EDITORIAL
Crise do capital, direitos humanos e luta de classes
A questão dos direitos humanos (DH) tem suscitado inúmeras polêmicas e desafios teórico-políticos que dizem respeito, além de outras delimitações, à concepção e à função social que podem assumir como estratégia de sobrevivência, de resistência e de luta da classe trabalhadora ou, de outro modo, como estratégia das classes dominantes para naturalização da desigualdade social e disseminação de sua dominação ideológica. Ao propor, portanto, o debate sobre direitos humanos no contexto da crise do capital, com o reconhecimento da luta de classes como motor da história, a Katálysis, neste número, por meio dos artigos ora publicados, nos convida à reflexão crítica do tema em suas múltiplas possibilidades, considerando: a crise do capital e suas implicações na vida de diferentes segmentos da população e em fenômenos como o feminicídio e o encarceramento em massa; as contradições postas na realidade; as características e tendências da barbárie capitalista e da decadência ideológica da burguesia e a pluralidade teórica de entendimento dos direitos humanos. O conjunto das questões que permeiam a crise estrutural do capital atinge, de forma destrutiva, o trabalho, a natureza, a subjetividade dos indivíduos e a organização coletiva da classe trabalhadora e, neste sentido, torna-se necessário pensar com a razão dialética para superar abordagens a-históricas e potencializar as contradições das lutas pelos direitos humanos, que favoreçam o processo de formação da consciência de classe, notadamente nas particularidades do Brasil e da América Latina.
Em relação à concepção de direitos humanos, temos reflexões críticas sobre a abordagem liberal dos DH 1 no ambiente, dentre outros, do pensamento marxista e das práticas políticas de esquerda, que, inclusive possibilitam a discussão das concepções, que buscam se diferenciar desta perspectiva. A abordagem liberal fundamenta o ideário burguês e ganha notoriedade ao conquistar, especialmente, por meio de imposições ideológicas, a capilaridade na vida cotidiana. São algumas de suas características, considerar o que está registrado na forma da lei (igualdade formal) como ponto de partida para pensar os indivíduos, a sociedade e as violações dos direitos. A ideia central deste pensamento consiste em naturalizar a desigualdade social e suas implicações na vida dos indivíduos, remetendo ao sujeito individual, as responsabilidades pelas condições de vida e de trabalho, descontextualizadas das relações sociais.
Entre as abordagens críticas ao pensamento liberal, destacamos a perspectiva economicista 2 que reduz o direito a epifenômeno das relações sociais capitalistas e concebe os DH como mera expressão do projeto burguês. Trata-se, pois, do entendimento de que a burguesia em sua avidez de controlar a vida social, dissemina ideologicamente valores, modos de ser e viver, tratando-os como se fossem universais. Assim, os direitos humanos nada mais seriam, que um dispositivo ideológico para disseminar os interesses e vontade política da burguesia, com o objetivo de naturalizar as condições materiais que geram a exploração da força de trabalho e a violação dos direitos. Ainda que haja concordância com o fato de as classes dominantes buscarem impor como universal seus interesses particulares e a tendência a naturalizarem os processos sociais, fazemos a crítica a este caminho economicista pela sua incapacidade de fornecer elementos à apreensão e análise da realidade, considerando a sua complexidade; as contradições; o conjunto de determinações que comparecem aos fenômenos; a relação dialética entre economia, política e cultura; a relação entre individualidade e sociabilidade e a existência de uma multiplicidade de sujeitos coletivos, com questões e reivindicações que expressam a barbárie capitalista. Tal realidade demanda níveis diversos de enfrentamento, incluindo dimensões teóricas e imediatas. Estas últimas se fazem notar nas situações de pauperização extrema (a exemplo dos indivíduos que estão sobrevivendo, submetidos à fome, ao desemprego, a nenhum acesso às políticas sociais, bem como às situações de violência em suas diferentes expressões). Leituras economicistas tendem a estabelecer fins heroicos para a classe trabalhadora, mantendo-se de costas ao cotidiano real desta classe.
Em confronto com esta concepção economicista, a perspectiva politicista, também forjada no ambiente do pensamento crítico, ao secundarizar as determinações econômicas, abriu caminho para a criação de um verdadeiro fetiche do direito, por supor que a dimensão jurídico-política se constituísse espaço real para a resolução dos conflitos sociais. Opera-se com o reconhecimento e a valorização dos sujeitos coletivos e suas reivindicações, mas a tendência teórico-política é de um tratamento fragmentário à realidade; tornando, como se fosse possível, o cotidiano, como um espaço-tempo autonomizado das determinações econômicas, próprias das relações sociais do mundo capitalista. Ademais, as lutas sociais, são entendidas, preferencialmente, numa relação de contraposição e até mesmo de negação da existência das classes sociais e da centralidade da luta de classes.
O ideário economicista opera com um nível padronizado de entendimento da luta de classes e como tal, desvaloriza a agenda da diversidade humana e os novos sujeitos políticos e movimentos sociais que se formaram/formam no calor da luta em defesa dos direitos humanos. O ideário politicista ao submeter as contradições presentes na realidade à resolução do Estado, deixa escapar o centro das determinações que explicam, em toda sua densidade histórica, a exploração da força de trabalho e as violações dos direitos e da diversidade humana. É a própria dinâmica da luta de classes em plena crise estrutural do capital que fica secundarizada.
