Artigo Científico
Received: 30 January 2024
Accepted: 04 December 2024
DOI: https://doi.org/10.1590/2175-3369.017.e20240020
Resumo: Qual o papel dos enclaves fortificados na reprodução de um modelo neoliberal de urbanização? De que forma exatamente um fenômeno está associado ao outro? Partindo do estudo paradigmático de Teresa Caldeira sobre a cidade de muros, nosso objetivo central neste texto consiste em analisar a relação de convergência entre os enclaves fortificados e o processo de neoliberalização do espaço urbano. A despeito de todos os avanços verificados na agenda de pesquisa sobre segregação urbana e espaço público nas últimas décadas decorrentes do trabalho de Caldeira, consideramos que a relação entre os enclaves fortificados e a neoliberalização do urbano ainda é um ponto subteorizado nesse debate. Nosso argumento é que, embora os enclaves não estejam, em sua origem, diretamente relacionados ao neoliberalismo, a sua consolidação na paisagem urbana tem contribuído de forma relevante para a reprodução de um modelo de cidade cada vez mais neoliberalizado, reconfigurando o espaço público e a própria vida urbana em conformidade com o ethos do mercado.
Palavras-chave: Enclaves fortificados, Neoliberalização, Segregação urbana, Espaço público, Vida urbana.
Abstract: What is the role of fortified enclaves in reproducing a neoliberal urbanization model? How exactly is one phenomenon associated with another? Starting from the paradigmatic study of Teresa Caldeira on the city of walls, our central goal in this text is to analyze the relationship of convergence between the fortified enclaves and the process of neoliberalization of urban space. Despite all the advances in the research agenda on urban segregation and public space in recent decades resulting from the work of Caldeira, we consider that the relationship between fortified enclaves and urban neoliberalization is still a subteorized point in this broader debate. We argue that, although enclaves are not, in their origin, directly related to neoliberalism, their consolidation in the urban landscape has contributed in a relevant way to the reproduction of an increasingly neoliberalized city model, reconfiguring public space and urban life in line with the market ethos.
Keywords: Fortified enclaves, Neoiberalization, Urban segregation, Public space, Urban life.
Introdução
Inserido no debate2 sobre os processos de neoliberalização do espaço urbano e suas relações com a democracia, este texto retoma o debate sobre a cidade de muros e os enclaves fortificados para refletir sobre a dimensão urbana dos processos de erosão democrática em curso nas sociedades ocidentais. Enclaves fortificados, conceito cunhado por Teresa Caldeira e amplamente popularizado a partir da publicação do livro Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo (2000), são espaços murados e privados, cujo acesso é controlado por sistemas de segurança e controle, e que se tornaram a modalidade preferencial de moradia e lazer para os mais ricos ao longo das últimas décadas no Brasil.
A pergunta deste texto é: qual o papel dos enclaves fortificados no processo de neoliberalização do urbano, e, por conseguinte, na produção de um modelo neoliberal de urbanização? Nosso argumento é que, embora os enclaves não estejam, em sua origem, diretamente relacionados ao neoliberalismo, a sua consolidação na paisagem urbana tem contribuído de forma relevante para a reprodução de um modelo urbano cada vez mais “neoliberalizado”, reconfigurando o espaço público e a própria vida urbana em conformidade com o ethos do mercado.
Demonstraremos que a lógica imposta pela cidade de muros encontra forte convergência com um princípio basilar do pensamento teórico neoliberal, a saber, o ataque epistemológico ao social (Brown, 2019). Logo , não estamos afirmamos que o modelo dos enclaves fortificados seja neoliberal em si, mas que ele encontra uma convergência epistêmica com um elemento caro ao pensamento neoliberal: um projeto de desmantelamento da sociedade. É importante ter em mente, portanto, que nosso argumento não sugere uma relação de causalidade entre o neoliberalismo e os enclaves fortificados; antes, procura identificar, em termos teóricos, a mencionada convergência entre ambos.
Assim, defendemos que os enclaves não são apenas um produto para ampliar as margens de lucro de determinados segmentos empresariais e atender as demandas das classes mais ricas por maior segurança e status, mas também se constituem na expressão socioespacial de um projeto político de ruptura social, que neste caso se expressa por meio de um desejo de ruptura com a própria cidade.
Dessa forma, nosso objetivo central consiste em analisar o papel dos enclaves fortificados para a reprodução de um modelo neoliberal de urbanização, buscando compreender de que forma a cidade de muros estabelece uma relação de convergência com a lógica neoliberal. O objetivo secundário, por sua vez, é oferecer contribuições teóricas mais substantivas ao conjunto de estudos recentes que tem se dedicado ao debate sobre a neoliberalização do urbano e a urbanização neoliberal.
O texto se justifica por duas razões principais. Em primeiro lugar, embora Caldeira não tenha estabelecido esta associação direta em Cidade de muros, a autora sugeriu, em texto bem menos conhecido, uma conexão entre os enclaves e o neoliberalismo (2008, p. 61), chamando São Paulo de “cidade neoliberal”. Caldeira, contudo, não avançou nessa teorização, deixando uma lacuna neste debate.
