Resumo: O artigo analisa o programa Chão Legal em execução na bacia hidrográfica da Estrada Nova, identificando os conflitos emergentes pelo reconhecimento da posse e da segurança fundiária. Como protocolo, adota análise bibliográfica, leitura de documentos oficiais, acompanhamento de reuniões e entrevistas com moradores dos bairros selecionados, apresentando suas contestações e organizações. Os resultados indicam os limites e desafios para garantia da permanência dos moradores nos terrenos legalizados, pois os programas de regularização dificilmente conseguem promover a integração socioespacial.
Palavras-chave: Regularização FundiáriaRegularização Fundiária,Interesse SocialInteresse Social,Chão Legal-BelémChão Legal-Belém.
Abstract: This article analyzes the Chão Legal [Legal Ground] program, being executed in the Estrada Nova watershed, identifying the conflicts that have emerged through the recognition of land ownership and security. The study used a bibliographic analysis, a reading of official documents, the accompanying of meetings and interviews with residents in the selected neighborhoods and presents their contestations and organizations. The results indicate the limits and challenges to guaranteeing the permanence of the residents on the legalized land, because it is difficult for the land regularization programs to promote socio-spatial integration.
Keywords: Land Regularization, Social Interest, Chão Legal-Belém.
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Regularização fundiária e ações insurgentes na cidade de Belém: o caso Estrada Nova
Land Regularization and Insurgent Actions in the City of Belém: the case of Estrada Nova
Recepção: 26 Janeiro 2016
Aprovação: 15 Março 2016
O estudo tem por objetivo analisar o programa Chão Legal em Belém, Pará, identificando os conflitos emergentes uma vez que o reconhecimento da posse e a segurança fundiária são reivindicações históricas dos movimentos sociais urbanos1. A cidade é disputada por fortes agentes, a exemplo do mercado imobiliário formal. Do ponto de vista metodológico, a pesquisa recorreu a uma ampla bibliografia com recortes da teoria crítica, destacando-se os autores da questão urbana em diferentes escalas2. Trata-se de uma investigação sobre os conflitos urbanos cujos sujeitos são representantes do poder público municipal e das comunidades sob intervenção do Programa Chão Legal. A pesquisa baseia-se na observação direta com registro e análise documental do órgão responsável pela execução do programa, a Companhia de Desenvolvimento Metropolitano (CODEM), e também dos documentos produzidos pelos movimentos sociais atuantes nas áreas circunscritas ao programa. Como campo de observação da experiência, definiu-se as áreas circunscritas ao bairro do Jurunas e o bairro Cidade Velha, tendo como critério o fato de que essas áreas fazem parte do Projeto Portal da Amazônia cuja intervenção urbanística tem provocado inúmeras situações de conflitos entre a Prefeitura Municipal de Belém (PMB) e os moradores.
Na segunda metade do século 20 o Brasil vivenciou a agudização de sua inserção dependente no circuito internacional do capital na condição de exportador de matérias primas. Tal experiência foi marcada por um conjunto significativo de transformações econômicas e sociopolíticas com o aprofundamento e a aceleração de fenômenos sociais, tais como a exclusão e a pobreza, sobretudo a urbana. Nesse período, o crescimento populacional urbano superou o número de habitantes em relação ao meio rural, expressão de um complexo quadro de afirmação da cidade como lugar da materialidade da produção e da riqueza. Em escala nacional, Santos (2009) assinala o paradoxo evolução/involução urbana destacando a centralidade político-administrativa e principalmente econômica assumida pelas grandes cidades, catalisadoras de numerosa mão de obra - em sua maioria desqualificada - somando-se ao precário universo das periferias urbanas, materializadas por loteamentos clandestinos e irregulares, ocupações e favelas, habitações coletivas de aluguel ou cortiço e no caso amazônico as áreas alagadas3, expressões da irregularidade habitacional e fundiária no Brasil. Nesse sentido, Marx (1985) afirma que ao se apoderar da agricultura a produção capitalista diminui a procura absoluta da população trabalhadora rural, empurrando-a para a eminência de se transferir para as fileiras do proletariado urbano, formando uma superpopulação relativa flutuante, rebaixado ao nível mínimo de salário nas cidades e estando sempre com um pé no pântano do pauperismo.
