Resumo: O artigo tem como objetivo analisar a criação, o desenvolvimento e as mudanças ocorridas na estrutura da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a partir da segunda metade de 2016, tendo como perspectiva os conceitos de Comunicação Pública. Por meio de pesquisa bibliográfica e documental buscou-se compreender como a EBC, que tem como principal finalidade gerir os serviços de radiodifusão pública federais, se constituiu e como vem passando por intensos processos de desmantelamento de seu caráter público. Foram destacadas duas mudanças estruturais: a extinção do Conselho Curador, que era a instância formal de participação da sociedade na empresa e a fusão do canal NBR e TV Brasil, ambas consideras inconstitucionais por especialistas e pesquisadores em Comunicação Pública.
Palavras-chave: Empresa Brasil de ComunicaçãoEmpresa Brasil de Comunicação,RadiodifusãoRadiodifusão,Desmonte da Comunicação PúblicaDesmonte da Comunicação Pública.
Abstract: The article aims to analyze the creation, the development and the changes in the structure of Empresa Brasil de Comunicação, from the second half of 2016 onwards, having Public Communication concepts as a perspective. Through bibliographic and documentary research, we sought to understand how the EBC, which has the main purpose of managing federal public broadcasting services, was constituted and how it has been going through intense processes of dismantling its public character. Two structural changes were highlighted: the extinction of the Board of Trustees, which was the formal instance of society’s participation in the company, and the merger of the NBR and TV Brasil channels, both considered unconstitutional by specialists and researchers in Public Communication.
Keywords: Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Broadcasting, Dismantling of Public Communication.
ESPAÇO TEMÁTICO: POLÍTICA, CIÊNCIA E MUNDO DAS REDES
Empresa Brasil de Comunicação (EBC): a comunicação pública em declínio
Empresa Brasil de Comunicação (EBC): public communication in decline
Recepção: 29 Fevereiro 2020
Revised document received: 10 Junho 2020
Aprovação: 02 Abril 2020
Historicamente, os meios de comunicação no Brasil são desenvolvidos a partir dos conflitos de interesses entre diferentes projetos societários. Entendendo o poder da classe dominante na sociedade brasileira e sua relação na direção do Estado, bem como na construção de meios para sustentar essa dominação, destacam-se as (des)regulações que se apresentam no setor de radiodifusão. Em outras palavras, o nascimento da radiodifusão no Brasil surgiu mediante interesses privados e políticos, através de iniciativas de diferentes governos nacionais, sobretudo daqueles de cunho autoritário, a partir dos anos de 1960.
Nos primórdios do que se pode chamar de radiodifusão pública, portanto, o que prevaleceu foram emissoras de rádio e televisão vinculadas a diferentes órgãos estatais, que cumpriam com o objetivo único de informar sobre as atividades do Estado e dos seus governantes. O que faziam quase sem interferências e mediações, totalmente desvinculadas dos pilares de Comunicação Pública1.
Embora a Constituição de 1988 tenha previsto a complementaridade dos sistemas público, estatal e privado no Art. 223 (BRASIL, 2000), foi somente 20 anos depois, em 2008, que o sistema público de radiodifusão foi regulamentado e delimitado organicamente, a partir da Lei nº 11.652, de 7 de abril de 2008, que criou a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) (BRASIL, [2020]). Os princípios que regem a Lei e o sistema público de radiodifusão trazem, em sua essência, a ideia de promoção da cidadania e igualdade de acesso à informação. Entre eles destaca-se: 1) a promoção do acesso à informação, através da pluralidade de fontes, definida no Art. 2º da Lei, assim como a produção de conteúdos com finalidades educativas, culturais e informativas e a não discriminação político-partidária, filosófica, étnica, de gênero ou opção sexual, 2) a ideia de promoção da cidadania, no Art. 3º, que discorre “desenvolver a consciência crítica do cidadão, mediante programação educativa, artística, cultural, informativa, científica e promotora de cidadania” (BRASIL, [2020]). Dessa forma, o compromisso com a pluralidade, com a diversidade de fontes jornalísticas e com a produção de notícias que atentem para as demandas e os interesses dos cidadãos, está expresso na Lei.
