ARTIGO ORIGINAL
Intervenção precoce com crianças e famílias: desafio colaborativo para o serviço social
Early intervention with children and families: a collaborative challenge for social work
Intervenção precoce com crianças e famílias: desafio colaborativo para o serviço social
Revista Katálysis, vol. 27, e95113, 2024
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina
Recepção: 22 Junho 2023
Revised document received: 08 Fevereiro 2024
Aprovação: 21 Agosto 2023
Resumo: Neste ensaio realizamos uma autorreflexão da intervenção do Serviço Social na ANIP em famílias com crianças expostas a fatores de risco ambiental. Procedemos a uma revisão sistemática da literatura, salientando: (i) a importância da abordagem centrada na família e as suas interligações com as perspetivas dos sistemas transacional/ecológico e (ii) o contributo dos conceitos de Enabling/Empowering Families para a mudança de paradigma e, consequente, substituição de modelos clínicos/assistencialistas por uma intervenção onde a família emerge como elemento ativo/fundamental nos processos de mudança. Dos resultados destacamos: (i) os desafios colocados aos profissionais na implementação de práticas colaborativas junto das famílias e (ii) as exigências do trabalho em equipe de intervenção precoce, tanto ao nível do conhecimento dos referenciais teóricos subjacentes à mediação com famílias, como da capacitação para, quando em face de circunstâncias concretas, tomar decisões baseadas na evidência e nas especificidades das crianças/famílias, por forma a melhor responder às suas necessidades singulares.
Palavras-chave: Risco+ Crianças+ Intervenção Precoce+ Apoio Centrado na Família+ Serviço Social.
Abstract: In this essay, we carry out a self-reflection on the intervention of Social Work in ANIP in families with children exposed to environmental risk factors. We conducted a systematic review of the literature, highlighting (i) the importance of the family-centered approach and its interconnections with the transactional/ecological systems perspectives and (ii) the contribution of the concepts of Enabling/Empowering Families to the paradigm shift and, consequently, the replacement of clinical/welfare models with an intervention in which the family emerges as an active/fundamental element in the processes of change. From the results, we can highlight (i) the challenges for professionals in implementing collaborative practices with families and (ii) the demands of working in an early intervention team, both in terms of knowledge of the theoretical frameworks underlying mediation with families and in terms of training to make decisions based on evidence and the specificities of children/families when faced with concrete circumstances, in order to better respond to their unique needs.
Keywords: Risk, Children, Early Intervention, Family-centered Support Model, Social Work.
Introdução
A Intervenção Precoce na Infância (IPI) objetiva prover apoios e recursos às famílias de crianças entre 0 e 6 anos, com atraso de desenvolvimento, incapacidade ou risco grave de atraso de desenvolvimento por condições biológicas e/ou ambientais, envolvendo ativamente as redes de apoio social formal e informal. A especificidade desta intervenção reside na sua filosofia e na forma como os profissionais a aplicam no seu trabalho com as crianças e as suas famílias. Um dos principais desafios passa por prestar serviços de qualidade às crianças e respectivas famílias, conforme as necessidades por elas manifestadas em diferentes momentos do seu percurso.
Neste artigo, retomando algumas das reflexões desenvolvidas no âmbito do mestrado em Serviço Social, realizado no Instituto Superior Miguel Torga (Coimbra, Portugal) em 2019, busca-se efetuar uma reflexão que pretende ser útil aos profissionais a exercerem funções na intervenção precoce (IP), em especial aos assistentes sociais integrados no Sistema Nacional de Intervenção Precoce na Infância (SNIPI). Ao nível metodológico, optamos por uma abordagem qualitativa, com o recurso a uma metodologia mista de tipo dedutivo, buscando suportar as exegeses desenvolvidas numa revisão sistemática da literatura disponível em distintas bases de dados científicas. E indutiva, suportada na análise documental e observação participante nos contextos de intervenção da Associação Nacional de Intervenção Precoce (ANIP).
