Resumo: O presente artigo recupera dados e reflexões da tese de doutorado sobre o trabalho nas telecomunicações do Rio de Janeiro a partir de sua privatização em 1998. No processo de pesquisa, um dos materiais mais ricos que tivemos contato foram os e-mails de denúncia enviados ao sindicato pelos/as trabalhadores/as, através dos quais foi possível constituir um complexo quadro acerca das precárias relações de trabalho no setor nos anos 2000. A partir do conceito de discurso oculto de Scott (2013), foi possível analisar como tais mensagens nos informavam também sobre as ações de resistência cotidiana empreendidas pelos/as trabalhadores/as. Juntamente com outros documentos, estes dados nos possibilitaram dialogar criticamente com as teses que desde os anos 1980/90 afirmam a perda da centralidade do trabalho na vida social e da capacidade de luta dos/as trabalhadores/as.
Palavras-chave: TrabalhoTrabalho,PrecarizaçãoPrecarização,ResistênciaResistência,SindicatoSindicato.
Abstract: This article retrieves data and reflections from the doctoral thesis on the work in telecommunications in Rio de Janeiro since its privatization in 1998. In the research process, one of the richest materials we had contact with were the complaint emails sent to the union by the workers, through which it was possible to build a complex picture of the precarious labor relations in the sector in the 2000s. From the concept of hidden speech by Scott (2013), it was possible to analyze how such messages also informed us about the daily resistance actions undertaken by workers. Together with other documents, these data enabled us to critically dialogue with the theses that, since the 1980s/90s, affirm the loss of the centrality of work in social life and the workers' capacity for struggle.
Keywords: Work, Precariousness, Resistance, Union.
ESPAÇO TEMÁTICO: TRABALHO, TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E CONDIÇÕES DE VIDA
O discurso oculto dos/as trabalhadores/as: elementos para uma análise do trabalho nas Telecomunicações do Rio de Janeiro
The hidden speech of workers: elements for an analysis of Telecommunications work in Rio de Janeiro
Recepção: 30 Julho 2021
Revised document received: 14 Setembro 2021
Aprovação: 31 Agosto 2021
Harvey (2011, p. 88-89), em seu livro O enigma do capital, afirma que o trabalho é sempre um campo de batalha perpétuo, onde a inovação tecnológica representa, historicamente, sob a perspectiva do capital, “o desejo de enfraquecer o trabalhador tanto quanto possível e passar os poderes de movimento e decisão para dentro da máquina”. Tudo isso porque é no processo de trabalho onde o capitalista “é basicamente dependente do trabalhador”, ou seja, o trabalhador é o “agente criador” (HARVEY, 2011, p. 88-89).
Nessa perspectiva de controle (e subordinação e exploração) do trabalho, é inegável que o poder destrutivo das grandes corporações globais tem se tornado cada vez mais evidente através da chamada plataformização ou uberização do trabalho (FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020), sustentada no uso intensivo das TICs (tecnologias da informação e comunicação), e que tem, como resultado, o aprofundamento das formas flexíveis e precárias de trabalho.
Nas últimas décadas, as empresas flexíveis vêm impondo velozmente sua tríade destrutiva - terceirização, informalidade e flexibilidade1 (ANTUNES, 2020, p.16) garantida pelo ataque à legislação protetiva do trabalho, como pudemos verificar, no caso do Brasil, com a contrarreforma trabalhista (Lei 13467) e a terceirização generalizada (Lei 13429), aprovadas e implantadas no ano de 2017, no governo de Michel Temer2 (BRASIL, [2017]).
As transformações são de tal monta, que têm suscitado, como provocam Filgueiras e Cavalcante (2020), um novo adeus à classe trabalhadora, desde o ponto de vista acadêmico, empresarial e institucional. E como no primeiro adeus, na década de 1980, vários elementos podem ser destacados, dentre eles, um determinismo tecnológico, que coloca como irreversível o declínio do trabalho assalariado e a regulação que vigorou (ainda que com particularidades regionais e entre os países – centrais ou periféricos) durante grande parte do século XX.
