EDITORIAL
Crise Sanitária, Territórios E Pobreza
Health Crisis, Territories And Poverty
O que é verdade em relação aos males deste mundo é também verdade em relação à peste. Pode servir para engrandecer alguns. No entanto, quando se vê a miséria e a dor que ela traz, é preciso ser louco, cego ou covarde para se resignar à peste (CAMUS, 2017, p.120).
Desde os tempos primordiais, em diferentes contextos e nas mais diversas regiões do planeta, as doenças impactaram significativamente os processos de reprodução social. Dos grandes êxodos das sociedades pré-históricas até a expansão dos impérios, com a globalização dos conflitos armados, a movimentação de grandes contingentes de pessoas e o avanço incontrolado do homem sobre a natureza favoreceram a disseminação de todo o tipo de moléstias, “deixando atrás de si um rasto de morte, destruição e miséria” (ESTEVES, 2021, p 14).
Essa lista interminável de surtos, epidemia e pandemias enfrentadas pela humanidade seguiu fatalmente seu curso neste primeiro quarto do século XXI, marcado desde seu início pelos surtos epidêmicos de SARS-1, cólera, Ebola, Zica Vírus e outros. Nenhum, porém, foi mais devastador e aterrorizante quanto a pandemia da Covid-19, causada pela disseminação do vírus SARS-COV-2, ou Coronavírus, como passou a ser mundialmente conhecido, provocando uma crise sanitária mundial de dimensões catastróficas (LARA, 2020; ABRASCO, 2022). Desde a gripe espanhola, que acometeu tragicamente a humanidade entre 1918 e 1919, nenhuma outra doença havia acarretado um abalo de tão grandes proporções em escala global, tornando-se o principal acontecimento histórico no âmbito sanitário no século e, quiçá, na história humana.
O contexto em que ocorre a pandemia da Covid-19 ultrapassa em muito a relevância e o impacto dos grandes eventos que a precederam. A aceleração do aquecimento global e as mudanças climáticas, a expansão territorial e a duração de secas, o aumento na intensidade e frequência de chuvas torrenciais, a poluição urbana, os desastres naturais e tecnológicos vêm agravando as condições de vida de milhares de pessoas. Este cenário é exacerbado ainda pela guerra imperialista entre a Rússia e a Ucrânia, cujos abalos na economia mundial têm repercutido no preço de produtos essenciais como energia e alimentos, e ainda pela queda drástica nos salários mensais reais em vários países, reduzindo o poder de compra das classes médias e atingindo de forma particularmente severa as famílias de baixa renda.
A crise estrutural do capital, anterior à pandemia, com baixas taxas de crescimento, restrições fiscais derivadas de políticas de ajuste, austeridade e constrangimentos econômicos diversos, reduziu a “capacidade” dos governos nacionais, em responder às demandas necessárias à reprodução da vida social. Em boa parte do mundo, conforme constatou a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2021), os sistemas de saúde apresentavam enormes déficits para o enfrentamento de uma emergência sanitária dessa magnitude, especialmente nos países mais pobres, discriminados também no acesso às vacinas para o combate ao vírus. Os países ricos foram os primeiros a serem atendidos, em alguns casos muito acima da demanda local, em comparação à oferta escassa nos países mais pobres. Viveu-se um verdadeiro “apartheid sanitário”, sendo que em maio de 2021, ainda no auge da pandemia, os países ricos, que representavam 15% da população mundial, detinham 45% das vacinas, enquanto os países de baixa e média renda, representando quase a metade da população mundial, tinham acesso a apenas 17% das vacinas disponíveis. Além disso, é nos países mais ricos que se concentram os oligopólios da indústria farmacêutica, menos comprometidos com a preservação das vidas do que em estabelecer acordos econômicos mais alinhados aos interesses das elites financeiras globais.
No Brasil, a pandemia da Covid-19 escancarou as desigualdades regionais no acesso à saúde e à vacinação. Segundo dados da OXFAN (2022), no final de julho de 2022 80,1% da população estava totalmente vacinada, sendo o quarto país do mundo com o maior número de doses aplicadas, atrás apenas da China, Índia e Estados Unidos. Contudo, o estado mais rico do país, São Paulo, foi o único a atingir a meta de 90% de cobertura vacinal completa estabelecida pelo Ministério da Saúde. Na região Sul, apenas 16% dos municípios chegaram a mais de 80%. As cidades com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) tiveram menores taxas de vacinação, o que ratifica a distribuição desigual dos imunizantes, decorrente da desigualdade estrutural do país, de nossa precária democracia e, consequentemente, do frágil acesso ao direito à saúde.