Algo análogo ocorreu no Brasil no início do século 20 e especialmente na Amazônia ainda nos dias atuais. A "mais importante divisão do trabalho físico e intelectual é a separação entre cidade e campo" e esta situação começa com o "trânsito da barbárie à civilização, do regime tribal ao Estado, da localidade à nação e se mantém em toda a história da civilização até nossos dias" (MARX; ENGELS, 1974, p. 55). Assim, "a grande cidade torna-se o lugar de todos os capitais e de todos os trabalhos, isto é, o teatro de numerosas atividades 'marginais' do ponto de vista tecnológico, organizacional, financeiro, previdenciário e fiscal" (SANTOS, 2009, p. 10). A região amazônica foi igualmente atingida pelo processo capitalista de produção das cidades, atravessando processos migratórios decorrentes da economia da borracha ocorrida no final do século 19 e na primeira metade do 20: "das frentes pioneiras agropecuárias e minerais espontâneas oriundas do Nordeste, intensificadas nas décadas de 1950 e 1960" (BECKER, 2001. p. 11); do êxodo rural e deslocamentos intraregionais provocados pela construção da Rodovia BR 3164; da instalação de atividades econômicas e de infraestrutura5 e ainda pela implantação dos Grandes Projetos na Amazônia articulados ao novo padrão, onde "o Estado se associa à corporações transnacionais num processo de nacionalização/transnacionalização com consequências aparentemente contraditórias que rebatem na fronteira", e que empurraram levas de trabalhadores em direção aos centros político-administrativos na Amazônia (BECKER, 2001. p. 12). Tal processo orientou-se por uma diretriz desenvolvimentista pautada no discurso do vazio demográfico, atraso e isolamento em relação ao restante do território nacional. Todavia, foi o regime militar com sua retórica desenvolvimentista e modernizadora, que sob o pretexto do combate à internacionalização da Amazônia inaugurou uma política de integração nacional que priorizou o grande capital nacional e estrangeiro sem considerar "os interesses da população amazônica, nem tampouco a vocação geográfica dessa região. Sua função essencial era a de captar divisas" (ALVES JUNIOR, 2000, p. 50).
No estado do Pará, as cidades de Belém, Marabá, Altamira e Santarém tiveram sua realidade socioterritorial fortemente impactada. No caso da capital, a crescente valorização imobiliária acarretou um processo de ocupação, direcionando a população com baixo poder aquisitivo para as áreas de baixadas6, reafirmando a associação dessas áreas à condição de pobreza dos seus moradores e à ausência de infraestrutura verificada desde as reformas bellepoqueanas7 (DERENJI, 1991). Essa associação definiu a paisagem urbana dos bairros antigos de Belém, onde os bairros da bacia hidrográfica da Estrada Nova se localizam, tornandoa objeto de debates, estudos técnicos, elaboração de diagnósticos e proposições urbanísticas realizadas por órgãos federais, estaduais e municipais desde a década de 1960, prolongando-se até a primeira metade dos anos 1980. Tais ações de gerenciamento do território urbano pelo poder público afirmavam pretender, em primeiro lugar, diagnosticar e, depois, sanear a cidade, tornando-a lócus imperativo do desenvolvimento técnico e do ideal de racionalização predominante à época. Avultam como protagonistas estatais, órgãos de planejamento e gestão como a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM)8, o Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), o Instituto de Desenvolvimento Econômico-Social do Pará (IDESP), a Companhia Estadual de Habitação (COHAB) e a Prefeitura Municipal de Belém que, por meio da celebração de convênios, financiaram a elaboração e execução de estudos e projetos acerca da urbanização, seus desdobramentos e possíveis soluções com destaque ao problema das baixadas. Nota-se a ideia-força da concepção tecnicista e autoritária na Ditadura Militar revigorada à luz de um aparato discursivo, semântico e simbólico que dirigiu a ação institucional para adequação e normatização de infraestrutura física e gerencial para atender as novas exigências necessárias à acomodação e reprodução da mão de obra do espaço urbano aos novos interesses do capital, ou seja, de empresas multinacionais instaladas na região Amazônica.
