ESPAÇO TEMA LIVRE
Recepção: 09 Novembro 2020
Revised document received: 25 Fevereiro 2021
Aprovação: 15 Dezembro 2020
DOI: https://doi.org/10.1590/1982-0259.2021.e78015
Resumo: Este artigo aborda o fenômeno do Imperialismo, suas determinações e expressões. A partir da pesquisa bibliográfica e do recurso às categorias do método histórico-dialético, o estudo tem por objetivo apresentar uma síntese, histórico-crítico-dialética, dos fundamentos da emergência do Imperialismo, suas transformações no período pós-guerras e, principalmente, suas determinações e expressões mais contemporâneas. Seus resultados indicam que a crise de 2008 impôs novas implicações à ofensiva imperialista, donde se destaca a transição para uma fase ultraneoliberal, que, além de acirrar as pautas da ortodoxia neoliberal dos anos 1980, agrega novos elementos, tais como o autoritarismo e conservadorismo políticos e a consequente redução das dinâmicas democráticas; o acirramento das espoliações e a vigilância, controle e manipulação digital das populações.
Palavras-chave: Imperialismo, Novo Imperialismo, Ultraneoliberalismo, Espoliações, Expropriações.
Abstract: This article addresses the phenomenon of Imperialism, its determinations and expressions. Based on bibliographic research and use of the categories of the historical-dialectical method, the study aims to present a synthesis, historical-critical-dialectic, of the fundamentals of the emergence of imperialism, its post-war transformations and, mainly, of its determinations and expressions more contemporary. The results indicate that the 2008 crisis imposed new implications on the imperialist offensive, from where stands out the transition to an ultraneoliberal phase that, in addition to intensifying the guidelines of the neoliberal orthodoxy of the 1980s, adds new elements, such as authoritarianism and political conservatism and the consequent reduction in democratic dynamics; the intensification of spoliations and surveillance, control and digital manipulation of populations.
Keywords: Imperialism, New Imperialism, Ultraneoliberalism, Spoliations, Expropriations.
Introdução
As recentes transformações no cenário político brasileiro, desde o golpe de 2016, o qual implicou na derrubada do Governo Dilma Rousseff, vêm imprimindo severas modificações nas políticas que integram a Seguridade Social brasileira, sendo esta última, ao longo dos últimos vinte e três anos, objeto central de nossos estudos acadêmicos. Tendo como aporte o recurso heurístico à categoria da totalidade, julgamos imprescindível analisar as determinações universais do capital sobre todo este processo, o que necessariamente nos conduziu ao objetivo de compreender o fenômeno do Imperialismo, desde a sua emergência, até, principalmente, suas expressões e ofensivas mais recentes.
É nessa perspectiva que, por meio deste texto, sintetizamos e socializamos alguns resultados de nossa pesquisa bibliográfica acerca do Imperialismo, desde sua emergência, no início do século passado, até suas mais recentes transformações, suscitadas pela crise de 2008 e seus desdobramentos, donde se destacam o acirramento do endividamento mundial, público e privado; as alterações nas disputas interimperialistas e a transição para o ultraneoliberalismo, através do qual exacerbam-se as espoliações e expropriações.
As próximas seções do artigo apresentam, respectivamente, os fundamentos da emergência do Imperialismo; as suas transformações no contexto do pós-guerras; a mundialização financeirizada, flexível e neoliberal do capital e, neste processo, o acirramento das espoliações e expropriações empreendidas pela Oligarquia Financeira internacional, com o apoio dos Estados nacionais, através da reestruturação produtiva e do neoliberalismo; a crise de 2008, suas contradições e desdobramentos, em que se destaca o ultraneoliberalismo; e, finalmente, nas considerações gerais, sintetizamos os principais traços contemporâneos do Imperialismo e do ultraneoliberalismo.