A noção de que o sistema público de radiodifusão deve obedecer a tais princípios, no entanto, não ocorreu de forma extemporânea nem a-histórica, como ressaltam Paulino, Guazina e Oliveira (2016), mas está atrelada à própria construção coletiva acerca da necessidade de uma Comunicação Pública.
Nessa direção, o artigo visa traçar as principais características constitutivas da EBC, considerando seu caráter de Comunicação Pública e busca analisar as mudanças ocorridas na empresa, após agosto de 2016, momento em que Michel Temer assume a presidência da República, após Dilma Rousseff ter sido destituída do posto através de golpe jurídico parlamentar2. Muitas dessas mudanças são consideradas inconstitucionais por representantes de coletivos de comunicação e por pesquisadores e especialistas em Comunicação Pública, que defendem que a EBC vem sofrendo um desmonte de seu caráter público.
Realizamos uma pesquisa bibliográfica e documental. A primeira foi feita a partir de buscas com as palavras Empresa Brasil de Comunicação no banco de teses e dissertações do Portal CAPES, como também na plataforma Scielo (Scientific Electronic Library Online). A seleção do material a ser utilizado se deu a partir da leitura do resumo das publicações (elencamos as de 2012 até a atualidade), tendo em vista os objetivos acima citados. Já a pesquisa documental foi desenvolvida a partir do acesso ao próprio portal da EBC, que disponibiliza relatórios, manuais, leis, medidas provisórias e informações institucionais da empresa; como também por meio de artigos, entrevistas, reportagens e notícias veiculadas em portais de Coletivos de Comunicação, Organizações sem fins lucrativos e Movimentos Sociais, que abordaram a EBC em suas produções, nos últimos três anos.
A criação da EBC não se deu somente por um projeto do Poder Executivo, como pondera Pereira Filho (2015), mas também em virtude de intensos debates impulsionados por diversos segmentos da sociedade civil e que ganhou mais vigor a partir de 2006.
Sendo assim, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) começou a ser idealizada em maio de 2007, durante o I Fórum Nacional de TVs públicas, realizado em Brasília. O evento contou com a participação de amplos setores da sociedade civil (comunicadores profissionais, cineastas, jornalistas, representantes de movimentos sociais, dirigentes de emissoras de rádio e televisão etc.), que durante os quatro dias de evento discutiram formas de viabilizar a introdução de um sistema de televisão pública no País. As propostas centrais, resultantes do encontro, deram origem à formulação da Carta de Brasília, lida ao final do evento e assinada pelas entidades participantes3. O documento propunha, em sua essência, um manifesto pela TV Pública independente e democrática (OBSERVATÓRIO DO DIREITO À COMUNICAÇÃO, 2007).
Nas semanas subsequentes ao evento, com base nas diretrizes da Carta, um grupo de trabalho, coordenado pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) desenvolveu as bases da Medida Provisória 398, propondo a criação de uma nova empresa pública federal. Já em outubro do ano seguinte a MP foi convertida na Lei nº 11.652/2008, que autorizou a criação da Empresa Brasil de Comunicação (BRASIL, [2020]). De imediato a empresa herdou os canais de rádio e TV geridos pela estatal Radiobrás e pela Associação de Comunicação Roquette-Pinto (Acerp), além de unificar e gerir as emissoras federais já existentes, instituindo assim, o Sistema Público de Comunicação.
No que tange à estrutura operacional dos principais serviços de comunicação prestados pela EBC, há uma divisão em três grandes eixos: TVs, Rádios e Agências, cada qual possuindo seus veículos de comunicação (EMPRESA BRASIL DE COMUNICAÇÃO, 2018):

Em 2013, a EBC lançou seu Manual de Jornalismo, que tratou de sistematizar as diretrizes éticas e técnicas que orientam o trabalho dos jornalistas dos veículos de comunicação da empresa. Entre as referências e procedimentos da prática jornalística destacam-se as que dizem respeito ao conteúdo jornalístico da EBC, que visa “abrir espaços e empenhar talentos e criatividade para realizar pautas sobre processos educativos que estimulem a solidariedade e promovam a cultura de paz e de convivência entre as diferenças” (BREVE et al., 2013, p. 27). Além disso, o manual defende que ao se constituir como uma alternativa para o cidadão (em relação veículos comerciais) é seu dever dedicar atenção aos fatos que habitualmente estão ausentes nas grandes mídias. No capítulo “Orientações jornalísticas” (BREVE et al., 2013, p. 37), o primeiro item traz que o jornalismo da EBC deve primar pelo interesse público, pela honestidade, pela precisão, inclusive no reconhecimento de erros, e pela clareza, além de dever empregar métodos lícitos, públicos e declarados para obter, editar e veicular informações.