Desde a década de 1980, o direito à cidade no Brasil constituiu uma agenda política popular, culminando em 1987 com o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU)9, propugnando uma plataforma assentada na gestão democrática da cidade, na função social da propriedade e no direito à cidade. As lutas desses movimentos em favor de demandas e reivindicações históricas costumam ocorrer em duas frentes: na sociedade por meio de formações políticas, manifestações, atos públicos e ocupações e também no campo jurídico-legal por meio de manifestos, propostas de leis, acompanhamento da agenda estatal etc., para fazer frente ao caráter segregador e excludente da cidade pensada como um produto social motivada pela lógica própria da política pública urbana capitalista (LOJKINE, 1997), em que os trabalhadores são tratados como "entraves humanos" e suas condições de vida agravadas pela "guerra social incessante" (DAVIS, 2006, p. 105).
Em 1988, por ocasião dos debates e posterior promulgação da Carta Magna, movimentos sociais de abrangência nacional, organizações de classe, igrejas, setores das universidades públicas, partidos políticos além de juristas e parlamentares travaram uma batalha pela incorporação do Capítulo da Política Urbana na Constituição Federal, aprimorando o conceito de função social da propriedade. Dentre as iniciativas encabeçadas pelo FNRU, Alves (2010) destaca a elaboração, mobilização e apresentação do Projeto do Fundo Nacional de Moradia Popular, ocorrida em novembro de 199110. A partir daí alcançaram significativas conquistas a exemplo da alteração na Lei Federal n. 6.766/79 de Parcelamento do Solo para incluir tratamento especial aos assentamentos populares regularizados no âmbito de ações públicas locais no ano de 1999 (BAZZOLI, 2011). Outras pressões sociais se sucederam e no início do século 21. Medidas foram adotadas com vistas a aprimorar e consolidar os instrumentos já existentes e emplacar novos, a exemplo, em 2000, da definição da moradia como um direito social pela emenda constitucional n. 26; da Lei federal n. 10.257, em 2001, além de Medida Provisória n. 2.220, que disciplinou a Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia (CUEM) de imóveis públicos ocupados em 2001.
A criação do Ministério das Cidades em 2003, objetivando a integração das políticas fundiária, de habitação, saneamento ambiental, trânsito, transporte e mobilidade urbana, e a constituição do Conselho Nacional das Cidades (ConCidades), em 2004, como órgão colegiado de caráter consultivo e deliberativo, pareceu representar importante resposta ao acúmulo político dos movimentos sociais que vislumbravam a possibilidade em ter um canal direto com o poder executivo.
A Lei federal n. 10.931/2004 estabeleceu a gratuidade do primeiro registro decorrente da regularização fundiária, seguida da definição de mecanismos para a regularização fundiária em terras da União pela Lei federal n. 11.481, em 2007, e por fim, em 2009, a aprovação das Leis federais n. 11.952, que definem mecanismos para a regularização fundiária em terras da União na Amazônia Legal, juntamente com a n.º 11.977, que dispõe sobre o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e dedica um capítulo à regularização fundiária de assentamentos informais urbanos (BRASIL, Regularização Fundiária Urbana, 2010).
Ao tratar da propriedade da terra, evidenciam-se os resquícios do patrimonialismo e da hierarquização social persistente historicamente. Ainda assim há consideráveis avanços na aplicação de conceitos e diretrizes previstos na Lei federal n. 11.977/2009, definindo a regularização fundiária como sendo: "O conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado" (BRASIL, 2010, p. 11).Entretanto, o avanço do marco jurídico não dirime a "queda de braço" entre as forças do mercado e os setores populares organizados, mediado pelo discurso técnico e racional do Estado, orientado "pelo novo dinamismo do mercado, que se impõe direcionando o processo de reprodução do espaço" conforme "as necessidades de acumulação que se esclarecem no processo de alienação" (CARLOS, 2014, p. 30). Observa-se assim que programas urbanos e planos implementados pelo poder público, em suas diferentes esferas, não levam em conta a função social da propriedade, permitindo o acesso voraz do mercado especulador, como o próprio Minha Casa Minha Vida.