Todas essas transformações também têm repercussões sobre a capacidade de organização dos/as trabalhadores/as, o que, ato contínuo, alimentou teses sobre o futuro dos sindicatos e sua perda de relevância como representante dos interesses da classe trabalhadora (RAMALHO; SANTANA, 2003).
É exatamente nesse cenário de ataque ao trabalho que a pesquisa em tela procura compreender o trabalho nas telecomunicações do Rio de Janeiro, um setor que tanto sofre os impactos das mudanças tecnológicas, institucionais e de gestão, adotadas desde os anos 1970, no contexto da crise capitalista, quanto também passa a ser um setor propulsor dessas transformações, por incorporar, cada vez mais, a microeletrônica e as tecnologias da informação em seu processo de trabalho. Tamanha mudança terá impacto na regulamentação do setor, a nível mundial, e no Brasil, ganha destaque nos anos 1990, no governo FHC.
Considerando o período que vai da privatização do Sistema Telebrás, em 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso até os dias atuais, as questões que nortearam nossa análise procuram dialogar com a ideia de crise do trabalho e dos sindicatos na perspectiva de uma complexa problematização e não no sentido de sua irreversibilidade. E isso coloca para o processo de pesquisa o desafio de acessar e propor ferramentas de análise através das quais os sujeitos possam falar. É nessa perspectiva que os e-mails de denúncia ganham destaque e sentido, muito embora a pesquisa empírica não tenha se resumido a eles: para a verificação da condição de precarização do trabalho foram analisadas as fichas de rescisão de contrato nos anos de 2012 (10.593 fichas)3 e 2015 (6.549 fichas)4; os relatórios do Setor de Homologação do sindicato; aplicação de 520 questionários às/aos trabalhadores/as demitidos/as. Sobre as respostas do sindicato e dos/as trabalhadores/as, além dos e-mails de denúncia, foram realizadas entrevistas com dirigentes e representantes sindicais; acompanhamento das atividades sindicais (plantões nos locais de trabalho; negociação com as empresas; greve do teleatendimento, além de atividades culturais), e análise dos Acordos e Convenções Coletivas5 assinados entre sindicato e empresas dos três segmentos que compõem o setor de telecomunicações (operadoras; prestadoras de serviço e teleatendimento – estas duas últimas, terceirizadas).
O presente trabalho está organizado em três partes, além da Introdução e Considerações Finais. Na primeira delas, trazemos os conceitos de precarização e resistência, sobre os quais sustentamos nossa análise, numa perspectiva que procura explicitar o caráter historicamente conflituoso entre capital/trabalho, no qual é possível perceber tanto os aspectos de controle e exploração do trabalho, assim como a resistência e luta.
A partir desta ideia inicial, apresentamos as transformações nas telecomunicações pós privatização, destacando as diferenças desiguais que passam a predominar entre os/as trabalhadores/as nas empresas do Rio de Janeiro, a partir de uma intensa terceirização, que traz consigo a marca da precarização das relações e condições de trabalho.
Este é o cenário para tratarmos também das resistências empreendidas pelos/as trabalhadores/as e dos novos repertórios de ação do sindicato no enfrentamento a este ataque ao trabalho. Nesse momento, é que os e-mails de denúncia ganham relevância para a explicitação deste campo de batalha em que o mundo do trabalho está imerso desde o último quarto do século XX, e que se aprofunda ainda mais nestas primeiras décadas do século XXI.
A temática da precarização do trabalho tem ocupado, especialmente a partir do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, o centro de uma série de estudos na área das ciências sociais e humanas, preocupados em compreender o que Alves (2013, p. 31) denomina de “nova temporalidade histórica do capital – o capitalismo global6 – no interior do qual o ciclo de crises capitalistas assumiria nova feição”7. E na qual a precarização do trabalho, garantida através da flexibilização das relações de trabalho (novas modalidades de contratação salarial, desregulação da jornada de trabalho, remuneração flexível, dentre outras) tem sido um dos elementos principais para a lógica da acumulação do capital.