Ao baque provocado pela pandemia soma-se a estagnação econômica, já anteriormente em curso no país. A crise sanitária somente agravou as condições precedentes, exponenciando as expressões da questão social. As novas configurações do capitalismo, a expansão do processo de financeirização e suas articulações na produção de superlucros levaram ao recrudescimento brutal das desigualdades, já crescentes nos últimos anos, aumentando o abissal fosso social e econômico entre ricos e pobres (LARA, MOTA, 2022). A progressiva desindustrialização fez crescer de forma vertiginosa o desemprego, a precarização, a queda de renda e o aumento da pobreza. Acentuou-se a “defasagem da renda e do trabalho em relação à renda do capital” (SORRENTINO, 2021, p.475), ampliando as assimetrias que marcam os vários eixos do padrão da desigualdade em saúde no Brasil e em outras áreas, não apenas entre regiões, mas entre os municípios que as compõem. Além disso, “agudizaram-se todas as contradições estruturais da formação econômica brasileira, de um Estado nacional profundamente conservador sob o controle dos círculos financeiros internacionalizados com os quais os setores econômicos brasileiros estão enredados” (Ibidem, p.476).
Como consequência, agravaram-se as já precárias condições de trabalho, com o aumento da informalidade, a intensiva exploração da força de trabalho, os altos índices de adoecimentos e mortes. Em comparação a outros países, as condições básicas de reprodução social, as desigualdades salariais e de habitação e a redução dos investimentos em políticas públicas fazem do Brasil um dos países com as piores condições de vida para a maioria da população. Segundo dados do IBGE (2022), a extrema pobreza bateu recorde em nosso país em dois anos de pandemia. Entre 2020 e 2021, o número de pessoas vivendo em situação de miséria teve um salto de quase 50%. No mesmo período, três em cada dez brasileiros passaram a viver abaixo da linha de pobreza, um acréscimo de 22,7% em comparação a 2020. Já o número de pessoas em situação de extrema pobreza lamentavelmente subiu 48,2% no mesmo período. De acordo com o 2° Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), entre o final de 2021 e início de 2022 o número de brasileiros que convive com a fome atinge a vergonhosa cifra de 33 milhões, demarcando o triste retorno do país ao mapa da fome.
Embora o vírus não faça distinção de classe social, as classes subalternas são, inegavelmente, as mais atingidas. Como escreve Harvey (2020), esta pandemia exibe todas as características de classe, gênero e raça e suas consequências recaem incisivamente sobre as populações mais pobres e vulneráveis, como idosos, indígenas, quilombolas, trabalhadores informais, privados de liberdade, refugiados, pessoas em situação de rua, moradores de favelas e comunidades ribeirinhas e periféricas. Além disso, segundo indicações da OMS (2021), há mais pessoas brancas que negras vacinadas contra o coronavírus no Brasil, apesar da população negra ser maior que a branca, o que demonstra o impacto direto das desigualdades e do racismo estrutural na vida de milhares de brasileiros excluídos do direito e do acesso aos serviços. Também a Agência Pública (2021) apontou para a discrepância da vacinação entre brancos e negros. Até março de 2021, 3,2 milhões de pessoas que se declararam brancas haviam recebido a primeira dose do imunizante contra o novo coronavírus; já entre os negros, esse número cai para 1,7 milhão. Embora os primeiros Boletins Epidemiológicos (BE) divulgados pelo Ministério da Saúde durante a pandemia praticamente ignoravam o campo “raça/cor”, os dados do Observatório Obstétrico Brasileiro COVID-19, notificados no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEPGripe) até 23 de março de 2022, revelam que, entre as gestantes e puérperas mortas por Covid-19, 54% eram negras. Mulheres negras também foram a maioria das gestantes contaminadas pelo vírus (56%), das que apresentaram casos mais graves da doença (48% do total de internações) e das que demandaram leitos de UTI (47,5% dos leitos entre as mulheres desse grupo). Tais evidências comprovam que o racismo, somado às condições precárias de existência, segurança alimentar, condições de trabalho, renda e moradia não são apenas determinantes sociais ou epidemiológicos, mas estruturais e estruturantes das desigualdades em nosso país.
Outro dado que merece destaque é “a geografia dos óbitos por COVID-19”, que acompanha o mapa da desigualdade social do país. Segundo pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), o cruzamento de dados de óbitos com os índices socioeconômicos dos municípios e locais de residência das pessoas falecidas revelam que sofreram mais diretamente as consequências da pandemia os quilombolas, os indígenas, os negros, os mais pobres, os residentes nos pequenos municípios e nas periferias das grandes cidades. A taxa de mortalidade no Brasil mostra, portanto, “que a maioria das mortes por COVID-19 tem idade, endereço, cor de pele e situação financeira bem definidos” (ABRASCO, 2022, p.87).