Chão A partir dos dados do IBGE (2015), a população de Belém está estimada em 1.439.561 habitantes para uma área territorial projetada em 1.059,458km2. Possui aproximadamente 370 mil imóveis, sendo que 53% destes são considerados irregulares, segundo a sua condição material e fundiária. São 101 áreas demarcadas ao longo dos 508 quilômetros quadrados de extensão territorial da cidade, que formam um conjunto de ocupações irregulares incidindo na área central e também a partir da Segunda Légua Patrimonial11 em direção ao chamado "eixo de expansão" constituído pela rodovia Augusto Montenegro e a Rodovia BR 316 (IBGE, 2010).
Seu processo de ocupação, notadamente hegemonizado por interesses patrimoniais e especulativos, pode explicar o fato da municipalidade não ter adotado a cobrança do Imposto Predial e Territorial Urbano progressivo no tempo como instrumento urbanístico que estabeleceria a cobrança sobre os terrenos urbanos que não cumprem com a função social da propriedade, "mediante a majoração da alíquota em até 3% anualmente, pelo prazo de cinco anos consecutivos respeitados o limite máximo de 15%" (BAZZOLI, 2011, p. 301). Se aplicado corretamente, poderia dificultar e inibir o avanço da especulação imobiliária resultante da cobiça dos setores imobiliário, da construção civil e cartorial em áreas que se tornam objeto de valorização fundiária decorrente da execução de grandes projetos e obras de reordenamento urbanístico.
Respondendo as pressões populares e obrigada a adequar-se às legislações específicas, sobretudo à Lei n. 11.977/2009, a PMB criou o Programa de Regularização Fundiária Chão Legal, por meio da Lei Municipal n. 8.739/2010, objetivando prover a segurança jurídica da propriedade aos moradores de ocupações irregulares existentes no município por meio de um conjunto de ações necessárias para fornecer o documento de legalização ao cidadão, reconhecendo seu direito social à moradia como previsto na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade.
O programa Chão Legal é responsável pela execução da política pública fundiária desenvolvida pela Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém (CODEM). Conforme a Lei n. 8.739/2010, a CODEM dará especial ênfase à regularização fundiária de interesse social (RFIS), obedecendo à legislação pertinente, no sentido de priorizar as famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade social.
O programa Chão Legal é desenvolvido atualmente em sete áreas da cidade de Belém: Bengui (etapa 1 e 2), Estrada Nova (Sub bacia 1), abrangendo nessa poligonal os bairros Jurunas e Cidade Velha; além da titulação de cem lotes do Residencial Cabano Antônio Vinagre para onde foram remanejados os moradores da área de influência do Programa de Macrodrenagem da Estrada Nova (PROMABEN I); os bairros Paracuri, Canarinho, Jardim Uberaba e Carmelândia (BELÉM, MENSAGEM 2014). De acordo com os Relatórios de Mobilização Comunitária (BELÉM, 2015), para o caso Sub Bacia 1, Estrada Nova12, no período de janeiro de 2013 a agosto de 2014, o programa Chão Legal realizou um estudo preliminar, três reuniões informativas, 236.141 m2 de topografia, 1.250 cadastros físicos (lotes), quatro reuniões de orientação, 1.233 cadastros sociais (famílias), 99 coleta de dados, nenhum título emitido e nem entregue, 300 emissões de título (projeção) num total de 3.320 emissões projetadas para o total de áreas atendidas pela regularização fundiária.
A equipe da Coordenadoria de Regularização Fundiária realizou reuniões, por quadra, no bairro do Jurunas com moradores de vilas e passagens para encontrar solução para as situações que não cumprem os requisitos exigidos na lei do código de postura do município que estabelece a largura mínima de 5m nas vias públicas, permitindo o fácil acesso em casos de emergência, como atendimento de serviços pelo corpo de bombeiros, a coleta de lixo etc., além da entrada de geladeiras, guarda-roupas e móveis até as residências. Além da questão do uso privativo das áreas comuns, as moradias foram erguidas com metragem inferior à 60 m2, medida que não obedece ao chamado lote mínimo previsto na Lei 11.977/2009 (PMCMV). Contudo, a PMB possui autonomia para adequar os parâmetros de tamanho dos lotes à realidade de cada família atendida.