Se historicamente, a relação capital-trabalho sempre se estruturou de forma antagônica, a conformação atual tem indicado um agravamento da exploração e da espoliação do trabalho, com consequências no plano objetivo (desemprego, informalidade, subocupação, baixos salários) e subjetivo (adoecimento – físico e mental; fragilização do coletivo, podem ser citadas como dois aspectos principais), atualizando e agudizando o caráter estranhado do trabalho (ANTUNES, 1999).
Mas, como afirma Harvey (2011), esse processo deve ser entendido como um campo de batalha perpétuo, e se é verdade que essa batalha vem sendo extremamente penosa para os/as trabalhadores/as, também não se pode dizer que os mesmos não resistam a essa condição. Nesse sentido, também é preciso que, academicamente, estejamos atentos e abertos a investigar as experiências da classe, como Thompson (1987; 2012) propõe, sem desconsiderar o que nelas há de determinação, mas buscando compreender também o que há de escolha, ou liberdade, ou agência humana, o que também pode contribuir para explicar as resistências e as lutas que a classe trabalhadora empreende no seu fazer-se.
A noção de experiência em Thompson ganha um profundo sentido para pensarmos a ação da classe, na medida que para esse autor, “a classe é uma relação, e não uma coisa. Ela não existe, nem para ter um interesse ou uma consciência ideal, nem para se estender como paciente na mesa de operações de ajuste”. (THOMPSON, 1987, p. 11).
A experiência, na medida que amplia o conceito de classe, como um fazer-se, permite que o próprio debate acerca da consciência de classe seja realizado numa perspectiva histórica:
A experiência surge espontaneamente no ser social, mas não surge sem pensamento. Surge porque homens e mulheres (e não apenas filósofos) são racionais, e refletem sobre o que acontece a eles e ao seu mundo. Se tivermos que empregar a (difícil) noção de que o ser social determina a consciência social, como iremos supor que isto se dá? Certamente não iremos supor que o “ser” está aqui, como uma materialidade grosseira da qual toda idealidade foi abstraída, e que a “consciência” (como idealidade abstrata) está ali. Pois não podemos conceber nenhuma forma de ser social independentemente de seus conceitos e expectativas organizadores, nem poderia o ser social reproduzir-se por um único dia sem o pensamento. O que queremos dizer é que ocorrem mudanças no ser social que dão origem a experiência modificada; e essa experiência é determinante, no sentido de que exerce pressões sobre a consciência social existente, propõe novas questões e proporciona grande parte do material sobre o qual se desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados. (THOMPSON,1978, p. 16)
É nesta perspectiva ainda que se dá a aproximação com as ideias de Scott (2013): seus conceitos de discurso oculto em contraposição a um discurso público que os subalternos empreendem na sua resistência cotidiana contra a dominação foram importantíssimos ao me deparar com os cerca de 18.000 e-mails de denúncia, reunidos desde o ano de 2010, pelo SINTTEL-Rio (Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações do Rio de Janeiro), quando criou uma Central de Atendimento (e um e-mail exclusivo) para receber esse tipo de mensagem da categoria. Em primeiro lugar, pela opção do autor em privilegiar os temas da dignidade e da autonomia – “que têm sido normalmente considerados secundários face à exploração material”, segundo suas próprias palavras (SCOTT, 2013, p. 18). Esse era o grito principal que aparecia nas mensagens, a exigência da dignidade.
Além disso, seus conceitos permitem dialogar ainda com a noção de experiência, em Thompson, na perspectiva da ação humana com um determinado nível de escolha, mesmo sob determinadas condições.
Assim também, a própria ação sindical, especialmente com a representação dos trabalhadores terceirizados e com o processo de negociação empreendido com as empresas/sindicatos patronais desses segmentos – criando as comissões de negociação com a participação de trabalhadores da base e levando grande parte das reuniões bilaterais a acontecerem na sede do sindicato, com a ampla participação deste grupo – poderia ser compreendida dentro desse espectro e significar, como Tilly et al. (2009) propõem, um novo repertório no enfrentamento da luta de classe que se mostra em tamanha desvantagem, na atualidade, para a classe trabalhadora.
No caso dos trabalhadores em telecomunicações do Rio, como seria possível pensar a sua vivência e experiências de precarização do trabalho e formas de resistência?
