Resumo: O artigo apresentado pretende realizar reflexão inicial sobre genocídio da população negra com enfoque no que vamos chamar de “assassinato por equívoco”. O conceito de genocídio está amparado em Vargas (2010) e Almeida (2015) que, de modo geral, trabalham com a concepção da Organização das Nações Unidas (ONU), que coloca o genocídio como destruição física e ou cultural de parte ou de todo um grupo étnico/racial. Os assassinatos de que tratamos são de negros moradores do Rio de Janeiro e região metropolitana que foram assassinados por “engano” por agentes do Estado. A coleta desses casos ocorreu via mídia eletrônica. Trabalhamos com o escopo de reportagens a fim de traçar uma discussão entre violência de estado, racismo e “naturalização” do genocídio. Por fim, percebemos que os assassinatos por “equívoco” têm se tornado um crescente e têm demonstrado a “naturalização” da morte negra justiçada pela criminalização dessa população.
Palavras-chave: RacismoRacismo,GenocídioGenocídio,NegroNegro,CriminalizaçãoCriminalização.
Abstract: The presented article intends to accomplish an initial reflection about genocide of the black population with focus on what we will call “murder by misconception”. Vargas (2010) and Almeida (2015) who generally work with the United Nations (UN) conception that places genocide as the physical and/or cultural destruction of part or all of an ethnic group/racial support the concept of genocide in this text. The murders we are dealing with are black residents of Rio de Janeiro and the metropolitan region murdered by “mistake” by state agents. The collection of these cases occurred by electronic media. We work with reports scope to draw a discussion between State Violence Racism and the “naturalization” of genocide. Finally, we realize that the murders by “misconception” has become a crescent and has demonstrated the “naturalization” of the black death justified by the criminalization of this population.
Keywords: Racism, Genocide, Black, Criminalization.
ESPAÇO TEMA LIVRE
O “equívoco” como morte negra, ou como “naturalizar” balas racializadas
The misconception as a black death, or how to “naturalize” racialized bullets
Recepção: 12 Julho 2019
Revised document received: 06 Abril 2020
Aprovação: 11 Fevereiro 2019
O trabalho ora apresentado pretende realizar uma reflexão inicial sobre homicídio na população negra, com enfoque particular no que inicialmente vamos chamar de “assassinato por equívoco”, ou o que se denominava popularmente “estar no lugar errado na hora errada”. Esse provérbio popular, a propósito, nos dá o indício de como se naturaliza e justifica a prática homicida no Brasil.
Os assassinatos que tratamos aqui são em sua maioria de pessoas negras, contudo não procuramos estabelecer um mapa quantitativo destas mortes, já elaborado por Waiselfisz (2012, 2016) e outros estudos. Nosso objetivo é iniciar uma reflexão acerca de quais processos envolvem a naturalização da violência letal contra a população negra. Nesse sentido, o que nos chamou atenção foram às mortes causadas por agentes de segurança do Estado, mas cujo mote foi o que tem sido relatado como “erro”, ou simplesmente “confusão”.
São mortes cuja justificativa geral é o policial “confundir” objetos, ou atitudes banais com armamento, ou intenção homicida por parte da vítima, o que segundo a polícia motiva a sua defesa que redunda em assassinato1. Percebemos que esse tipo de crime, embora quantitativamente menor em relação às chamadas mortes por “confronto”, tem se tornado uma crescente e tem demonstrado a banalização da morte negra como expressão de um genocídio2 naturalizado.
Trazer essa discussão, ainda que de modo inicial, é pensar em como as origens coloniais do Brasil se fazem presente na forma de estabelecer vida e morte, mesmo nos dias atuais, principalmente em relação a pessoas negras.
Consoante a isso, a violência tem se constituído como forma privilegiada de “diálogo” entre o Estado, as favelas e periferias3, identificadas como lugar de negro. Por fim, pretendemos apreender como o impacto neoliberal sobre a população negra vem representando a retração das parcas políticas sociais públicas, que incidem positivamente sobre territórios favelizados e periféricos ao mesmo tempo em que se fortalece o Estado punitivo, acarretando altos índices de encarceramento e morte4 dessa população.
