anúncio, conseguiram alcançar tais posições qualificadas na sociedade, imagine vocês que não são negros! Por outro lado, tais mensagens também tentam falar com os negros via identificação de sua imagem em destaque na publicidade. Logo, a imagem do negro comunicaria a ampla mensagem “Todos podem!”. Mas, o que expressaria esse termo “todos”? A motivação do uso da comunicação da imagem dos negros em anuncios como protagonistas é dirigida estrategicamente a todas as pessoas comuns, isto é, ao povão.

Hipoteticamente, o interesse da publicidade no uso mais frequente, porém não ideal, de negros e negras se deve ao fato desses indivíduos representarem agora uma considerável parcela da nova classe média brasileira, bem como a “maioria da população brasileira” (IBGE, 2010). Os negros estão agora sendo destacados entre os grupos que protagonizam o consumo no Brasil.

É nesta linha da perspectiva econômica que, de acordo com os resultados desta investigação, a publicidade está se movimentando para considerar a imagem dos negros e negras em suas narrativas. Entretanto, tal movimentação não deve ser observada dentro de uma proposta direta de conscientização social dos anunciantes, mas sim pelos interesses na atual posição de consumo do negro no mercado. É principalmente o fator econômico que está estimulando gradativamente o reposicionamento da publicidade a considerar de modo mais atencioso a representação dos negros em suas narrativas.

Essa interpretação do fator econômico dialoga plenamente com o que Muniz Sodré (1999) já alertava no final dos anos 1990, quando indicava que essas “novas” posturas da publicidade em consideração ao uso da imagem dos negros, comumente, refletia um simulacro pautado pelos radares mercadológicos que identificavam a potencialidade de “bolsões de renda concentrada” nesse grupo social.

No entanto, apesar desse incipiente movimento para a inclusão dos negros na publicidade, especialmente, pelos estímulos mercadológicos, os dados desta investigação também alertam para que as ações da publicidade têm explorado, mesmo que indiretamente, a história de sofrimento dos negros no Brasil, isto é, a memória coletiva sobre a herança colonial. O objetivo central é se apropriar dos significados em torno a essa narrativa para promover discursos, que geralmente posicionam o negro em representações de início de conquistas sociais e pessoais. Dificilmente se verifica na publicidade um negro ou uma negra usufruindo de contextos positivos já conquistados. Isto é, não existe uma tradição que foque um contínuo de suas conquistas (p. e. de pai para filho desde...), mas se percebe nos discursos da publicidade expressões que focam em contextos de lutas, ou seja, de conquistas por lutas.

Este alerta exige atenção, pois ele pode indicar na realidade um “preconceito moderno” (Santos et. al., 2006) velado, que considerando essa diferenciada e aparente abordagem positiva, pode estar construindo de modo ressignificado um “novo/outro” lugar de limitação para a circulação e representação da imagem das negras e dos negros nas produções midiáticas.

Neste sentido, apesar da percepção da inclusão diferenciada – positiva e duvidosa – da imagem das negras e dos negros na publicidade, os resultados desta pesquisa apontam os olhares conscientes das mulheres para a persistência do racismo nas imagens publicitárias, que insistem ainda em alocar os negros nas margens e no silêncio discursivo da invisibilidade, mesmo diante das demandas sociais e conjunturas econômicas indicando a emergência de reposicionamentos.

Desse modo, diante dessa complexidade em torno aos usos e consumo da imagem dos negros na publicidade e na mídia, quais seriam os caminhos mais adequados para realizar a abordagem de suas representações em discursos publicitários? Pelos resultados obtidos neste estudo, sustenta-se a evidência de que a proposta de simplesmente inserir os negros como protagonistas de anúncios, em contextos positivos de representação, como propõe a lógica da publicidade contraintuitiva, não é suficiente para operar de modo efetivo o deslocamento de conteúdos estereotípicos, tendo em vista os elementos velados, como já discutido, que pré-atencionalmente podem estar presentes em suas dimensões de sentido.

No entanto, a condição da proposta da “configuração midiática” (Hepp, 2014) contraintuitiva de movimentar a estrutura dos conteúdos e estereótipos negativos não é descartada pelas mulheres brasileiras, que acreditam que a proposta publicitária, contraintuitiva ou não, pode sim colaborar nesse sentido pelo seu impacto de “violar a expectativa intuitiva” (Upal, 2007) dos estereótipos. No entanto, ela precisa ser aprimorada.