É claro que a associação entre os enclaves urbanos/fortificados, condomínios fechados, gated communities e barrios privados com o neoliberalismo (ou com a urbanização neoliberal) é um exercício feito de forma relativamente recorrente pela literatura, tanto nacional quanto internacional. Parece haver certo consenso entre os estudiosos de que os “valores” e a “ideologia” neoliberais contribuem para a produção de grandes enclaves urbanos (Grant & Rosen, 2009; Peck et al., 2011; Harvey, 2014; Capron, 2021)3. Mas, de que forma exatamente isso ocorre? O que há de especificamente neoliberal nesse modelo de segregação? O amplo levantamento bibliográfico realizado nesta pesquisa não encontrou nenhum trabalho em específico que aborde o tema com o enquadramento aqui proposto, isto é, no sentido de investigar uma possível convergência epistêmica entre o pensamento neoliberal e esta forma urbana particular que são os enclaves. Este texto, portanto, pretende contribuir para o preenchimento desta lacuna4.
A segunda razão principal que justifica este texto é que, como demonstrado por pesquisas recentes (Pescatori, 2016; Arantes, 2017; 2021; Freitas e Costa, 2022), os enclaves fortificados (seguindo uma tendência global) vêm consolidando sua expansão pelo território nacional. Nesse sentido, refletir sobre o impacto destes empreendimentos na vida urbana contemporânea nos parece um exercício necessário para avançarmos no entendimento dos desafios políticos e sociais que hoje se impõem às nossas cidades, sobretudo em um contexto no qual a violência urbana se torna uma pauta absolutamente central no debate público e influencia decisivamente nos esforços para a construção de um espaço público plural e razoavelmente democrático.
Este é um texto de natureza essencialmente teórica, predominando um viés metodológico qualitativo (Martins, 2004) no seu desenvolvimento. Partindo dos estudos paradigmáticos de Teresa Caldeira (1997; 2000) sobre a cidade de muros e seus enclaves, buscamos construir nosso argumento a partir da articulação de um conjunto de debates, relacionando, especialmente, os seguintes temas/conceitos: segregação urbana, espaço público, democracia e neoliberalismo/neoliberalização.
Para além desta introdução e das considerações finais, o texto está dividido em quatro partes. Na primeira (Cidade de muros: a emergência dos enclaves fortificados na paisagem urbana brasileira), retomamos o conceito de Caldeira sobre os enclaves fortificados, situando seus contornos gerais e contexto de origem, cujo pano de fundo é o quadro de “democracia disjuntiva” e de reconfiguração neoliberal do Estado. Na segunda parte (Uma proposta de ruptura com a cidade e com o espaço público: o exemplo de Alphaville), explicamos como, a partir do argumento originalmente delineado pela autora, os enclaves se constroem em oposição à cidade e ao espaço público, lugar de encontro entre os diferentes, e que se apresenta como elemento fundamental à democracia.
Visando maior concretude à discussão, nos embasamos no exemplo do primeiro empreendimento Alphaville, considerado um caso paradigmático no interior deste campo de estudos (Davis, 2006). Além de material bibliográfico, também trabalhamos com informações extraídas do próprio site da empresa, que nos auxiliaram na compreensão dos valores difundidos pelos apelos publicitários dos empreendimentos Alphaville na atualidade.
Na sequência (A neoliberalização do urbano), apontamos os principais elementos do conceito de neoliberalização proposto pelo trio Peck, Theodore e Brenner, apontando que os autores entendem os enclaves urbanos como um dos elementos propulsores da urbanização neoliberal.
Na quarta parte (O pensamento neoliberal e o ataque epistemológico ao social: elementos para uma análise sobre a neoliberalização do urbano), apresentamos a análise de Wendy Brown sobre a visão de Hayek (um dos fundadores da doutrina neoliberal) em relação à sociedade. Balizando-se na discussão realizada pela autora em sua obra Nas ruínas do neoliberalismo (2019), procuramos evidenciar a visão hostil do pensamento neoliberal para com a sociedade, e, mais especificamente, para com o terreno do social. A rigor, são os aportes teóricos oferecidos por Brown que nos permitem colocar de pé o argumento proposto. Portanto, o diálogo central que se estabelece nesse artigo é entre as análises de Teresa Caldeira e Wendy Brown. Nosso argumento está situado, analiticamente, na intersecção das contribuições de ambas.
Por fim, nas considerações finais, retomamos o argumento do texto e apresentamos reflexões para possíveis continuidades do debate aqui proposto.
Cidade de muros: emergência dos enclaves fortificados, democracia disjuntiva e reconfiguração neoliberal do Estado
Caldeira identifica a emergência dos enclaves fortificados na capital paulista a partir da década de 1980. Segundo a autora (Caldeira, 2000, p. 211), este novo padrão de segregação não anula, mas se sobrepõe ao modelo centro-periferia, que teria vigorado em São Paulo entre as décadas de 1940 a 1980. O modelo centro-periferia se caracterizou por um arranjo espacial no qual as classes sociais estavam separadas por grandes distâncias: os mais ricos no centro e em suas adjacências, localidades bem servidas por infraestrutura e serviços; e os mais pobres na periferia precária e mal equipada (Kowarick, 2009; Kowarick e Marques, 2011; Rolnik, 2022).
A emergência dos enclaves acarretou mudanças significativas na paisagem urbana, fazendo com que, em alguns casos, as distâncias físicas entre ricos e pobres fossem reduzidas5. Apesar da maior proximidade, porém, os mecanismos de vigilância e de separação social se tornaram mais ostensivos. Mais precisamente, enclaves fortificados são “(...) espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho. (...) Esses novos espaços atraem aqueles que estão abandonando a esfera pública tradicional das ruas para os pobres, os ‘marginalizados’ e os sem-teto (Caldeira, 2000, p. 211).
