ESPAÇO ESPECIAL
Superexploração e saúde: a reprodução da força de trabalho nas economias dependentes
Superexploitation and health: the reproduction of the workforce in dependent economies
Superexploração e saúde: a reprodução da força de trabalho nas economias dependentes
Revista Katálysis, vol. 23, núm. 3, pp. 648-657, 2020
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina
Recepção: 28 Abril 2020
Revised document received: 08 Junho 2020
Aprovação: 30 Maio 2020
Resumo: Partimos do pressuposto de que o capitalismo desenvolvido e o capitalismo dependente resultam de processos históricos - imbricados - que ocorreram no âmbito do sistema mundial, mas que possuem particularidades nas formas de reprodução dos seus capitais. No capitalismo dependente, entendemos que o fundamento dessa reprodução particular se dá através da superexploração da força de trabalho. No processo de determinação social da saúde, constitui-se como princípio basilar o modo como as forças produtivas e as relações sociais de produção transformam-se em mais ou menos saúde. Procuramos, então, demonstrar como essa forma particular de reprodução do capital, decorrente da superexploração da força de trabalho, desdobra-se em mediações decisivas para a saúde dos trabalhadores.
Palavras-chave: Capitalismo dependente, Superexploração, Saúde do trabalhador.
Abstract: We started this paper from the assumption that the developed capitalism and dependent capitalism are the result of historical processes - interwined - that occurred within the scope of the world system, but having particularities in the forms of reproduction of their capital. In dependent capitalism, we understand that the foundation of this particular way of reproduction is through the superexploitation of the labor force. In the process of social determination of health, the way in which the productive forces and the social relations of production become more or less health is constituted as a basic principle. We, then, aim to demonstrate how this particular form of capital reproduction, resulting from the superexploitation of the workforce, unfolds in decisive mediations for workers’ health.
Keywords: Dependent capitalism, Superexploitation, Worker’s health.
Introdução
Entender as particularidades dos objetos de estudo em face do movimento dialético da realidade, mas sem abandonar as determinações universais, é um dos desafios intelectuais peremptórios numa abordagem que se pretenda materialista histórica. Seja numa análise genérica do ser social, seja numa análise mais específica - como no nosso caso em relação à questão da saúde dos trabalhadores -, esse movimento entre as dimensões da realidade é tarefa impreterível, porquanto constitui uma premissa ontologicamente ineliminável. Sobre isso, Lukács (2018a) toma como exemplo a análise da linguagem para a demonstração do caráter decisivo das categorias universalidade (generalidade), particularidade e singularidade no processo cognoscente e chega à seguinte conclusão:
Não foi involuntário que na descrição de um estado de fato muitíssimo elementar tenhamos recorrido a categorias filosóficas como generalidade, particularidade e singularidade. Com um exemplo drástico queríamos mostrar o quão cedo, em qual estágio mais primitivo, as mais importantes categorias do conhecimento da realidade já devem aflorar praticamente. (LUKÁCS, 2018a, p. 171).
No nosso caminho de investigação sobre a saúde dos trabalhadores, se ignorássemos o movimento entre singular, particular e universal, correríamos o risco de engessar realidades particulares nos moldes de um movimento de produção e reprodução do capital peculiar aos países pioneiros. Deixaríamos escapar problemas de saúde (e suas respostas) que lá não existem (porque refletem peculiaridades econômicas, políticas etc. também ali inexistentes) ou, o que seria ainda pior, cairíamos num particularismo que conferiria, cada vez mais, autonomia aos processos e fenômenos que se distinguem das experiências clássicas, e que só são acessíveis, radicalmente, quando considerados em suas relações com a totalidade do sistema do capital. Ignoradas as mediações da totalidade para esses processos particulares, a sua investigação ou o seu enfrentamento se tornam, sempre, tarefa de Sísifo, apenas sustentada pelas fantasias gnosiologicistas.
A nosso ver, as análises que se debruçam sobre as particularidades com a preocupação de não se descolar da universalidade que as determina, carregam, em si, uma impostação ontológica que se pode constatar desde Marx, no seu estudo de caráter mais genérico sobre o capital. No que diz respeito ao estudo de realidades econômicas não clássicas, essa tarefa tem tido a importante contribuição da Teoria Marxista da Dependência (TMD), no tocante à particularidade das economias dependentes da América Latina e, do ponto de vista metodológico, sublinha, de modo incisivo, a importância da apreensão do caráter dialético da (na) história ante o singular, o particular e o universal1.