Desde sua criação a empresa tem sido reconhecida e premiada pelo trabalho desenvolvido por seus veículos de comunicação, programas e profissionais. Ao todo são 120 prêmios já recebidos ao longo de 11 anos de existência da EBC. Entre eles destaca-se: a) o 38º Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos (2016), em que a TV Brasil recebeu a menção honrosa pelo programa “Caminhos da Reportagem” com o episódio Racismo na Escola; b) Prêmio Adep - DF de Jornalismo, em que a Agência Brasil (2014) recebeu o 1º, 2º e 3º lugares pelas produções das reportagens: “Defensoria Pública quer estimular adoção de adolescentes”, “Moradores do Complexo do Alemão relatam abusos e violações de Policiais” e “Defensoria Pública integra atendimento rápido a casos graves de violência”.
Levando em consideração a estrutura de produção e a repercussão dos conteúdos comunicacional da EBC, pode-se dizer que a empresa é representativa, no sentido de ser referência para as emissoras comerciais, pois é através do que é produzido pelos veículos de comunicação da EBC, que grande parte da imprensa brasileira e também internacional se baseia para a construção de seus próprios noticiários quando o Brasil é pauta.
Nessa direção, a EBC mobiliza aquilo que Pêcheux (1988) compreende como a Língua de Estado, que seria o modo pelo qual o Estado dá sentido a si mesmo. Para o autor, um dos sentidos impulsionados por ela é a noção de consenso de igualdade, de acesso e de oportunidades para todos, articulando um discurso que visa a uma conciliação de classes e que se apresenta como legítima porque foi eleita, ou seja, uma voz que se diz promotora de direitos e eficaz em suas ações. A EBC, portanto, enquanto voz oficial do que está sendo realizado por parte dos governos coloca a língua de Estado em movimento.
O Conselho Curador era a principal instância formal de participação da sociedade na EBC4. Segundo Pereira Filho (2015), que discutiu os parâmetros legais que regiam o papel dos conselheiros e investigou a dinâmica de atuação dos mesmos, a criação do Conselho respondeu a uma demanda apresentada pela sociedade civil de instituir mecanismos de governança compartilhada da empresa pública, ou seja, na prática, o Conselho Curador representava uma instância de poder na estrutura da EBC.
O Conselho Curador existe para zelar pelos princípios e pela autonomia da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), impedindo que haja ingerência indevida do Governo e do mercado sobre a programação e gestão da comunicação pública. Além disso, visa representar os anseios da sociedade, em sua diversidade, na aprovação das diretrizes de conteúdo e do plano de trabalho da empresa. Sua existência, como instância de participação social prevista na Lei 11.652/2008, é um critério fundamental para que a EBC seja de fato pública. (EMPRESA BRASIL DE COMUNICAÇÃO, 2015a, p. 1, grifo nosso).
O Conselho Curador da EBC era composto por 22 conselheiros, sendo 15 representantes da sociedade civil (um de cada região do País), quatro do governo federal (ministros da Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia e Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República), um servidor de carreira da Câmara dos Deputados, um servidor do Senado Federal e um funcionário da empresa5 (EMPRESA BRASIL DE COMUNICAÇÃO, 2015a).
Segundo Hossoé (2016), o objetivo da constituição de um conselho com representação da sociedade é que o mesmo possa expressar pluralidade de opiniões, formações, experiências profissionais e equidade de gênero e de raça, sendo proibidas indicações de representantes feitas por partidos políticos ou por instituições religiosas. O autor também traz as finalidades principais de um Conselho Curador de uma empresa pública de comunicação.
É função do Conselho Curador deliberar sobre a linha editorial de seus veículos e fiscalizar, em nome da sociedade, a observância dos princípios da Comunicação Pública. Na qualidade de principal instrumento de participação da sociedade na gestão da EBC, o Conselho Curador diferencia seus veículos públicos dos exclusivamente estatais e daqueles do sistema privado (HOSSOÉ, 2016, p. 16).