Nesta categoria, incluem-se os condomínios fechados, shoppings centers, complexos comerciais e de escritórios e clubes de lazer. A incorporação destes empreendimentos ao espaço urbano trouxe consigo a implantação de uma série de aparatos tecnológicos de vigilância e de monitoramento, cuja finalidade é controlar rigorosamente quem pode acessar estes lugares (Kanashiro, 2008; Firmino, 2017; Schiavi e Silveira, 2022) - resultando na produção de ambientes pensados muito mais a partir do desejo de segurança do que de interação com os outros (Mitchell, 1995, p. 119).
Em sua análise, Caldeira (2000) destacou o papel da “fala do crime” para compreender os fundamentos retóricos que justificaram a difusão do referido modelo. De fato, o medo do crime parece ter contribuído de forma decisiva para a expansão dos enclaves. Trata-se, mais especificamente, daquilo que Tulumello (2017, p. 3) definiu como o “medo urbano, isto é, o medo de ser vítima de um crime violento no espaço urbano” (grifos no original; tradução nossa).
É claro que este medo não é algo totalmente infundado. Segundo Marques (2021, p. 6), os dados disponíveis indicam que houve um aumento considerável nos índices de homicídio entre a década de 1980 e a primeira do século XXI no Brasil, especialmente em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.
Contudo, o autor pondera que a “distribuição social dos riscos” entre as classes é muito desigual, uma vez que são os mais pobres que estão significativamente mais propensos a sofrerem crimes contra a vida, que em geral ocorrem durante a noite nas periferias (Marques, 2021, p. 6-7). De toda forma, o sentimento de medo presente no imaginário das classes mais ricas acaba sendo difundido para toda a sociedade (Caldeira, 2008), especialmente por conta da repercussão junto aos meios de comunicação6.
Destarte, corroborando as análises de Caldeira (2000; 2008), Marques (2021, p. 7) entende que o medo da violência se tornou ao longo dos anos a principal justificativa para a difusão dos enclaves fortificados nas metrópoles brasileiras7. Cabe pontuar que este produto imobiliário não se difundiu apenas para as grandes aglomerações urbanas do território nacional, mas também foi incorporado à paisagem de contextos não metropolitanos, com destaque para as cidades médias (Magrini, 2013; Silva e Sposito, 2024).
Ademais, com o passar dos anos, a lógica de cercamento residencial verificada nas áreas mais ricas e privilegiadas também passou a ser percebida em localidades periféricas e de baixa renda, praticamente generalizando aquilo que Caldeira (2008, p. 66) denomina como “estética da segurança”.
Estes fatos remetem a contradições políticas e sociais características da sociedade brasileira, que Holston e Caldeira (1998) nomearam como “democracia disjuntiva”, conceito cunhado para captar os vetores contraditórios subjacentes ao processo de redemocratização nacional entre as décadas de 1980 e 1990. Mobilizando tal conceito, Caldeira (2000, p. 55) sugeriu que uma “das principais contradições que marcam o Brasil contemporâneo é a que existe entre expansão da cidadania política e deslegitimação da cidadania civil”.
Se, por um lado houve a expansão da cidadania política com a adoção de eleições livres e periódicas, liberdade de organização partidária e de oposição e o fim da censura, por outro, o aumento do crime e da violência (tanto aquela praticada por civis como pelo próprio Estado) colocaram em xeque os direitos civis de boa parte da população. Caldeira pondera que as reações dos grupos mais privilegiados a este cenário “tornam-se não apenas violentas e desrespeitadoras dos direitos, mas ajudam a deteriorar o espaço público, a segregar grupos sociais e a desestabilizar o estado de direito” (Caldeira, 2000, p. 56).
Este quadro se insere em um contexto mais amplo de reconfiguração do Estado - que, diga-se de passagem, não é peculiar à sociedade brasileira. Trata-se do avanço da política neoliberal em escala global, fenômeno que ganha fôlego no final dos anos 1970 sob a liderança de Margaret Thatcher e Ronald Reagan à frente dos governos de seus países - respectivamente, Reino Unido e Estados Unidos da América (Brown, 2019). Conforme Wacquant (2012), o neoliberalismo não significa o enfraquecimento do Estado, mas sim a sua reengenharia. Para o autor, o neoliberalismo resulta de uma “articulação entre Estado, mercado e cidadania que aparelha o primeiro para impor a marca do segundo à terceira” (Wacquant, 2012, p. 509-510; grifo no original). Similarmente, Madanipour (2019, p. 40) sugere que o problema central no atual contexto não gira em torno das diferenças entre o setor público e o setor privado, mas sim do caráter assumido pelas instituições públicas, uma vez que estas passaram a “abraçar” os métodos do mercado. Dessa forma, a guinada neoliberal implicou em transformações profundas na lógica de atuação estatal nas mais diversas sociedades, tanto nos países centrais como nos periféricos (Andrade, 2019). É neste cenário de aprofundamento de contradições sociais que os enclaves fortificados surgem na paisagem urbana nacional, evidenciando ainda mais as disjunções do regime democrático brasileiro. Nessa linha, explicamos a seguir que os enclaves representam não apenas um novo produto imobiliário, mas também a expressão de um projeto político.
Um projeto de ruptura com a cidade e com o espaço público: o exemplo de Alphaville
Em texto pouco conhecido pelo público brasileiro, Caldeira (2008) afirma que na cidade de muros a privatização se tornou a ordem do dia e o valor dominante da nova lógica de governo. Privatização, no sentido mobilizado pela autora, não se trata apenas de uma política de privatização de serviços e empresas públicas, mas de um valor social propriamente dito. Para Caldeira (2008, p. 57), na São Paulo construída desde a década de 1980, “(...) o público está sob ataque, a privatização governa, a desigualdade é um valor, e a violência, o medo e o crime oferecem a linguagem dos termos nos quais a vida social é interpretada e organizada” (tradução nossa).