Quanto ao modo como o texto se encontra estruturado, num primeiro momento, tomando em consideração os modelos teóricos que enformam as práticas em IPI, pontuamos os principais referenciais teóricos que contribuem para uma melhor compreensão dos mecanismos subjacentes à IP e ao seu impacto ao nível individual, familiar e social. Refletindo a mudança progressiva da metodologia de intervenção e, consequente, deslocamento do foco da criança para o todo “criança/família”, dentre os mesmos, destacamos os modelos Transacional Ecológico e de Apoio Centrado na Família. Num segundo momento, apresentamos um breve referencial histórico da IP em Portugal, visando dar conta da qualidade das práticas de IPI implementadas no nosso país e do seu, consequente, reconhecimento internacional. Por fim, deslocando o olhar para o Serviço Social, intentamos realizar uma autorreflexão da intervenção do Serviço Social na ANIP. É nosso objetivo problematizar o modo como as mudanças ocorridas na IP exigiram o reequacionar das práticas/papéis do Serviço Social. Salientando a intervenção profissional junto à família enquanto desafio colaborativo, busca-se enfatizar e refletir sobre a importância do desempenho dos assistentes sociais em estruturas de IP, numa ótica de prossecução e promoção de práticas profissionais de qualidade direcionadas para as crianças.
Modelos de desenvolvimento humano: contributos para uma intervenção precoce qualificada
Para compreendermos a complexidade mediadora da intervenção profissional no âmbito da IPI, temos de tomar em consideração os diferentes modelos conceptuais enquadradores da mesma. Na primeira geração de programas de IPI, encontramos o modelo biomédico. Inspirando-se numa visão mecanicista do ser humano, centrava-se, de modo redutor, na criança e nos seus déficits. Ao profissional perito competia evitar o agravamento, a “reparação”, correção e/ou a eliminação dos déficits inerentes à criança. Posteriormente, viriam a ganhar relevância outros modelos que, focalizando-se na família, contribuíram para a promoção de uma intervenção sustentada numa visão integral do indivíduo nas suas dimensões física, psicológica e social. Assim, por ser notória a sua validade na primeira infância interessa, então, abordar os modelos que, ao valorizarem a ação dos contextos e as suas trocas relacionais na promoção do desenvolvimento humano, se consubstanciam como um apport importante para a intervenção junto das crianças/famílias.
Modelo transacional de desenvolvimento
Visando explicar as variações do desenvolvimento apresentadas por bebês em risco, Sameroff e Chandler (1975) formularam o modelo transacional. Conforme esse modelo, o processo de desenvolvimento só era passível de explicação tendo por base a reciprocidade do impacto dos contributos (biológicos e ambientais) e a sua variação em função do tempo (Serrano, 2007). Por comparação ao modelo biomédico, a inovação residiu na importância atribuída à “herança” genética e aos efeitos do meio no processo de desenvolvimento da criança. Sendo este um processo interativo, as experiências proporcionadas pelo ambiente deixaram de ser consideradas independentes da criança. O desenvolvimento passou a ser interpretado com o recurso a uma análise onde se conjugava a predisposição genética com os efeitos do envolvimento familiar e social a que a criança se encontra exposta. Quer dizer, o desenvolvimento não é o produto exclusivo da criança, nem do contexto experiencial por si só. É, isso, sim, o corolário da interação entre a criança e o meio. Das transações dinâmicas e contínuas da mesma com as experiências proporcionadas pela família e pelo contexto social (Carvalho et al., 2016).
Ao tornar-se parte ativa deste processo bidirecional, a criança deverá desenvolver processos de regulação1 do desenvolvimento que lhe permitam adequar-se aos diferentes níveis do ambiente experiencial aos quais está sujeita. Este sistema de regulação individual “interage com os outros sistemas reguladores, que correspondem aos contextos da ecologia social da criança, nomeadamente a família, os contextos educativos, a vizinhança, a comunidade […] que se influenciam mutuamente” (Sameroff apudCarvalho et al., 2016, p. 41).
A aplicação desse modelo à experiência de vida da criança revela-se extremamente útil na intervenção com crianças em situação de risco e/ou com deficiência, visto pressupor a aceitação não só da influência dos fatores ambientais na mutação de defeitos biologicamente determinados, mas, também, a existência de vulnerabilidades desenvolvimentais com uma etiologia ambiental (Meisels; Shonkoff apudPimentel, 2005, p. 32)2.