Breves notas sobre a emergência do Imperialismo
No início do século XX, Lênin (2012) evidenciou a emergência da fase imperialista do capital1, destacando que a concentração bancária constituiu o processo fundamental da transformação do capitalismo monopolista em Imperialismo. O crédito passou a subsidiar diretamente o processo produtivo2, a depender desse processo produtivo para obter sua própria remuneração e a gerir o processo produtivo, impulsionando a extração de mais valor e a concentração do capital monetário (FONTES, 2010).
Dispondo desse capital monetário, concentrado e sobreacumulado, e empreendendo um processo que Lênin (2012) nominou de partilha do mundo, Inglaterra, França, Estados Unidos e Alemanha se configuraram como os primeiros países banqueiros, exportadores para e credores de quase todo o resto das nações, transformando-as em economias devedoras e dependentes. O Imperialismo e a dependência passaram a ser estruturais no sistema do capital e a dívida pública um determinante central, implicando na subordinação das economias periféricas. Durante os anos 1970, dedicando-se aos estudos sobre a dependência, Ianni (1974, p. 175) avaliou que Imperialismo e dependência conformam uma unidade dialética, pois, “[...] um e outro se constituem reciprocamente, como expressões necessárias da reprodução ampliada do capital, em escala mundial”.3Fontes (2010, p. 119) avalia que a subordinação dos países dependentes aos imperialistas passaria:
[...] a se assemelhar [...] ao domínio do capital sobre o trabalho: ela se apresenta como adesão voluntária, como resultante da própria necessidade dos países de se ‘desenvolverem’, de se ‘modernizarem’, para os secundários, ou para manterem suas posições capital-imperialistas. A violência constitutiva dessa dinâmica multiplamente subordinadora se faz envolta em ameaças difusas, brandidas explicitamente pelos apologistas da ‘globalização’: ou se incorporam ou perecerão, banidos do comércio e dos créditos internacionais.
Em brevíssima síntese, ancorados nesses autores, destacamos que a concentração de capitais e o monopólio, o sistema colonial, a exportação de capitais e a dívida pública constituíram-se nos principais fundamentos clássicos da emergência do Imperialismo4 e conduziram os países imperialistas a um movimento de partilha do mundo, o qual culminou em duas grandes guerras mundiais. Segundo diversos estudiosos do Imperialismo, no período pós-Segunda Guerra, esse fenômeno apresentou novas determinações, expressões e tendências5, as quais abordaremos a partir do item a seguir.
Determinações e expressões do Imperialismo no período pós-guerras
Para Harvey (2014), a partir do pós-guerras deu-se uma transição do imperialismo leve, calcado no colonialismo e na exportação de capitais, para um novo imperialismo, calcado na plena espoliação das economias dependentes. Assim, diante de dificuldades na sua histórica acumulação expandida, durante a extensa crise estrutural que o assola, o Novo Imperialismo empreende a acumulação por espoliação6, priorizando ofensivas fraudulentas e predatórias, com vistas à apropriação de riquezas naturais e sociais, a nível planetário e, para tanto, os Estados nacionais foram convocados a promover práticas espoliativas (HARVEY, 2014, p. 122)7. Essa assertiva corrobora as observações de Mészáros (2011) quanto a uma potencialização da intervenção estatal, devido ao sistema do capital já não conseguir solucionar suas contradições mais explosivas na dimensão da relação econômica. Também para Chesnais (2005), a mundialização financeira vem demandando aos Estados nacionais o tripé da liberalização, desregulamentação e privatização.
Fontes (2010) evidencia que o atual capital-imperialismo emergiu sob a institucionalidade das entidades internacionais criadas no pós-guerras8, visando “assegurar a coordenação econômica e mercantil de empreendimentos com enorme abrangência e que exigiam grande mobilidade espacial, elaborando formas de ‘automatização’ local da gestão sem redução da unidade de ação no plano internacional” (FONTES, 2013, p. 09) 9 e, neste contexto, a exacerbação da concentração do capital em sua forma monetária colocou-nos diante “[...] da mais extrema potencialização da propriedade capitalista tout court, que se torna abstrata, desigualitariamente socializada e extremamente destrutiva” (FONTES, 2010, p. 85).
