Resumo: O presente trabalho versa sobre a presença do saber medicalizante nas escolas públicas municipais de Florianópolis (SC). Ao problematizar a medicalização da educação formal, nos perguntamos sobre as consequências para o (in)sucesso escolar da(o) aluna(o) e a sua função ideológica que tende a ocultar a escola como reprodutora das desigualdades sociais. Demarcada no campo da sociologia da educação, esta pesquisa assume uma perspectiva quanti-quali, partindo do estudo da produção acadêmica relacionada ao fenômeno e das políticas educacionais e de saúde sobre práticas (não) medicalizantes para, em seguida, proceder ao “[...] estudo concreto dos contextos singulares de acção [...]” (SARMENTO, 2011, p. 4), com utilização de procedimentos de base empírica. Neste ensaio pretende-se refletir sobre a problematização do conceito de medicalização como instrumental para a pesquisa, a partir da concepção teórico-metodológica sartreana no campo da sociologia da educação. Por fim, analisamos aspectos da pesquisa sociológica sobre o tema da medicalização, constatando crescente interesse no campo escolar, bem como uma demarcação da abordagem sócio-histórica e relacionada a antipsiquiatria.
Palavras-Chave: Medicalização da EducaçãoMedicalização da Educação,Saber EscolarSaber Escolar,Sucesso EscolarSucesso Escolar,Práticas MedicalizantesPráticas Medicalizantes,Práticas DocentesPráticas Docentes.
Abstract: This article discusses the presence of the ‘medicalizing knowledge’ in public schools of Florianópolis (SC). The study questions the phenomenon of medicalization in formal education, reflecting on its consequences for the student’s school performance and its ideological function as medicalization tends to hide the school’s responsibility as an institution that reproduces social inequalities. This research is positioned in the field of education sociology, and adopts a quantitative-qualitative approach, reviewing the literature about medicalization and the educational and health policies on (non)medicalizing practices. The research then conducts a study of the unique contexts of action (SARMENTO, 2011), using empirical procedures, and reflects if the use of the concept of medicalization contributes to achieving the research goals when based on a Sartrean methodological theoretical conception in the field of education sociology. Finally, aspects of sociological research on the subject are analyzed, finding that there is a growing interest in medicalization in the field of school education, as well as there is a demarcation of the socio-historical approach related to the anti-psychiatry movement.
Keywords: Medicalization of education, School knowledge, School performance, Medicalizing practices, Teaching practices.
ESPAÇO TEMÁTICO: DIREITO À EDUCAÇÃO PÚBLICA, DEMOCRACIA E LUTAS SOCIAIS
Da relação com o saber medicalizante às práticas escolares em Florianópolis
Coping with ‘Medicalizing Knowledge’ and School Practices in Florianópolis
Recepção: 18 Fevereiro 2019
Revised document received: 03 Julho 2019
Aprovação: 16 Abril 2019
A relação entre a medicalização da educação e da infância e o desdobramento para o (in)sucesso escolar, é o que se pretende ter por objeto na pesquisa de doutorado, na perspectiva da sociologia da educação. As atividades escolares e suas consequentes facilidades ou dificuldades, implicam em relações com saberes, com os outros, mediadores destes processos de aprendizagem (CHARLOT; BAUTIEUR; ROCHEX, 1992; CHARLOT, 2000, 2001; ROCHEX, 1995, 2006). Quando as dificuldades dos alunos nas atividades e consequentemente, na relação com os saberes e com a sua escolaridade, são tomados como transtornos mentais e psicológicos, tratados muitas vezes com medicamentos, podemos estar diante de um processo de medicalização. A base de sustentação deste saber e prática medicalizante dos problemas escolares, implica em uma concepção de infância e escolarização, mas também de normalidade e anormalidade1. Compreender estas situações e processos no cotidiano escolar aparece como um objeto relevante para pesquisa em sociologia da educação.