Vale destacar uma breve preocupação metodológica apresentada por Ruy Mauro Marini na sua “Dialética da dependência”:
Na identificação desses elementos, as categorias marxistas devem ser aplicadas à realidade como instrumentos de análise e antecipações de seu desenvolvimento posterior. Por outro lado, essas categorias não podem substituir ou mistificar os fenômenos a que se aplicam~ é por isso que a análise tem de ponderá-las, sem que isso implique, em nenhum caso, romper com a linha do raciocínio marxista, enxertando-lhe corpos que lhe são estranhos e que não podem, portanto, ser assimilados por ela. O rigor conceitual e metodológico: a isso se reduz em última instância a ortodoxia marxista. Qualquer limitação para o processo de investigação que dali se derive já não tem nada relacionado com a ortodoxia, mas apenas com o dogmatismo. (MARINI, 2011a, p. 133).
Marini (2011a) chama a atenção para o fato de que as categorias (aquelas apreendidas da análise ontológica da realidade e que, portanto, exprimem o caráter universal de seu movimento), ainda que devam ser requisitadas com rigor, sem ecletismo, não podem substituir, mistificar ou explicar, a priori, as realidades particulares, sem ponderações e sem levar em conta as mediações de cada momento do real. É esse raciocínio que se evidencia na sua preocupação com a particularidade das economias dependentes.
Nessa esteira metodológica, a TMD construiu seu legado teórico, a partir do qual é possível entender a formação econômica e social brasileira e, em níveis ainda mais particulares, os processos e fenômenos nela inseridos, a exemplo da questão da saúde dos trabalhadores. É nesse ponto que se constitui nosso objeto de estudo, quando seguimos2 no contínuo processo de entender a relação trabalho-saúde - em particular, pela mediação de classe presente na questão aqui mencionada - mas agora considerando a particularidade de sua relação ante os mecanismos da superexploração.
Com o objetivo de realizar uma reflexão ontológica acerca da relação trabalho-saúde pela mediação da categoria superexploração, apresentamos este ensaio teórico em duas seções. Na primeira, resgatamos aspectos da universalidade dessa relação, com ênfase para a saúde da classe trabalhadora, quando dialogamos com teóricos do movimento operário italiano das décadas de 1960 e 1970 e da Medicina Social Latino-Americana. Na próxima seção, intentamos conceituar a categoria da superexploração, no intuito de observar as particularidades que se estabelecem na relação entre trabalho e saúde nas nações que se inseriram na dinâmica universal capitalista como polo desfavorecido.
Fundamentos ontológicos da relação trabalho e saúde
O primeiro princípio a ser considerado na relação trabalho-saúde é o fato de que a saúde, enquanto complexo social fundado pelo trabalho, reproduz particularmente o caráter genérico do ser social.
O surgimento do ser social, o tornar-se-humano do ser humano, conecta-se aqui de modo ontologicamente necessário. Todavia, desde o início, o tornar-se-humano, a ativa (pelo trabalho) adaptação ao ambiente, traz em si uma tendência a se elevar acima da determinabilidade biológica, em sucessivos, ainda que jamais completáveis, descolar-se desta. (LUKÁCS, 2018b, p. 182).
Com efeito, a saúde precisa ser pensada por esse prisma, considerando sempre uma relação entre a esfera ontológica natural (biológica) e a social, relação que se constitui no salto (apenas possível por meio do trabalho) que encerra uma dialética de rupturas e continuidades entre as distintas instâncias ontológicas.
Nesses termos,
Pensar em processo social dessa forma significa, também para o caso da saúde, vislumbrar uma dinâmica articulação entre biológico e social, indivíduo e coletividade, que se expressa de diferentes formas. Esta é a essência do processo saúde-doença, de natureza radicalmente histórica, engendrada a partir das (e nas) relações sociais, e não como uma espécie de núcleo imutável definido aprioristicamente. (SOUZA, 2016, p. 343).