Assim, se durante a acumulação primitiva o capital procedeu à transformação da propriedade privada comunal em uma propriedade privada individual e baseada no critério da exploração do trabalho alheio10, o capital-imperialismo procedeu a uma nova transformação da propriedade do capital, elevando-a a uma dimensão de propriedade altamente concentrada e desvinculada das empresas particulares e dos meios de produção propriamente ditos.
Ao mesmo tempo em que essa nova propriedade monetária concentrada “[...] supera as dimensões da empresa e de qualquer empreendimento singular, configurando-se como o fetiche máximo de uma potência cega de pura forma monetária” (Fontes, 2010, p. 85), também permite ao capital-imperialismo “[...] garantir a centralidade máxima de valorização do valor – sobre qualquer outra instância, inclusive a empresa” (FONTES, 2010, p. 115), em escala planetária. Ou seja, mesmo desvinculada da materialidade física das unidades empresariais, a nova propriedade monetária concentrada não prescinde da existência das mesmas, antes, lhes impõe uma extração de mais-valor capaz de subsidiar a reprodução do capital funcionante (reinversão) e remunerar com juros o capital monetário11. O resultado desta ingerência orgânica do capital financeiro sobre os capitais funcionantes em geral é a exasperação das expropriações (FONTES, 2010, p. 21-24) 12.
A nosso ver, as espoliações e expropriações discutidas por Harvey (2014) e Fontes (2010) e apresentadas nesse item tratam-se de despossessões que guardam similaridades e peculiaridades; vejamos.
A mundialização financeirizada, flexível e neoliberal: proletarização, precarização e apropriação de riquezas, em escala planetária
Fontes (2010) ressalta que o capital engendra duas formas de propriedade: a dos meios de produção e a dos recursos sociais de produção e, para acirrá-las, exaspera as expropriações dos trabalhadores, primárias e secundárias e, a nosso ver, exaspera também a espoliação de riquezas, naturais e sociais, num recrudescimento das práticas da chamada acumulação primitiva, conforme propõe Harvey (2014), para deter tanto a capacidade real e atual de produção efetiva (basicamente, os meios de trabalho, força de trabalho, matérias primas, maquinário, infraestrutura etc., postos em ação para a produção), quanto o monopólio de toda a capacidade potencial da produção mundial, incluindo todo o desenvolvimento técnico-científico, a riqueza real e as formas de ativos, ainda que para serem mantidos ociosos.
Para favorecer essa propriedade concentrada, as expropriações alijam o trabalho dos meios de produção e, também, da capacidade social de produção; do controle e gestão da produção; da apropriação dos produtos e de qualquer possibilidade de compreender, criticar e resistir à sua própria expropriação e proletarização13. A continuidade das expropriações primárias (despossessão dos meios de produção) e a emergência das expropriações secundárias (despossessão dos bens e direitos sociais e trabalhistas conquistados) tornam os trabalhadores disponíveis para qualquer modalidade de trabalho, desde as remanescentes formas mais estáveis até as mais absolutamente precárias.
Observe-se que isto, hoje, se dá no contexto do capitalismo tardio, o qual — marcado por uma sobreacumulação crônica, pela disjunção entre sua original produção genuína e a atual autorreprodução destrutiva e por uma crise estrutural sem precedentes — desfaz, conforme previu Mészáros (2011, p. 673), a “[...] ilusão da ‘integração’ permanente do trabalho” e legitima “[...] a mais antissocial e desumanizante tendência [...] para a expulsão brutal do trabalho vivo do processo de trabalho”.
Para fazer frente ao desemprego estrutural crônico — e na impossibilidade de superar a contradição basilar da lei geral da acumulação capitalista entre a expulsão do trabalho para aumento da produtividade e extração de mais-valor e a consequente redução do consumo — a reestruturação produtiva e o neoliberalismo, ao tempo em que dão sequência à expropriação e proletarização em escala massiva, adaptam os trabalhadores a condições generalizadas de precariedade e subproletarização, como forma de viverem na permanente condição de superpopulação relativa estagnada e crônica14.