Neste artigo são abordados aspectos introdutórios da pesquisa sociológica sobre a relação entre medicalização e consequências para o (in)sucesso escolar da(o) aluna(o) e a possível função ideológica deste discurso para ocultar a escola como reprodutora das desigualdades sociais. No âmbito da sociologia não há ainda produção expressiva sobre o tema; e queremos problematizar como a sociologia pode fornecer instrumentais para a compreensão deste fenômeno no cotidiano escolar, utilizando de procedimentos etnográficos e biográficos, que serão aqui brevemente mencionados. Constatamos, neste momento, um aumento das produções teóricas críticas ao processo de medicalização, tendo como hipótese preliminar a permanência de uma prática medicalizante no cotidiano escolar, que será investigada através do método biográfico progressivo-regressivo, procurando criar as condições metodológicas para melhor compreender o fenômeno, com a rigorosidade e profundidade, considerando que sua complexidade exige a diversificação de abordagens e instrumentos de pesquisa, ou seja, cercar o objeto por todos os lados.
Este quadro empírico estará demarcado entre escolas do município de Florianópolis, mais especificamente uma escola pública a ser objetivada a partir de seu interesse e pertinência relacionada aos recentes estudos e formações que nossa equipe de pesquisa tem realizado no município. O estudo verticalizado de uma escola nos permite inventariar situações e prestar atenção nos detalhes, mas continua a exigir uma postura panorâmica e que a inscreva num contexto sócio-histórico, situada na série de escolas públicas deste município e estado. Assim, tomamos como objeto a presença do saber medicalizante no cotidiano escolar, ou seja, quando as relações entre docentes e alunos são permeadas por diagnósticos psicopatológicos, tais como TDAH2, TOD3, entre outros e como eles interferem nas práticas pedagógicas e estas concorrem ou não para o (in)sucesso escolar destas crianças. Isso que nos permite indagar sobre quantas crianças tem diagnósticos de transtornos psicológicos no munícipio? Estes diagnósticos foram efetivados por especialistas da saúde? Ou seja, resultam de que tipo de conhecimento/saber ou procedimento, considerando a interface entre os saberes docentes e/ou familiares? A partir do momento que a criança assim é diagnosticada, este diagnóstico implica em consequências nas práticas docentes e familiares? Quais seriam estas implicações? E como estas práticas concorrem para o (in)sucesso escolar desta criança? Questões que apontam para a necessidade da formulação de uma constelação conceitual e metodológica capaz de investigar este objeto como um fenômeno singular/universal.
Como estudo preliminar, buscando consolidar solida base teórico-metodológica, refletimos neste artigo sobre o conceito de medicalização. Este que ganha forma primeiramente como prática de diagnosticar uma criança, seja estabelecido ou não por uma autoridade médica, e as iniciativas que desdobram destes diagnósticos, incluindo ou não a medicação. A concepção de medicalização com a qual pretendemos trabalhar busca fundamento na crítica radical que a antipsiquiatria realiza sobre a efetividade destes diagnósticos, sejam eles quais forem. Szasz em O Mito da Doença Mental (1978a), A Fabricação da Loucura (1978b) e Esquizofrenia: O Símbolo Sagrado da Psiquiatria (1979); R. D. Laing e A. Esterson (1980) em Sanidade, Loucura e Família, Laing em O Eu e os Outros (1972) e O Eu Dividido (1978), realizam e fundamentam o movimento da antipsiquiatria desde os anos 1950. Em direção a este movimento, inclusive apropriado por Laing e Cooper, na obra Razão e Violência (1976), temos referências teóricas de Jean Paul Sartre sobre o método, o indivíduo e o grupo. Assim, na concepção antipsiquiátrica, formular um diagnóstico de um transtorno, tomando-o como conjunto de sintomas, sem determinantes sociológicas e antropológicas, já é medicalizar. Por conseguinte, todas as práticas decorrentes deste diagnóstico, serão práticas medicalizantes, embora medicalizar não seja medicar, visto que uma criança não medicada pode estar sendo medicalizada, e uma criança medicada, talvez possa não estar sendo.
“O menino tomou consciência da sua incapacidade, desde que interiorizou esta humilhação objetiva para disso fazer uma estrutura permanente da sua subjetividade”. (SARTRE, 2013, p. 43).