Em suma, a criança em desenvolvimento participa, interage e reorganiza o contexto (físico, social) onde está inserida. Não obstante o material genético, o desenvolvimento acontece. Sameroff e Fiese (2000) consideram que, tal como os fatores biológicos (genótipo e fenótipo) exercem a regulação do desenvolvimento físico, também a inserção do ser humano na sociedade é regulada pela família e a organização social onde esta se encontra - environtype/mesótipo. As experiências fornecidas pelos fatores ambientais modificam as situações de risco. Tanto podem minimizá-las, como agudizá-las se a criança estiver inserida num ambiente inibidor.
Modelo ecológico do desenvolvimento humano
Plasmando a segunda geração de programas de IPI, a ecologia do desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 1979, 1986) consubstanciou uma mais-valia para a compreensão do processo desenvolvimental. O enorme acrescento deste modelo, residiu no reconhecimento da existência de um processo interativo permanente entre os indivíduos e os vários sistemas nos quais se vão progressivamente inserindo. O desenvolvimento é apreendido como processo interativo onde a criança é um agente ativo. Não mais somente um ser que é influenciado (mero receptor), mas que intervém provocando mutações nos distintos ambientes com os quais interage.
Os contextos de enquadramento e a interação estabelecida com o ambiente explicam o modo diferenciado como cada sujeito se desenvolve (Portugal, 1992)3. O microssistema, mesossistema, exossistema e o macrossistema constituem pilares estruturais do ambiente ecológico. O primeiro, englobando as interações com o ambiente vivenciadas e percepcionadas no imediato pela criança (e.g. casa, creche, escola…), remete para os papéis, relações interpessoais4 e atividades experienciadas pela criança no contexto em que habitualmente funciona. Não tendo existência própria, o mesossistema plasma as inter-relações entre os contextos, onde a criança participa ativamente (e.g. as interações entre a família, escola e grupo de amigos). As relações entre os pais e os educadores, o modo como os pais se relacionam e comunicam com outros membros da comunidade, tem repercussões na criança e na família. As interações dos sistemas influenciam os resultados de desenvolvimento da criança, sendo que esta influência sobressai cada vez que a criança e a sua família negoceiam as suas trocas nas rotinas diárias. Apesar de não implicar a participação, envolvimento ativo da criança, o exossistema também afeta o seu desenvolvimento (e.g. o ambiente, condições de trabalho do pai ou da mãe, os órgãos de gestão da escola, a família alargada, entre outros). Os acontecimentos destes ambientes afetam ou podem ser afetados por aquilo que acontece nos outros sistemas. Por fim, o macrossistema é um complexo de estruturas e atividades que decorrem em contextos concretos, relacionando-se com um sistema de valores, crenças, estilos de vida, e a cultura ou subcultura de uma sociedade (Correia; Serrano, 1998; Portugal, 1992).
Resumindo, a ecologia do desenvolvimento humano fornece um quadro conceptual que permite compreender a interação criança/mundo e o seu desenvolvimento (Portugal, 1992). Assim, o processo de desenvolvimento só pode ser apreendido na sua complexidade a partir do momento em que tomemos em consideração tanto as características biológicas e psicológicas como “o comportamento da pessoa em desenvolvimento no sistema ecológico”, ou seja, “o papel que os indivíduos desempenham na modificação dos contextos nos quais participam” (Carvalho et al. 2016, p. 47).
Modelo de apoio centrado na família
Não descurando os apports dos modelos transacional e ecológico, na década de 90 emergiu, então, a terceira geração de programas de IPI por via das práticas de prestação de ajuda inerentes ao modelo de apoio centrado na família, baseado nos contextos naturais e nos recursos da família (Correia; Serrano, 1998).
As investigações de Dunst (1997, 1998) corroboraram a importância da focalização da intervenção no suporte prestado aos pais, na obtenção de serviços e na promoção de capacidades facilitadoras da adaptação e desenvolvimento da família e da criança5. Segundo este modelo, a identificação e o estabelecimento das necessidades e prioridades da família consubstanciam-se como os elementos-chave para o reforço do núcleo familiar, numa dimensão de corresponsabilização6 e capacitação dos diversos elementos familiares.
As práticas de ajuda centradas na família promovem experiências e oportunidades no sentido de tornar a família mais capaz, corresponsável e autônoma na ativação de recursos comunitários, com o fim de satisfazer as suas necessidades e aspirações. Contribuindo para o fortalecimento das competências da família, propiciam o controlo e o domínio sobre aspetos importantes do seu funcionamento (Dunst; Trivet apudCarvalho et al., 2016).