Partindo desses pressupostos, a metodologia utilizada se deu por meio de pesquisas realizadas na Internet, em notícias sobre mortes cujas causas fossem “equívocos” policiais, a fim de identificar, ainda que de modo inicial, a relação entre essas mortes e o racismo. A busca se baseou em sites de notícias e jornais eletrônicos. Não analisamos, neste artigo, a forma da cobertura midiática, nem o seu conteúdo5. Nossas inferências se debruçaram sobre as narrativas de policiais e familiares que se encontravam nessas reportagens.
Com base no exposto, optamos por dividir este trabalho em duas seções: a primeira trata de violência de Estado, com recorte racializado, e a sua incidência sobre territórios identificados como negros. A segunda parte se refere à uma análise inicial das mortes por “equívoco”, não por acaso mortes negras.
No que se refere ao Estado, a violência é marca de sua inauguração, e no caso do Brasil, assim como outros países que foram colônias, a violência e a expressão letal dessa violência é seu registro de nascimento, basta observarmos os massacres e extermínios contra indígenas e negros. Nessas breves linhas, contudo, iremos focar o momento contemporâneo, ou seja, o Estado em sua face neoliberal, o que significa, entre outros aspectos, a drástica redução dos investimentos em políticas sociais de corte redistributivo e a intensificação do autoritarismo.
Ranciere (2005) coloca que o pressuposto do capital atrelado ao bem-comum é uma fantasia, e que por trás disso se esconde a necessidade de expansão de poder e riqueza, Isso porque o discurso “do” e “contra” o Estado passa a centrar-se no seu suposto “tamanho”, no que se refere ao seu investimento em políticas públicas que buscam efetivar alguns direitos de ordem civil, política e marcadamente social, principalmente para aqueles historicamente atingidos pela desigualdade. Nesse sentido, Balibar (2012) ao recorrer a Brown (2005) irá expor:
La deffeccíon del Estado de ciertas áreas y la privatizaçion de ciertas funciones estatales no equivale al desmantelamento del gobierno, sino que antes bien, contitui uma técnica de gobierno, la técnica que caracteriza, em efecto, la gobiernanza neoliberal, en la cual la accíon econômico racional extendida a toda la sociedade reemplaza las acciones directas o sus disposiciones (BROWN, 2005 apud BALIBAR, 2012, p. 171).
Há uma nova pactuação em torno do Estado como agente legitimador da extração, cada vez mais intensa de mais valia, ao mesmo tempo em que se reforça a frente cada vez mais mercantilizada dos direitos e, por conseguinte, da vida, uma vez que o meio pelo qual se viabiliza direitos passa a ser prioritariamente o mercado e o “poder de compra”, que ao fim aumenta o abismo das desigualdades. Uma vez que aqueles que não possuem as condições de compra no mercado estão fora do status de sujeito de direitos (cidadãos), e por vezes, fora do reconhecimento do Humano (ABREU, 2008).
Por outro lado, devemos lembrar que no caso Brasileiro, o Estado de Bem-Estar Social6, que antecedeu ao retrocesso neoliberal, nunca se efetivou. Quando nos aproximamos de um aprofundamento no âmbito dos direitos civis, políticos e sociais, via Constituição de 88, começamos a viver o impacto da “onda” neoliberal, que embora não ataque diretamente a chamada “Constituição Cidadã”, em um primeiro momento, coloca a subordinação de todo e qualquer direito à política de ajuste econômico, combinada a proteção quase que exclusiva da propriedade privada e, por sua vez, do proprietário privado via aparato da violência legal. (PASTANA, 2007).
Essa combinação de Retração do Estado na efetivação de direitos via política pública e o fortalecimento de sua condição de garantidor da propriedade privada cria uma ação de Estado que, por um lado retira direitos e com isso intensifica a pauperização7 dos cidadãos e por outro se “agiganta” nas áreas que envolvem a contenção, encarceramento e eliminação dos “pauperizados” (WACQUANT, 1999).
Por outro lado, não podemos esquecer que aqueles pertencem à classe trabalhadora, e principalmente os que se encontram em condição de pauperismo, estão localizados na maior parte dos casos em territórios que são identificados como lugar dos não “proprietários”, marcados pela segregação sócio espacial e racial (SOUZA E SILVA et al., 2009).