Os dados que conseguimos reunir a partir dos documentos (em especial as fichas de rescisão; Acordos e Convenções Coletivas) disponibilizados pelo Sinttel-Rio e através dos vários contatos com os/as trabalhadores/as e dirigentes sindicais (nos 520 questionários junto aos demitidos, nas entrevistas, reuniões, plantões sindicais nas empresas) confirmam o que inúmeros estudos sobre o setor das telecomunicações, especialmente a partir dos anos 2000 (ANTUNES, 2006; WOLFF; CAVALCANTE, 2006; NOGUEIRA, 2006; VENCO, 2009; ANTUNES e BRAGA, 2009; BRAGA, 2012; DIEESE, 2009; 2014), também destacam: que as transformações advindas da reestruturação das telecomunicações brasileiras no contexto da crise estrutural do capital afetaram profundamente a organização do trabalho nesse setor.
Especialmente a partir dos anos 2000, no período pós-privatização, há a consolidação ou amadurecimento de um modelo que, em consonância com as análises gerais, tem no desemprego – ou nas formas precárias de emprego – um de seus elementos principais. Além do ajuste quantitativo no número de trabalhadores, essa medida implicará, também, numa mudança no perfil da categoria, seja quanto ao gênero, idade, escolaridade, remuneração, assim como também no nível de participação sindical e política.
Em primeiro lugar, o desemprego continua a atuar como um importante instrumento do capital no controle do trabalho, não apenas para aqueles imediatamente afetados por ele, mas também – de forma educativa (no sentido gramsciano das relações hegemônicas como relações pedagógicas), ou, como diz Alves (2011, p. 22), pela cultura do medo – “desestabilizando os estáveis” (CASTEL, 2008, p. 527).
Os números das demissões no Rio de Janeiro, desde a privatização, ganham uma proporção inimaginável. Entre 1998 e 2001, só na antiga Telerj, foram demitidos cerca de 12 mil trabalhadores (RODRIGUES, 2002). Essa foi uma mudança tão radical que altera, inclusive, o espaço físico do sindicato, com a criação do Setor de Homologação, que passa a ocupar uma área significativa no primeiro andar de um dos prédios da sua sede. Isso porque até a privatização, as homologações eram realizadas nas próprias empresas (Telerj e Embratel), como pudemos verificar nos Acordos Coletivos analisados, em dois dias da semana, entre 10 e 12h. E a realidade pós privatização passa a ser de homologações diárias, às vezes reunindo até mil trabalhadores/as num único dia.
Particularmente entre 2012-2015, quando tivemos acesso aos relatórios mensais do Setor de Homologação do Sinttel-Rio, essa estratégia transparece de forma clara: em quatro anos, 72.158 (setenta e duas mil, cento e cinquenta e oito) demissões foram homologadas no sindicato, sem considerar aquelas dos/as trabalhadores/as com menos de 1 ano de trabalho, cuja homologação não precisava ser feita no sindicato8.
E dentre os demitidos, são os/as trabalhadores/as das empresas terceirizadas os mais afetados: novamente, estudo do DIEESE (2009) aponta o índice de 31% de rotatividade da mão de obra no setor, subindo para 41% no teleatendimento. O que se confirma quando desdobramos o número total de demissões pelas empresas no Rio de Janeiro: dos mais de 72 mil demitidos no período analisado, a maioria era composta por trabalhadores/as das empresas terceirizadas, em especial as empresas de teleatendimento, que reuniam mais que 40% de todas as demissões. Considerando os 520 questionários respondidos em 2015, temos um total de 86,6% de demitidos nas empresas terceirizadas e 13,4% nas operadoras.
Mas, para além do desemprego – e também de forma associada a ele – a flexibilidade da força de trabalho tem na terceirização uma de suas faces mais agudas. Nesse sentido, os dados de 2014 da subseção DIEESE-FENATTEL sobre o número de trabalhadores diretos e o número de trabalhadores em empresas terceirizadas é um item muito significativo na perspectiva de elucidar aspectos fundamentais da precarização que vem predominando nas relações de trabalho atualmente: tomando apenas as duas maiores operadoras, Vivo e Oi, temos, respectivamente, a primeira com 20.878 trabalhadores diretos9 e 114.603 trabalhadores em empresas terceirizadas; e a Oi, com 18.947 trabalhadores diretos e 148.298 trabalhadores em empresas terceirizadas (DIEESE, 2014)10.