O que nos interessa mais diretamente é aprofundar este argumento (que já estava presente em Cidade de muros): os enclaves fortificados operam em uma lógica de ataque ao público. Esta afirmação tem implicações diversas, mas, desde o ângulo aqui trabalhado, a questão essencial nos parece ser a ideia de ataque ao espaço público, este entendido enquanto lugar no qual as diferenças se encontram (Young, 1990; Leite, 2002; Low e Smart, 2020; Sevilla-Buitrago, 2022).
Nesse sentido, cabe salientar que a própria cidade é, por excelência, um espaço público, ou seja, um local de encontro entre classes e grupos distintos. Para Low (2023, s/p.), o espaço público tem importância crucial para a democracia em um duplo sentido: viabiliza a emergência de conflitos e lutas, por um lado, e a conformação de relações de cooperação e afetivas (incluindo o cuidado) em um fórum seguro, por outro.
Para os fins de nossa discussão, todavia, interessa enfatizar a dimensão do conflito. Retomando a clássica definição de Lefebvre (2001, p. 22): “A vida urbana pressupõe encontros, confrontos das diferenças, conhecimentos e reconhecimentos recíprocos (inclusive no confronto ideológico e político) dos modos de viver, dos ‘padrões’ que coexistem na cidade”. A vida urbana, portanto, é definida sobretudo a partir de sua heterogeneidade e abertura ao conflito (Young, 1990; 2000; Santos Junior, 2014).
Os enclaves almejam a ruptura desta dinâmica através da “tentativa de estabelecer uma nova ordem privada que se apresenta como um mundo à parte do restante da cidade” (Tavolari, 2023, p. 407), fato demonstrado por Caldeira de forma bastante convincente em Cidade de muros. Uma das etapas mais importantes de sua pesquisa foi a análise de anúncios publicitários de empreendimentos de alto padrão nos moldes dos enclaves fortificados. Segundo a autora, “anúncios imobiliários constituem uma boa fonte de informação sobre os estilos de vida e os valores das pessoas cujos desejos eles elaboram e ajudam a moldar” (Caldeira, 2000, p. 264).
O conjunto do material analisado por Caldeira (2000, p. 265) apontava para a articulação de cinco “elementos básicos” nos anúncios, a saber: “segurança, isolamento, homogeneidade social, equipamentos e serviços”. Assim, conclui:
Os enclaves são, portanto, opostos à cidade, representada como um mundo deteriorado no qual não há apenas poluição e barulho, mas, o que é mais importante, confusão e mistura, isto é, heterogeneidade social. (...) Supõe-se que condomínios fechados sejam mundos separados. Seus anúncios propõem um ‘estilo de vida total’, superior ao da cidade, mesmo quando são construídos dentro dela (Caldeira, 2000, p. 265; grifos nossos).
Esta análise sugere que a proposta dos enclaves vai muito além da busca por segurança: para Caldeira (1997, p. 159), os anúncios publicitários “repetidamente expressam a segregação social como um valor”. Assim, os enclaves representam a expressão de um projeto político de ruptura com a cidade e com a própria sociedade que a habita. Um projeto, portanto, de ruptura social, de rejeição ao esforço de construção do espaço público democrático. Não por acaso, Davis (2006, p. 120) classifica estes empreendimentos como off worlds , uma vez que eles pretendem existir como mundos efetivamente apartados do restante da sociedade.
Um caso emblemático nesse sentido, também analisado por Caldeira, é o primeiro empreendimento Alphaville, construído pela hoje denominada Alphaville Urbanismo S.A.8 , e situado nos municípios de Barueri e Santana do Parnaíba, porção oeste da aglomeração metropolitana de São Paulo (a cerca de 35 Km da capital). Segundo Davis (2006, p. 123): “Alphaville é uma cidade particular completa, com um grande complexo de escritórios, um shopping center de alto nível e áreas residenciais cercadas, tudo defendido por mais de 800 seguranças particulares”. Além de diversos condomínios residenciais murados, parte considerável do loteamento destina-se ao uso industrial e de serviços, sendo que esta área não é murada (Pescatori, 2016, p. 140).
Pensado para atrair especialmente moradores de alta renda da capital paulista (Caldeira, 2000; Pescatori, 2016), Alphaville é, em larga medida, inspirado na imagem do subúrbio estadunidense (Araujo e Silva, 2022, p. 310), aspecto que também já havia sido apontado por Caldeira (2000, p. 254). Em seu trabalho, Pescatori (2016, p. 138) destaca um dos primeiros anúncios publicitários de Alphaville (de meados da década de 1970): “Alphaville residencial foi criado nos moldes dos bairros elegantes que surgiram nos arredores de Nova York e de outras cidades que cresceram demais”.
Um elemento importante a ser enfatizado é que o poder público desempenhou papel central na viabilização deste empreendimento, tanto em relação às legislações que precisaram ser aprovadas ou modificadas, como também no que tange à provisão e manutenção das infraestruturas necessárias (Pescatori, 2016; Araujo e Silva, 2022)9.Segundo Pescatori (2016, p. 238-240), após a construção de Alphaville, ao longo dos 30 anos seguintes, a construtora consolidou e expandiu sua marca pelo país, focando no segmento de empreendimentos quase que “exclusivamente” residenciais, no formato de condomínios horizontais fechados. Mas, a partir de 2008, a empresa iniciou a construção dos chamados “núcleos urbanos”, anunciados como um novo segmento. São empreendimentos consideravelmente mais complexos, constituídos por áreas destinadas ao lazer, comércio e indústria, além, claro, das próprias áreas residenciais. Todavia, segundo Pescatori (2016, p. 5), este projeto não era novo, mas sim uma retomada do modelo “original” implantado em Barueri/Santana do Parnaíba, isto é, um modelo de construção de cidades independentes.
