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As autoimagens construídas pelas elites da região de Miranda durante a visita pastoral do bispo D. Carlos Luiz D’Amour ao sul de Mato Grosso, em 1886
The self-images built by the elites of the Miranda region during the pastoral visit of Bishop Carlos Luiz D'Amour south of Mato Grosso in 1886
As autoimagens construídas pelas elites da região de Miranda durante a visita pastoral do bispo D. Carlos Luiz D’Amour ao sul de Mato Grosso, em 1886
Antíteses, vol. 11, núm. 21, pp. 288-311, 2018
Universidade Estadual de Londrina

Recepção: 29 Maio 2017
Aprovação: 14 Março 2018
Resumo: O artigo analisa a construção de autoimagens pelos proprietários de terras e escravizados, por funcionários públicos, por autoridades municipais, por profissionais liberais e por comerciantes de Miranda, Santa Rita de Nioaque, Campos de Vacaria e Campo Grande durante a visita pastoral do bispo de Cuiabá, D. Carlos Luiz D’Amour, ao sul da província de Mato Grosso, em 1886. Essa elite procurava impor autoimagens positivas acerca da região e de si, entre elas a de que participavam da civilização, da cultura, do refinamento, das ciências, das humanidades e das artes do bem se comportar. Para tal, esmerava-se em construir uma autoapresentação ostentatória para exaltar seu papel de pioneira, civilizadora dos sertões, patriota e promotora do progresso. Esse teatro tinha feições simbólicas, econômicas, sociais e políticas, fosse para combater os estigmas de Mato Grosso como fronteira-sertão, fosse para alterar sua definição e identidade, ou ainda para afirmar seu poder de mando na sociedade.
Palavras-chave: D. Carlos Luiz D’Amour, Imagens, Mato Grosso, Miranda, Boa sociedade.
Abstract: The paper analyzes the construction of individual and collective self-images by the landowners and enslaved, public workers, authorities, liberal professionals and merchants of Miranda, Santa Rita de Nioaque, Campos de Vacaria and Campo Grande during the pastoral visit of the bishop of Cuiabá, D. Carlos Luiz D'Amour, in the south of the province of Mato Grosso in 1886. This elite sought to impose positive self-images about the region and themselves, among them the idea that they participated in civilization, culture, refinement, sciences, humanities and the arts of good behavior. In order to do so, they attempted to construct an ostentatious self-presentation to exalt their role as pioneers, civilizers of backwoods, patriots and promoters of progress. This performance had symbolic, economic, social and political features not only to combat the stigmas of Mato Grosso as “frontier-sertão” and change its definition and identity but also to affirm its power of command in society.
Keywords: D. Carlos Luiz D'Amour, Images, Mato Grosso, Miranda, Good society.
No final do século XIX, no contexto das reformas católicas1, as visitas pastorais eram um dos principais mecanismos de gestão das dioceses e de afirmação da jurisdição episcopal, devendo ser realizadas pelos bispos com regularidade. Seus fins eram inspecionar o funcionamento das paróquias; difundir a doutrina católica; fiscalizar, repreender e combater os desvios dos fiéis e do clero, conservar os bons costumes; exortar a população à pratica religiosa, regularizar a situação dos diocesanos, corrigir os descasos com templos, cemitérios e com os objetos litúrgicos; impor práticas e vivências religiosas centradas nos sacramentos, entre outros2.
D. Carlos Luiz D’Amour foi o segundo bispo a administrar a diocese de Cuiabá e o primeiro a realizar visitas pastorais, sendo uma ao norte, em 1885, e outra ao sul, em 18863. A escassez de clero e de recursos e os problemas de saúde não permitiram que realizasse novas viagens. Ou seja, nem sempre a legislação eclesiástica era cumprida pelo episcopado.
Pretende-se enfocar nesse artigo outras dimensões das visitas pastorais, sobretudo as autoimagens construídas pelas elites do município de Miranda4, cujo território compreendia as povoações de Santa Rita de Nioaque, Campos de Vacaria e Campo Grande, durante a visita pastoral do bispo de Cuiabá, D. Carlos Luiz D’Amour, ao sul de Mato Grosso, em 18865. As elites locais eram constituídas por proprietários de terras e escravizados, por profissionais liberais, por autoridades municipais e por comerciantes. A região era povoada por diferentes etnias indígenas e, após a Guerra do Paraguai (1864-1870), estava em acelerado processo de ocupação e povoamento.