Genericamente, para este modelo o apoio social, à disposição das famílias, influencia o seu bem-estar, funcionamento e o desenvolvimento da criança. O profissional, adotando um posicionamento mais colaborativo, deverá não só identificar as necessidades e aspirações da família7, conhecer o seu estilo de funcionamento, pontos fortes, valores, sistema de crenças, cultura, como também identificar fontes de apoio na comunidade. Será a relação entre estes fatores que irá regular a ajuda prestada para capacitar e corresponsabilizar a família.
Para uma prática profissional mais sustentada, o profissional deverá orientar a ação conforme os seguintes princípios-chave:
1 - Identificar as aspirações e projetos da família, adotando os procedimentos necessários e as estratégias de avaliação, baseados nas necessidades para determinar o que a família considera suficientemente importante para merecer o seu tempo e a sua energia.
2 - Promover as capacidades da família, realçando aquilo que esta faz bem e determinando os pontos fortes que aumentam as probabilidades de mobilizar recursos para satisfazer necessidades8.
3 - Construir o mapa da rede social da família, para identificar as fontes de apoio e os recursos disponíveis9.
4 - Assumir um número diferenciado de papéis para capacitar e corresponsabilizar a família, a fim de a tornar mais competente na mobilização de recursos que satisfaçam as suas necessidades e permitam o alcance dos objetivos desejados (Dunst; Trivette; Deal apudSerrano, 2007, p. 42).
Privilegiando a criação de oportunidades de decisão oferecidas à família, por meio de escolhas informadas durante todo o processo de intervenção, este viés aposta na construção de relações colaborativas baseadas na confiança, respeito mútuos e na partilha do processo de resolução de problemas (Dunst apudCarvalho et al., 2016).
Colocando a família no centro da intervenção, este modelo pressupôs uma mudança de paradigma quanto à forma como eram tradicionalmente conceptualizados os serviços de prestação de ajuda a famílias com crianças com dificuldades. Os modelos de prestação de serviços diretos, centrados exclusivamente na criança, conferiam ao profissional o ônus da identificação dos fatores de risco e da conceção/implementação das estratégias destinadas a diminuir os impactos negativos dos mesmos no desenvolvimento da criança. O modelo de apoio centrado na família distancia-se desse prisma, deslocando a unidade de intervenção da criança para a família, a intervenção focalizada na estimulação da criança foi, gradualmente, substituída por um modus operandi em que a família, emergindo como um todo, passou a ser considerada receptora e agente ativo na intervenção. As práticas passaram a ter como meta a autonomização das famílias relativamente aos serviços, de modo a serem capazes de gerir, por si sós, os recursos de que necessitam (Almeida, 2004).
O salientar da intervenção centrada na família como a via que apresenta maior relevância e eficácia na IPI, visa reforçar a ideia da família enquanto unidade capaz de tomar decisões informadas e concretizar as suas escolhas de forma ativa. Ao longo de todo o processo, o profissional deve posicionar-se como agente da família, centrando-se na promoção de competências e na mobilização de recursos.
Em suma, o profissional consubstancia-se como instrumento da família na ativação dos elementos necessários à tomada de decisões informadas, criando oportunidades de crescimento familiar, com o fortalecimento de competências, mobilizando os recursos comunitários, de forma individualizada e segundo as necessidades identificadas pela família. Apreendendo os fatores sistémicos, interindividuais ou intrafamiliares10 como influenciadores do desenvolvimento da criança, o profissional evidencia um novo olhar sobre a família e a criança que irá propugnar a adoção de estratégias de intervenção inovadoras e mais próximas das reais necessidades de mudança percepcionadas pelas próprias famílias.