De acordo com informações disponíveis no site da própria empresa, atualmente existem cerca de 130 empreendimentos espalhados em 23 estados e no Distrito Federal, em mais de 50 cidades (Alphaville, 2024). Uma análise mais detalhada do referido site também nos ajuda a compreender sob que tipo de apelos publicitários tem se dado essa expansão. Na aba “Nossa história”, são anunciados “Os seis pilares”, entendidos como “os princípios que sustentam o conceito do Grupo Alphaville” (Alphaville, 2024). São eles: i) Compromisso com a segurança; ii) Conveniência é prioridade; iii) Ótima qualidade construtiva; iv) Lazer além do fim de semana; v) Natureza sempre por perto; vi) Vida gerida em comunidade.
A segurança como primeiro pilar indica que esse elemento permanece central nos apelos publicitários até hoje. No texto do referido item, que acompanha a ilustração de uma guarita da entrada de um condomínio, lê-se: “Em um empreendimento do grupo Alphaville, adultos e crianças caminham despreocupadamente pelas ruas a qualquer hora do dia e da noite. (...) todos os nossos projetos têm seu próprio Plano Diretor de Segurança, que prevê a posição da portaria - monitorada 24 horas por dia - a colocação de muros e grades e a instalação do sistema de câmeras de vigilância”.
No outro extremo, o sexto e último pilar traz a noção de “comunidade”, que remete à construção de uma vida entre iguais. Nas palavras de Young (1990, p. 236), a ideia de comunidade tem um sentido frequentemente “antiurbano”, uma vez que ela traz consigo a ideia de homogeneidade social em detrimento da heterogeneidade característica da vida urbana. Conforme Low e Smart (2020, p. 3), os moradores de condomínios fechados se habituam a um padrão de evitação do outro que passa a ser reproduzido mesmo fora dos portões do condomínio, acentuando os sentimentos de medo, intolerância e preconceito no cotidiano urbano.
A sequência na qual os pilares da empresa são anunciados, começando com a segurança e concluindo com a comunidade, é altamente sugestiva: embora o medo da violência seja de fato o grande pretexto, na prática este modelo de segregação parece ser movido, sobretudo, pela “defesa de privilégios auferidos nos marcos de uma sociedade caracterizada por uma brutal desigualdade (...) e por uma enorme assimetria estrutural de poder” (Souza, 2012, p. 206).
Percebe-se que, em linhas gerais, os seis pilares anunciados pela Alphaville são essencialmente os mesmos “elementos básicos” identificados pela análise de Caldeira sobre um conjunto de materiais publicitários (não apenas de Alphaville) há mais de 20 anos atrás (conforme mencionado anteriormente neste mesmo tópico). Em suma, a essência dos anúncios parece ter se mantido a mesma ao longo do período.
Concluindo este tópico, é pertinente apresentar uma ponderação sobre algo que é objeto de debate frequente entre os estudiosos do espaço público (Arantes, 2021; Tavolari, 2023): o que, de fato, a cidade de muros tem de peculiar em relação ao modelo de segregação anterior? É preciso lembrar, antes de tudo, que a cidade precedente aos enclaves estava longe de ser democrática. A separação territorial, não apenas entre classes, mas também entre raças (Panta, 2019; França, 2022), característica do modelo centro-periferia, obstaculizou profundamente as possibilidades democráticas da vida urbana, uma vez que as hierarquias sociais sempre condicionaram fortemente a maneira como os diferentes grupos se apropriaram da cidade (Gonzalez, [1982]2022, p. 21-22).
Entretanto, endossamos o argumento de Caldeira (2000, p. 283): “Embora o Brasil sempre tenha sido uma sociedade desigual, a privatização da esfera pública que venho descrevendo é algo novo, e a tendência a criar ilhas particulares de privilégio parece ter se fortalecido”. Dessa forma, a cidade de muros e seus enclaves promovem mudanças relevantes na maneira como as hierarquias e as relações de poder são inscritas no espaço, marcando uma diferença importante em relação ao passado:
Tanto a cidade aberta e sem exclusões quanto a ordem política incorporando todos os cidadãos como iguais nunca existiram, mas seus ideais fundadores e suas promessas de incorporação mantiveram seu poder durante séculos, dando forma às experiências de cidadania e de vida urbana e legitimando a ação de vários grupos excluídos em suas reivindicações de incorporação (Caldeira, 1997, p. 165).
Logo, como explicado por Tavolari (2023), a análise de Caldeira sobre o impacto negativo dos enclaves para a democracia não é ingênua, e também não supõe um saudosismo em relação ao modelo anterior. A questão é que o novo modelo, ao defender abertamente a segregação e a desigualdade social como valores, “representa, como nenhum outro padrão anterior, um ataque direto à democracia” (Tavolari, 2023, p. 415).
Em tempo: nosso argumento não pressupõe um espaço público idealizado/romantizado, onde as interações sociais ocorrem em condições de igualdade. Ao contrário: no espaço público real, tais interações se processam dentro de um quadro de hierarquias profundamente estabelecidas e desigualdades de várias dimensões, como raça, classe, gênero, dentre outras (Mitchell, 1995; Madanipour, 2019). Mais: o encontro e o convívio entre os diferentes (e os desiguais) são relações caracterizadas por choques e embates permanentes, uma vez que a proximidade física entre grupos distintos contribui para que as contradições sociais sejam ainda mais evidenciadas.