O bairro do Jurunas, qualificado oficialmente pela tipologia baixa, integra a Bacia Hidrográfica da Estrada Nova13 - com área de drenagem de 9,54 km², ocupando 16% de área da malha urbana14 - com alta densidade populacional advinda predominantemente dos interiores mais próximos e ribeirinhos que nele reconheceram semelhanças socioambientais que lhes permitiram a ocupação e adaptação. Foi objeto dos planos de remodelamento urbanístico elaborados pela matriz desenvolvimentista, mas não chegou a sofrer intervenções. Esse bairro apresenta-se com fortes características de aglomerado populacional com grande quantidade de vilas, becos, alamedas e passagens cortando importantes vias públicas da cidade. São terrenos que foram ocupados há no mínimo vinte anos por famílias em pequenas moradias de alvenaria ou madeira. Entre as tipologias de residências, há a ocorrência de vilas de família e vilas particulares. Vilas de família constituem-se em unidades habitacionais assentadas em terreno único e ocupadas por pessoas de um mesmo núcleo familiar. Vilas particulares são constituídas de unidades habitacionais construídas em terreno único para fins de especulação imobiliária. Nesse caso, geralmente o dono do lote mora na primeira casa - a que tem fachada para o logradouro principal - e as demais são alugadas para terceiros. As vilas caracterizam um tipo de moradia coletivo, considerado inadequado pelo poder público no que tange as condições de insalubridade, tamanho, preço, irregularidade fundiária, densidade domiciliar ou coabitação, e que na prática reproduzem o padrão de mercantilização da moradia. A respeito dessas formas coletivas de habitação é possível comentar aspectos arquitetônicos destacando-se a genialidade e criatividade da população que engendra soluções viáveis sem orientação técnica que, no entanto, asseguram vida digna aos seus habitantes. Externamente, conforma-se um corredor, uma área comum, fechado por um portão de madeira ou de ferro para controlar o acesso que serve de passagem aos moradores e visitantes; é utilizada para estender roupa, colocar cadeiras para "pegar vento" e fazer churrasco.
De acordo com a CODEM, há 14 situações dessa natureza identificadas somente em uma das vias, a travessa Tamoios, objeto do programa Chão Legal, numa evidência do quanto essa alternativa habitacional configura-se em uma realidade. Para possibilitar a solução da titulação dessas moradias sobrepostas, a CODEM está adotando a legitimação de posse coletiva prevista na Lei n. 11.977/2009 posto que:
A legitimação de posse de forma coletiva pode ser feita sempre que não for possível individualizar as posses dos ocupantes no interior da área demarcada. Entretanto, deve-se lembrar que como a legitimação de posse pressupõe a elaboração prévia de projeto de regularização fundiária de interesse social e o registro do parcelamento dele decorrente, a forma coletiva da legitimação deverá ser utilizada para o reconhecimento de mais de uma posse no mesmo lote (BRASIL, 2010, p. 40).
A legitimação de posse coletiva é uma novidade no campo jurídico-legal, primeiramente ao reconhecer a "posse de moradores de áreas objeto de demarcação urbanística"; sendo assim, "trata-se da identificação pelo poder público de uma situação de fato, que é a posse mansa e pacífica por pessoas que não possuem título de propriedade ou de concessão e que não sejam foreiras de outro imóvel urbano ou rural" (BRASIL, 2010, p.18) e, sobretudo, pretende corrigir distorções quanto à utilização social do lote urbano combatendo a especulação imobiliária. Do ponto de vista histórico-teórico, é importante destacar que a habitação como problema social foi evidenciado pela primeira vez no contexto do movimento da industrialização ocorrido na Inglaterra, na França e na Alemanha nos anos 1880, e que desencadeou uma série de processos sociais relacionados principalmente com as questões do trabalho, do assalariamento, da alimentação e da moradia. A despeito do discurso produzido pelo Estado e dirigido às classes populares, que aponta uma solução individualizada ao problema da insegurança fundiária sem tocar no cerne da questão indicada por Engels ([s/d], p. 137), a crise da habitação se mostra como "um produto necessário da ordem social burguesa" evidenciada em "uma sociedade na qual a grande massa trabalhadora não pode contar senão com um salário e, portanto, exclusivamente com a soma de meios indispensáveis para a sua existência e para a reprodução de sua espécie".