IPI no contexto português: breve nota histórica
Em Portugal, os primeiros resquícios da IPI remontam aos anos de 1960-1970, quando começaram a ser enveredados esforços para “prevenir e melhorar os problemas de desenvolvimento ou de comportamento das crianças de baixas idades, resultantes de influências biológicas e/ou ambientais” (Gronita et al., 2011, p. 17). Focando-se, essencialmente, na criança, os projetos dos anos 80 revelavam uma clara preocupação com a provisão de serviços (e.g. estimulação precoce) às famílias com crianças diagnosticadas com necessidades educativas especiais (NEE). Evidenciando a responsabilização social pelo bem-estar da criança, assentavam em três princípios básicos: (i) responsabilização da sociedade pela proteção e prestação de cuidados às crianças de idades precoces; (ii) necessidade de assegurar as NEE das crianças mais vulneráveis; (iii) aposta na prevenção e IP, por contraposição ao tratamento e remediação (Cruz; Fontes; Carvalho, 2003).
Com o decorrer dos anos foi-se generalizando a consciencialização da necessidade de desenvolver formas mais eficazes de apoio às crianças com atraso ao nível do desenvolvimento. Nesse contexto, cabe referenciar o Projeto Integrado de Intervenção Precoce (PIIP), surgido em Coimbra em 1989 (Cruz; Fontes; Carvalho, 2003).
A partir de 199411 a intervenção do PIIP-Coimbra assumiu uma relevância significativa, designadamente ao nível da: (i) priorização da inclusão das crianças com deficiência e do acesso igualitário ao ensino e à educação por parte destas; (ii) facilitação da participação dos pais, comunidade e organizações de pessoas com deficiência no planejamento e na tomada de decisões sobre os serviços na área das NEE.
Em resultado da experiência do PIIP-Coimbra e com o intuito de consolidar e expandir os conhecimentos daí advindos, em 1998 foi criada a ANIP. Dedicando-se exclusivamente à IPI, tem por objetivo a dinamização de ações destinadas a crianças de zero a seis anos. Considerada uma referência nacional na divulgação e implementação de boas práticas, entre as suas áreas de atuação, destacamos o apoio à implementação da IPI em nível nacional, a formação, a investigação e o apoio a crianças, famílias e técnicos de IPI. Presentemente, esta associação tem participação técnica em 19 Equipes Locais de Intervenção (ELI), dando, anualmente, apoio a cerca de 1500 crianças.
O PIIP-Coimbra, foi reconhecido nacional e internacionalmente como paradigma da IP. Considerado precursor de um modelo intersetorial único, a estrutura delineada e implementada por este projeto refletia o consenso internacional sobre boas práticas em IPI. Ao ser replicada em diversos pontos do país, consubstanciou-se como um substrato para a elaboração da legislação nacional e para a visibilidade adquirida pela IPI nacional junto de parceiros internacionais.
Constituindo-se como uma referência da IPI ao longo de 20 anos, o PIIP-Coimbra terminou em 2009, quando da criação do SNIPI12. Intervindo ao nível da prevenção e da reabilitação, passaram a ser elegíveis para apoio no seu âmbito as crianças (e respectivas famílias): (i) com alterações nas funções ou estruturas do corpo que limitam o normal desenvolvimento e a participação nas atividades típicas, tendo em conta os referenciais de desenvolvimento próprios para a respectiva idade e contexto social, ou (ii) com alto riso de atraso de desenvolvimento pela existência de condições biológicas (criança), psicoafetivas (inter-relações) ou ambientais (contexto) que implicam uma alta probabilidade de atraso relevante no desenvolvimento da criança13.
Funcionalmente, encontra-se estruturado em três níveis: um nível nacional de articulação de todo o sistema, onde se engloba a Comissão Nacional; um nível regional de coordenação constituído por cinco Subcomissões Regionais; um nível local de intervenção, integra as ELI.
Constituindo a base funcional do sistema, as ELI são constituídas por equipes multidisciplinares (com um mínimo de cinco profissionais)14, assentes em parcerias interinstitucionais que intervêm diretamente nos contextos naturais das crianças e suas famílias.
Genericamente, a essas equipes incumbe15 a análise das referenciações, avaliando os critérios de elegibilidade e, no caso da admissão da criança, o delineamento e implementação do plano individual de intervenção precoce. Dada a importância assumida por este ao longo de todo o processo de intervenção/acompanhamento, interessa referir que o mesmo pressupõe a avaliação da criança no seu contexto familiar e o delineamento das ações a desenvolver tendo em vista o desencadear de um processo adequado de transição ou de complementaridade entre serviços e instituições.