O espaço público, portanto, é um lugar marcado por tensões e conflitos. E é justamente isso que o torna relevante para a democracia. Afinal, foi através do conflito e do questionamento das ordens e hierarquias que, historicamente, a democracia pôde avançar e consolidar sistemas minimamente garantidores de direitos para as classes trabalhadoras e as camadas mais empobrecidas (Tilly, 2004; Elley, 2005). Logo, o espaço público democrático não é aquele no qual não existem conflitos, mas sim o oposto: um lugar no qual as desigualdades se manifestam, são tematizadas e combatidas (Mitchell, 1995, p. 117).
Nunca é demais lembrar que, em uma sociedade desigual, um cenário de estabilidade permanente significa justamente a perpetuação de desigualdades estruturais (Miguel, 2018). Para a democracia, portanto, o conflito desempenhou historicamente um papel crucial. É razoável afirmar que a vida urbana e o espaço público que a abriga tiveram importância central em todo este processo (Lefebvre, 2001), criando condições mais favoráveis para a desestabilização de hierarquias sociais e para a eclosão de lutas políticas (Sevilla-Buitrago, 2014; 2022). Em boa medida, a proposta dos enclaves consiste em minar estas condições.
Nos dois próximos tópicos , explicamos como este modelo de segregação se relaciona com a lógica neoliberal.
A neoliberalização do urbano
A agenda de pesquisa sobre a neoliberalização do urbano tem no trio Peck, Theodore e Brenner os seus principais expoentes (Pinson & Journel, 2017, p. 9).
Primeiro, cabe destacar que Peck e seus colegas preferem o termo “neoliberalização” a neoliberalismo (Peck & Theodore, 2012, p. 179), pois enquanto o último sugere um sistema acabado e coerente, a ideia de “neoliberalização” tem um caráter processual, remetendo a algo que muda e se adapta conforme o tempo e que tenta impor o padrão do mercado como dominante nas estruturas regulatórias existentes, mas que convive contraditoriamente com outros projetos (Peck et al., 2011, p. 17).
A neoliberalização, portanto, deve ser entendida como um “processo dependente da trajetória, moldado pelas particularidades da história e das instituições locais” (Ribeiro & Santos Junior, 2017, p. 2; tradução nossa). O avanço do projeto neoliberal no tempo e no espaço conforma modelos singulares de neoliberalização caso a caso, e que ao longo do tempo vão configurando arranjos híbridos, resultantes da sobreposição do modelo neoliberal com os regimes político-institucionais, socioespaciais e econômicos prévios (Brenner et al., 2010; Peck et al., 2011; Andrade & Cortês, 2022)10.
Em segundo lugar, trata-se de um fenômeno que transcende a dimensão econômica, sendo acima de tudo um processo de natureza política (Peck et al., 2011). Conforme bem resumido por Ribeiro & Santos Junior (2017, p. 2), a neoliberalização “não se limita à mercantilização do ambiente construído, mas implica um processo de transformação mais amplo da ordem urbana” (tradução nossa). Isto implica que o neoliberalismo não se restringe a um conjunto determinado de políticas econômicas; antes, deve ser entendido como um amplo projeto disciplinar que busca impor o modelo do mercado para todas as dimensões da vida social (Brown, 2015; 2019; Dardot & Laval, 2019; Wacquant, 2012; Andrade et al., 2021).
Por fim, a neoliberalização também se constitui em um projeto de transformação socioespacial (Peck et al., 2012, p. 60), promovendo uma dinâmica de “destruição criativa” que resulta na conformação de um ambiente socioespacial e institucional de caráter híbrido (Peck et al., 2011; Pinson & Journel, 2017).
Desta forma, o processo de neoliberalização impacta diretamente nas cidades (Brenner et al., 2010, p. 328), conformando a chamada urbanização neoliberal, ou um processo de neoliberalização do urbano, entendido aqui como um conjunto de políticas, ações e iniciativas conduzidas por agentes públicos e privados (locais e supralocais) orientadas para a difusão do ethos do mercado para todas as esferas da vida urbana, englobando a maneira como a própria paisagem urbana é (re)configurada (Peck et al., 2011; Ribeiro & Santos Junior, 2017).
Para fundamentar esta tese, Peck e seus colegas apresentam de forma detalhada um conjunto de mecanismos promotores da urbanização neoliberal relacionados à destruição criativa. Ao lado de processos como a “reestruturação de políticas habitacionais” e a “privatização de serviços públicos e infraestruturas coletivas”, os autores identificam as “transformações no ambiente construído e na forma urbana” como um mecanismo propulsor da urbanização neoliberal, que se manifesta especialmente através da criação de novos espaços de consumo e condomínios residenciais para os mais ricos em grandes enclaves urbanos (Peck et al., 2011, p. 22-23).
Segundo os autores, estes enclaves contribuem para o avanço dos processos de neoliberalização (ibidem), redefinindo a governança urbana em prol do ethos do mercado (Peck et al., 2012, p. 69)11. Mas de que forma exatamente estas lógicas estão atreladas? Por qual razão os enclaves contribuem para a neoliberalização do urbano? Nosso argumento é que, para encontrar esta resposta, é preciso retornar ao momento de origem do neoliberalismo enquanto teoria, exercício analítico que desenvolvemos a seguir.