Em 2015, após oito anos de existência da EBC, o Conselho Curador convocou e realizou o Seminário intitulado Modelo Institucional da EBC: balanço e perspectiva, que teve como objetivo reunir diferentes atores políticos envolvidos na discussão da Comunicação Pública. A intenção do Seminário foi realizar uma avaliação dos primeiros anos da EBC e discutir o modelo institucional da empresa, tanto no que dizia respeito às suas formas de garantia do princípio da autonomia em relação ao Governo Federal como da participação da sociedade civil no controle dos princípios do sistema público de radiodifusão (EMPRESA BRASIL DE COMUNICAÇÃO, 2015b). Carvalho (2015, p. 3), ao fazer uma síntese do encontro ressalta que inegáveis avanços para o campo público da comunicação foram realizados com a criação da EBC, mas que ela “seguia tímida na missão primordial de oferecer uma real alternativa à comunicação comercial e de governo, buscando com autenticidade o foco no cidadão e no fortalecimento da cidadania”.
Um dos aspectos mais debatidos durante o evento foi a vinculação da EBC com a Secretaria de Comunicação do Presidente da República (Secom), tendo em vista que a ligação com esta secretaria (responsável pela comunicação do governo), não seria apropriada para o desenvolvimento de uma Comunicação Pública realmente autônoma. Além disso, outras questões também foram suscitadas, como a autonomia financeira, o modelo que definia a composição dos conselhos e uma maior participação da população e dos funcionários, tanto na escolha dos conselheiros, como na escolha da direção da Empresa (EMPRESA BRASIL DE COMUNICAÇÃO, 2015b).
De maneira geral, o seminário (através de intensos debates) deu luz ao que já se sabia, mas que talvez não se quisesse acreditar: a real dificuldade de se fazer Comunicação Pública no País e a complexidade de fatores estruturais, conjunturais e políticos que se somam para que seja possível realizá-la. Contudo, recalcular a rota, como pontua Carvalho (2015) e rediscutir os caminhos da Comunicação Pública brasileira, tendo como base o que já havia se construído até então, foi o grande legado do Encontro.
Embora estudiosos do campo da Comunicação, como traz Pereira Filho (2015), tenham abordado as contradições no desenho institucional6 do Conselho Curador da EBC, há de se considerar que, no decorrer dos anos da análise feita por Pereira Filho (2011-2015) houve um fortalecimento na estrutura do Conselho Curador da EBC. A simples criação de uma secretaria executiva própria para os conselheiros, por exemplo, passou a organizar melhor suas demandas, fazendo com que a sociedade obtivesse ganhos através de uma prestação de contas mais transparente e efetiva. Com isso, as reuniões do Conselho Curador passaram a ser transmitidas ao vivo pela Internet e a divulgação do calendário de atividades era sempre atualizada e aberta para a participação de qualquer pessoa que tivesse interesse em se envolver com os processos da EBC.
Para Pereira Filho (2015), a partir da própria avaliação dos Conselheiros foram se consolidando canais de comunicação específicos, que qualificaram a relação do Conselho com a sociedade, o que foi considerado como uma experiência inédita no campo da Comunicação Pública no Brasil.
O fortalecimento do Conselho Curador na estrutura da EBC, apesar das amarras de seu desenho institucional, decorreu do próprio amadurecimento dos debates travados neste espaço, bem como das expectativas geradas na sociedade de uma empresa pública transparente e aberta à participação. Em alguma medida esse processo reflete o desdobramento da tensão entre uma perspectiva democrática restritiva e uma outra maximalista no que diz respeito aos parâmetros que regem a ação do Conselho. As discussões mais efervescentes, as mais polêmicas, suscitam com frequência o mesmo ponto de questionamento, não importa a temática: até onde vai o papel do Conselho? (PEREIRA FILHO, 2015, p. 136).
Embora o Conselho Curador da EBC não fosse o ideal e nem o mais autônomo é fundamental ressaltar que as contradições existentes no funcionamento do mesmo não apagam a importância de sua existência no interior de uma empresa pública de comunicação. O fato de ter estruturado um Conselho Curador com a finalidade de promover a participação da sociedade nos rumos da empresa era, por si só, um ponto de partida, uma possibilidade. O que hoje já não existe mais.