Ademais, o conservadorismo moralista e o negacionismo da ciência exacerbaram as dificuldades na contenção da pandemia e da crise sanitária, com repercussões inegáveis no campo ideológico-cultural e político, incubando, nas expressões de Gramsci (1999), “paixões bestiais”, “impulsos instintivos e violentos” introjetados como modo de vida e tornados senso comum. O governo federal, com sua ideologização anticientífica e uma clara ausência de coordenação nacional, sabotou abertamente o combate à Covid-19. Ao negar a gravidade da pandemia, minimizou a importância das políticas públicas, eximindo o governo de suas funções. O discurso negacionista associado a pauta de valores morais e costumes ultraconservadores e reacionários, foi potencializado pelos “múltiplos aparelhos privados de hegemonia”, pelas redes sociais, através da “guerra” ideológica instrumentalizada pelo então governo Trump, dos Estados Unidos, contra o “vírus chinês” e o fantasma da ameaça comunista. O negacionismo e a inação das autoridades governamentais, especialmente no Brasil, frente a uma doença que ceifou milhares de vidas, revelam os traços mais mórbidos e cruéis de um projeto político em seus traços neofascistas.
De Temer a Bolsonaro, chancelou-se a máxima do livre mercado como organizador da vida social e as contrarreformas caminharam para o desmonte das políticas públicas. A desconstrução do sistema protetivo brasileiro e das principais políticas setoriais, notadamente a Assistência Social (SUAS), o Sistema Único de Saúde (SUS), com destaque para a Atenção Básica e a Saúde Mental e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) agravou a crise sanitária, deixando a descoberto as camadas de classe dependentes dos serviços estatais. A despeito das diretrizes da PNSS/Covid-19 em se utilizar da pandemia como justificativa para emplacar uma agenda de fortalecimento do mercado de saúde suplementar, a resposta efetiva a seu enfrentamento não veio do setor privado e dos planos de saúde, mas do SUS e do legado das políticas públicas estruturadas nas décadas anteriores. Mesmo precarizado pelo crônico subfinanciamento ao longo dos anos e o desfinanciamento com a Emenda Constitucional n.º 95/2016, o SUS reassumiu sua potência como política pública, alicerçado nos princípios da universalidade no acesso, da equidade, da integralidade e da regionalização, estruturado em todos os municípios brasileiros (ABRASCO, 2022). Além disso, o valor do Auxílio Emergencial de RS 600,00 aprovado somente após enorme pressão das forças progressistas do parlamento, constituiu-se num dos pilares para enfrentar a crise humanitária sem precedentes e recuperar os direitos de uma cidadania em processo de corrosão.
Os argumentos e pressões neoliberais - “A economia não pode parar!”, “Basta o Estado mínimo!”, “O confinamento atrapalha o bom funcionamento dos mercados!” -, ou seja, a contabilidade entre vida e economia, como escreveu Zizek (2020), direcionaram as escolhas de diferentes governos, esvaziando o compromisso do Estado com a democracia e a cidadania. O Estado, no entanto, inevitavelmente voltou a ter centralidade no enfrentamento às dramáticas consequências da Covid-19, tanto nos países centrais quanto periféricos. A máxima de Hayek, de que o Estado deve centrar-se em normas gerais, deixando os indivíduos livres para implementar suas escolhas, foi selvagem nos trópicos, com a demonização do público e a supremacia do mercado sem limites e sem fronteiras sociais.
E mais uma vez Zizek (2020, p.9) nos previne, em seu desesperançado prognóstico: “uma coisa é certa: isolamento, novos muros e novas quarentenas não resolverão o problema”. A preparação para as prováveis, e já anunciadas emergências sanitárias futuras requer a defesa da ciência, o combate ao negacionismo introjetado nas diversas camadas de classe e à mentalidade reacionária e antidemocrática arraigada em nossa realidade, mas, sobretudo, tornar efetiva a presença do Estado na definição de uma agenda propositiva de políticas públicas, e não apenas na saúde, para antecipar-se aos desafios futuros e às travessias a serem realizadas, a despeito do elevado grau de incertezas e temores que nos impõe o tempo presente.
O conjunto de artigos reunidos neste número da Katálysis caminha nessa direção e apresenta, sob diversos ângulos, instigantes reflexões em torno dos efeitos deletérios da crise social e civilizatória agudizada pela crise sanitária que golpeou os vários continentes. Ao mesmo tempo, os temas abordados oferecem elementos preciosos para impulsionar o necessário e premente fortalecimento das instituições democráticas, do Estado de direito e das forças populares na constante luta para a preservação e a consolidação da democracia, da cidadania, dos direitos sociais e humanos, imprescindíveis na construção de um outro projeto civilizatório, pautado em igualdades e liberdades verdadeiramente substantivas.
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