Nas ciências humanas, sobretudo nas áreas de psicologia e sociologia, são frequentes os debates e estudos sobre a medicalização e situações escolares. Nos anos 1980, participamos4 de um projeto denominado VilaEscola, no qual tomamos como objeto de estudo e intervenção, uma situação de uma criança submetida a um processo de medicalização. Tratava-se de um garoto com 10 anos, que era multirrepetente na primeira série e que para a escola a situação de fracasso escolar existia pelo fato dele apresentar uma “espécie de retardo mental” e “sua família não apresentar nenhum interesse pela sua situação escolar”. Este menino, em sala de aula, buscava participar das atividades quando a professora solicitava, ou proferindo a resposta solicitada, ou levantando a mão. A mãe fazia trabalhos domésticos, o pai trabalhava como auxiliar de pedreiro. Ambos eram constrangidos com o analfabetismo e, por isso, não iam até a escola. Moravam em uma casa precária sem saneamento básico. Muito frequente os pais não conseguiam serviço e, para comprar o pão e o leite de cada dia, os filhos mais velhos faltavam à aula para mendigar. O pai era ansioso para que ele aprendesse e fosse alfabetizado para conseguir um trabalho melhor que o seu. O filho sabia destas expectativas, entrando em ansiedade por aprender. Todos estes aspectos, em alguma medida, convergiam para prejudicá-lo no processo de aprendizagem. Mas, na escola a compreensão era de que as dificuldades de aprendizagem e socialização eram porque ele tinha uma espécie de retardo mental, compreendidas como desordens cognitivas e emocionais provocadas por razões internas ou subjetivas e sem determinantes antropológicas ou sociológicas.
Assim, se apropriando da situação do menino, a professora desinteressava-se e não conseguia perceber as atitudes de interesse por parte dele. Para analisar esta situação, dispúnhamos do horizonte de compreensão da Psicologia Escolar Crítica. Em especial, estudos teórico-empíricos realizados por Patto (1999), produzem a crítica às práticas psicologizantes e demonstram como o fracasso escolar é consequência de um conjunto de variáveis, inclusive a própria maneira como a escola se estrutura no âmbito de nossa sociedade, tendo por referência sociológica os estudos de Pierre Bourdieu. Neste horizonte crítico da psicologia sócio-histórica, e através do instrumental teórico-metodológico da psicologia científica existencialista5, pode-se construir uma intervenção interdisciplinar, em que as determinantes foram o foco do trabalho (relação com os pais, assistência social para melhores condições de subsistência, entre outras).
No âmbito da clínica, em psicologia infantil, acompanhamos tantas outras situações tratadas como a daquele menino, em que, ao invés de se atentar para os aspectos pedagógicos, relacionais, antropológicos envolvidos nas dificuldades, partia-se do entendimento de que a criança apresentava um transtorno, déficit ou retardo6 e as atitudes pedagógicas passavam a ser definidas a partir desta compreensão. Mais evidentes ficam as consequências da medicalização na infância quando percebemos seus desdobramentos em complicações emocionais para vida adulta: como um paciente atendido por Fuck que aos trinta e poucos anos apresentava sofrimentos emocionais severos, inclusive com tentativas de suicídio7. O seu padecimento vinha desde a infância onde havia sofrido abuso sexual8, este compreendido a título de fantasia, pela suspeita dele ter problemas mentais e, assim rotulado9, desatendido da situação de violência avançou para a sua vida adulta. Na vida adulta, o paciente, por meio de suas escolhas e ações, atualizava este saber-de-ser medicalizado por problemas mentais, encontrando-se inviabilizado em termos de futuro, a ponto de sofrer compulsão severa por suicídio (com histórico de várias tentativas).
Nestes exemplos de atuação, tanto no âmbito da psicologia educacional e comunitária como na psicologia infantil e psicoterapia com adultos, em consultório, a compreensão teórica-metodológica fornecida pela psicologia científica existencialista é essencial. Dispõe-se da noção de saber-de-ser como núcleo da personalidade. Toma-se os sujeitos pelo concreto, “em sua pele”, pelo conjunto das ações, estados e qualidades, unificados pelo cogito e em permanente processo de deslocamento entre o interior e o exterior dos grupos (família, escola, comunidade, religioso, entre outros). Como base ontológica, temos o em si e o para si, na relação consciência (reflexiva, percipiente e imaginante) do mundo, que nos permite se constituir em um Ego, saber que somos quem somos, uma apropriação mediadora que resulta na experimentação de ser como horizonte. Ou seja, um eu situado, ocupando um lugar no espaço e tempo social entre a liberdade e a facticidade.