Assentando na universalidade do acesso, na responsabilização dos técnicos e dos organismos públicos, o SNIPI deve integrar, tão precocemente quanto possível, nas determinantes essenciais relativas à família, os serviços de saúde, as creches, os jardins de infância e as escolas. Dessa forma, a IPI surge como um recurso formal para as famílias e crianças, contribuindo para o fortalecimento do funcionamento familiar e o desenvolvimento das crianças, recorrendo a uma abordagem centrada na família, transdisciplinar e inclusiva (Machado; Santos; Espe-Sherwindt, 2017).
Papel do Serviço Social numa intervenção centrada na família: um desafio colaborativo
A IPI ao recorrer a uma abordagem inclusiva privilegia a participação, implicando o empowerment dos elementos da família, numa relação de confiança entre família e profissionais. Esta relação de colaboração constitui-se como pedra angular para o fomento da inclusão (Wettlaufer et al. apudMachado; Santos; Espe-Sherwindt, 2017), sendo fundamental o recurso a modelos colaborativos de intervenção baseados em práticas de ajuda eficaz. Essas, ao contribuírem para o desenvolvimento e fortalecimento das competências familiares, poderão ser mais facilmente promovidas com o recurso a práticas participativas e relacionais a par com uma forte qualidade técnica e reflexiva16.
Os serviços de IP deverão traduzir-se num ciclo de encontros entre a família e os profissionais. Se estes assentarem a sua prática nas componentes de ajuda eficaz enunciadas, cada um destes momentos poderá constituir-se como uma oportunidade/experiência poderosa para o desenvolvimento e fortalecimento das competências dos participantes.
Seguindo este raciocínio, e ao tomarmos em consideração a nossa prática, podemos afirmar que, enquanto assistente social a trabalhar na IP, a cada encontro tentamos estreitar a relação com a família e nesse campo parece-nos que não temos grande dificuldade na efetivação das práticas relacionais. O mesmo não se passa no âmbito das práticas participativas, ou seja, sentimos que podemos melhorar a nossa ação recorrendo a estratégias que otimizem a participação da família em todos os momentos do processo. Essas estratégias poderão passar por uma maior partilha de informação, discussão de opções de intervenção mais alargadas, mais responsividade e maior flexibilidade, pois, temos conhecimento que a aposta nas práticas participativas influencia positivamente a capacitação da família17.
Esta constatação exige de nós uma reflexão ainda mais profunda sobre a nossa postura, atitudes e práticas adotadas nos encontros com as famílias que acompanhamos. É nosso entendimento que a IP poderá ser um elemento catalisador para a mudança na família, conduzindo a benefícios diretos para as crianças, enquanto o profissional de IP recorre a um modelo de trabalho colaborativo com as famílias.
Assim, e no que à intervenção do Serviço Social diz respeito, interessa realçar que o seu objetivo passa não por substituir ou suplantar, mas por apoiar o papel da família na prestação de cuidados. Constituindo-se como agente das famílias, o assistente social intervém tendo em vista a satisfação das necessidades18 e o alcance dos objetivos com significado para o dia a dia da família.
O referido não deve, no entanto, ser impeditivo da consciencialização de que a identificação de necessidades, prioridades e recursos da família, é uma etapa muito exigente do processo de intervenção. Frequentemente, são delineados pela família objetivos que parecem muito distantes da mudança desejada e avaliada pelos profissionais19. Na verdade, os objetivos da família, na maioria das vezes, passam, num primeiro momento, pela satisfação das necessidades básicas (alimentação, vestuário, habitação)20. E enquanto estas não forem colmatadas, será desajustado conduzir uma intervenção centrada, por exemplo, na promoção de competências relacionais ou emocionais. Mais ainda, é importante ter presente que nenhuma intervenção poderá substituir a existência de empregos com rendimentos aceitáveis, casas com condições de habitabilidade adequadas, cuidados de saúde apropriados ou comunidades onde as crianças possam encontrar modelos positivos (Zigler apudFerro, 2012).
Os valores e as necessidades das famílias “não são negociáveis”. O assistente social, por mais esforços que despenda, dificilmente conseguirá convencer a família da prevalência das suas expectativas enquanto técnico. O que conseguimos negociar são as estratégias e atividades a desenvolver para concretizar os resultados escolhidos pela família. Devemos respeitar e apoiar as famílias na priorização das suas necessidades, acordando, com estas, escolhas que possam resultar na concretização dos seus objetivos.