Apenas pela natureza geral do ser social, a saúde, enquanto particularidade dessa instância ontológica, pode, também, reproduzir a relação entre esfera biológica e esfera social, que lhe é peculiar. Obviamente, por se situar naquela esfera ontológica mais complexa, a dinâmica social assume prioridade ontológica, determinando-lhe com maior ênfase e afastando-se das barreiras naturais, mas delas nunca prescindindo. Como síntese deste raciocínio, apresentamos a assertiva de Breilh:
Visto así el orden de cosas, la salud no obedece a un orden exclusivamente individual, sino un que es proceso complejo, socialmente determinado, aspecto que muchas veces desaparece del pensamiento en la salud pública, debido al predominio de una visión biomédica, que reduce la problemática al estrecho límite de los trastornos o malestares individuales, su curación y la prevención individual. La determinación social va y viene dialécticamente entre las dimensiones general, particular y singular: se reproduce de lo general a lo particular, y se genera de lo particular a lo general. En el proceso se dan formas de subsunción en las cuales los procesos de la dimensión más simple se desarrollan bajo subsunción respecto a las más complejas y entonces aparece que la relación social-natural, o social-biológico ocurre como un movimiento entre partes de un todo concatenado que es la naturaleza. (BREILH, 2013, p. 20).
Considerando, então, o processo de determinação social da saúde, constitui-se como princípio basilar o modo como as forças produtivas e as relações sociais de produção transformam-se em mais ou menos saúde, em especial nas sociedades de classes. Assim, acha-se a mediação da categoria classe social com posição central na constituição do processo saúde-doença em geral. Pensar a saúde humana geral pressupõe, nas sociedades de classe, pensar sobremodo na saúde da classe que produz a riqueza, logo, que produz o mundo (social). No capitalismo, tal premissa assume complexidade sem precedentes, guiando-nos até a questão da saúde dos trabalhadores, como chave analítica para entender a relação trabalho-saúde.
Consoante Maccacaro (1980, p. 73), “La salud obrera es la única que, liberándose, libera también la salud de los demás hombres”. A marcante frase de Maccacaro (1980) carrega consigo a ideia da prioridade ontológica que a questão de classe possui para qualquer processo social inserido no sistema do capital, inclusive para a saúde. Decifrar a saúde da classe trabalhadora - enquanto particularidade do antagonismo entre capital e trabalho - é o passo decisivo para o entendimento da determinação social da saúde (em geral) e, ao mesmo tempo, contribui para as conexões necessárias no desvelamento da dinâmica do capital na sua totalidade.
A prioridade ontológica da questão da saúde dos trabalhadores para entender a saúde em geral no capitalismo se constitui, entre outras razões, porque ela mesma se coloca como um processo social exclusivamente capitalista. Isso porque a relação trabalho-saúde em sociedades pré-capitalistas se constituiu a partir de outras premissas:
Apesar de as classes exploradas do escravismo e do feudalismo (escravos e servos, respectivamente) sofrerem com graves problemas de saúde, a dinâmica da problemática enfrentada por eles era outra. Portanto, a ‘questão’ da qual tratamos consiste num processo exclusivamente capitalista. Primeiro, porque a dinâmica da produção nas sociedades pré-capitalistas não era voltada para a acumulação de capital, o que resulta numa dinâmica de destruição da saúde completamente distinta. Desse modo, a razão de ser da degradação da saúde não estava hipotecada ao acúmulo de capital, considerando que, de acordo com Marx (1988b), a produção no escravismo e no feudalismo estava voltada para a subsistência da pólis e do feudo, respectivamente, mas não para o mercado; como também não existiam as mediações necessárias para transformar a intensificação da exploração do trabalhador (e todas as doenças e sofrimento daí decorrentes) em propriedade privada de mais meios de produção e mais força de trabalho. Segundo, porque não existiam os meios para que se atendessem às necessidades materiais de todos, pois a produção de riqueza era limitada pelo subdesenvolvimento dos meios de produção, determinando um quadro de escassez responsável por boa parte das doenças. (SOUZA, 2019a, p. 61-62).
Com efeito, a questão que se apresenta no escravismo e no feudalismo é qualitativamente diferente da questão da saúde da classe trabalhadora. Vejamos o cerne de tal distinção em face do sistema do capital:
Ao contrário, no capitalismo, os meios de produção se desenvolvem ao ponto de permitir a superação da escassez pregressa, produzindo riqueza material em um novo patamar, mas que se concentra nas mãos da classe capitalista, ao passo que o proletariado enfrenta o processo de exploração e dominação, com a consequente pauperização. Em meio ao pauperismo, a classe trabalhadora tem sérias restrições no atendimento de necessidades elementares, persistindo em padrões de reprodução incompatíveis com a saúde e com a vida. (SOUZA, 2019a, p. 62).