Essa perspectiva teórica a política de regularização fundiária se revela com limites dentro dos marcos do capitalismo, como indica os questionamentos feitos por moradores em uma das reuniões de esclarecimento promovida pela equipe da CRF/CODEM sobre o processo de regularização fundiária e seus distintos desdobramentos jurídicos-legais, com moradores de oito lotes que possuem em áreas média de 12m2, onde ocorreu a exposição da coordenação acerca da proposição de título de posse coletiva, para os casos dos lotes cuja área total resulta da somatória de área edificada mais a área comum, descrito como título com um número de matrícula em nome de uma pessoa a ser escolhida pelos demais com a indicação das sub unidades mais a indicação da metragem total do lote chamada tecnicamente de fração ideal. Durante essa reunião, foram levantados questionamentos por uma moradora:
Qual a intenção principal da prefeitura de regularizar esses terrenos já que são moradores de 50, 60 anos? E se tratando de regularização de imóveis, isso aqui é área de Marinha, é outra lei é outra situação, eu fui atrás há uns anos atrás, eu tenho uma cópia comigo do terreno que era do meu pai, antigão, 1945, por aí (Reunião entre PMB e moradores do bairro do Jurunas ocorrida em 23 de novembro de 2015).
Nesta, assim como em outras reuniões, evidenciaram-se dúvidas e desconfianças pelo interesse da PMB em tratar da segurança fundiária somente após o início das obras do Promaben15. Os moradores suspeitam e preocupam-se com os custos decorrentes da iniciativa "no sentido de priorizar as famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade social" (Parágrafo único, Lei N. 8739/10). Entendem que tal "prioridade" implicará em cobranças como o IPTU16 e a oneração das taxas de energia elétrica e abastecimento de água. A urbanização da Estrada Nova por meio do Promaben desarticulada do programa Chão Legal e esse, por sua vez, também sem diálogo institucional com as secretarias de urbanismo, planejamento e habitação, sugerem um alto interesse político de segmentos alojados na esfera pública transformando os processos de titulação em uma mera formalização da segurança de permanência em contexto extremamente vulnerável. Nessa perspectiva, "a distribuição de títulos de terra sem uma melhora significativa nas condições urbanísticas e apenas com objetivos político-eleitorais pode ter efeitos nefastos para a cidade e para a própria população envolvida" (MARTINS, 2002, p. 19).
"Unir forças para lutar pela moradia" (CBB, 1987), estampou na manchete do jornal da Comissão dos Bairros de Belém (CBB)17. Era o sonho e talvez a principal reivindicação de milhares de belemenses moradores das baixadas e periferias que foram historicamente ignorados pelos planos e projetos dos órgãos oficiais supracitados. O empenho associativo da CBB expressava os anseios e reivindicações de associações de moradores e centros comunitários por meio da representação e articulação política em favor da moradia e da educação até a primeira metade da década de 1980, entrelaçadas à luta contra o regime militar e a democratização do país refletindo uma mobilização nacional (ALVES, 2010). Tal processo incluiu a Associação da Comunidade de Base do Jurunas (COBAJUR) fundada em 15 de novembro de 1969, "que surgiu da luta pelo Direito de Morar e o Direito à Cidade" (CRUZ, 2012, p. 168). Os moradores constituíram formas de organização e mobilização popular dirigidos pela COBAJUR, com distintas estratégias de pressão aos poderes públicos para solução dos problemas históricos de degradação socioambiental e escassez de investimentos em infraestrutura. Em resposta aos reclamos de moradores da Estrada Nova de um lado e aos interesses privados de outro, a PMB lançou em 2006 o Portal da Amazônia. Para Cruz (2012, p. 160), sua centralidade reside:
Na intervenção urbanística realizada na orla do rio Guamá e nas ações de saneamento das áreas ocupadas por moradias às margens dos cursos d'água que compõem a Bacia Hidrográfica da Estrada Nova (BHEN). O Projeto é composto, de um lado, pelo Projeto Orla, que visa a reconfiguração urbana da orla do rio Guamá18, como estratégia de valorização de áreas centrais, por meio de diversas atividades econômicas, dentre as quais se destacam o lazer e o turismo, e, de outro, pelo Projeto de Macrodrenagem da Bacia da Estrada Nova (PROMABEN), centrado no saneamento das áreas alagáveis dos bairros localizados na porção sul de Belém. Longe de ser unânime, essa intervenção urbanística suscita discussões entre os moradores que afirmam:
Foi um projeto que ficou muito a desejar em termo de harmonização, não tem conforto, porque é tudo aberto, o parquinho já está todo abandonado, fizeram um projeto, simplesmente pras pessoas andarem, quem gosta de andar, de patins, bicicleta, jogar bola, mas não tem, digamos assim, um lugar pra sentar, no período de chuva nem tem onde ficar, faltou um pouco mais dessa preocupação em relação a cidade (Reunião realizada pela PMB com moradores em novembro de 2015).