Como? Apoiando a família, por exemplo, na definição de um plano de intervenção personalizado, facilitador da concretização das expectativas e necessidades e promotor da sua participação e desenvolvimento. Um plano que, no seu delineamento, procure usufruir dos apports dos modelos que enformam as práticas de IPI.
Desse modo, o modelo transacional chama a atenção para o fato de as estratégias de intervenção deverem basear-se na importância assumida pelos contextos (ambiental, familiar…) na promoção do desenvolvimento da criança. De forma semelhante, o modelo ecológico, reconhecendo a existência de processos interativos entre a criança e os vários sistemas no quais se insere, permite delinear atividades tendo em consideração os recursos formais e informais, ao alcance da família. Por sua vez, o modelo de apoio centrado na família salienta a importância de os objetivos constantes do plano de intervenção deverem ir ao encontro das expectativas que partem da própria família, da mudança por ela desejada.
Tomando por base a nossa experiência profissional, consideramos que as famílias se sentem valorizadas quando assumem o papel de decisores da intervenção. Quanto ao trabalho colaborativo, proposto pelo modelo centrado na família, este evidencia-se não só, mas também quando da redação do plano de intervenção21.
O sucesso da intervenção depende, em grande medida, da capacidade em promover uma relação de parceria entre a família e o assistente social, pois, se a mesma inexistir, “o que está escrito no plano de intervenção perde qualquer sentido” (Carvalho et al., 2016, p. 150). A capacidade de estabelecer relações de confiança, respeito e compreensão, o enfoque relacional, consubstanciam peças fundamentais do processo de intervenção.
De fato, nos processos de IP, para além da avaliação do grau de satisfação das necessidades, importa, também, que os assistentes sociais analisem como a mobilização de recursos e apoios ocorreu no decurso do planeamento e intervenção. A abordagem centrada na família apresenta-se, assim, como a melhor forma de afirmação das mudanças que queremos ver acontecer. E o plano de intervenção, ao permitir a transposição para a prática dos princípios inerentes a essa abordagem, consubstancia-se como instrumento de operacionalização da aposta na capacitação (enabling) e responsabilização (empowerment) da família como um todo, de modo que estas sejam capazes de proporcionar relações, experiências e o apoio de que as suas crianças necessitam.
Em suma, a prática do profissional de serviço social deve refletir a filosofia de base da IP. Centrar-se na família, basear-se nas rotinas, atuar nos contextos naturais de aprendizagem, socorrendo-se de uma equipe, com funcionamento transdisciplinar, que prevê uma coordenação de serviços e recursos da família. Esta ação deve ser encarada como oportunidade de desenvolvimento das capacidades do profissional em prestar serviços de qualidade tendo por base as práticas recomendadas em IP.
Considerações finais
Para finalizar, gostaríamos de tecer algumas considerações, esperando que estas contribuam para uma atitude reflexiva mais exigente dos assistentes sociais, nomeadamente, os que estão ligados à prática da IP.
Em primeiro lugar, importa reforçar que a filosofia da IPI é sustentada pelos princípios teóricos inerentes aos modelos sistémicos e pelos fundamentos neurobiológicos do desenvolvimento humano. Os progressos dos conhecimentos científicos sobre o desenvolvimento, as suas bases neurobiológicas, o papel das experiências precoces e das interações da criança com o seu meio ambiente, especialmente no seio familiar, configuraram-se como variáveis fulcrais no incremento da IPI.
Como vimos, foram vários os autores a dedicar-se à conceptualização de modelos de IP. Estes, ao serem implementados junto das famílias de crianças com necessidades especiais ou em risco de atraso de desenvolvimento, trouxeram benefícios a essas mesmas crianças. Sameroff e Chandler (1975), Bronfenbrenner (1979) e Dunst (1985), exemplificam o esforço e empenho na construção de uma abordagem diferenciadora em IP. Com o modelo transacional (Sameroff; Chandler, 1975) foi-nos proposta uma visão inovadora do desenvolvimento, na medida em que se atribuiu a mesma importância tanto aos efeitos da criança sobre o meio como aos efeitos do meio na criança. Dando continuidade a esta linha, sobreveio o contributo do modelo ecológico (Bronfenbrenner, 1979), onde foi realçada o pertencimento da criança a um sistema, integrado a outros sistemas alargados de inter-relações entre os vários contextos em que a criança e a família se situam, operacionalizando estes contextos num sistema hierárquico e inter-relacionado.