Esta é a compreensão de personalidade apresentada e defendida por Sartre em La Transcendence de l’Ego (1988), que possibilita uma metodologia (prática mediada pela teoria) de intervenção em sofrimentos psicológicos, sem possibilidade de medicalização, o que não exclui o uso da medicação, quando necessário. No campo literário, Sartre ilustrou de diferentes formas estes processos, como é o caso do personagem principal de La nausée (1938), em que a esquizofrenização, a loucura, é a perda da condição antropológica ou o mergulho na solidão a exemplo do que escreve Van Den Berg (1981).
As consequências da medicalização dos problemas escolares e da infância são danosas e exigem respostas no âmbito da produção teórica-metodológica, e Sartre trouxe, nesse sentido, importantes contribuições não apenas para melhor compreender estes fenômenos como para intervir sobre os mesmos desde uma razão dialética e antipsiquiátrica. Seus estudos biográficos, com destaque para Les Mots (1964) e L’Idiot de la Famille (1971-72), mobilizam sua obra filosófica desde La Transcendence de L’Ego (1936) a La Critique de la raison dialectique (1960). Este conhecimento pode permear a definição de políticas públicas não medicalizantes. No estudo realizado por Fuck sobre o tema Raízes da Psiquiatrização da Escola - aspectos da mitomania (2010), temos um exemplo de como uma produção teórica permeia políticas públicas. A doutrina psiquiátrica da mitomania analisada na sua dissertação de mestrado, compreende que todas as crianças naturalmente fantasiam e mentem, sendo as meninas mais fantasiosas que os meninos. Este conceito psiquiátrico10 buscou frear avanços no âmbito do direito que visavam obter testemunhos de crianças vítimas de violência física e sexual, num contexto sócio-histórico em que a defesa de direitos estava em voga, pelos ventos da revolução francesa e seus princípios de igualdade, liberdade e fraternidade. Um século depois, no caso mencionado anteriormente, o rapaz fora vítima desta mesma teoria, quando relatou à psicóloga os abusos sofridos, e ela tomou-os na conta de fantasias. Foi assim, medicalizado. E esta medicalização lhe cobrou consequências, vida a fora. Assim avanço de políticas públicas perpassam a produção de conhecimento, e isso é constatado historicamente.
Nessa mesma dissertação pode-se perceber o esforço de muitos intelectuais brasileiros na superação da problemática da psiquiatrização na escola, que no Brasil, se inicia com a própria história da escolarização: José Gondra, Jurandir Freire Costa, Irene Rizzini, Daisy Mendonça, Paulo Rennes Marçal Ribeiro, Heloísa Helena Pimenta Rocha são historiadores que se debruçam para este tema. No campo da filosofia e psicologia educacional há estudos críticos sobre o tema, onde se destacam as pesquisadoras: Maria Helena Souza Patto, Maria Isabel Souza Ribeiro, Marilene Proença Rebello de Souza, Marlene Guirado, Marilda Gonçalves Dias Facci, Patrícia Carla Silva do Vale Zucoloto, Silvana Calvo Tuleski e a filosofa Sandra Caponi. Essa revisão da literatura demonstra que há um crescimento de produção teórica crítica e multidisciplinar sobre a medicalização da educação. Muitos destes estudos denunciam a manutenção no cotidiano escolar de uma prática docente medicalizante. Comprova Ribeiro (2014), que ampliou sua revisão de literatura do período entre 2010 e 2013 com a revisão realizada por Pereira (2010), que estudou os anos de 1990 a 2008 e constatou um crescimento de dissertações e teses críticas sobre a problemática em tela.