Seguindo os percursos de Balandier (1982), Geertz (1985) e Burke (1994), a preocupação é enfocar as diferentes imagens construídas e difundidas, a fim de revelar a forma como foram veiculadas na época e como desejavam ser vistos pela comitiva episcopal, pelos seus contemporâneos, como também pela posteridade, pois essas imagens eram legados à memória coletiva. Segundo Bourdieu (1999, p. 13), as “lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio”.
Os principais acontecimentos e realizações da viagem pastoral foram registrados pelo secretário particular, o cônego Bento Severiano da Luz, e publicados, em 1890, com o título Itinerário da visita pastoral (MESQUITA, 1927, p. 22)6. O objetivo do trabalho sistemático de registrar era o de criar uma imagem pública oficial sobre D. Carlos, ao celebrar e eternizar a viagem e ao glorificar a pessoa do bispo, sua posição hierárquica e autoridade e as conquistas no campo da religião. Luz mostrava-se curioso a respeito da natureza, da geografia, dos diferentes indivíduos, grupos e segmentos sociais com que entrou em contato, dos costumes e comportamentos e de tudo o que acontecia ao seu redor, sempre imprimindo suas marcas e juízos de valor de acordo com o modo como ele os viu e os representou. Todos os indivíduos foram observados, assim como as motivações dos seus comportamentos, gestos, falas, expressões faciais, posturas corporais, paixões, fraquezas, erros, vestuários, formas de morar, higiene, religiosidades, entre outros aspectos, pois tudo era objeto de interesse, estudo e reflexão. Suas reflexões são reveladoras de como ele era, das formas como viu a sociedade com que estava interagindo e como via as elites locais. Essas apreciações mudavam diante de cada circunstância ou situação, sendo construídas imagens imprevisíveis, a partir da assimilação ou da rejeição do universo do outro, que não podiam ser controladas pelos indivíduos e grupos que as forjavam, pois estavam submetidas ao seu olhar e ao de D. Carlos. Em suma, o relatório da viagem é uma fonte privilegiada e permite inúmeros enfoques e abordagens.
A presença da comitiva episcopal era um fato de autoridade e de poder, cujo espaço sempre fora construído de forma autoritária, assimétrica e raramente dialógica. Luz (1979, p. 140, 148, 162) se sentia melhor quando estava próximo das pessoas “mais gradas” e menos à vontade em relação à “gente miúda” ou da “pobreza”. O eixo central da narrativa era D. Carlos e seus contatos com as elites, e a população era valorizada quando se apresentava de forma disciplinada e ordeira e com gestos introspectivos, tais como silêncio e recolhimento. Em Campo Grande, por exemplo, a comitiva episcopal foi recebida por “uma multidão de cavaleiros perfilados como dez batalhões, tendo por uniforme (quase todos) palas listradas e de duas vistas”. Na despedida, “o povo estendeu-se prostrado de joelhos em duas alas e recebeu a bênção. Foi tocante, enternecedor e sublime este espetáculo de fervor e humildade das ovelhas” (LUZ, 1979, p. 181). A aglomeração de pessoas, o interesse em aproximar-se do bispo para tocá-lo, os atropelos, os tumultos, os apertos, os choros das crianças e os sussurros eram vistos como indisciplina, ignorância e má educação (LUZ, 1979, p. 175, 180, 182). Para Luz, no contato com a população, D. Carlos exercitava sua paciência, bondade, simplicidade e humildade, ressaltando suas qualidades excepcionais, e com as elites seu refinamento, cortesia e erudição.
O relatório da visita pastoral, como um monumento, é um produto da sociedade que o fabricou, segundo as relações de força daqueles que detinham o poder (LE GOFF, 1990). Nesse sentido, é necessário desmontar, demolir e desestruturar essas construções e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos, pois estão investidos de intencionalidades, entre elas a de fascinar os leitores pela ação episcopal e pelos avanços na cristianização, no processo civilizatório de Mato Grosso e na construção de imagens positivas sobre a região e as elites locais. Bhabha (1998, p. 125) adverte sobre o retorno dessas imagens aos sujeitos e sua apropriação na construção da própria identidade.