As despossessões, mais que nunca, empreendem a apropriação predatória de todo e qualquer recurso social de produção, ora em favor da extração imediata de mais-valor, ora para mantê-lo ocioso, em favor do monopólio dos países imperialistas sobre todas as potencialidades de produção a nível planetário. Ou seja, no atual contexto de produção destrutiva, sobreacumulação crônica e desemprego estrutural, expandem-se despossessões que visam à simples apropriação e monopólio das riquezas planetárias, para o controle absoluto do potencial social de produção, e o capital converte-se num “[...] dreno espoliador do sociometabolismo básico do nosso lar planetário” (MÉSZÁROS, 2011, p. 631) 15.
Os Estados nacionais são, então, convocados a promover espoliações e expropriações, através de uma reestruturação no âmbito da produção — que repercute na divisão internacional do trabalho — e no âmbito da reprodução social, através do já citado tripé de liberalização, desregulamentação e privatização (CHESNAIS, 1996). É nessa perspectiva que, especialmente a partir dos anos 1980, a mundialização do capital é financeirizada, flexível e neoliberal, visando à livre, instantânea e volátil mobilidade do capital, num fluxo internacional, ilimitado e ininterrupto de transações comerciais e financeiras e de espoliações e expropriações16.
No âmbito estrito da produção, a reestruturação torna predominantes as modalidades precárias de trabalho e destrói o chão da fábrica como referência da identidade, organização e luta da classe trabalhadora17; na esfera da reprodução social, inflexionam-se as instituições políticas, jurídicas, econômicas, culturais e científicas para forjar o Estado, as leis, a escola, a religião, a arte etc., de forma que correspondam ao imperativo de adequar o comportamento dos homens às exigências de produção e acumulação do capital que passaram a viger e, para isto, o neoliberalismo foi retirado das gavetas da história18 e posto em prática pelos Estados nacionais, sob a orquestração das agências internacionais.
Além da imposição de suas pautas macroeconômicas, que operacionalizam o tripé de liberalização, desregulamentação e privatização19, o neoliberalismo alcança todas as outras esferas da vida e dissemina pensamentos, teorias, códigos de comportamento e programas de governo que criam um novo sujeito para uma nova razão do mundo, pautada no valor da concorrência absoluta entre os homens, tomados, cada um deles, como uma empresa humana ou unidade do capital. Este processo objetivo e subjetivo de subsunção do trabalho devasta a consciência de classe dos trabalhadores, ao identificá-los com e convencê-los das designações — individualistas, fragmentárias e competitivas — de capital humano, sujeito-empresarial e empreendedor (DARDOT; LAVAL, 2016)20.
As contribuições sintetizadas até este momento nos apresentam os fundamentos da emergência do Imperialismo e nos aproximam de suas novas determinações e expressões no contexto do pós-guerra e da crise estrutural que se arrasta desde a década de 1970 — donde se destacam a nova propriedade monetária concentrada do capital, o recrudescimento das espoliações, a Oligarquia Financeira internacional e a mundialização financeirizada, flexível e neoliberal —, mas o quadro histórico desse Novo Imperialismo sofreu severas alterações a partir do crash de 200821 e suas inflexões em 2011-2012 e em 2019-2020, agravando-se com a pandemia da COVID-2019, o que nos desafia a novos aprofundamentos.
Crise e pós-crise de 2008: explicitação e aprofundamento das contradições e das retóricas do neoliberalismo
Nos primeiros anos do século XXI houve um aumento exponencial da propriedade monetária concentrada do capital. Segundo Duménil e Lévy (2011), até 2008, a renda e riqueza das classes superiores foi quintuplicada. No entanto, tudo isto se realizou à custa da criação de uma estrutura financeira que, desregulamentada, tornou-se desequilibrada e vulnerável a riscos, especialmente nos Estados Unidos (EUA), cuja hegemonia internacional lhes permitiu “[...] seguir uma trajetória macro de aumento dos desequilíbrios doméstico e internacional”, e cujo colapso espraiou-se para o resto do mundo (DUMÉNIL; LÉVY, 2011, p. 7).