Pereira (2010) identificou nove trabalhos com abordagem crítica a medicalização no banco de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal e Nível Superior (CAPES) no período de 1990 a 2008. No intervalo entre a finalização do trabalho de Pereira e a realização do atual artigo (2010 a 2013) foram encontrados dezessete trabalhos com a utilização das mesmas palavras-chave do levantamento da autora: “medicalização criança” e “medicalização escola”. Percebe-se que a discussão em torno da questão da crítica à medicalização tem avançado com a atuação dos movimentos sociais e a produção acadêmica, entretanto ainda precisa ser consolidada e concretizada na realidade do contexto escolar. (RIBEIRO, 2014, p. 14-15).
Ribeiro (2014) concluiu que temos de um lado uma crescente produção acadêmica crítica sobre a medicalização e, de outro, no cotidiano escolar esta crítica não é concretizada. A constatação a respeito desta descontinuidade entre produção teórica, discussão política e prática no cotidiano escolar é salientada por outros pesquisadores, dentre os quais Zucoloto (2007), que aborda como as práticas psicologizantes e medicalizantes preponderam no contexto escolar. A psicologia aderiu ao modelo médico de atendimento da queixa escolar e esta continua sendo a psicologia hegemônica, visto que a psicologia escolar tradicional ainda explica o fracasso escolar pela via da patologização e, desse modo, as explicações patologizantes do fracasso escolar continuam generalizadas na cultura escolar. O discurso pregnante é o da deficiência ou da doença, os professores explicam que os alunos não aprendem porque são incapazes, deficientes ou doentes mentais. Essas crenças dos professores geram a demanda por profissionais de saúde e tornam possíveis as condições para que a prática do psicólogo escolar na chave da psicopatologia continue a proliferar no âmbito do atendimento ao escolar.
Análises realizadas por Leonardo e Suzuki (2016), Beltrame e Boarini (2013) e Brzozowski e Caponi (2013), convergem na crítica à permanência de uma prática medicalizante no cotidiano escolar. A descontinuidade entre as críticas teóricas e a estas práticas levou-nos aos seguintes questionamentos: por quais tramas, estariam silenciadas estas críticas à sua prática no interior da escola? Haveria resistências por parte dos professores em valer-se deste instrumental crítico? Estaria impregnado este saber em suas práticas, de maneira tal que eles não conseguiriam se desfazer? A presença deste saber seria resultado de sua formação ou de sua história de vida?
Em reunião de formação de professores, seminários e palestras, fica muito visível como suas experiências de vida, anterior a atividade docente influem para a sua prática profissional11. Nestes espaços de compartilhamento das experiências profissionais, muitas professoras relataram ser mais frequente não compreenderem os comportamentos dos meninos em relação aos comportamentos das meninas, e por isso, o encaminhamento dos alunos para atendimentos e possíveis diagnósticos, serem mais frequentes. Ao expressarem essa situação, as próprias professoras, refletem se esta tendência estaria relacionada a uma questão de gênero: por serem mulheres e por isso se identificarem mais com o comportamento das meninas, em relação aos comportamentos dos meninos. Em entrevista, Singh afirmou que o viés de gênero estaria mudando em ambientes anglo-europeus, diferença que diminui, havendo ainda uma prevalência dos meninos às meninas. (SANTOS; FREITAS, 2018).
Zorzanelli, Ortega e Júnior ao realizarem revisão histórica do conceito de medicalização, consideram que se trata de um processo irregular, variável, em que “[...] alguns grupos são ou eram mais medicalizáveis do que outros, como, a princípio, as mulheres e as crianças; que as diferenças sociais e de gênero contribuiriam para acirrar processos de medicalização [...]”. (2014, p. 1863). Estas constatações nos levam a perguntar se há diferença significativa no processo de medicalização entre meninas e meninos no município de Florianópolis, que possam corroborar os elementos empíricos iniciais que mencionamos aqui, ou que os contradigam. Além disso, faz-se necessário ampliar a revisão de literatura para além dos estudos realizados no Brasil, buscando na comparação com outros países, nos reconhecer antropologicamente e refletir alternativas para superação de questões que envolvam as dificuldades escolares correlacionadas com o tema da medicalização. Na América Latina, os processos de medicalização estão em andamento, mas apresentam características particulares. No Chile, por exemplo, as políticas de incentivo a medicalização assumem uma característica de eficiência, tendo por mote que as pessoas sejam medicalizadas e medicadas para se tornarem mais produtivas. No contraponto, num estudo inicial sobre o Uruguai, não encontramos políticas públicas medicalizantes muito evidentes. Análise comparada que exige aprofundamento que permita estabelecer as relações entre os processos de medicalização e os projetos de sociedade vigentes12.