Tal desproporção tem, para o conjunto dos trabalhadores do setor, uma série de consequências que vão desde desigualdades no nível salarial, nos benefícios (como tíquetes refeição/alimentação, plano de saúde, auxílio creche, dentre outros), na participação/liberdade sindical, até o desrespeito à legislação trabalhista, no que se refere ao recolhimento do FGTS, INSS, férias; ao cumprimento das normas de segurança e regulamentadoras de funções.
No que se refere ao perfil dos/as trabalhadores/as podemos dizer que essa desproporção (ou o que denominamos como diferença desigual) entre operadoras e terceirizadas também se mantém: especialmente quanto à idade, gênero, raça, escolaridade, salário, tempo de trabalho, há uma experiência no trabalho (e na demissão) profundamente desigual. Pelas fichas de rescisão e nos questionários aplicados junto aos demitidos, chegamos a um perfil de trabalhadores estáveis (das operadoras) e precários (nas prestadoras de serviço e no teleatendimento – terceirizadas), que confirma a histórica desigualdade de gênero/racial/geracional do mercado de trabalho brasileiro.
Do ponto de vista de gênero, as mulheres foram mais demitidas (56,5% das respondentes do questionário, e 52,1% nas fichas de rescisão, considerando o ano de 2015). Quando as localizamos nas empresas, elas são a maioria no Teleatendimento (69,3%), segmento que concentra também os menores salários (62,6% dos respondentes do questionário recebem 1 salário mínimo); a menor permanência no trabalho (Atento, 62,2% entre 1 e 3 anos); o maior contingente de negros/as e pardos/as (em torno de 70%). O mesmo se pode dizer da escolaridade, onde é predominante o Ensino Médio (Atento, 57,2%; Contax, 55,9%).
Quando comparamos este perfil com o dos/as trabalhadores/as demitidos/as das operadoras, em primeiro lugar, ali estão os trabalhadores majoritariamente brancos (81,8% na Claro; 61,2% na Vivo; 60% na Oi); com maior escolaridade (na Oi, 75,5%; Claro, 54,5% tinham o ensino superior); com maiores salários (de maneira geral, 30% dos respondentes recebiam 3 salários mínimos ou mais); com maior permanência no trabalho (de novo, a Claro, tinha 59,7% com 5 anos ou mais).
Tais elementos são, a nosso ver, um desafio tanto no nível prático, para as organizações sindicais, que devem lidar com essa diferença/desigualdade entre trabalhadores de uma mesma categoria, quanto no nível teórico, com o cuidado de não simplificar a análise sobre a ação dos trabalhadores, relacionando, por exemplo, a condição mais precária com uma imediata dificuldade de organização, pois, se é verdade que o medo do desemprego pode dificultar a capacidade da organização e participação coletivas, por outro lado, ao analisar essa realidade concreta, pudemos perceber que foi exatamente nos dois segmentos mais precarizados – Teleatendimento e Prestadoras de Serviço – é que aconteceram greves e paralisações nos últimos anos, no Rio de Janeiro, enquanto nas operadoras o sindicato vem tendo maior dificuldade na sindicalização e mesmo na mobilização para as campanhas salariais e outras atividades de caráter organizativo11.
Se os dados estatísticos nos possibilitaram definir um perfil do trabalho precarizado nas telecomunicações do Rio de Janeiro, como os/as trabalhadores/as vivenciam essa condição e como explicar as suas formas de resistência e as ações coletivas?