Assim, ao invés de ser alvo da proteção do Estado, esses lugares representam por um lado a ausência do Estado no campo da garantia dos direitos, inclusive aqueles garantidos constitucionalmente, por outro, uma superpresença do Estado, pela via da chamada segurança pública, que de modo geral ao invés de buscar garantir a chamada segurança que aqui poderia ser traduzida como a garantia de não morrer de forma violenta, é ao contrário uma das maiores responsáveis pela morte daqueles que vivem nesses territórios.
Nesse sentido, o “caveirão” (símbolo da luta contra o crime no Rio de janeiro) é a marca de toda a organização da política de segurança pública no Rio de Janeiro e um índice de como a segurança vem sendo pensada nacionalmente, mas que não passa de uma resposta midiática (comercial) que cria profunda insegurança e instaura uma política de terror constante nos vários locais considerados periféricos, que recebem sua incursão, segundo depoimento recolhido em relatório da Anistia Internacional:
Imagine um carro oficial blindado, tendo como distintivos uma caveira e uma espada, com policiais que entram atirando nos postes de iluminação primeiro e depois nos moradores do seu bairro... isto é o caveirão. Um garoto de 11 anos teve a cabeça arrancada do corpo com os tiros que partiram do caveirão. E nós, moradores, ainda temos que provar que foi a polícia. (Moradora do Caju, Rio de Janeiro, 2 dezembro 2005).
Essa justificativa se baseia em dois aspectos: primeiro a transmutação desse território em lugar onde reside a origem do “crime” que põe em risco a vida e os bens dos que “possuem”, estipulando uma pena de morte, inclusive não prevista constitucionalmente, já que a execução dos “criminosos” é uma prática naturalizada. Não podemos esquecer que aqui contamos com a retórica da guerra às drogas, e ao crime organizado, como justificativa para toda e qualquer ação, afinal na guerra o que vale é a eliminação do “inimigo”. Como atesta o depoimento do, à época, coronel do Batalhão de Operações Especiais (BOPE):
Agiremos como na guerra convencional, onde o tanque vai na frente, e a infantaria cerca o inimigo pelos lados. (O comandante do Bope coronel Venâncio Moura - Relatório da Anistia Internacional, 2005). É nesse sentido que se pode afirmar que a favela se converteu no espaço paradigmático para o exercício de uma peculiar economia da violência: a distribuição calculada da morte e da punição como instrumentos políticos de controle territorial”. (ALVES, 2011, p. 117).
Em segundo lugar, a própria ideia que se faz acerca desses territórios, como lugar de “dejeto”, nas palavras de Carolina Maria de Jesus em sua obra “Quarto de despejo”, onde se joga o que não presta, e se não presta pode e deve ser abandonado e posteriormente destruído. Na impossibilidade de permanecer na ignorância, o Estado começa a centrar esforços na remoção dessa população, como quem muda o “lixo” de lugar. Em outros momentos, de maneira tímida, parece dar uma “arrumada” no espaço, com a entrada de alguns equipamentos e serviços públicos, que obviamente são obtidos devido à mobilização e pressão social, mas ainda assim de forma superficial8, uma vez que são as ações de contenção dentro desse “quarto”, e criminalização desses sujeitos, que encontram maior eco no Estado.
Ferrari (2017) ao discutir a Lei antiterror, acaba por demonstrar como vem se estabelecendo o terrorismo de Estado, via presença/conflito policial, assim como o quantitativo de trabalhadores da segurança pública é muito superior a quantidade de trabalhadores distribuídos por outras políticas públicas, como: saúde, educação etc.
Nesse momento, devemos nos perguntar: quem foi jogado nesse lugar? Trata-se aqui de breve recuperação da construção do Brasil sob bases racistas, que atiraram boa parte da população negra a este “quarto de despejo”.
O trabalho de negros9, escravizados, foi o assento da formação da nossa classe de proprietários, de modo direto ou indireto, foi o trabalho coletivo de pessoas escravizadas que propiciou, inclusive, a construção dos bens públicos e privados10. (ANDREWS, 2008; CARVALHO, 2016).