Mato Grosso no olhar do cônego Luz
Luz (1979) tinha imagens pré-estabelecidas sobre as terras e populações mato-grossenses, que eram associadas às regiões desconhecidas, isoladas e de clima tropical. Sua narrativa é eivada de concepções etnocêntricas, eurocêntricas, racistas, católicas e de juízos de valor associados aos conceitos de civilização, progresso e barbárie. A identidade de Mato Grosso, construída por viajantes nacionais e estrangeiros e pelos mato-grossenses, estava assentada na noção de fronteira-sertão, ou seja, como outro espaço geográfico, simbólico e social do território brasileiro (GALETTI, 2000, p. 165-170). Seria um local ermo, isolado, inóspito, periférico face aos centros do poder, bruto, problemático, misterioso, violento, selvagem, povoado por populações indígenas, desconhecido e de atraso religioso. O sertão era a negação da cultura e da civilização, um “mundão” abandonado, formado por terras que não se acabavam. As populações, devido à mestiçagem entre negros e índios, seriam racialmente inferiores, indolentes, infensas às normas, atrasadas moralmente e sem iniciativa.
Sobretudo após a Guerra do Paraguai (1864-1870), veiculavam-se imagens a priori negativas do município de Miranda, por ser de ocupação e povoamento recentes, sendo mais estigmatizado por estar distante da capital Cuiabá e de outros centros, tais como São Paulo e Rio de Janeiro. Seria atrasado, quase vazio, perigoso (devido às correrias indígenas), como um confim do mundo civilizado. As elites locais lutavam contra essa estigmatização e reivindicavam a alteração da sua definição e identidade.
D. Carlos foi persuadido por membros da comitiva episcopal e por autoridades de Corumbá a excluir Campo Grande do roteiro da viagem, devido à “falta de estradas, de moradores e comodidades”, ou seja, por ser um local distante, pobre e repleto de perigos (LUZ, 1979, p. 139). O subdelegado do distrito policial da Vacaria, tenente Joaquim Gonçalves Barbosa Marques, em ofício datado de 15 de junho de 1886, também alertava sobre a falta de “comodidades”, porém essa seria superada pela presença de “fiéis de coração urbano que ufanados e apressurados aguardavam a feliz chegada” (LUZ, 1979, p. 139). Marques trazia à existência as qualidades e virtudes da população, sua civilidade, urbanidade e hospitalidade. D. Carlos encontraria homens educados, cultos, que seriam sentinelas da civilização e do progresso nos sertões mato-grossenses (LUZ, 1979, p. 139). Apesar das pressões para excluir Campo Grande do roteiro, D. Carlos permaneceu resoluto no seu propósito, reforçando sua imagem de bom pastor, que se assemelhava a Jesus Cristo e que não media esforços para conhecer seu rebanho e salvá-lo (LUZ, 1979, p. 139-140).
Havia a preocupação de D. Carlos e da comitiva episcopal em instituir uma sociedade civilizada em Mato Grosso a partir da mudança nos padrões de hábitos, de costumes e de comportamentos dos diocesanos, sobretudo da população pobre. Educar, moralizar, disciplinar, intervir, civilizar eram demandas da Igreja, do Estado e das elites, pois desejavam superar os estigmas. O enquadramento dos costumes proporcionaria a uniformização do território e manteria a coesão social e populacional de Mato Grosso e do país. Como decorrência, o distinto grupo da comitiva exercia pressões constantes sobre os indivíduos e procurava reformar, aperfeiçoar os costumes e os comportamentos, a fim de naturalizar os novos modelos culturais emanados da Europa, sobretudo da França, e da corte imperial. A visita pastoral promovia os contatos e as trocas culturais entre ricos e pobres, disseminando ideias, valores, práticas, senso de hierarquia e etiquetas condizentes com a boa sociedade.