As relações entre produção de conhecimento, definição de políticas públicas, formação profissional e constituição de sujeitos objetiva como a medicalização pode ser estudada em suas várias dimensões no campo da sociologia da educação. É nessa perspectiva que se pretende empreender a pesquisa empírica em escolas públicas municipais e estaduais, delimitando como problema a presença do saber medicalizante nas práticas educativas dos professores e os desdobramentos para o (in)sucesso escolar da(o) aluna(o). Para tanto, nos utilizamos dos instrumentais teórico-metodológicos oferecidos pela sociologia da educação de abordagem qualitativa e quantitativa, para investigar aspectos deste saber medicalizantes, seja numa perspectiva mais abrangente, por meio da sociologia da reprodução de Bourdieu e Passeron (1970) e Bourdieu (1979, 1980), como também demarcando questões singulares e biográficas por meio de abordagens como a sociologia da escala individual (LAHIRE, 2005) e a noção de relação com o saber (CHARLOT, 1992, 1997).
Assim, pretende-se investigar como o saber medicalizante se faz presente nas escolas e nas práticas pedagógicas dos professores com repercussão na relação dos alunos com os saberes e com sua escolaridade, marcadas por diferenças sociais e culturais, mas também de gênero que resultam em diferentes formas de (in)sucesso escolar. Trata-se de compreender a sociologia como uma disciplina que tenciona suas fronteiras disciplinares, estabelecendo delimitações de objetos que só podem ser compreendidos na interface com outras disciplinas, tais como a psicologia, antropologia, linguística. A sociologia da escala individual, por exemplo, aponta para necessidade de se
[...] ligar cada vez mais intimamente a economia psíquica aos quadros da vida social […]. O que se abre aqui é o campo de uma sociologia que se esforça por não negligenciar as bases individuais do mundo social, e que estuda, assim, indivíduos atravessando cenários, contextos, campos de força, etc., diferentes. (LAHIRE, 2005, p. 35-36).
Em termos quantitativos, dentre as unidades federativas com maior consumo de Ritalina, no período de janeiro de 2009 a junho de 2014, o Estado de Santa Catarina figura em sexto lugar. (FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE 2015). Na proposta curricular estadual, elaborada em 2014, consta uma proposição política referente às crianças com deficiência e transtornos, que indica a direção de uma não medicalização da vida:
O direito à educação dessas pessoas está garantido em documentos políticos, pedagógicos e legais, instaurando, assim, um rompimento com a naturalização da deficiência ou do transtorno como problema localizado no estudante, em função de uma modalidade de ensino: a Educação Especial, que passa a ser suplementar ou complementar à formação de estudantes (o público dessa modalidade). (SANTA CATARINA, 2014, p. 72).
Entre as legislações, suas proposições e suas práticas, sempre há uma grande distância. Além de que, no contraponto a esta política de não medicalização constata-se forte presença de projetos de lei em âmbito federal, estadual e municipal, que visam inserir no campo da educação ou nas secretárias de Educação, ou em toda a rede pública a criação de serviços, convênios e programas de diagnóstico e tratamento para supostos transtornos, com destaque para o TDAH e a dislexia (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, [2012?]).
No caso dos projetos de lei que procuram trazer para o interior da escola a questão do diagnóstico e tratamento de alunos, em nossa concepção, estão em desacordo com três princípios fundamentais para a garantia de uma política pública educacional de qualidade para todos e todas, quais sejam: a) Reconhecimento e Valorização do SUS como responsável pelas políticas de saúde [...]; b) Compreensão da Produção Social dos Problemas Escolares [...]; c) Objetivos da Intervenção Psicológica no Campo Educacional [...]. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, [2012?], p. 9-10).