Em outubro de 2018, ainda constava no site da EBC a descrição das duas emissoras de TV da empresa, sendo que a distinção era bem específica: a TV BRASIL tinha como finalidade complementar e ampliar a oferta de conteúdo das emissoras de televisão brasileiras, oferecendo uma programação de natureza informativa, cultural, artística e científica. Já a NBR era a responsável pela cobertura da agenda da Presidência da República no Brasil e no exterior, ou seja, tratava de acompanhar as pautas presidenciais, da casa civil e as agendas dos ministros (EMPRESA BRASIL DE COMUNICAÇÃO, 2018).
Contudo, após 100 dias de governo Bolsonaro, no dia 10 de abril de 2019, o Diretor de Operações da EBC, Alexandre Graziani Junior7, assinou a Portaria nº 216, unificando as programações da TV Brasil e da NBR em um só canal, que passou a ter também um outro slogan: UMA NOVA TV BRASIL (EMPRESA BRASIL DE COMUNICAÇÃO, 2019).
De imediato, representantes do Fórum Nacional de Democratização da Comunicação8 (FNDC) alegaram que a fusão das TVs, além de inconstitucional, era ilegal, tendo em vista a própria Lei de criação da EBC (Lei nº 11.652/2008), que prevê a produção de programação com finalidades educativas, artísticas e culturais, vedando o proselitismo político (FÓRUM NACIONAL PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO, 2019).
Em nota divulgada pelo coletivo, criticando a portaria, também foi enfatizado que ao fundir as comunicações pública e privada, a portaria viola a Constituição de 1988, já que no Artigo 223, do Capítulo 5, se estabelece que cabe ao Poder Executivo garantir o princípio da complementariedade dos sistemas privado, público e estatal de comunicação no País (BRASIL, 2000). Ou seja, a EBC e a TV BRASIL, sobretudo, foram criadas também como forma de regular esse artigo constitucional: uma TV, dentro do sistema de radiodifusão pública, que fazia comunicação de interesse público, com pluralidade, diversidade e com independência de conteúdo (FÓRUM NACIONAL PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO, 2019).
Até a assinatura da portaria havia a TV Estatal (NBR) (EMPRESA BRASIL DE COMUNICAÇÃO, 2019), que divulgava informações e ações dos poderes institucionais (o que era deixado bem claro na sua linha editorial), e a TV Pública (TV Brasil), que promovia debates fundamentais para a sociedade, com pluralidade de ideias e com visões, muitas vezes, diferentes da do próprio governo. O que vem acontecendo desde a fusão é que a qualquer horário da programação da Nova TV BRASIL são feitas inserções de atos do Poder Executivo ao vivo, o que para os representantes do FNDC configura como proselitismo político.
Cabe lembrar que a medida proposta pelo atual governo de fusão das duas TVs não surpreendeu parte dos representantes dos coletivos de comunicação, pois foi frequente em discursos públicos de Jair Bolsonaro (antes mesmo das eleições e durante a campanha presidencial) afirmar que estava entre seus objetivos extinguir ou privatizar a EBC.
Mudanças já podem ser observadas na programação. Na TV BRASIL, por exemplo, havia um programa semanal que se chamava Estação Plural, que era apresentado por uma transsexual, um homossexual e uma cantora negra. As pautas do programa incluíam entrevistas com diferentes personalidades brasileiras e tinha como objetivo abrir espaço para o debate de temas de comportamento e pautas de cunho artístico e cultural. O Estação Plural foi considerado o primeiro programa de televisão aberta LGBT. Por óbvio, mas sem fazer alardes, o programa foi extinto pela atual direção da EBC, e desde o início de 2019, não se gravaram mais novas edições.
Atualmente, os destaques da programação na Nova TV BRASIL incluem um programa em defesa da reforma da Previdência (quatro episódios com 30 minutos cada); outro para o agronegócio, este com uma programação fixa, bem como inserções de hora em hora na programação com as agendas do presidente e de ministros (chamadas Governo Agora). Além disso, foram criados qautro programas específicos para as Forças Armadas: dois para a Marinha do Brasil, um para o Exército e outro sobre a Missão Antártica, que também envolve a participação da Força Aérea Brasileira (FAB) (PAIXÃO, 2019). Em outras palavras, além de ser dirigida por militares, a EBC também conta com uma programação exclusiva para seus feitos, o que lembra bastante como era realizada a comunicação no Brasil nos anos de Ditadura Militar (1964-1984).