Os preparativos para o bem receber
As elites locais se esmeraram para impressionar os viajantes e para tentar impor imagens positivas. As comissões responsáveis pela recepção eram formadas pelas elites locais, que contavam com o apoio e a adesão da população. O objetivo era seduzir e criar autoimagens positivas, para si e para os outros, entre elas a imagem de que participavam da civilização, da cultura, do refinamento, das ciências, das humanidades e das artes do bem se comportar. Para Bourdieu (1988, p. 3-25), a estrutura social é um sistema hierarquizado e desigual de poderes e privilégios, que é determinada por relações econômicas, simbólicas, sociais e culturais. A posição de privilégios ou não-privilégios ocupada por um grupo ou indivíduo é definida a partir dos capitais adquiridos em suas trajetórias sociais. Naquele contexto, a opinião social tinha peso significativo na boa sociedade, a partir da qual se procurava planejar e construir sua autoapresentação ostentatória. Essa imagem, porém, estava sujeita à confirmação, à aceitação e à confirmação, ou não, por parte dos outros.
O trajeto da comitiva episcopal foi todo planejado pela elite local para que não houvesse surpresas, contando com o apoio da população, que se unia em torno do bem receber, escamoteando diferenças, hierarquias e desigualdades sociais. A estrutura montada era sofisticada e envolvia uma complexa logística, para o que foi definido um roteiro; organizaram-se as paradas e estadas; mensageiros foram enviados para anunciar a visita episcopal pela região; convocaram-se comitivas de cavaleiros e a população em geral para participar dos festejos; criaram-se comissões responsáveis pela recepção, estada e atendimento das necessidades da comitiva episcopal; planejaram-se o abastecimento das refeições durante a viagem e o envio de carretas puxadas por bois várias horas antes da partida da comitiva episcopal7; organizou-se uma agenda de festas e cerimônias; escolheram-se os melhores cavalos para os membros da comitiva; entre outras iniciativas. A competência para planejar, gerenciar e viabilizar a visita pastoral era uma demonstração da boa educação dessa elite e da sua plena capacidade para a atuação política, administrativa e cultural na sociedade, pois reforçava e confirmava sua pertença a uma classe superior, empreendedora, progressista e católica.
As expectativas eram grandes e todos se preparavam com antecedência para receber a comitiva, a fim de tornar os festejos grandiosos e pomposos, impressionar os viajantes e construir autoimagens favoráveis. Para tal, todos os detalhes eram supervisionados, desde a decoração das ruas, das igrejas e das hospedagens. Os investimentos financeiros para a realização dessas cerimônias eram grandes, podendo ser em banquetes, iluminação noturna das ruas, contratação de músicos, decoração, organização de saraus e chás, etc. A parte festiva era marcada pelas bandas, salvas, fogos de artifício e repique dos sinos das igrejas.
As chegadas e as despedidas eram demonstrações dos triunfos já conquistados. Por isso, eram celebrações solenes e festivas, que seguiam o modelo do triunfo romano, como convinha ao bem receber uma importante autoridade. Eram acontecimentos formais que tinham as devidas magnificências, com discursos de louvores à sua pessoa e à sua iniciativa, com demonstrações de lealdade e homenagens e com a submissão de todos à autoridade episcopal.
Em meio ao jogo político e simbólico, a conduta itinerante de D. Carlos, no contexto pós-Guerra do Paraguai, reafirmava seu direito de apropriar-se do espaço e das fronteiras de sua extensa diocese. Elias (2001, p. 133), ao analisar a corte de Luís XIV, afirmou que “o povo não acredita em um poder que, embora existindo de fato, não apareça explicitamente na figura de seu possuidor. É preciso ver para crer”. Dessa forma, D. Carlos, em seus aparecimentos, mantinha certo distanciamento em relação às pessoas (exceto das elites), o que tinha um fim em si: quanto mais distante se mantivesse, maior seria o respeito que o povo lhe conferiria. A eficácia simbólica extrapolava o teatro religioso e assumia feições religiosas, sociais e políticas de afirmação tanto do poder episcopal na sociedade quanto do poder de mando das elites locais, ou seja, o bem representar fazia parte das encenações.