9. Considerações finais

Para os estudos acerca das repercussões da publicidade contraintuitiva, os resultados desta investigação representam um avanço e fornecem um amplo e fundamentado repertório de conhecimento empírico para esta área de estudo. O conhecimento empírico que estrutura o modelo teórico Experiências de interação de mulheres brasileiras com anúncios contraintuitivos, bem como o recorte apresentado sobre a categoria Percepções e alertas sobre interpretações diversas e adversas dos anúncios, busca explicitar as repercussões que tais anúncios podem produzir na sociedade – em seus aspectos individuais e coletivos – em decorrência das tentativas de deslocar conteúdos negativos de estereótipos atribuídos às minorias sociais como as negras e os negros brasileiros.

As contribuições desta pesquisa para o campo das ciências da comunicação se estabelecem na esfera da ordem científica teórica, pois as articulações de seus pressupostos teóricos e metodológicos objetivam como foco principal, a produção de uma GT sobre as experiências de interação de mulheres brasileiras com a publicidade contraintuitiva, ofertando ao campo uma pesquisa inovadora e inédita no Brasil sobre as manifestações de sentido da publicidade nos espaços da recepção.

Tais aportes também podem servir como referência para orientar e instrumentalizar outros estudos no campo. Podem ainda se manifestar na ordem social, pois o conhecimento produzido com base nas vozes e experiências das mulheres brasileiras permite criar alternativas que estimulem novos pensamentos, debates e outras considerações acerca da temática em relevo. Com isso, torna-se possível promover de algum modo intervenção nas reflexões sobre a realidade social contemporânea acerca do entendimento dos impactos operados pelos produtos midiáticos nas identidades.

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Notas

1. O entendimento de estereótipo utilizado neste trabalho advém dos contemporâneos estudos da psicologia social com base cognitiva que o compreende “[...] como crença coletivamente compartilhada acerca de algum atributo, característica ou traço psicológico, moral ou físico atribuído extensivamente a um agrupamento humano, formado mediante um ou mais critérios [...]”. (Krüger, 2004, p. 36-37).
2. Segundo Muniz Sodré, são consideradas minorias “os negros, os homossexuais, as mulheres, os povos indígenas, os ambientalistas, os antineoliberalistas etc.” (2005, p. 1).
3. De acordo com Hepp, foi Elias que cunhou o conceito de “configurações”, que na sua perspectiva deve ser entendido como “‘redes de indivíduos’ (Elias, 1978, p. 15) os quais constituem uma entidade social maior por meio da interação recíproca. Essa entidade pode ser uma família, um grupo, um estado, ou sociedade: “em todos esses casos, essas entidades sociais podem ser descritas como diferentes redes complexas de indivíduos” (Hepp, 2014, p. 55).
4. Termo traduzido em português como “Teoria Fundamentada em Dados (TFD), Teoria Enraizada ou Teoria Emergente” (Tarozzi, 2011, p. 12). No entanto, neste trabalho será utilizado o termo original Grounded Theory.
5. Glaser e Strauss (1967, p. 32-33) pontuaram a existência de duas principais tipologias de teorias: as formais e as substantivas. As primeiras são compostas pelo que eles denominam de grandes teorias, vistas como formais e abrangentes, enquanto o segundo tipo se refere às explicações para situações cotidianas, “que explicariam melhor as áreas específicas da pesquisa empírica já que essas teorias nasceriam diretamente de dados do mundo real” (Hutchinson, 1988 apud Bianchi & Ikeda, 2008, p. 233).
6. Em pesquisas de GT se observam dois vieses de amostragem que se complementam: a amostra inicial, que delibera sobre a participação e o perfil de indivíduos e locais, os quais subsidiarão o início da pesquisa; e a amostra teórica, que orienta os caminhos conceituais a serem explorados até a conquista suficiente de dados que apoiem a explicação de suas categorias (Charmaz, 2009 p. 158).
7. De acordo com Tarozzi, a peculiaridade da observação dentro da GT “é que esta é focalizada imediatamente na observação dos fenômenos e, sobretudo, dos elementos de processo definidos na pergunta da pesquisa, dando menor peso à descrição do contexto” (Tarozzi, 2011, p. 111). Logo, a proposta da observação não se pauta por realizar descrições detalhadas, mas é focada na produção de conceituações do processo em investigação.
8. Os anúncios apresentam as características indicadas em Leite (2009 e 2014).
9. O nome desse efeito na verdade é priming, ou seja, a presença destes elementos faz com que as pessoas tragam à cabeça coisas associadas a eles, ao contrário do efeito subliminar que não é visto e poderia em hipótese fazer a mesma coisa (ver Batista & Costa, 2011, p. 122).
10. Segundo Batista e Costa, pré-estímulos são “os conteúdos e formas de uma mensagem visual que estejam fora do foco principal da atenção do receptor e que, de alguma forma, afetem a recepção desta” (Batista & Costa, 2011, p. 122).
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