O pensamento neoliberal e o ataque epistemológico ao social: elementos para uma análise sobre a neoliberalização do urbano
No debate corrente, diversos estudos têm chamado a atenção para as diferenças entre o neoliberalismo doutrinário/teórico, de um lado, e o neoliberalismo “realmente existente”, de outro (Wacquant, 2012). Para Peck et al. (2011, p. 16), “existem sérias disjunções entre a ideologia neoliberal e suas operações políticas cotidianas e efeitos societais” (grifo no original; tradução nossa).
Esta é uma tese com a qual concordamos. Afinal, entre a teoria e a prática, sempre existem descontinuidades. Contudo, nosso argumento é que as políticas neoliberais existentes resguardam, em seu núcleo, elementos fundamentais da formulação teórica neoliberal. Isso pode ser verificado, por exemplo, em políticas governamentais que promovem diferentes formas de estímulo à competição individual e que reproduzem uma concepção hostil para com fontes de solidariedade social e soluções coletivistas (Peck et al., 2011, p. 16).
Se não for possível, afinal, traçar alguma linha de conexão entre a formulação teórica neoliberal e as estruturas sociopolíticas concretas, não faz sentido pensar em “neoliberalismo”(ou neoliberalização). É com base nesse raciocínio que pretendemos explicar como os enclaves fortificados reproduzem um elemento caro ao pensamento neoliberal: a sua hostilidade epistemológica em relação ao “social” (Brown, 2019).
Segundo Anderson (1995, p. 9), o neoliberalismo deve ser entendido como “uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar”, que tem no livro O caminho da servidão, de autoria de Friedrich Hayek ([1944] 2010), aquele que pode ser considerado o seu texto fundador. Nessa obra, Hayek desfere um “ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política” (Anderson, 1995, p. 9)12.
Um dos pilares centrais desta reação teórica neoliberal é aquilo que Brown (2019) definiu como o “ataque epistemológico ao social”. Segundo a autora: “situado conceitual e praticamente entre o Estado e a vida pessoal, o social é o local em que cidadãos de origens e recursos amplamente desiguais são potencialmente reunidos e pensados como um conjunto”; é no terreno do social que as “desigualdades historicamente produzidas se manifestam como acesso, voz e tratamento político diferenciados, bem como o local em que essas desigualdades podem ser parcialmente corrigidas” (Brown, 2019, p. 38).
Segundo Brown, Hayek entendia a noção de sociedade como perigosa em si mesma, uma vez que ela estabelece solo fértil para a intervenção do Estado nas trocas que se realizam “livremente” no mercado (entendido pelos [neo]liberais como o principal meio de provisão dos recursos). Para Hayek, o mercado seria o resultado das ações espontâneas conduzidas por pessoas livres e racionais, constituindo um sistema livre de coerção; a sociedade, por sua vez, seria uma invenção artificial, criada para legitimar a intervenção do Estado em favor de demandas por igualdade e tornando os indivíduos submissos ao poder estatal. Brown explica que, para Hayek, é na “sociedade” onde se formulam as demandas por “justiça social” e “igualdade”, impelindo a ação do Estado nessa direção, ou seja, intervindo nos resultados das trocas realizadas no mercado.
Hayek entendia que o problema maior se encontrava justamente aí: a ação estatal em favor da igualdade pavimentaria o caminho para o totalitarismo. Uma vez que as desigualdades seriam resultantes da dinâmica do mercado, a sociedade deveria compreender que elas são o desdobramento natural da liberdade. A intervenção do Estado em prol da igualdade, ao contrário, poderia levar a um mal muito maior: o fim das liberdades individuais. Na interpretação de Brown (2019, p. 54), o que Hayek faz, portanto, é criar uma narrativa legitimadora das desigualdades.
Em síntese, o pensamento neoliberal nasce marcado por uma postura hostil em relação ao “social”, já que este poderia colocar em risco as liberdades do “indivíduo”. Conforme Andrade (2019, p. 127), é possível mesmo afirmar que na lógica neoliberal a sociedade sequer existe. Isto ficou evidente não apenas pelas obras de Hayek e seus colegas de Mont-Pèlerin, mas também pela famosa fala de Margaret Thatcher, em uma entrevista concedida em 1987: “(...) who is society? There is no such thing!”13.
A sociedade, é claro, existe. O que o neoliberalismo tenta negar, e luta contra, é uma sociedade fundada em princípios de proteção social e garantia de direitos, capaz de produzir um Estado minimamente comprometido com a igualdade. Ou seja, o neoliberalismo não luta contra a “sociedade”, mas contra uma sociedade capaz de avançar coletivamente no combate às desigualdades. O que o projeto neoliberal busca, portanto, é construir uma sociedade à imagem e semelhança do mercado (Andrade et. al., 2021).
Este talvez seja, precisamente, o traço “essencial” do neoliberalismo. Logo, defendemos que o “neoliberalismo realmente existente”, mesmo em suas distintas formas, retém necessariamente este elemento do neoliberalismo teórico. Em suma, o “ataque epistemológico” do neoliberalismo ao social não permanece apenas no campo da epistemologia: por trás de toda política de governo inspirada em ideias neoliberais, existe uma lógica (às vezes nem sempre de forma tão explícita) de combate ao social.
Como este fundamento epistemológico do neoliberalismo impacta na organização do espaço urbano e na vida urbana? E como os enclaves fortificados entram nessa equação? A resposta precisa considerar a profunda conexão entre a vida urbana, o espaço público e aquilo que Brown define como o social. Se este é entendido como o local no qual pessoas de “origens e recursos amplamente desiguais são potencialmente reunidos e pensados como um conjunto”, é impossível ignorar a sólida conexão entre o social e a vida urbana. A vida urbana e o espaço público são, na realidade, condições indispensáveis para a constituição do social.