As entradas assumiam, com frequência, formas triunfais e ritualizadas para consagrar os poderes espiritual e temporal de D. Carlos, pois tanto a elite local quanto as pessoas comuns faziam inúmeras reverências durante a sua passagem, mostrando respeito e submissão ao bispo que empreendia uma viagem heroica, representando os poderes espiritual e temporal. Inúmeras pessoas, a cavalo, incorporavam-se à comitiva episcopal e faziam parte do cortejo que entrava de forma festiva, sendo recebidos pela população local. Era uma oportunidade para ver de perto o bispo, cumprimentá-lo, receber sua benção e tocá-lo, por considerarem sua pessoa sagrada, um representante de Deus e de Jesus Cristo, como um santo que tinha poderes, como o de curar enfermidades. A estética do espetáculo tinha como fim atingir o emocional do público, transformando a presença de D. Carlos num momento celebrativo e idealizado. O objetivo era enaltecer suas qualidades prodigiosas ao construir uma imagem oficial sacralizada, divina, encantada, sábia, culta, educada a fim de difundir respeito e admiração. Enfim, a entrada solene era um espetáculo que tinha grande impacto sobre o imaginário da população, pois a presença de D. Carlos era carregada de simbologia e inseria-se na política de reforço e de consolidação da sua posição, do seu prestígio, do seu poder e da ratificação das distinções diante das demais pessoas, dando provas do valor absoluto da sua existência. Sua imagem se impunha à sua representação, o que lhe dava garantias de soberania religiosa e de submissão e veneração por parte dos diocesanos.
Durante a passagem da comitiva, o rebuliço era constante e havia inúmeros festejos, em sua maioria restritos às elites, que evidenciam a existência da boa sociedade. D. Carlos era o centro de alocuções, chás, saraus, jantares, serões, recitais de poesia e de música, reuniões comemorativas e abolicionistas. O bispo recebeu títulos beneméritos e mensagens de agradecimento e de obediência sem reservas, além de inúmeras demonstrações sempre pródigas de gratidão, reconhecimento, veneração, adesão, amor e acatamento. Cartas, ofícios e poemas foram lidos em seu louvor, concertos musicais foram organizados, discursos foram proferidos e brindes foram erguidos em jantares para valorizar a iniciativa de realizar a viagem pastoral, superando os riscos, sacrifícios e privações, a fim de difundir o catolicismo (LUZ, 1979, p. 177).
Apesar de as elites serem orgulhosas dos avanços já conquistados, fazia parte dos protocolos desculpar-se para conquistar a simpatia dos visitantes, elevar seu moral e também exercitar e demonstrar a existência da boa sociedade. As autoridades municipais de Miranda consideravam que o processo civilizatório não tinha atingido o “ponto desejável” para que as “demonstrações de regozijo fossem maiores” e compatíveis com a dignidade da autoridade episcopal (LUZ, 1979, p. 150). Gustavo Adolfo Ferreira Machado, proprietário da fazenda Canta-Galo, elogiou D. Carlos por abandonar o conforto de Cuiabá para visitar os “inóspitos sertões” (LUZ, 1979, p. 171). João Caetano Teixeira Muzzi, no discurso de boas-vindas na fazenda Passa Tempo, destacou a chegada do bispo “a este ponto ainda sertão” (LUZ, 1979, p. 177-178). Em Campo Grande, José Antonio Pereira afirmou que viviam “imensamente distantes dos centros populares onde [havia] instrução e recursos de toda natureza” e pedia desculpas “pelas faltas” e pela pobreza para obsequiar o ilustre visitante (LUZ, 1979, p. 186). Reconhecer a posição hierárquica de D. Carlos, demonstrar fidelidade e submissão à sua autoridade e desculpar-se pela simplicidade dos festejos, por serem impróprios à sua dignidade, evidenciavam boa educação e urbanidade e comprovavam a naturalização de hábitos sociais refinados e civilizados.
Civilização, progresso e boa sociedade
Em Miranda, na recepção, no dia 9 de setembro, estavam no porto o vigário Julião Urquia, membros da municipalidade, o comandante militar, autoridades policiais e “muita gente miúda” (LUZ, 1979, p. 148). A cerimônia foi festiva, com música, fogos e repiques de sino. No dia seguinte, o capitão Tibério Augusto de Arruda, representando a Câmara Municipal, leu para o bispo uma mensagem de agradecimento, que demostrava a fidelidade e submissão das autoridades e dos munícipes, como “verdadeiros cristãos”, à autoridade episcopal, que era desconhecida pela população, pois administrava a diocese da longínqua cidade de Cuiabá:
A Municipalidade [...] [manifesta] [...] os sentimentos jubilosos de seus habitantes pela feliz chegada de V. Exa. Rvma. a esta comarca, depositando nas sagradas mãos de V. Exa. Rvma. a mais respeitosa homenagem de amor filial [...] como Supremo Chefe da Igreja Cuiabana. Nesse inefável prazer se juntam as ações de graças [...] pelos benefícios resultados que toda esta vasta comarca há de infalivelmente colher de Vossa Divina Missão, pois que, a maioria dos habitantes sabem apenas por tradição pertencerem à Vossa Diocese, e sois o primeiro Bispo que pisais as terras desta grande e esperançosa parte de Mato Grosso (LUZ, 1979, p. 149).