No universo do marxismo, por meio da interação com o pensamento de Marx e de Lukács, notadamente com os fundamentos ontológicos desenvolvidos por este último tem sido possível superar reducionismos e simplificações no entendimento dos direitos humanos. E assim, reposicionar, de modo dialético, a função social do direito na sociedade capitalista, apreendendo a necessidade histórica, os limites e as contradições desse complexo social parcial. Segundo Mèszáros (1986, p. 197):
A ideia muito difundida de que o marxismo é um reducionismo econômico grosseiro, segundo o qual o funcionamento do sistema jurídico é determinado direta e mecanicamente pelas estruturas econômicas da sociedade, representa uma interpretação liberal da rejeição radical de Marx à concepção jurídica liberal. Certamente, ninguém poderia negar que Marx não tem nada a ver com a “ilusão jurídica”, que trata a esfera dos direitos como independente e autorregulada. Entretanto, a rejeição de uma ilusão não significa, de maneira alguma, que a esfera legal como um todo seja considerada ilusória.
Vejamos tão somente dois aspectos que, para fins deste editorial, consideramos importantes para contribuir na superação dessas três abordagens (liberal, economicista e politicista) que expressam limitações teórico-políticas na apreensão da vida social e em particular do complexo do direito na sociedade capitalista, bem como da própria ação do Estado e da relação entre DH, organização da classe trabalhadora e formação da consciência de classe. O primeiro aspecto é o desafio e a necessidade histórica quanto ao entendimento dos DH em uma perspectiva de totalidade. Isto implica em captar as relações contraditórias e de determinação entre o complexo social do direito e a totalidade social, com a devida articulação e síntese entre economia, política e cultura. Trata-se, pois, de superar “informações amplamente disseminadas como verdade, de que a defesa dos DH leva necessariamente a uma concepção politicista ou, de outro modo, de que a crítica aos DH é sempre uma crítica de base economicista e contrária aos DH” ( SANTOS, 2016, p. 63). O caminho teórico-metodológico fundado em uma perspectiva de totalidade tem sido fértil, também, no enfrentamento da perspectiva liberal e sua imposição do caráter de universalidade abstrata atribuído aos direitos humanos.
O segundo aspecto refere-se, justamente, a questão da universalidade, que tem sido alvo de reflexões no debate contemporâneo. Isso porque vários sujeitos, que se organizaram em torno da agenda dos DH, têm proclamado a crítica à noção de universalidade, identificada nos marcos da modernidade, dada sua incapacidade de considerar a pluralidade de temas, questões, sujeitos e reivindicações. Assume, desse modo, a caracterização de que se trata de um tipo de universalidade abstrata, que paira sobre particularidades, tais como as de raça, sexualidades, identidade de gênero; anticapacitista, dentre muitas outras. Na contramão desse ideário de uma universalidade abstrata, trata-se de apreender mediações fundamentais para alcançar uma concepção de universalidade concreta. O ponto de partida é o indivíduo em suas condições materiais de existência, o indivíduo histórico, social e diverso, de carne e osso. Sobre isso ao estabelecer a crítica à concepção de universalidade do sistema do capital, Sartori (2013, p. 15) afirma que:
Trata-se de uma forma de sociabilidade cujas soluções e resoluções encontram-se no campo da política e, assim, também no campo da dominação, por mais permeada por uma forma de universalidade que essa dominação possa estar. Tratando-se de uma sociedade calcada no antagonismo de classes e na divisão do trabalho [...] a forma pela qual a universalidade se apresenta não pode deixar de ter tons de particularismo, do particularismo da própria sociedade civil-burguesa.
A defesa estratégica dos direitos humanos 3 não se realiza aprioristicamente, por fora da dinâmica da luta de classes, mas no seu front, observando, o tempo todo, os limites da universalidade ilusória posta pelo capital. Exatamente por isso é tão significativo que a Katálysis possibilite neste número reflexões diversas e plurais sobre os direitos humanos. Estamos em pleno 2023, data em que comemoramos 30 anos do Código de Ética do/a Assistente Social, que em muito favoreceu a inserção dos DH na agenda profissional. Repõem-se questões históricas: é possível afirmar que os direitos humanos sirvam exclusivamente à reprodução dos interesses do capital? Ou que possam favorecer ganhos à classe trabalhadora? Como a cultura crítica construída no universo das Ciências Humanas e Sociais e, em particular no Serviço Social brasileiro, pode contribuir para superar alternativas que reproduzem formas de apreensão da realidade pouco complexas, ancoradas em determinismos, politicismos e numa concepção abstrata de universalidade? O legado de Marx e Lukács e de outros autores e autoras contemporâneos/as podem contribuir para o entendimento, no tempo presente, das complexas relações entre emancipação política e emancipação humana? Quais lições históricas podemos reter das lutas dos povos indígenas; das reivindicações que configuram o enfrentamento das relações sociais de classe, raça e sexualidades e do amplo espectro das lutas contra a violação da diversidade humana? Todas estas questões embalam o solo temático fundamental da luta por direitos humanos em sua heterogeneidade apresentada nos artigos que formam este número.
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