A intervenção centrada apenas na criança era reducionista, daí a necessidade de uma intervenção que contemplasse os vários contextos e os vários aspectos que influenciavam o desenvolvimento e comportamento de cada criança. Tomando como referência esses dois modelos, Dunst (1985) desenvolveu uma abordagem centrada na família na qual explicitou os princípios orientadores de uma IPI que respondesse positivamente às expectativas das famílias em acompanhamento pelo serviço de IP.
Na decorrência da constituição das práticas centradas na família, como ferramenta de intervenção, passaram a ser identificados como alvos prioritários da IP a promoção de oportunidades de aprendizagem das crianças, os apoios aos pais e a mobilização dos recursos familiares e da comunidade (Carvalho et al., 2016). Esta abordagem almeja apoiar e não substituir ou suplantar o papel central das famílias na prestação dos cuidados parentais, assumindo estas, o papel de decisores da intervenção.
Todas as famílias têm competências. Estas apenas necessitam de ser reforçadas ou que sejam criadas as oportunidades necessárias à sua efetivação ou expansão. O profissional de IP deve, então, dar especial relevância aos contextos e ambientes nos quais o desenvolvimento ocorre, acreditando nas forças da família e potenciando, com o suporte informativo, a criação de novas formas de incremento familiar.
Não descurando o referido, concluímos que os assistentes sociais ao desempenharem funções em IP devem procurar apostar nas competências técnicas em conjugação com as práticas relacionais e participativas. Esses três componentes de ajuda eficaz conferem um caráter inovador ao modelo de IP e garantem a eficácia e satisfação das famílias que integram este serviço. Consideramos que a nossa ação poderá ser diferenciadora, na medida em que se move por uma ausência de juízos de valor, combinada com uma forte qualidade técnica dos profissionais, que assentam a sua ação em práticas relacionais e participativas, tendo em vista o envolvimento da família no processo de tomada de decisão.
A questão essencial em IPI é a de garantir que cada criança e família, com as suas necessidades específicas, possam beneficiar de condições de apoio que respondam eficazmente às exigências com vista ao desenvolvimento pleno da criança. Pensamos que a proximidade e a relação securizante estabelecida com as famílias que acompanhamos, são os principais fundamentos que possibilitam à família ser autêntica e reflexiva sobre o que realmente pretende mudar. É nessa base de confiança e respeito pelas decisões tomadas pelas famílias que iremos promover o desenvolvimento.
No mesmo sentido, concluímos que o grau de satisfação das famílias com o serviço de IP é proporcional ao envolvimento e poder de decisão proporcionado a cada família no processo de intervenção. As mudanças verificadas nas famílias são alcançadas tendo por base o respeito pela sua ecologia específica.
Estamos certos de que as reflexões aqui plasmadas poderão contribuir para a mutação das práticas concretizadas no processo de intervenção, porquanto, ao permitirem a otimização das nossas competências técnicas e relacionais, poderão concorrer para o alcance de resultados mais satisfatórios e de elevada qualidade.
Em suma, para conseguirmos fazer a diferença na vida de famílias multidesafiadas temos de ser profissionais multidesafiados. Temos de nos desafiar, querer crescer, prepararmo-nos tecnicamente, procurando responder com humanitude às necessidades das famílias e, em última análise, às necessidades das crianças.
Agradecimentos
Não se aplica.
Referências
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Notas
Agência financiadora
Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação
Consentimento para publicação
Autor notes
Doutor em Serviço Social - ISCTE-IUL/2018; Doutor em Ciências da Comunicação - Universidade Nova de Lisboa/2007 Professor Auxiliar no Instituto Superior Miguel Torga; Investigador integrado do Instituto de Comunicação da Nova.
ISMTLargo da Cruz de Celas, 1 3000-132, Coimbra, PortugalICNOVAFCSH - Universidade Nova de Lisboa Av. De Berna, 26 C 1069-061, Lisboa, PortugalANIPPraceta Padre José Anchieta, Lote 5, R/ch, Fração C 3000-319, Coimbra, Portugal
Declaração de interesses