Arruda ressaltou duas qualidades da população mato-grossense: o patriotismo e a catolicidade. A Igreja Católica imprimia ordem e disciplina na sociedade, uma vez que o equilíbrio entre os poderes temporal e espiritual era essencial para o progresso, a unidade nacional e a civilização do Brasil e de Mato Grosso. Como decorrência, caberia aos brasileiros, como patriotas, esforçarem-se pela sua conservação e estabilidade, pois esses valores se reverteriam em benefícios à sociedade, uma vez que eram essenciais à existência tanto individual quanto coletiva (LUZ, 1979, p. 150). Após, o vereador Moreira Serra saudou o bispo, qualificando-o como “Apóstolo do trabalho e Missionário do Progresso”, e enfatizou os afetos “sem limites” e a obediência “sem reservas” de todos os munícipes (LUZ, 1979, p. 150).
Antes da partida para Nioaque, foi oferecido, “à última hora por uma comissão de distintas senhoras”, um jantar na residência episcopal, pelas “quatro horas da tarde”. D. Carlos foi convidado pelo advogado João Augusto da Costa Leite, “um dos cidadãos mais estimados e simpatizados do lugar pelas suas qualidades de coração, que o fazem recomendável como às da inteligência” (LUZ, 1979, p. 157). O jantar teria sido um acontecimento elegante e refinado: “achando-se disposta no salão da casa uma grande mesa em que tomaram assento S. Exa. Rvma., o pessoal de sua comitiva, dezoito ilustres senhoras e alguns cavalheiros de distinção”. Noutra mesa, “tão lauda e escolhida como a primeira”, estavam os demais membros da comitiva episcopal e o vigário. À hora da pragmática, “ergueram-se vários brindes” em homenagem ao bispo, ao povo mirandense e ao cônego Luz. Sobre D. Carlos, destacaram suas qualidades, modéstia e abnegação, pois comprometia sua “saúde e vida” para salvar as “humildes ovelhas do seu rebanho”. D. Carlos, por sua vez, discursou duas vezes, agradecendo as “solenes provas de respeito, de dedicação e amor, de que era objeto” (LUZ, 1979, p. 157). O tenente Alencar agradeceu o povo mirandense pelas homenagens e calorosa recepção (LUZ, 1979, p. 157). Também foram saudados “um a um” os demais membros da comitiva episcopal que se encontravam na outra mesa. Segundo Luz (1979, p. 158), o “jantar correu na melhor harmonia ao som da banda de música local, e deixou impressões únicas e desconhecidas ali, em festas desse gênero”.
Os membros da Câmara Municipal, a fim de eternizarem a primeira visita pastoral e homenagearem D. Carlos, alteraram o nome da principal praça da vila, com o intuito de demonstrar o “respeito, estima e alta consideração” e expressar “os sentimentos de prazer e alegria” dos munícipes. Assim, o Largo do Quartel passou a denominar-se Praça D. Carlos (LUZ, 1979, p. 158).
Em Nioaque, na recepção, estava postada uma “guarda de honra”, “grande parte da população, destacando-se as pessoas mais gradas”. O espetáculo seduzia pelo conjunto de ações simultâneas: o tropel dos cavalos, o estrondear das girândolas e o som da banda e do sino (LUZ, 1979, p. 162). A recepção foi “aparatosa”, “animadíssima” e “brilhante”, ou seja, condizente com a autoridade de D. Carlos e de um lugar povoado por pessoas civilizadas:
Muito fogo do ar e repiques de sinos se fizeram ouvir nesse momento de concerto com a música militar que rompeu com entusiasmo e o hino da independência. Finda esta parte do recebimento, que esteve aparatosa e animadíssima, S. Exa. encaminhou-se para a casa que lhe havia sido preparada, onde nada faltou para brilhante remate da recepção (LUZ, 1979, p. 162-163).