A abolição não trouxe nenhuma indenização pelo trabalho não pago e pelas vidas ceifadas, ao contrário, no pós-abolição negras e negros foram identificados comodamente como os culpados, pelo chamado atraso nacional, e como criminosos receberam o trato dispensado a esses, ou seja, perseguição, e o laissez-faire, em um Estado e sociedade profundamente racista e desigual (MENEZES, 2013).
É nesse contexto que se enquadra o surgimento das primeiras favelas e/ou periferias, lugares afastados dos centros de concentração de posse e poder, ainda que em alguns casos, estejam geograficamente próximos dessas áreas e vão simbolizar o lugar que estes devem ocupar socialmente.
Ao mesmo tempo, esse “destino” também se inscreve na trajetória da morte abreviada da população negra, de modo geral, e particularmente dos jovens negros, que encontram no caminho de suas vidas os projéteis das armas (ALVES, 2011). Justamente porque as periferias e os corpos negros se confundem, um está inscrito no outro.
A racialização está dada na medida em que o negro não é apenas uma inscrição fenotípica, mas pode tornarse um lugar, algo que extrapola as fronteiras da característica física, não por acaso que constituímos o verbo denegrir, que nada mais significa que o tornar-se negro, mas que justamente por isso, equivale a difamar, cobrir a imagem de alguém com negrura, obscurecer, logo importa pouco se no território periférico pode residir não negros, uma vez que esses territórios já estão obscurecidos, difamados, são ao final as periferias/favelas negras11.
Logo, seria possível separar essas duas condições? É evidente que há pessoas brancas moradoras de periferias/ favelas, mas isso não torna esses territórios brancos, ao mesmo tempo um negro em trânsito no Brasil e mais particularmente no Rio de Janeiro, está carregando o lugar de favelado/periférico em seu corpo.
As mortes que escolhemos tratar são mortes justamente que ocorreram em lugares periféricos, mas não em “confronto”, o que significa que a insígnia do crime está dada, possivelmente por um olhar policial marcado por fenótipo. O território assume as características de um
fenótipo, que é ao mesmo tempo materialização e individualização desse território.
Este levantamento inicial não tem pretensão de esgotar a extensão ou todas as possíveis dimensões que compõem o problema. Nossos objetivos são: a) procurar traços de unidade no fenômeno; b) conhecer os territórios dessas mortes, se estes são identificados como territórios negros ou não; c) quantificar negros e brancos atingidos por esse fenômeno; d) realizar uma breve análise do fenômeno à luz dos pressupostos teóricos discutidos no texto.
Para essa pesquisa inicial realizamos levantamento junto à Internet, particularmente através do www.google.com, procurando pelas seguintes palavras-chave e expressões: policiais confundem; os casos em que policiais haviam confundido; foram acusados de confundir objetos ou atitudes com potencial ofensivo letal; e que por sua vez redundou em ação de “defesa” do policial. Este procedimento resultou na coleta de dados em sites de notícias e jornais eletrônicos.
Não realizamos um recorte temporal uma vez que esses casos têm sido visibilizados recentemente na mídia, isso não significa que não possam ter ocorrido antes, mas que não vieram a público.
A partir disso, selecionamos reportagens em que o local do fato ocorrido fosse o município do Rio de Janeiro e região metropolitana na medida em que:
a) O histórico da chamada “guerra ao narcotráfico” vem vitimando um alto índice de mortalidade negrae desproporcional em relação à população branca todos os anos12. Segundo a reportagem de Paula Bianchi, com base nos dados Instituto de Segurança Publica (ISP), foram mortas 1227 pessoas pela polícia do Estado do Rio de Janeiro, das quais 581 foram identificadas como pardas 368 negras, 141 brancas e 137 não identificados. Sendo quatro mulheres dentro deste universo;
b) O histórico de intervenções militares no Rio de Janeiro. De acordo com a reportagem de Bianchi, as forças
militares foram acionadas para intervir na segurança pública 12 vezes entre 2008 e 2017 no Rio de Janeiro13;
c) A construção das Unidades de Polícia Pacificadora foi uma estratégia de segurança pública, iniciada em2008, que buscava cuja ideia de tomada de territórios identificados como de domínio de criminosos (BETIM, 2018); A partir do exposto, optamos por trazer um resumo de cada matéria jornalística e realizar algumas inferências a partir das informações coletadas.