Nesse contexto controverso, uma pesquisa voltada para o tema da medicalização no interior da escola numa perspectiva da sociologia da educação proporcionará novos conhecimentos que podem contribuir para o enfrentamento desta problemática contemporânea.
Algumas pesquisas sociológicas no campo educacional têm assumido a perspectiva quanti-quali ou mista (CRESWELL; PLANO-CLARK, 2013), o que caracteriza parte de nossos esforços nesta tese e, que cercam neste estudo exploratório, parte da produção acadêmica relacionada ao fenômeno, a delimitação das políticas educacionais e de saúde sobre práticas (não) medicalizantes e também o impacto de iniciativas dos movimentos de resistência a medicalização na escola protagonizados por organizações não governamentais, além da análise de documentos oficiais prescritivos das políticas educacionais e de saúde. Além de aprofundar esta revisão, investiremos na continuidade do estudo, em entrevistas com responsáveis nas secretarias da educação do estado e do município de Florianópolis, bem como numa coleta de material etnográfico que permita identificar a presença e o seu impacto nas escolas públicas da cidade.
A partir destas análises preliminares caracterizaremos as escolas com índices significativos de medicalização dos problemas escolares. A definição das escolas para o estudo qualitativo tem como critério a representatividade das unidades diante do tema. Para proceder ao “[...] estudo concreto dos contextos singulares de acção [...]” (SARMENTO, 2011, p. 4), os procedimentos metodológicos de estudos etnográficos nos auxiliam com este objetivo: técnicas de observação, entrevistas, análise de documentos e inclusive de registros audiovisuais.
[...] a etnografia visa apreender a vida, tal qual ela é quotidianamente conduzida, simbolizada e interpretada pelos actores sociais nos seus contextos de acção. Ora, a vida é, por definição, plural nas suas manifestações, imprevisível no seu desenvolvimento, expressa não apenas nas palavras, mas também nas linguagens dos gestos e das formas, ambígua nos seus significados e múltipla nas direcções e sentidos porque se desdobra e percorre. (SARMENTO, 2011, p. 17).
Através do intercruzamento de fontes, pretende-se construir como no cotidiano escolar se faz presente o saber medicalizante, suas representações e apropriações, os diversos sentidos e significados que adquirem e as práticas que mediam. Neste sentido, uma escola que estatisticamente conste como sendo mais medicalizante, na sua prática cotidiana, pode se encontrar outros elementos, singulares e que apresentem caraterísticas particulares. Após a coleta dos dados, será necessária a articulação e triangulação, para a compreensão e construção narrativa sobre a escola e as possíveis generalizações.
“Em síntese, a triangulação dos métodos de recolha de informação, bem como a multiplicação das fontes, obedece ao duplo requisito da abrangência dos processos de pesquisa e da confirmação de informação.” (SARMENTO, 2011, p. 21, grifo do autor). Construindo a narrativa da escola, no processo de triangulação das fontes e atenta aos elementos abrangentes e singulares, pode-se conduzir para uma análise com o esforço de universalizá-la. Para esta análise será colocado como centrais as práticas de circulação, apropriação e representação do saber medicalizante e não medicalizante, a presença deste saber na relação professor /aluno e dos técnicos da escola, as consequências para as práticas educativas e os desdobramentos para o (in)sucesso escolar.
Enfim, uma vez construída a análise sociológica do processo de medicalização/não medicalização na escola, pretendemos colaborar com a própria escola objeto desta pesquisa, com os demais pesquisadores dedicados a este tema e profissionais-técnicos da Secretária do Município da Educação empenhados cotidianamente ao enfretamento destas situações.
[...] a investigação etnográfica das escolas pode constituir-se no dispositivo da mudança das práticas, nomeadamente porque, ao incidir sobre as representações e interpretações da acção pedagógica e organizacional, favorece a apropriação pelos(as) professores(as) e pelos outros membros da organização escolar dos sentidos da acção, permitindo a promoção de formas de intervenção mais reflexivas e críticas. Avaliando as etnografias como um instrumento de grande utilidade no apoio ao pensamento reflexivo dos(as) professores(as), pela desocultação do seu saber tácito e dos fundamentos implícitos das rotinas, Torres Santomé considera que “as etnografias não devem ficar-se exclusivamente na sua dimensão descritiva, mas, como modalidade de investigação educativa que são, devem coadjuvar também a sugerir alternativas, teóricas e práticas, que conlevem a uma melhor intervenção pedagógica”. (1988:17). (SARMENTO, 2011, p. 40, grifo do autor).