Durante a permanência da comitiva episcopal, a banda de música do batalhão de Nioaque tocava, todas as noites, repertórios variados em frente à residência episcopal. No dia 6 de setembro, último dia de permanência da comitiva episcopal, foi oferecida, pela manhã, no paço episcopal, “uma mesa cheia de doces, bolos, etc.” e D. Carlos recebeu vários presentes. À noite, as fachadas da igreja matriz e do quartel foram iluminadas. Da porta da igreja, estendiam-se duas linhas de estacas com luminárias até à residência episcopal e à casa do comandante (LUZ, 1979, p. 166-167).
O bispo foi visitado pelos militares, pelas autoridades, pela professora primária e seus 18 alunos (14 meninos e quatro meninas), por várias famílias e “por muita gente pobre” (LUZ, 1979, p. 165). Luz (1979, p. 165) destacou a visita de dois abastados fazendeiros, Antonio Francisco Rodrigues Coelho e João Caetano Teixeira Muzzi ― este também era capitão honorário do Exército. Eles colocaram à disposição os meios de transporte que fossem necessários, impressionando “agradavelmente” D. Carlos, sendo considerados filhos dedicados da Igreja Católica e “cidadãos prestantes e recomendáveis por suas distintas qualidades e sentimentos”. Ou seja, seriam referências de cortesia, civilidade, patriotismo e catolicidade.
Nos Campos de Vacaria, as recepções foram festivas e solenes. Os arcos do triunfo, por onde passavam a comitiva episcopal, expressavam a importância da situação. As decorações eram variadas, em geral com flores, frutas e ramadas. A entrada da fazenda Boa Esperança foi decorada com “arvoredos, plantados de véspera, arcos de palmas e flores campestres”, fogos de artifício e toques de sino (LUZ, 1979, p. 168). Na fazenda Canta-Galo, a recepção foi marcada por um “bonito arco, alguns foguetes, salvas de ronqueira e bacamarte foram os sinais dos festejo” (LUZ, 1979, p. 171). A recepção da comitiva na fazenda Passa Tempo foi planejada para ser festiva, triunfal e pomposa. Em frente à casa, foram erguidos dois arcos com flores e frutas. O segundo arco estava assentado sobre
[...] colunetas pintadas de azul entrelaçadas de ramos verdes, dos quais pendiam bonitas pencas de laranja, e na parte superior uma tabuleta com esta inscrição: Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor. Deste arco partiu uma rua de arvoredos até a entrada da casa e duas alas de senhoras no mesmo sentido (LUZ, 1979, p. 175).
D. Carlos, ao passar por elas a pé, lançava bênçãos. Durante toda a permanência da comitiva episcopal, muitas pessoas foram visitar o bispo, “e o aperto era enorme e espantoso o fervilhar de homens, mulheres e crianças indo e vindo até alta noite” (LUZ, 1979, p. 175).
Durante a passagem da comitiva episcopal, D. Carlos recebeu inúmeras homenagens, presentes e contribuições financeiras. Antonio Figueiredo Rodrigues Coelho, no discurso de boas-vindas, destacou os sacrifícios e os riscos que D. Carlos enfrentou ao percorrer 450 léguas ao sul da província, sobretudo as “correrias dos selvagens de que é ela mais povoada” e onde “não há um só lugar que não fazem”. Ao cumprir seu “sagrado dever”, inspecionava as paróquias, acudia as faltas de que elas necessitam e se achava em meio do povo, que se orgulhava por isso (LUZ, 1979, p. 170). O reforço dos estigmas da fronteira-sertão também foi utilizado por João Caetano Teixeira Muzzi, por ocasião da despedida de D. Carlos da fazenda Porto de Santa Rosa. Muzzi elogiou D. Carlos, pois, apesar de ser um “Príncipe da Igreja”, submeteu-se aos “riscos e perigos” que havia naquelas paragens, suportou “sacrifícios e martírios” e padeceu “do nosso viver precário” pela causa da Igreja (LUZ, 1979, p. 174). As referências às dificuldades enfrentadas, aos riscos à integridade física, às distâncias geográficas inseriam-se como estratégia discursiva para enobrecer e dignificar D. Carlos, associando-o a Jesus Cristo e ao bom pastor, que suportava a tudo para cumprir sua missão civilizadora e apostólica, com força, determinação, coragem, onipotência, entre outras qualidades, do que seu triunfo sobre os elementos externos.