Marcada essa diferença da saúde da classe trabalhadora para com a saúde de servos e escravos, não se pode deixar de anotar que o antagonismo de classe é levado às últimas consequências com o sistema de capital, sendo a questão da saúde dos trabalhadores uma via objetiva de materialidade desse antagonismo. Assim,
[…] a ‘questão’ se move apoiada numa ‘contradição’ tipicamente capitalista (especialmente evidente na origem de cada reordenação da esfera produtiva), qual seja: o capital degrada aquilo de que depende sua existência. Isso porque ele não pode prescindir da exploração sobre o trabalho (porquanto esta é a sua razão de ser), ao tempo que essa exploração determina o desgaste, o aviltamento, a degradação, enfim, a ameaça permanente às condições de saúde da classe trabalhadora, do trabalho e, assim, do próprio capital. (SOUZA, 2019a, p. 78).
Em suma, podemos dizer que, genericamente, a questão de que aqui tratamos se faz expressão particular do antagonismo entre capital e trabalho, o que ficou evidente desde os primeiros movimentos históricos do capitalismo, sobremaneira com sua consolidação no bojo da Revolução Industrial. Lembremos que Marx (1988a) descreve os efeitos da introdução da maquinaria no processo de produção, com prolongamentos da jornada de trabalho e intensificação dos ritmos consignados ao aumento de produtividade estabelecido na concorrência entre os capitais singulares, visando extrair o máximo possível dos meios de produção, em dada composição orgânica do capital.
Marx (1988a), mesmo sem ser estudioso, diretamente, das questões de saúde, correlaciona tais efeitos a um processo de adoecimento e desgaste dos trabalhadores sem precedentes na história humana, refletindose, concomitantemente, na pauperização decorrente do processo de acumulação de riqueza (sob a forma de capital). Inspirados no pensamento de Marx naquele contexto histórico, os intelectuais do movimento operário italiano, a exemplo de Maccacaro (1980) e Berlinguer (1983), interpretaram a particularidade da realidade italiana em meados do século XX e chegaram à conclusão de que a questão da saúde da classe trabalhadora engendra-se na equação “exploração = menos saúde”.
Ante o processo de produção do capital, forja-se a questão da saúde dos trabalhadores, com todas as respostas que demanda, no sentido de amenizá-la, escondê-la ou enfrentá-la parcialmente. Aqui não nos deteremos no detalhamento dessas respostas3, embora a menção a elas se faça importante para pensar essa questão no tempo histórico, dinamicamente. Óbvio que esses preceitos gerais aqui brevemente recuperados não dão conta dessa dinâmica de modo pleno. Há importantes diferenças entre o que mencionamos sobre o período da grande indústria descrito por Marx (1988a) e o que acontece na contemporaneidade, nas próprias nações de capitalismo desenvolvido. Considerando-se as diferenças das distintas formações econômicas, as lacunas analíticas podem ser ainda mais complexas, pois tais distinções revelam novos elementos a que o debate não deve se furtar.
A necessidade de entender a dinâmica própria do processo de valorização nas economias dependentes lança luz sobre a particularidade enquanto categoria de importância analítica, no sentido de não perder de vista a dinâmica dialética da realidade. Conforme Chasin (1998, p. 19): “[…] O particular é diferente. O particular é um campo infinito. A particularidade é o instrumento da concreção. É um instrumento que vai limitando, determinando a universalidade”. Para o nosso propósito, um olhar mais atento para a relação trabalho-saúde nas economias dependentes permite observar que, sem ignorar a importante presença daquela equação mais geral (exploração = menos saúde), ela não consegue dar conta da plenitude dos mecanismos ali presentes. O debate, portanto, deve perpassar a análise da categoria superexploração, como forma peculiar a partir da qual, predominantemente, ocorre o processo de valorização nessas economias. Dela desdobram-se mediações decisivas para a saúde da classe trabalhadora, consoante apresentaremos a seguir.