Ao passo em que, para Young (1990, p. 240), o espaço público constitui a base da política, esta “atividade crítica de levantar questões públicas e decidir como relações sociais e institucionais devem ser organizadas” (tradução nossa), Brown (2019, p. 53) pontua que “o domínio do social é o local em que sujeições, abjeções e exclusões são vividas, identificadas, contestadas e potencialmente retificadas”. Sendo assim, do mesmo modo que o espaço público, o terreno do social também se apresenta como elemento indispensável para a conformação de uma sociedade democrática.
Destarte, entendemos que o ataque neoliberal ao social passa necessariamente pelo ataque à cidade como espaço público democrático, isto é, como local de encontro e de reunião entre pessoas, grupos e classes sociais distintas. É dessa forma que o neoliberalismo, em alguma medida, se coloca como projeto político refratário à ideia de uma vida urbana democrática, capaz de engendrar um espaço público minimamente heterogêneo e aberto ao conflito. Em suma , o pensamento neoliberal de origem resguarda uma lógica “antiurbana”.
Os enclaves fortificados representam, portanto, uma expressão socioespacial fundamental do ataque neoliberal ao social, fragmentando a paisagem urbana de modo a acentuar ainda mais as fronteiras entre o mundo dos privilegiados e o dos excluídos.
Referenciando-se em Carl Schmitt, Brown (2019, p. 64) nos recorda que “o espaço não é apenas uma arquitetura para o poder, mas a cena da imaginação e dos imaginários políticos”; os ordenamentos espaciais que construímos “e os significados atribuídos a esses ordenamentos moldam nossas conceituações de quem e do que somos, especialmente na vida com os outros. (...) vislumbramos futuros possíveis a partir e em termos das ordens espaciais de nosso presente” (Brown, 2019, p. 64-65).
Esta análise reforça a importância do medo do crime para a construção de um imaginário urbano cada vez mais “neoliberalizado”. Segundo Caldeira (2008, p. 63), o crime e a violência são os elementos mais centrais a embasar diferentes formas de privatização que afetam o ambiente urbano e os padrões de segregação, produzindo um novo modo de imaginar a cidade - análise reforçada pela recente obra de Tulumello e Pavoni (2023), que discute mais a fundo a relação entre violência, segurança e imaginário.
É razoável sugerir, portanto, que a paisagem urbana moldada pelos enclaves contribui para a produção de um imaginário coletivo no qual o social se encontra em xeque. Como resultado, tal processo também tende a afetar nossa capacidade de imaginar uma cidade mais democrática, e, consequentemente, uma sociedade mais democrática. Não por acaso, Madanipour (2019, p. 40) argumenta que a luta pelo espaço público democrático é uma luta pela “integridade da cidade e da sociedade” (tradução nossa).
Considerações finais
Este texto teve como objetivo central analisar o papel dos enclaves fortificados na (re)produção de um modelo neoliberal de cidade, buscando também oferecer contribuições teóricas mais substantivas aos debates em curso sobre os processos de neoliberalização do urbano. Retomando o estudo paradigmático de Teresa Caldeira sobre a Cidade de muros (2000), nosso esforço foi no sentido de explicitar a conexão entre os enclaves e o pensamento neoliberal, demonstrando assim a relação de convergência entre o modelo de segregação analisado e um elemento central à doutrina teórica neoliberal, isto é, a hostilidade epistêmica em relação ao social.
Esta conexão entre a cidade murada e a lógica neoliberal chegou a ser apontada por Caldeira (2008), mas não desenvolvida teoricamente pela autora. O nosso esforço foi, portanto, no sentido de suprir o que consideramos ser uma lacuna dentro da agenda de pesquisa relacionada aos enclaves fortificados. O argumento aqui desenvolvido sugere que o pensamento neoliberal parece ser, pelo menos em alguma medida, refratário à ideia de uma vida urbana e de um espaço público estruturados conforme princípios democráticos. Aprofundar os estudos nessa direção, isto é, investigar mais a fundo o caráter “antiurbano” do pensamento neoliberal, pode trazer ganhos analíticos importantes para as pesquisas sobre a neoliberalização do urbano.
Vale reforçar: não estamos sugerindo relações de causalidade entre a guinada neoliberal do final dos anos 1970 e a emergência da cidade de muros. Mas entendemos que a lógica de ruptura social subjacente aos enclaves contribui de maneira relevante para a (re)produção de um modelo urbano neoliberal.
De todo modo, embora a discussão apresentada aponte para a consolidação da cidade de muros no Brasil, isto não significa que este processo se dê sem conflitos e contradições. Como a própria Caldeira (2000, p. 327-328) já havia pontuado, o avanço da cidade de muros não é o único processo socioespacial em curso; antes, ele ocorre de forma simultânea e combinada a outros fenômenos, incluindo lutas sociais pelo direito à cidade e pela democratização do espaço público. Lutas que, em um nível mais amplo, podem contribuir para gerar outras possiblidades de apropriação do espaço e produzir relevantes contrapontos a processos segregacionistas.
Em síntese, existem limites para o projeto de ruptura com a cidade que os grupos mais privilegiados parecem querer levar adiante, o que revela os limites e resistências ao avanço do próprio projeto neoliberal. Esta constatação indica a existência de uma promissora agenda de pesquisa para o campo de estudos relacionado aos temas aqui discutidos, com a qual esperamos ter oferecido nossa parcela de contribuição.
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Notes
Author notes