A globalização do sistema bancário promovida pelo neoliberalismo — expressa em altos volumes de Investimentos Estrangeiros Diretos (IEDs) e de créditos bancários estrangeiros às economias nacionais (dívidas públicas e privadas)22 —, a um só tempo, favoreceu um processo de aceleração do crescimento econômico, especialmente nos primeiros sete dos anos 2000, e gestou os pontos de estrangulamento que colapsaram em 2008, tendo como epicentro a economia dos EUA23. Neste país, a financeirização estrangeira, especialmente no setor imobiliário, acirrou o endividamento das famílias, o déficit no comércio exterior e a dívida interna, principais elementos que detonaram o crash e converteram a onda de crescimento dos sete anos anteriores em um quadro de recessão, repercutindo nas demais economias nacionais.
Tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, o socorro dos tesouros públicos aos agentes privados que especularam irresponsavelmente na ciranda financeira, a qual eles mesmos desregulamentaram, foi bastante expressivo e pôs por terra, irremediavelmente, qualquer retórica que atribua ao neoliberalismo o princípio do chamado Estado mínimo. Segundo Cunha et al. (2015), de imediato, o Federal Reserve (Banco Central americano) destinou US$ 180 bilhões aos bancos e o Tesouro Nacional americano comprou ativos podres de instituições financeiras privadas, na ordem de US$850 bilhões. Os bancos centrais da Alemanha, França e Espanha desembolsaram, respectivamente, meio trilhão de dólares, US$ 350 bilhões e US$ 100 bilhões em socorro público às agências financeiras privadas.
Após o socorro imediato aos bancos, segundo os mesmos autores (CUNHA et al., 2015), sucederam-se montantes destinados à recuperação da crise, compostos por US$ 787 bilhões para a retomada do crescimento da economia norte-americana e um trilhão de dólares foi desembolsado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para a recuperação da economia mundial, sendo US$ 750 bilhões destinados diretamente ao sistema financeiro global e US$ 250 bilhões destinados a políticas de impulsão do comércio e de combate ao protecionismo.
Embora a crise de 2008 tenha explicitado as contradições e riscos da ofensiva neoliberal, não a pôs em xeque, pois preservou-se “intacta a estrutura básica da especulação” financeira mundial (CUNHA et al., p. 9), liberalizada e desregulamentada, dando prosseguimento e aprofundamento ao curso da mundialização financeirizada, flexível e neoliberal e fazendo eclodir novas crises, como a de 2011 e a de 2019, tendo a primeira o seu detonador nas dívidas soberanas (DUMÉNIL; LÉVY, 2011; CUNHA et al., 2015;) e esta última na esfera da produção (TOUSSAINT, 2020).
Segundo Duménil e Lévy (2011), o pós-crash de 2008 é marcado, até 2011, por modestas recuperações do PIB norte-americano, taxas negativas de crescimento nas economias da Europa e crescimento ínfimo nos países em desenvolvimento (China, Índia e Brasil, notadamente), quadro que, em última análise, expressa uma baixa recuperação do sistema a nível internacional, a manutenção da instabilidade financeira e do socorro dos governos e bancos centrais, o agravamento das dívidas e uma desindustrialização generalizada.
Apenas a partir de 2011 os países retomam uma trajetória mais estável de baixas taxas de crescimento, mas este parco crescimento se dá, primeiro, sob a manutenção do receituário de desregulamentação, pois as recomendações de disciplinamento não passaram de anúncios retóricos24 e, segundo e consequentemente, à custa da explosão das dívidas, privadas e soberanas, uma vez que o crescimento é obtido no âmbito financeiro através do sistema de crédito e do endividamento contínuo. Por outro lado, o sistema não retomou sua autonomia, ficando viciado no socorro público estatal, impondo também aos Estados nacionais uma situação crescente de endividamento. Segundo Botelho (2018), o endividamento total mundial teve um crescimento de 40%, entre 2007 e 2017, atingindo um montante estimado em 237 trilhões de dólares, o que corresponde a 317% do PIB mundial.