De acordo com a representação da Comissão de Avaliação da Obra/Comissão de Fiscalização da Obra (CAO/COFIS, 2015), "esse projeto aconteceu, ele começou, ele iniciou sem nos ter consultado, prevendo que seja o melhor para nós, se fecharia o canal, se continuaria o canal, eles fizeram ao bel prazer deles". Portanto, o Promaben ignorou a opinião popular, sendo pensado e executado "depressa aconteceu, sem nenhum acompanhamento inicial nosso, simplesmente ele iniciou, quando a gente viu, começou". Orçado em mais de U$ 125 milhões (aproximadamente R$ 350 milhões) e com estimativas de atingir mais de 300 mil pessoas com obras de saneamento, segundo dados do Relatório de Impacto Ambiental (2007), o Promaben não previu nenhuma ação de política fundiária, tanto que o Programa Chão Legal só foi criado em 2010. Por isso não caminham juntos, ainda que dialoguem, são executados paralelamente.
Torna-se imperioso reverter a anulação social presente neste processo de reordenamento socioespacial alinhado aos moldes neoliberais de gestão das cidades, onde estas são pensadas como empresas que devem apresentar eficiência e competitividade para disputar recursos e investimentos da iniciativa privada frente a outras cidades. Assim, projetos como o PROMABEN embutem um conceito de regularização fundiária inserida:
num ajuste reativo e subordinado aos interesses econômicos hegemônicos, de forte conteúdo rentista, cujas bases estão assentadas numa renovada aliança que envolve velhos interesses locais e interesses globais renovados, que de novo, tem particularmente a ampliação de sua escala e de sua liberdade de atuação: interesses rentistas urbano-imobiliários, interesses rentistas financeiros, estes sim, os poderosos protagonistas da nova ordem global, e as representações 'esclarecidas' do poder público local (FERNANDES; CANO, 2011, p. 288-89).
Alarmados com a pressão sofrida por parte da Prefeitura na execução do Promaben, os moradores, por meio de uma comissão, elaboraram um documento com onze itens onde postulam sua concepção de desapropriação, indenização e segurança fundiária em "que a Prefeitura possa desapropriar áreas, inclui aqui terrenos ou propriedades onde não se exerçam quaisquer atividades econômica ou lucrativa, no mesmo bairro para alocar os moradores desapropriados e que queiram permanecer no bairro" (POLÍTICA, s/d, p.1-2). Outra iniciativa popular é protagonizada pela Associação de Moradores de Terrenos de Marinha do Estado do Pará (AMTEMEPA), fundada em 20 abril de 2007, e que prevê em seu estatuto a luta em defesa da regularização fundiária. A direção da AMTEMEPA defende a permanência com dignidade de pessoas que passaram sua vida aterrando, organizando o arruamento, colocando estacas de madeira para servir de postes de iluminação, carregando água, enfim, vivenciando uma série de dificuldades pelo fato de serem negadas pelo Estado. Defendem também uma concepção de regularização fundiária com caráter coletivo, ou seja, os títulos de propriedade devem ser dados às áreas e não aos indivíduos. Essa ação no ponto de vista da direção comunitária além de criar obstáculos à ação especulativa, que geralmente ocorre em regiões que passaram por reordenamento socioambiental, fortalece os laços associativos e promove na comunidade o senso de solidariedade, engajamento e coletividade. A decisão da associação em lançar-se em 2010 à tarefa da provisão habitacional de interesse social por meio dos recursos orçamentários disponibilizados pelo Programa Minha Casa Minha Vida Entidades (MCMVE), com a submissão de um projeto de moradia para 1000 famílias com solução verticalizada, é, contraditoriamente, enlevado pelas lideranças das áreas afetadas. A área requerida para construção dos prédios está em litígio, onde antes funcionava a extinta Companhia Amazônia Têxtil de Aniagem (CATA), que teve sua inscrição de ocupação cancelada pela União.