Scott, em seu livro A dominação e a arte da resistência, afirma que
todos os grupos subordinados criam, a partir da sua experiência de sofrimento, um “discurso oculto” que representa uma crítica do poder expressa nas costas dos dominadores. [...] Mesmo no caso da classe trabalhadora contemporânea, dir-se-ia que as afrontas à dignidade pessoal e o controle apertado do trabalho assumem, nos testemunhos de situações de exploração, uma importância equivalente a outras preocupações mais específicas relacionadas com o trabalho e a remuneração. (SCOTT, 2013, p. 18-19)
Por isso, ao ter contato com os e-mails de denúncias, na sua complexidade e diversidade, com os discursos que eram verbalizados de maneira clara e indignada, pensamos que essa seria uma maneira de ter acesso, de certa forma, a uma parte desse discurso oculto dos trabalhadores em telecomunicações do Rio de Janeiro.
Na verdade, a percepção desses e-mails como discursos ocultos nos chegou a posteriori, uma vez que primeiro nos surpreendemos com as falas (e a própria disposição para a paralisação de suas atividades de trabalho, nestes dias) dos trabalhadores e trabalhadoras nas duas greves do teleatendimento (nos anos de 2014 e 2016) – e em como as mesmas lhes davam uma sensação de alívio por reagirem, ainda que momentânea e localmente, ao que os próprios trabalhadores chamaram de exploração, humilhação e assédio. O mesmo era perceptível na participação dos trabalhadores das Prestadoras de Serviço de Rede na Comissão de Negociação do mesmo segmento, enfrentando o debate com os representantes patronais de forma muito tranquila e à vontade e, às vezes, de maneira até jocosa.
Então, foi um olhar retrospectivo que, a partir de uma prática mais coletiva, permitiu que pudéssemos compreender aquelas falas não apenas como um relato resignado da sua condição de explorado, muito embora esta condição não fosse também negada.
De xxxxxxxxxxxxx
Para denuncia@sinttelrio.org.br
Data 05.02.2015 07:37
Olá
Venho por meio desta fazer uma denúncia sobre a empresa que eu trabalho.
Acho que ja passou dos limites e está sendo abusivo da parte deles. A pressão foi tanta que com cinco meses me vi com síndrome do pânico diagnosticada pelo psiquiatra.
Nao podemos colocar pausas particulares, temos que pedir permissão para ir ao banheiro e se passar de tres minutos é descontado do nosso salário.
Somos oprimidos a vender e quando vendemos fazem monitorias e nos zeram, tirando assim a maior parte da comissão, desmotivando totalmente o trabalhador.
E se contestamos o que está acontecendo, a equipe gestora nos diz que os últimos que tentaram fazer isso foram mandados embora.
Queria saber, como cidadã, que meios posso tomar. preciso do trabalho, mas também preciso da saúde para trabalhar.
Aguardo resposta
Obrigado
A mensagem12 acima destaca o quanto o trabalho pode estar associado, na percepção do trabalhador, à perda de sua condição de saúde, ainda que tal crítica possa estar circunscrita à sua única e própria realidade. No entanto, seguindo a leitura também encontramos no seu final uma solicitação de que o sindicato lhe oriente sobre que meios tomar para enfrentar essa situação que ele considera que chegou num limite. Assim como essa, a maioria das mensagens analisadas no ano de 2015 assumem tal característica, apontando para uma relação com o sindicato numa perspectiva de confiança ou, ao menos, como referência para orientação política.
A partir das mensagens, as relações precárias de trabalho assumem ainda mais materialidade, que pode ser notada já quando os nomes das empresas denunciadas são citados e as relações entre elas e a principal operadora, Oi, vão deixando transparecer os efeitos da terceirização para os trabalhadores. A ideia da empresa neoliberal em rede que Alves (2011, p. 23) e Braga (2012, p. 185) utilizam para explicar a nova realidade da produção cada vez mais socializada (em níveis organizacionais discordantes e combinados), ganha um sentido material, nesse caso, onde a condição da grande massa de trabalhadores que atuam nas empresas prestadoras de serviço às operadoras seria de maior suscetibilidade à dessocialização no precário mundo do trabalho.
Ao mesmo tempo, também ganha mais materialidade a ideia de que os trabalhadores empreendem uma resistência cotidiana à dominação do capital. Resistência que pode ser percebida, na mensagem abaixo, através de uma preocupação com o conjunto dos colegas de trabalho (de lhes passar a informação, contrariando a orientação da chefia); de, de novo, ter no sindicato uma referência de informação e possível fonte de orientação, o que parece nos indicar que o campo de batalha de que nos falou Harvey (2011) é, sim, um espaço de disputa no qual o trabalho também atua.