Toda essa instabilidade se agrava devido à hegemonia da economia e da moeda americana sobre as demais economias mundiais, as quais terminam financiando os déficits orçamentários e comerciais dos Estados Unidos, que não conseguem crescer sem endividamento e reagem à ameaça de perda de sua hegemonia imperialista, disputando-a com outras novas potências mundiais, notadamente a China, cuja economia, não tendo aderido integralmente ao receituário neoliberal, disputa a liderança econômica mundial25. É nesse contexto de agravamento da instabilidade e de disputa que os Estados Unidos chegam a 2014 com “[...] cerca de 40 trilhões de dólares em obrigações a pagar por parte do governo, empresas e famílias, algo como um quinto de toda a dívida mundial” e cerca de 233% do seu próprio PIB. A China, embora com endividamento menor, foi responsável por 40% do endividamento mundial, entre 2007 e 2014 (BOTELHO, 2018, p. 6).
Sob as inflexões do crash de 2008, o endividamento e as disputas entre os países centrais repercutem no endividamento, nas exportações (especialmente de commodities), na estabilidade monetária e na vida política, social e cultural dos países periféricos, cujas dívidas se elevam; as exportações sofrem arrefecimentos, devido à redução de demanda por commodities; e seus Estados são convocados a acirrar processos internos de espoliações e expropriações, que, primeiro, sob a retórica de um necessário ajuste fiscal, exercem uma mão pesada na destruição maciça e célere dos bens e direitos sociais, direcionando os fundos públicos para o sorvedouro das dívidas, e, segundo, com o consentimento ativo de suas burguesias internas, empreendem uma entrega robinhoodiana de recursos naturais e sociais, para o usufruto da lógica espoliativa do sistema, ao preço de verdadeiros crimes de lesa pátria e de lesa humanidade26.
Àqueles que, diante da crise de 2008, apostaram otimistas num pós-neoliberalismo27, o capital respondeu com um ultraneoliberalismo, conduzindo o sistema ao recrudescimento de suas próprias contradições absolutas, de sua crise estrutural, de suas instabilidades financeiras e, consequentemente (como forma de tentar dar lastro a uma riqueza que está largamente baseada em obrigações de pagamentos futuros e capital fictício), de suas investidas espoliadoras e expropriadoras28.
Em objetivada barbárie, ascendem novos processos de conservadorismo e autoritarismo políticos, que mobilizam traços de fascismo; “desdemocratizações” das dinâmicas políticas nacionais; pilhagem de bens e patrimônios nacionais e genocídio de populações nativas; espionagem, vigilância e controle digital das populações etc. Esses eventos são potencializados pela atual agenda ultraneoliberal, visando ao domínio absoluto da Oligarquia Financeira mundial sobre a universalidade do trabalho e da riqueza planetária.
Por outro lado, as inflexões contínuas do crash de 2008 explicitam as contradições absolutas do capital, pois mesmo que as grandes potências econômicas mundiais disputem a hegemonia do Imperialismo, este fenômeno, imanente ao sistema do capital, atinge todas as economias nacionais, repercute, de variadas formas, sobre os trabalhadores de todo o planeta e tensiona a luta de classes. No período pós-crash de 2008, sob a persistência e aprofundamento da mundialização financeirizada, flexível e, agora, ultraneoliberal, todas as economias nacionais e as grandes empresas encontram-se sobre-endividadas; todas as economias, à exceção da China, enfrentam crise na produção e todas as economias não imperialistas vivenciam um processo de desindustrialização. Enquanto isso, durante os episódios financeiros de 2008, 2011 e o atual, iniciado em 2019-2029, grandes massas de capital viraram fumaça.