A superexploração da força de trabalho como pedra de toque da saúde nas economias dependentes
As ciências sociais latino-americanas viveram dos anos 1950 a meados dos anos 1970 um dos períodos mais produtivos da sua história. Há elementos-chave que levam às ciências sociais a se questionarem sobre as especificidades do desenvolvimento da América Latina. O que destacamos aqui é a consciência generalizada - em nível de organismos internacionais e governos da região - sobre a necessidade de encontrar explicações aos problemas do atraso e de assumir o tema do desenvolvimento como uma tarefa.
A busca pelo desenvolvimento se dá em meio a uma ampla reorganização da economia mundial. Enquanto a Europa se reerguia da Segunda Grande Guerra, na África, vários países alcançavam sua independência, tornando-se novos sujeitos no cenário econômico internacional. Concomitantemente, a América Latina se integrava ao mercado mundial com uma série de nações pobres e subdesenvolvidas. A recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU) fundou comissões temporárias para analisar a condição econômica e social dessas nações e garantir que esses países fossem inseridos nas relações econômicas internacionais. Tratavase, também, de buscar explicações e justificativas ao atraso desses países, para oferecer-lhes uma solução.
Em fevereiro de 1948, é criada a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL)4, comprometida com a elaboração de estratégias de desenvolvimento para os países latino-americanos.
De acordo com Traspadini e Stedile, a CEPAL
centrava sua explicação sobre a realidade do atraso latino-americano a partir do conceito de desenvolvimento desigual, fruto de uma relação díspar entre países denominados centro (com tecnologia estendida por todos os setores de forma similar - homogênea e diversificada) e periferia (com concentração do avanço em um setor em contraste com os demais setores - heterogênea e especializada). (TRASPADINI; STEDILE, p. 2011, p. 22-3).
De acordo com Colistete (2001), o aspecto central da teoria cepalina do subdesenvolvimento foi elaborado entre 1949 - com a chegada de Prebisch ao escritório da CEPAL - e o final dos anos 1950. Esse autor aponta que, devido a seu desenvolvimento ter se dado durante anos em vários trabalhos da CEPAL, e ainda, por ter sua origem num contexto onde havia diversos estudos direcionados às economias latino-americanas, “a teoria cepalina manteve-se essencialmente como uma teoria não formal, na qual a elaboração de hipóteses, conceitos e implicações foi conduzida paralelamente à descrição de aspectos da realidade econômica da América Latina” (COLISTETE, 2001, p. 22-3).
No entanto, a frequente qualificação das propostas5 mais centrais com novas suposições acabou por minar a consistência da teoria cepalina. As primeiras mudanças aconteceram já no início dos anos 1960, ao ser realizado um esforço mais rigoroso na descrição das condições necessárias para que a diversificação industrial fosse considerada efetiva, isto é, apta a superar a condição periférica. Outras alterações também ocorreram nos anos seguintes, muito mais radicais, e que levaram a propostas mais definidas sobre os limites e os problemas do (sub)desenvolvimento latino-americano - aqui evidenciado, em particular, pelo conceito de dependência. Essas modificações tiveram uma significativa importância no enfraquecimento interno e na capacidade explicativa da teoria cepalina, o que contribuiu para a (relativa) derrocada de sua influência ente outras correntes teóricas já a partir da segunda metade dos anos 1960 (COLISTETE, 2001).
É da necessidade de compreender o capitalismo latino-americano como uma forma particular do desenvolvimento capitalista que nasce a possibilidade de estabelecer cortes teóricos importantes no desenvolvimento das ciências sociais latino-americanas. Nesse contexto, na década de 1960, intelectuais latino-americanos problematizaram as contradições do desenvolvimento da América Latina a partir da estreita observação de sua relação com as engrenagens do sistema do capital. Entre eles, destacaram-se os brasileiros Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra, que refletiram sobre o processo de formação socioeconômica na América Latina e elaboraram a Teoria Marxista da Dependência (TMD), que desvendou a lógica de sua integração subordinada à economia capitalista mundial.
Segundo Osorio (2016), a incorporação pelo marxismo da categoria da “dependência” foi um dos elementos que potencializaram o avanço das ciências sociais nesses anos. No entanto, esse não foi um processo fácil nem isento de contradições. Pelo contrário, foi somente depois de uma década de discussões, avanços e retrocessos, que essa categoria conseguiu romper definitivamente com o cordão umbilical burguês que caracteriza seu nascimento na América Latina.