Mensagem 2907 de 17961 Data/Horariodeenvio:29/1/2015 22:50:07
Nome:Xxxxx E-mail:xxxxx@hotmail.com Empresa:xxxxx Mensagem: boa noite, a cerca de um mês li a noticia no site de vcs para não assinarmos nenhum tipo de papel sobre mudança na jornada de trabalho, pois bem, esse papel chegou em Petrópolis hj dia 29/01/2015 e o supervisor passou para todos assinarem dizendo que foi acordado entre a xx, xxxxxxxx e sinttel. Como li o assunto no site instruí os técnicos para não assinarem, mas já estamos trabalhando na nova escala de trabalho que eles criaram, só que tem um diferencial, quando o técnico é escalado para trabalhar no domingo ele não folga no sábado e nem no meio de semana, ele só folga no outro domingo, totalizando 13 dias de trabalhos consecutivos. Gostaria de saber qual posicionamento devemos tomar? aguardo uma resposta!! obrigado!
Os e-mails recebidos pelo sindicato indicaram, em sua leitura, uma série de ações ou respostas dos trabalhadores que, mediante as humilhações sofridas nos locais de trabalho, agiram no que Scott (2013, p. 278) também denominou como uma “inobediência prática”, que ia desde o abandono da PA (Posição de Atendimento); à não assinatura de alguma advertência; à falta por não recebimento do Vale transporte ou do combustível, no caso das prestadoras de serviço de rede; à falta quando escalado para o trabalho em feriado ou domingo, sem o prazo definido no Acordo – todas ainda no campo do chamado discurso oculto, entendido também como práticas que dissimulassem e resistissem ao controle e à dominação.
Mas, às vezes, como as próprias mensagens vão nos confirmando, esta situação se torna insustentável e é preciso ir além, com ações que enfrentem mais drasticamente tal controle. É assim que compreendemos a participação desses trabalhadores nas greves13 do Teleatendimento.
Da ocultação passa-se a uma sucessiva publicização, na qual os/as trabalhadores/as vão treinando seu discurso, de forma que no dia da greve aparece uma clara ruptura da fronteira que separava as formas ocultas de denúncia das precárias relações de trabalho, por um discurso público em que se experimenta a liberdade de dizê-las de uma vez, encontrando nos colegas a solidariedade de quem também vive a mesma situação e já não a suporta mais:
Comparecimento de horas? Não aceitam. A gente tem que desmaiar na PA. Minha amiga passou mal no trabalho, tremendo, e afirmaram que ela estava apta prá trabalhar. O que é isso? Escravidão. Escravidão é na Contax. A gente aqui ainda é gato pingado, entendeu, mas ainda pode fazer a diferença. (Palmas) (Trabalhador ao microfone, Greve- Contax Mauá)
Minha filha ficou doente, ficou com infecção, tava difícil de descobrir o motivo e eu fiquei 5 dias. Trouxe o atestado e eles abonaram só 1 dia. Eles falaram que agora o atestado de filho só pode 1 dia a cada 6 meses. Quer dizer, quem tem 2 filhos, tem que programar: - “Você fica doente aqui, o próximo só daqui a seis meses.” (Palmas) (Trabalhadora, ao microfone, Greve – Contax Mauá)
Se as falas acima combinam perfeitamente com o teor das mensagens recebidas nos e-mails de denúncias do sindicato, as seguintes, seja pelo tom da brincadeira crítica (que a música permite veicular), seja por um discurso mais politizado, trazem novos elementos para aquele momento de publicização do discurso dos trabalhadores do teleatendimento, reforçando e reafirmando a dignidade desse trabalhador.
Não deixe a greve morrer
Não deixe a greve acabar
Hoje é dia de greve
Ninguém vai se “logar”.