Em entrevista publicada no Portal do FNDC, Tereza Cruvinel (primeira presidente da EBC), afirmou que a rede de comunicação pública no Brasil vem sucumbindo aos atos de desestruturação da democracia que vem ocorrendo no País como um todo. Ela também criticou “a criação de um Frankenstein, uma coisa híbrida, que viola frontalmente a Constituição”, referindo-se à fusão das TVs da EBC e ressaltou que a atual situação da empresa reflete o atual enfraquecimento das instituições democráticas brasileiras (ARAÚJO, 2016).
No dia 23 de abril de 2019, a pauta da fusão das TVs da EBC foi debatida em audiência pública, na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. Ocasião em que representantes de entidades e coletivos de comunicação alegaram que a fusão fere o artigo 223 da Constituição. Durante a audiência pública, o presidente da EBC, Alexandre Grazioni Junior, e deputados da base governista fizeram o contraponto e defenderam a medida, tendo como argumento a economia de recursos e a racionalização administrativa (FÓRUM NACIONAL PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO, 2019).
Embora a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro (PRDC), do Ministério Público Federal (MPF) tenha protocolado, no dia 29 de julho de 2019, uma ação civil pública pedindo a volta dos dois canais e das programações dos canais TV Brasil e TV NBR, até o momento a justiça não se pronunciou sobre o caso e a programação da NOVA TV BRASIL de Jair Bolsonaro segue a todo vapor. Ou seja, a emissora e, agora, única TV da EBC, cada vez mais se desvirtua dos pilares de Comunicação e de Radiodifusão Pública, tornando-se uma simples reprodutora de propaganda governamental. É o aparelhamento da TV Pública brasileira sendo realizado com ares de constitucionalidade, o que já era característico na história mascarada da radiodifusão no Brasil, agora, torna-se público e notório: uma TV Pública sendo porta-voz de governo (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2019).
Os ataques aos direitos sociais ocorridos após o golpe de Estado jurídico parlamentar de 2016 são devastadores e afetam diretamente a classe trabalhadora e sobretudo, os mais pobres, ampliando as expressões da questão social no Brasil. Para que se consiga compreender o atual momento é fundamental trazer a discussão para a dinâmica do capitalismo em sua atual fase. O ideário neoliberal incide diretamente no desmonte das políticas sociais que atingem a classe trabalhadora, acentuando as contradições de classe e as expressões da questão social, esse processo incide em todos os âmbitos do Estado brasileiro.
Neste contexto, após um período de grande instabilidade, os dilemas de legitimidade, de independência financeira e de autonomia política tornaram-se ainda maiores na EBC, afetando o sistema público de radiodifusão como um todo.
A EBC iniciou em junho de 2016, um período crítico de vulnerabilidade, agravado pela tomada de posse de Michel Temer como Presidente da República em agosto do mesmo ano. Oito anos após a criação da Empresa Brasil de Comunicação e da definição, em lei, dos princípios de uma comunicação pública cidadã, a mudança abrupta no cargo máximo do Poder Executivo provocou um forte impacto nos destinos do sistema público de comunicação brasileiro, deixando em aberto o futuro do serviço público de radiodifusão (PAULINO; GUAZINA; OLIVEIRA, 2016, p. 63).
Com a confirmação de Michel Temer na presidência, uma Medida provisória redefiniu o organograma da EBC, extinguindo o Conselho Curador e alterando a composição dos outros Conselhos (administrativo e fiscal), inserindo novos representantes diretamente ligados ao Governo Federal (VIEIRA, 2016).
Além de acabar com o Conselho Curador, a MP também alterou uma das principais funções do Conselho de Administração, que era a de nomear e destituir os membros da empresa, vide texto: “todos os membros da EBC passam a ser nomeados e exonerados pelo Presidente da República - ao contrário de serem eleitos e destituíveis pelo Conselho de Administração da EBC, conforme ocorria até a vigência da MPV” (SENADO FEDERAL, 2016, p. 2).
Diversos coletivos da área da comunicação, como o Intervozes9 e o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) 10, como também o Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal alertaram a sociedade e fizeram notas de repúdio ao que a MP estava propondo, mas nenhuma surgiu efeito, pois a mesma foi convertida em lei em 1º de março de 2017.