A etnografia enquanto abordagem tem marcado sua presença nas tendências sociológicas contemporâneas que tomam como objeto situações de (in)sucesso escolar. Em nossa tese, trabalhamos com a hipótese que a compreensão destas situações exige tanto uma visão macro quanto o detalhe das atividades nas quais estão implicados crianças e adultos, mediadas pelas instituições e os saberes disponíveis. Assim, o método progressivo-regressivo propõe o vaivém permitindo a verticalização do estudo de situações detalhadamente biografadas, aprofundando a época, e esta aprofundando a biografia. “Longe de procurar integrar logo uma à outra, mantê-las-á separadas até que o envolvimento recíproco se faça por si mesmo e ponha um termo provisório na pesquisa [...].” (SARTRE, 1989, p. 170-171). Partir do estudo de situações singulares exige da mesma forma o rigor conceitual e metodológico. Exige ampla revisão de literatura para situar o objeto estudado no mesmo horizonte das pesquisas do campo, na relação com outros campos disciplinares. Retornando ao detalhe, ao biográfico em sua singularidade, sem deixar de considerá-lo como um fenômeno universal, o que se exige dos cientistas sociais em termos de inovação é este misto de rigorosidade com inovação metodológica para se estudar e compreender, até mesmo intervir, sobre objetos demarcados num horizonte interdisciplinar. Em suma, produzir um conhecimento sociológico sobre a presença do saber medicalizante e com isso contribuir para traçar novos passos, tanto na prática como na teoria e, assim, talvez construir outros rumos para esta história de medicalizações na escola.
Estamos no início do processo de pesquisa e por este motivo ainda não apresentamos resultados expressivos. Assim, o texto limita-se a observar hipóteses de pesquisa com base em revisões de literatura preliminares.
Buscamos estabelecer interlocuções e provocar discussões que permitam refletir sobre o objeto que estamos estudando, qual seja, as práticas medicalizantes na escola e desta forma estreitar relações com outros pesquisadores e pesquisas sobre o mesmo objeto, para discutir abordagens, ferramentas metodológicas e hipóteses, assim como apreciar e refletir sobre os seus resultados independente do campo disciplinar. Reconhecer a diversidade de trabalhos realizados em diferentes campos disciplinares, tais como serviço social, educação, psicologia, farmácia, jornalismo representados nos serviços do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), Escolas e Universidades, compartilhando seus estudos e trabalhos possibilita refletir sobre os processos da ciência e seus compromissos sociais, de ações de resistência e enfrentamento aos problemas sociais contemporâneos, que aflige sobretudo as camadas mais pobres de nossa sociedade.
Compreendendo o conceito de medicalização em sua transitividade, como propõem Zorzanelli, Ortega e Júnior (2014), e articulando a noção compartilhada dos pesquisadores da área da psicologia e educação, que tomam a concepção de medicalização a partir da referência da psicologia histórico-cultural, criticando fundamentalmente as bases patologizantes e biologizantes das práticas relacionadas às questões educacionais, parece adequado e instrumental nomear este objeto de pesquisa de medicalização. Mas necessário aprofundar as especificidades de trazer para o âmbito da educação outros referenciais para sustentar o conceito.
Ao professor Pedro Bertolino, com quem pudemos aprofundar o conhecimento sobre existencialismo e obter contribuições teóricas e metodológicas para nosso trabalho.
UFSC Endereço Rua Engenheiro Agronômico Andrei Cristian Ferreira, s/n, Trindade. Florianópolis - Santa Catarina - Brasil CEP: 88040-900UFSC Endereço Rua Engenheiro Agronômico Andrei Cristian Ferreira, s/n, Trindade. Florianópolis - Santa Catarina - Brasil CEP: 88040-900