Os eventos descritos acima, com exceção do caso 4, ocorrem todos em periferias e favelas. Ainda que nem todos tenham sido mortos exatamente dentro dessa localização, se encontravam margeando essas. E mesmo no caso 4, na íntegra da reportagem somos informados que os policiais seguiram para o parque por ser uma reconhecida região de tráfico de drogas, o que pode significar que já seja um território identificado com a periferia. O que dispara a suspeição da ação do policial? É verdade que como estamos trabalhando com informações obtidas na mídia, não podemos inferir ou discutir motivações de âmbito individual. Isso não significa desprezar esses fatores, mas não é possível analisá-los, contudo podemos ver o processo que se desenrola a partir das próprias “cenas”. Há nas reportagens e na própria fala de alguns policiais o índice de crimes no local. Voltamos ao entendimento das regiões periféricas como lócus do crime. Mesmo no caso 4 que destoa dos demais, na íntegra da reportagem os policiais referem-se ao índice de criminalidade no parque como motivo para ir ao local, ainda assim, eles nos informam que não podiam ver direito os envolvidos.
Assim, a atitude suspeita à escolha do suspeito é muitas vezes realizada baseada em um critério bastante comum - o fenótipo. Contudo um dos mortos era branco, mas, morto em um território negro. Se trata de ser negro, mas também de não ser branco, no sentido da divisão de características atribuídas ao que é ser um sujeito pertencente a um lugar, ou a outro. Dessa forma, compreendemos que a suspeição é sempre negra por princípio. A inversão do princípio de justiça: “se é inocente até que se prove o contrário”, no caso dos negros a culpa já está instituída. É possível que por isso o trabalho investigativo seja dispensável em nome da razão da aparência, e “aparentar” nada mais é que conhecer superficialmente, logo não é difícil que a “naturalização”20 da morte negra torne-se praxe nesse processo.
O argumento trazido à baila nessas mortes é o erro técnico, é o equívoco profissional, essa aliás é a alegação em todos esses casos, a questão é que não é a confusão em si que nos chama atenção em um primeiro momento, mas o que permite essa confusão ser vista como simples “confusão”. Vidas são perdidas, mas isso é fruto de um erro de cálculo, e isso é, a nosso ver, símbolo máximo da naturalização da morte negra.
Consoante a isso, em todos os casos, exceto o número 4, as pessoas foram alvejadas para matar, “execução”, e inclusive a justificativa é que em virtude da suspeição se atirou em legítima defesa. No Brasil não é oficializada a pena de morte, contudo, não parece existir tiro de imobilização no suspeito.
Bandido bom é bandido morto? O problema com essas mortes foi que elas não puderam ser encaixadas no jogo cênico e caricatural de mocinhos e bandidos, bem e mal etc. Nessa dicotomia é preciso demonstrar que os heróis vencem, e nesse caso matar é uma vitória.
Essa forma de avalizar as mortes de pessoas que são consideradas criminosas, forja o princípio pelo qual a morte dos inocentes também já está previamente justificada, ora se a execução de criminosos é regra para o “bem” proteger da sociedade, o que acontece com os inocentes é um dano colateral, fruto do erro por um bem maior.
A priori, esses inocentes foram considerados culpados, pois um véu de suspeita continua e se estende antes e depois de suas mortes. Na reportagem sobre o caso 5, o relato de confusão é uma alegação da família21. A polícia diz apenas que havia um confronto e o jovem teria recebido uma bala “perdida”, já no caso 2, os policiais tentaram forjar um auto de resistência. Essas duas situações ilustram como a lógica da culpabilização da vítima opera não só antes, mas depois da morte22, através da ideia de que se trata de jovens negros bandidos e a polícia apenas cumpriu seu dever. A “culpa”, nesse caso, começa pela cor da pele, atravessa o lugar onde residem, e os espaços em que transitam. Se essa falsificação não tivesse vindo à público, os mortos seriam apenas mortos, porque estavam “envolvidos” com o narcotráfico, e, portanto, seria “natural” que eles morressem.