Se, por um lado, as severas ofensivas do capital, na sua atual mundialização financeirizada, flexível e ultraneoliberal, ameaçam a vida do planeta, dos trabalhadores e da humanidade como um todo, por outro lado elas explicitam o desespero do sistema para obter sobrevida diante do acirramento de suas próprias contradições absolutas e impostergáveis.
Considerações Finais
Através do recurso heurístico às categorias da totalidade, historicidade e contradição, sintetizamos os fundamentos da emergência do Imperialismo, suas transformações no período pós-guerras e suas novas determinações, desde o crash de 2008, o qual interpretamos como uma crise conjuntural, dada na esfera financeira e com ampla abrangência sobre as economias nacionais, tanto centrais quanto periféricas, e do qual, dentre outros elementos, destacamos como principais: a) impacta sobre a crise estrutural, que se desenrola desde a década de 1970, agravando suas contradições, nos âmbitos da produção e da reprodução do capital; b) acentua (estratosfericamente) tanto o endividamento mundial, quanto a distância entre o capital fictício e seu (não)lastro real; c) impõe alterações nas disputas interimperialistas pela hegemonia político-econômica sobre o sistema do capital e a totalidade social; d) precipita o neoliberalismo para uma nova fase, ultraneoliberal.
Esta nova fase ultraneoliberal é empreendida pela Oligarquia Financeira internacional e sua propriedade monetária concentrada, com vistas à obtenção de um domínio absoluto sobre a universalidade do trabalho e a riqueza planetária, e — além de dar severidade e celeridade ao receituário da ortodoxia neoliberal, donde se destacam o acirramento do ajuste fiscal, para a apropriação dos fundos públicos nacionais; as privatizações de empresas estatais e bens comuns (água, terra, saberes nativos, bens e valores culturais etc.) e a destruição dos direitos trabalhistas e sociais conquistados pelos trabalhadores —, agrega novos elementos a serem aprofundados, dentre os quais nos parece válido destacar neste texto, ainda que introdutoriamente: a) a ascensão mundial de um novo processo de conservadorismo e autoritarismo políticos, o qual mobiliza, onde necessário e possível, traços de fascismo, o que implica b) numa desdemocratização das dinâmicas políticas nacionais; c) a expansão das espoliações que visam à pilhagem de bens e patrimônios nacionais, implicando, inclusive, no genocídio de populações nativas, e que também (re)colocam a América Latina na rota central das ofensivas imperialistas dos Estados Unidos; d) a espionagem, vigilância, controle e manipulação digital das populações.
É preciso lembrar que essas ofensivas não se dão sem a resistência do trabalho. Encontramo-nos, como nunca, no olho de um furacão chamado Luta de Classes; prova disso são as convulsões sociais em todo o mundo, tais como o movimento dos Coletes Amarelos, na França (2018); as greves de trabalhadores do Google (2018), trabalhadores do Uber (2019) e trabalhadores de entrega por aplicativos (2020), respectivamente, nos Estados Unidos, Europa e Brasil, consideradas as novas greves dos trabalhadores do futuro; a mais recente eleição da esquerda na Bolívia e as recentes derrotas do neoliberalismo no Chile, ainda que após trinta anos de expropriações.
Enfim, entendemos que, primeiro, esta análise das determinações e expressões mais contemporâneas do Imperialismo, dadas na universalidade da relação social capitalista, foi realizada como pressuposto heurístico imprescindível à compreensão das ofensivas à Seguridade Social, dadas na particularidade brasileira e, segundo, que o real é forjado por contradições e é nelas que estão as potencialidades das nossas lutas; mas, antes, é preciso compreendê-las.
Agradecimentos
Ao Grupo de História do Trabalho Global e dos Conflitos Sociais, do Instituto de História Contemporânea/Universidade Nova de Lisboa, pelo acolhimento e apoio ao nosso plano de estudos de pós-doutoramento, do qual resulta esta primeira síntese teórica.