O meu sonho na verdade era para esse canal ser igual as Docas, ou seja, um canal bonito, aquela água bonita, ruas de um lado, ruas do outro, mas se você ver do nosso lado, dos moradores, se você olhar para o outro lado, de umas empresas que estão todas fechadas, que não existem mais, mas resolveram mexer do nosso lado (Entrevista realizada em 23 de Outubro de 2015 na sede do Promaben. Mário Lopes é morador da Estrada Nova há 49 anos).
Este rico fragmento aponta três indispensáveis reflexões. A primeira expressa a força da reprodução de um ideário burguês de cidade, representado pela Avenida Doca de Souza Franco, o metro quadrado mais caro de Belém, outrora lugar de homens e mulheres com histórias de vida bem semelhantes às dos moradores da Estrada Nova e que foram removidos e expulsos por um projeto de revitalização semelhante ao Promaben, guardadas as proporções e o contexto histórico. Dito com as palavras de Maricato (2011, p. 165), "a representação da 'cidade' é uma ardilosa construção ideológica que torna a condição da cidadania um privilégio e não um direito universal: parte da cidade toma o lugar do todo. A cidade da elite representa e encobre a cidade, a cidade real". A segunda questão de natureza econômica destaca o fechamento de empresas que atuavam na Avenida Bernardo Sayão (Estrada Nova) e geravam emprego e renda aos moradores dessa área, a exemplo de madeireiras, fábricas de produtos extrativistas trazidos do interior (castanha e juta), fábrica de gelo, frigoríficos, hotel, portos etc. e que povoam diversas memórias do lugar: "as pessoas sempre relacionavam o apito da CATA, os horários da troca de turno, as pessoas se acostumaram, era meio dia, a CATA era a empresa mais forte" (Moradora da área). Possivelmente essas falências e/ou fechamento de negócios na Estrada Nova relacionam-se com períodos de crise econômica, com as matrizes econômicas adotadas pelo estado do Pará, pelas novas dinâmicas do capital e, finalmente, devido à indignação com situações de remanejamento e remoção de moradores que esperaram e sonharam com o dia em que tirariam o "pé da lama", no dizer popular. Aproveitando-se da indefinição jurídica acerca das Terras de Marinha, as empresas não são submetidas à regularização para que permaneçam livres e disponíveis às atividades econômicas já desenvolvidas. Por outro lado, os trabalhadores sofrem a ação do programa Chão Legal para que sejam inseridos à cidade legal superando a "ilegalidade (na ocupação do solo e na resolução de conflitos) e a precariedade em relação aos serviços públicos e privados" (MARICATO, 2011, p.164).
A gestão pública deve garantir a segurança fundiária dos beneficiados por programas de urbanização, combinando as dimensões jurídica e urbanística, fornecendo condições para permanência dos moradores por meio de compromisso político. É preciso adotar medidas efetivas, tais como a desburocratização institucional a fim de permitir o acesso legal da maior parte da população à documentação e ao atendimento de demandas sociais, além de mecanismos efetivos de controle socioterritorial. Do contrário, "com frequência, os programas de regularização acabam por reproduzir a informalidade urbana em vez de promover a integração socioespacial" (ROLNIK, 2002, p. 16).
O que está em curso no Chão Legal é uma recorrente reprodução da exclusão, a dispersão dos pobres para outras áreas periféricas de Belém e das cidades metropolitanas. A anulação da utopia da cidade para todos, com justiça social, se afirma na adesão total ao ideário da cidade do pensamento único. Propugnar um novo modelo de cidade onde a regularização fundiária, de viés fortemente patrimonialista e autoritário, não seja o fiel da balança da legalidade pode ser o caminho para outra cidade e outro modelo de urbanização.
Sandra Helena Ribeiro Cruz shelena@ufpa.br. Doutora em Ciência Socioambiental na Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal do Pará (UFPA)Edivania Santos Alves edivania1972@yahoo.com.br. Mestrado pela Universidade Federal do Pará (UFPA) Professora da Secretária da Educação do Pará (SEDUC/PA). UFPA FASS-ICSA. Belém - Pará - Brasil CEP: 66075-110