(no ritmo de “Não deixe o samba morrer”)
Essa mobilização aqui é importante porque nós precisamos mandar dois recados para a direção da Contax: o primeiro é que eles precisam conhecer melhor a Constituição Brasileira e saber que a escravidão acabou no Brasil, porque eu acho que alguns gestores da nossa empresa ainda não compreenderam é que muitas coisas que acontecem, não só neste site, mas em outros, nos remetem à escravidão que existia em nosso país. O segundo recado que a gente precisa dar para todos que estão lá em cima, é que existe aquele velho ditado que só a união faz a força. Se até agora pedir não deu jeito, a gente só tem um caminho, que é o caminho da paralisação, que é o caminho da mobilização, que é construir uma grande greve dos teleoperadores, prá mostrar que a gente não vai aceitar certas coisas que estão acontecendo aqui. Se for passar a lista de reclamações que a gente tem contra a empresa, a gente vai ficar aqui até amanhã. São absurdos e absurdos que acontecem e não dá mais prá gente ficar calado. (Palmas) (Rapaz com microfone Greve – Contax Mauá)
Com isso, voltamos à discussão de grande parte das questões que vimos tratando até aqui sobre as relações precárias de trabalho nos segmentos terceirizados: será que podemos dizer que, depois da experiência da greve – e de um momento especial de publicização desse discurso oculto da exploração – surgiu um novo tipo de agir, menos determinado pelas condições e mais potente individual e coletivamente? De que maneira seria possível percebê-lo? Na verdade, os documentos analisados, a participação nas atividades, as entrevistas realizadas nos indicam que é preciso pensar e entender esse agir no conjunto das estratégias sindicais desenvolvidas no período pós privatização, que combinam práticas sindicais tradicionais, com novos repertórios de ações, lutando para representar os terceirizados e atentos a novas temáticas (juventude, mulheres, racial e LGBT), traduzidas, inclusive, em pautas dos Acordos e Convenções Coletivas14.
Todas as transformações das últimas décadas do século XX e início do século XXI, trouxeram efeitos sobre o trabalho e as suas organizações, especialmente as sindicais, que tiveram muita dificuldade para enfrentar esse novo cenário. Como apontam Ramalho e Santana (2003, p. 12), “os novos tempos pareciam trazer um novo tipo de sociabilidade que se contrapunha a quaisquer possibilidades de participação de corte coletivo e público.”
Mas, apesar das grandes dificuldades, não é razoável dizer que vivemos um declínio ou decadência do movimento sindical. A pesquisa junto às/aos trabalhadores/as de Telecomunicações e ao Sinttel-Rio nos indica exatamente este movimento. O sindicato existe, não como uma instituição estática, fechada, mas que é permeada pela interação conflituosa dos sujeitos que a constituem com os seus adversários, ou mesmo com outros atores com papeis de destaque em determinado contexto.
No caso das telecomunicações, em especial, no Rio de Janeiro, local estudado em nossa pesquisa – a ação sindical priorizada pelo SINTTEL-Rio esteve centrada, inicial e principalmente, na negociação coletiva em busca de garantir Acordos e Convenções Coletivas de Trabalho que trouxessem de volta à base de representação do sindicato aqueles trabalhadores expulsos com a privatização (trabalhadores da Rede e telefonistas - transformadas em teleatendentes); em segundo lugar, que possibilitassem um enfrentamento da condição de precariedade que a terceirização generalizada e maciça destes segmentos havia produzido.
A pesquisa também possibilitou ver que os trabalhadores têm o que falar sobre o seu trabalho e as condições nas quais o exerce, e quase sempre o fazem, de maneira crítica, mas precisam que haja espaços nos quais os seus discursos ocultos possam ser conhecidos. O sindicato será um desses espaços, na medida em que estiver aberto e disposto a se preparar, continuamente, para acolher as novas demandas e entender essa nova realidade do trabalho, na perspectiva de uma ação política mais efetiva. Assim como a academia, que como provocaram Beaud e Pialoux (2009), deve voltar à fábrica para ver que os trabalhadores permanecem na batalha.
Às/aos dirigentes, representantes de base e funcionários do Sinttel-Rio, por disponibilizarem o acesso a todos os documentos necessários à pesquisa, além de suas próprias experiências de trabalho, que foram fundamentais para o conhecimento daquela realidade.
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