Ainda se formos nos atentar para aos mais recentes casos de morte, vamos ver que uma das primeiras falas de familiares e ou amigos das vítimas é sobre o trabalho, a escola, numa tentativa de conseguir provar a inocência. No caso 523 é a própria família que expõe a questão sobre a polícia ter confundido o saco de pipoca com droga ilícita. A questão é que o porte de droga ilícita de algum modo pode justificar assassinato, é por isso que a família precisa desvincular a imagem do familiar da ideia das drogas. Em realidade, esse é o único caso, em nossa relação, que não envolveu sequer a possibilidade de “armamento” ou “atitude” suspeita.
Logo, a ideia de execução por defesa pode não ser a única explicação possível para esses acontecimentos, porque talvez a execução não seja uma questão de bandidos ou inocentes, ou de leis, mas se remete à formação sócio-histórica brasileira, que tem a morte negra como parte de sua constituição. Na verdade, a morte foi parte central do processo de colonização em todos seus sentidos, não há vida, seja na invasão das terras e extermínio indígena, seja no sequestro e morte de milhões de africanos escravizados, seja na morte da terra, através dos ciclos da monocultura, e da morte de rios e lagos para o progresso.
Não nos desvencilhamos das imagens de negros em troncos sendo açoitados e mortos, aliás, vemos essa imagem sem muitas críticas até hoje, em alguns livros didáticos e novelas, ainda não foi possível quebrar as estruturas dessa sociedade com suficiente força, para revermos o lugar da trilogia dominação-exploração-morte. Isso não justifica esses eventos, que não têm adjetivos, posto que signifiquem uma perca incalculável e irreparável, mas as raízes desse processo são históricas, sociais e profundamente arraigadas nas relações sociais brasileiras.
De tal maneira que, o caso 4 transcorreu de modo diferente dos demais, sendo o único que não resultou em morte. Na verdade, o tiro foi disparado no braço do suspeito. O único cuja narrativa dos próprios jovens foi explícita sobre estarem fazendo uso de maconha, mas que não foi considerado como questão, ao menos, segundo a fala dos policiais concedida à reportagem. Com efeito, a alegação do policial foi que ele não conseguiu ver os adolescentes direito. O resultado do erro aqui foi outro, bastante distinto. Não se trata de exigir a morte equânime, mas trata-se de ver além do discurso do equívoco. Evidentemente que os casos falam de policiais diferentes, em momentos diferentes, mas o que torna possível que somente nesse caso o policial não tenha atirado de modo letal?
Esses fragmentos de história não elucidam as múltiplas complexidades envolvidas nessas mortes, mas de algum modo elas trazem pistas sobre a criminalização, culpabilização, punição e violência empregada pelo Estado através de seus agentes públicos. Se nos voltamos para os casos, a punição pela presunção da culpa é máxima. Nesse sentido, podemos facilmente retornar a Wacquant (2001), principalmente porque em seu livro o autor trata mais detidamente dos negros e outros grupos criminalizados.
O Estado punitivo, nesse caso, talvez encontre seu lugar de conforto no Estado herdeiro da colônia, porque a punição, a violência e a exceção são parte da construção desses. Mbembe (2018) nos alerta para isso, a morte e a exceção são parte da existência negra e a construção dos Estados não alterou isso.
No transcorrer deste artigo buscamos nos aproximar das discussões acerca da violência, e particularmente da letalidade que acomete a população negra, dentro e fora de periferias e favelas. Procuramos estabelecer as relações entre esses territórios e a população negra, ressaltando que esses são territórios enegrecidos. Nesse sentido, as mortes que abordamos acabaram por trazer indícios de racialização, mesmo em mortes cuja razão seria atribuída ao “acidente”.
Esse aspecto para além de confirmar os dados de documentos, como o Mapa da Violência e do Atlas da violência, também trazem à luz novas possibilidades de olhar para tais questões, uma vez que, o que é divulgado como “confusão” possui antecedentes sociais anteriores, um dos principais, o racismo, cujo crivo tem sido a mão que direciona a arma contra negros de periferia/favela. Contudo, são necessários novos estudos, para desvelarmos outras dimensões concernentes a esse fenômeno.
Á Aline Batista de Paula por sua preciosa leitura.
Á Joze Maria Gomes (orientador).
UFRJ Av. Pasteur, 250 - Urca Rio de Janeiro - RJ, Brasil CEP: 22290-240