Referências
ABÍLIO, L. C. O make up do trabalho: uma empresa e um milhão de revendedoras de cosméticos. 2011. 307 p. Tese (doutorado) − Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/280166. Acesso em: 1 maio 2020.
AMARAL, M. S. Breves considerações acerca das teorias do imperialismo e da dependência ante a financeirização do capitalismo contemporâneo. Revista Pensata, São Paulo, v. 3, n. 1, ano 3, 2013. Disponível em: http://www.unifesp.br/revistas/pensata. Acesso em: 17 fev. 2020.
ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E.; GENTILI, P. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
ANTUNES, R.; ALVES, G. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educ. Soc., Campinas, v. 25, n. 87, maio/ago. 2004.
BORÓN, A. A questão do Imperialismo. In: BORON A. A.; AMADEO, J.; GONZÁLEZ, S. A teoria marxista hoje: problemas e perspectivas. Buenos Aires: Clacso, 2007.
BOTELHO, M. L. Rumo ao desconhecido: endividamento mundial, crise monetária e colapso capitalista. Blog da Boitempo, São Paulo, 23 jun. 2018. Disponível em https://blogdaboitempo.com.br/2018/07/23/rumo-ao-desconhecido-endividamento-mundial-crise-monetaria-e-colapso-capitalista/ Acesso em: 01 maio 2020.
CHESNAIS F. Doze teses sobre a mundialização do capital. In: FERREIRA, C.; FERRI-SCHERER, A. O Brasil frente à ditadura do capital financeiro: reflexões e alternativas. Lajeado: UNIVATES, 2005.
CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
CUNHA, J. de S. et al. Crise mundial e a trajetória do Brasil, entre 2008 e 2015. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 234, 2005. Disponível em: https://cadernosdoceas.ucsal.br/index.php/cadernosdoceas/article/view/12. Acesso em: 5 maio 2020.
DARDOT, P; LAVAL, C. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
DUMÉNIL, G.; LÉVY, D. A crise do neoliberalismo na história do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2013.
FONTES, V. As contradições da dependência sob o capital-imperialismo. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOCIALISMO DEL BUEN VIVIR EM AMÉRICA, Equador, 2013. Disponível em: https://www.planificacion.gob.ec/wp-content/uploads/downloads/2013/05/ Equador-VF-contradicoes-depend-e-kimper-Virgina-Fontes.pdf Acesso em: 23 jan. 2020.
FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: EPSJV; Editora UFRJ, 2010.
GRAMSCI, A. Antologia, Selección, Tradução y Notas de Manuel Sacristan. Madrid: Siglo Veinturno Editores, 1977.
HARVEY, D. O Novo Imperialismo. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
HARVEY. D. O neoliberalismo. História e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
IANNI, O. Imperialismo na América Latina. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1974.
LÊNIN, V. I. Imperialismo, estágio superior do capitalismo: ensaio popular. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro 1: O processo de produção do capital. [tradução de Rubens Enderle]. São Paulo: Boitempo, 2013.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.
MÉSZÁROS, I. Para além do Capital: rumo a uma teoria de transição. (trad. Paulo Cesar Castanheira e Sergio Lessa), São Paulo: Boitempo, 2011.
TOUSSAINT, E. As próximas crises financeiras prováveis. Parte 3 da série: A pandemia do capitalismo, o coronavírus e a crise econômica. Comitê para abolição das dívidas ilegítimas, Bélgica, 21 abr. 2020. Disponível em: https://www.cadtm.org/As-proximas-crises-financeiras-provaveis. Acesso em: 08 mai. 2020.
TROTSKY, L. Peculiaridades do desenvolvimento da Rússia. In: TROTSKY, L. A História da Revolução Russa: a queda do tzarismo. Tradução E. Huggins. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
Notas
Autor notes
UEPB Rua Baraúnas, 351 - Bairro Universitário Campina Grande-PB - Brasil CEP: 58429-500
Declaração de interesses