De acordo com Marini, a tarefa primordial da teoria marxista da dependência consiste em
[...] determinar a legalidade específica pela qual se rege a economia dependente. Isso supõe, desde logo, situar seu estudo no contexto mais amplo das leis de desenvolvimento do sistema em seu conjunto e definir os graus intermediários pelos quais essas leis se vão especificando. É assim que a simultaneidade da dependência e do desenvolvimento poderá ser entendida. (MARINI, 2011b, p. 184).
Ao considerar o processo de constituição da economia mundial, Ruy Mauro Marini (2011a) persegue a ideia de que a América Latina se desenvolverá em estreita consonância com a dinâmica do capitalismo internacional. Ele afirma que a dependência deve ser “entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo âmbito as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência”. (MARINI, 2011a, p. 134-5).
Assim, ao analisar o papel que a América Latina cumpre na dinâmica de acumulação capitalista mundial e como sua função implica modificações sobre como os mecanismos de exploração são utilizados de forma concreta na periferia, Marini (2011a) observa que a superexploração da força de trabalho constitui o padrão de reprodução do capital nos países da região, devido à transferência de valor6 própria dos frutos do progresso técnico que ficam nas mãos dos países que, hegemonicamente, dominam as relações internacionais.
De acordo com Marini (2011a), nos países dependentes, as principais fontes de acumulação não estão diretamente ligadas à produtividade do trabalho, mas sim à maior exploração da própria força de trabalho. Identifica, dessa maneira, três mecanismos que, combinados ou não, podem ocorrer na superexploração da força de trabalho: 1) o aumento da intensidade do trabalho (produção de mais-valia relativa); 2) a extensão da jornada de trabalho (produção de mais-valia absoluta); e 3) a remuneração do trabalhador abaixo do valor da sua força de trabalho, sem que esta baixa remuneração seja acompanhada pela diminuição do valor
das mercadorias e serviços que compõem a cesta básica do trabalhador.
Cabe destacar que a utilização desses mecanismos só se constitui de modo simultâneo no aumento da taxa de mais-valia e na superexploração da força de trabalho, quando o fundo de consumo apropriado nesse processo é transferido para o fundo de acumulação do capital (OSORIO, 2013). Podemos afirmar que a característica fundamental da superexploração é a remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor7 e que ela se realiza sob diversas formas, algumas vezes interferindo diretamente no valor diário da força de trabalho, e outras, mediadas, interferindo no seu valor total, mas sempre com significativas repercussões no desgaste mental e físico do trabalhador.
Conforme Marini,
[...] nos três mecanismos considerados, a característica essencial está dada pelo fato de que são negadas ao trabalhador as condições necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho: nos dois primeiros casos, porque lhe é obrigado um dispêndio de força de trabalho superior ao que deveria proporcionar normalmente, provocando assim seu esgotamento prematuro; no último, porque lhe é retirada inclusive a possibilidade de consumo estritamente indispensável para conservar sua força de trabalho em estado normal. Em termos capitalistas, esses mecanismos [...] significam que o trabalho é remunerado abaixo de seu valor e correspondem, portanto, a uma superexploração da força de trabalho. (MARINI, 2011a, p. 149-150).
É que, como sabemos, o valor diário da força de trabalho é calculado considerando, além das condições dominantes na época, a sua duração média, isto é, o tempo de duração normal da vida de um trabalhador8. Se hoje um indivíduo consegue trabalhar por trinta anos sob condições normais e ter mais vinte anos de aposentadoria, “o pagamento diário da força de trabalho deve permitir a ele reproduzir-se de tal forma que possa apresentar-se ao mercado de trabalho durante trinta anos e viver os vinte anos restantes aposentado em condições normais de existência, e não menos”. (OSORIO, 2012, p. 51).
Uma remuneração abaixo do necessário para uma reprodução normal de um trabalhador ou uma jornada de trabalho que gere sobredesgaste (seja pelo prolongamento ou pela intensificação do trabalho) e reduza o tempo de vida útil e de vida total, constituem casos em que o capital está se apropriando hoje dos anos futuros de trabalho e de vida9. Estamos, assim, diante de processos de superexploração, pois não há equivalência entre a remuneração e o valor da força de trabalho (OSORIO, 2012).