Os ex-conselheiros também publicaram uma Moção de Repúdio na época:
O Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) repudia de forma veemente a Medida Provisória 744, publicada nesta sexta-feira (02/09/2016) que acaba com o caráter de empresa de comunicação pública. A MP 744 é uma afronta aos princípios constitucionais que estabelecem a comunicação pública como um direito da sociedade brasileira. A medida fere o artigo 223 da Constituição Federal, que prevê a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal. [...] A MP 744 extingue o Conselho Curador e assim tira a autonomia da EBC em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão e agências (MOÇÃO..., 2016).
O texto dos ex-conselheiros atentou para algumas das funções que eram exercidas pelo Conselho, como a vigilância em cobrar a diversidade da programação, exigindo pautas relacionadas aos direitos humanos e que o mesmo promovia mais de dez audiências públicas anuais para debater com a população e propor a produção independente e regional (MOÇÃO..., 2016).
Em maio de 2017, ocorreu o 3º Encontro Nacional pelo Direito à Comunicação (ENDC), em Brasília. No último dia do evento aconteceu a 20ª Plenária do FNDC, que também culminou em moção de repúdio ao desmonte da EBC, denunciando a crescente linha governista e os casos graves de censura dentro da empresa.
Há casos diários de reportagens censuradas, modificadas e claramente governistas na AgênciaBrasil, na TV Brasil, no Portal EBC, nas rádios Nacional e MEC. Depois de expulsar a sociedade civil de dentro da EBC, com a extinção do Conselho Curador, e de acabar com a autonomia do mandato do presidente da empresa, o governo Temer estuda um corte de 40% das verbas de custeio e investimento e segue excluindo o montante financeiro já garantido legalmente pela Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública. Exemplos desse desmonte é a crescente unificação entre a parte estatal (prestação de serviços da Voz do Brasil e da TV NBR) e a parte pública da EBC (FÓRUM NACIONAL PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO, 2017, p. 5).
Martins11 (2018), em texto publicado no Portal Intervozes, ressalta que inúmeros funcionários da empresa, mesmo aqueles que não poupavam críticas a gestões anteriores, alegam que, desde que iniciaram suas atividades na EBC, esse é o momento em que houve a maior censura a conteúdos que desagradam o governo. A regressão e a desregulamentação que vem ocorrendo nos direitos sociais com mais ênfase a partir de meados de 2016 e que estão fundamentadas no ideário neoliberal, foram as molas propulsoras para o aprofundamento da crise de legitimidade e de autonomia na EBC. Sendo assim, as principais consequências sofridas pela empresa, desde 2016, foram a obstrução de seus processos de Comunicação Pública (que mesmo com inúmeras adversidades, estavam, de certa forma, em andamento anteriormente) e o declínio na qualidade da programação e de seu conteúdo jornalístico.
Os serviços públicos de radiodifusão são essenciais para o desenvolvimento de sociedades democráticas, desde que sejam balizados pela busca em promover o direito à informação plural, inclusiva e que possibilite a participação da sociedade em seu escopo.
Para compreendermos a trajetória de criação da EBC e sua relação com a Comunicação Pública foi preciso considerar que, desde o início, a radiodifusão pública, no Brasil, foi submetida a interesses políticos, econômicos e privados. Isso explica um pouco do que está acontecendo hoje com a EBC, que com apenas 10 anos de existência está cada vez mais subordinada às investidas de autoridades governamentais, que visam exercer domínio sobre as emissoras públicas para que se tornem porta-vozes de suas ações.
Nesse contexto, destacam-se as relações de proximidade entre grandes grupos empresariais de comunicação (proprietários de veículos comunicacionais) e políticos, o que ainda é uma das principais razões pelas quais a radiodifusão (não somente a pública) no País não tenha se consolidado como um sistema autônomo, do ponto de vista político, financeiro e com relação ao conteúdo que produz.
Por fim, consideramos os Coletivos de Comunicação, assim como os Movimentos Sociais brasileiros como importantes pontos de resistência, que não só desenvolvem um trabalho fundamental em suas áreas de interesse, como também defendem o fortalecimento da Comunicação Pública brasileira, pois em última análise, é a partir dela que se podem desenvolver alternativas aos modelos hegemônicos de comunicação.
A todos/as trabalhadores/as que lutam pela democratização da comunicação.
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