Anota Osorio:
Podem produzir-se processos de trabalho que aumentem a jornada ou a intensidade a tal ponto que, apesar do pagamento de horas extras ou de incrementos salariais pelos incrementos das mercadorias produzidas, terminem reduzindo a vida útil e a vida total do trabalhador. Isso porque, embora seja possível ter acesso à quantidade necessária (e inclusive a uma quantidade maior) de bens que satisfaçam os meios de vida para assegurar a reprodução do trabalhador, este não pode dispor das horas e dias de descanso necessários para repor o desgaste físico e mental de longas e intensas jornadas. Quando isso ocorre, o salário extra só recompensa uma parte dos anos futuros de que o capital se apropria com jornadas extenuantes ou de trabalho redobrado. (OSORIO, 2012, p. 51).
Assim como o prolongamento da jornada de trabalho, o aumento da intensidade supõe uma maior quantidade de trabalho despendida, com incrementos da remuneração para o maior desgaste físico e mental. O que argumentamos aqui é que também há um ponto a partir do qual remunerações maiores tornam-se insuficientes para compensar tal desgaste se este é ampliado de tal forma que se reduza a vida útil e a vida total do trabalhador, ocasionando, muitas vezes, doenças físicas e psicológicas.
No tocante à condição de vida dos trabalhadores da América Latina, concordamos com Osorio (2012) quando afirma que uma insuficiência do fundo de consumo provocada pelo rebaixamento do pagamento da força de trabalho influi negativamente sobre o fundo de vida, uma vez que o consumo individual do trabalhador na satisfação de necessidades mediante o acesso aos meios de subsistência necessários, assim como o seu repouso, cumpre uma função indispensável à reposição de suas energias físicas e mentais.
A superexploração é a pedra de toque do processo de desgaste e adoecimento da classe trabalhadora das nações de economia dependente, a exemplo daquelas que compõem a América Latina. Tal condição se manifesta, historicamente, em indicadores de saúde desiguais entre os trabalhadores das nações mencionadas e aquelas de capitalismo clássico, quando se observam mais acidentes e mortes dos trabalhadores nos países dependentes10, assim como a maior presença de outras formas de adoecimento11, ligadas diretamente ao trabalho ou decorrentes da precária vida determinada pelo roubo de seu fundo de consumo.
Como a saúde consiste num processo objetivamente existente e determinado, fundamentalmente, pelas forças produtivas e pelas relações sociais de produção, a análise do caso particular da América Latina revela uma relação orgânica entre a saúde da classe trabalhadora e a superexploração a que se encontra submetida. Esse processo, nas economias dependentes, mostra-se ainda mais agressivo, refletindo o movimento desigual através do qual o antagonismo entre capital e trabalho se reproduz mundialmente.
Considerações finais
Tendo em vista a tese de que a saúde em geral possui seu cerne constituído em torno da saúde da classe trabalhadora, recuperamos as formulações das vertentes mais críticas da Saúde Coletiva, em diálogo com Marx, a fim de demonstrar que a exploração é a chave analítica para entender como o processo de produção e reprodução do capitalismo se metamorfoseia em menos saúde.
Seguindo nessa esteira teórica, mostramos que o sistema do capital, enquanto organismo mundialmente articulado, introduz particularidades no processo de produção daquelas economias que se inserem nesse sistema de forma subordinada. Em geral, para compensar os mecanismos de transferência de valor que lhes são desfavoráveis, as nações de economia dependente constituem férteis arenas para a consubstanciação de mecanismos particulares de exploração que dão origem ao que a TMD denominou de superexploração, devido às diferenças em relação ao processo tal como ocorre nas economias avançadas.
As discrepâncias de saúde em países como os latino-americanos ante os países de economia avançada são reflexo desse processo particular de superexploração, marcando as diferenças num processo ontologicamente unitário, no sentido de constituir uma universalidade dialética. Portanto, a categoria superexploração deve ocupar espaço nas investigações científicas e filosóficas que se proponham a entender a dimensão social da saúde nos países dependentes, mas sem perder de vista a totalidade social.
Agradecimentos
Agradecemos ao PPGSS/UFAL e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Referências
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Notas
Autor notes
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Declaração de interesses