Na fazenda Canta-Galo, uma hora após a chegada da comitiva, foi servida uma ceia, precedida de uma alocução, na qual Gustavo Adolfo Ferreira Machado se desculpava por não ter os “recursos intelectuais para, nesta solene ocasião, demonstrar o prazer” de receber a visita de D. Carlos. Ao falar em nome do “povo serrano”, ufanava-se da visita, pois
[...] nunca esperávamos que V. Exa. abandonando os cômodos da vida, transpusesse inóspitos sertões para suavizar as dores dos fiéis de tão remoto Município; a esperança por que veio conhecer um povo que, esquecido pelos poderes públicos, vive de seus precários recursos; e a caridade porque viestes com o vosso exemplo nos reanimar (LUZ, 1979, p. 171).
A presença de D. Carlos trazia “fé e esperança”, “prazer e contentamento” e “melhoramento moral”. D. Carlos agradeceu e louvou os sentimentos religiosos manifestados (LUZ, 1979, p. 171). Na fazenda Porto de Santa Rosa, João Caetano Teixeira Muzzi, no pátio da residência, diante de todos os “criados e camaradas”, salientou o “acatamento, respeito e amor” à pessoa do bispo e agradeceu por ter enfrentado “sacrifícios e martírios pela causa da Igreja” e ter chegado “nestas paragens cheias ainda de riscos e perigos”, a fim de atender aos interesses dos diocesanos (LUZ, 1979, p. 174).
João Caetano Teixeira Muzzi, proprietário da fazenda Passa Tempo, em nome dos vacarianos, mandou confeccionar, no Rio de Janeiro, um cálice de ouro, “de primoroso valor”, cravejado de ametistas, com valor estimado em 1:400$000, para presentear D. Carlos (LUZ, 1979, p. 176). Para eternizar o acontecimento o cálice trazia na base do seu pedestal a seguinte inscrição:
À Sua Exa. Rvma. o Sr. D. Carlos Luiz d’Amour, Bispo desta Diocese, oferecem os Vacarianos em sinal de regozijo, contentamento e da agradável surpresa que tiveram no dia 20 de setembro de 1886, com a feliz chegada de S. Exa. a este ponto ainda sertão, em Visita Pastoral (LUZ, 1979, p. 177-178).
O presente seria um atestado da gratidão e reconhecimento aos “esforços”, “ousadia”, “força de vontade”, “coragem” e “resignação” para romper “o véu destes sertões” e tornar-se a primeira autoridade de Mato Grosso a visitá-los, apesar de ser aquela que menos recursos econômicos dispunha para empreender uma viagem. D. Carlos, pelo elevado posto que ocupava como chefe da Igreja Católica, como “[Príncipe] da Igreja”, seria uma autoridade “vitalícia”, que possuía as mais “altas atribuições”, promotora do “bem estar social” e da “salvação por meio dos sacramentos e da palavra”, além de possuir os meios para extirpar a “ignorância” (LUZ, 1979, p. 177-178).
Por ocasião da realização do matrimônio da neta de Luiza Garcia Leal, a pedido de D. Carlos, foi concedida, “sem ônus algum, carta de liberdade a um seu escravo”. Também foi alforriada uma escravizada, sendo o seu senhor indenizado, por meio de uma subscrição, no valor de 400$8008. Os festejos estenderam-se até à noite, quando o bispo participou de uma serenata na residência de “Barnabé Gonçalves Barbosa, irmão e vizinho do Sr. Joaquim Barbosa”. Segundo Luz, “tudo ocorreu na melhor ordem e simplicidade, mostrando os tocadores ter suficientemente desenvolvido o gosto pelo canto e pela música” (LUZ, 1979, p. 175-176). O ambiente austero e regrado era uma exigência diante da presença episcopal, pois sua imagem não se separava da religião católica, da sua posição hierárquica e função e, como decorrência, deveria manter-se afastado da mundanidade.
A recepção em Campo Grande também foi festiva, quando a comitiva foi recebida por
[...] uma multidão de cavaleiros perfilados como dez batalhões, tendo por uniforme (quase todos) palas listradas e de duas vistas. Depois deste encontro vieram outros e mais outros até a povoação, a cuja entrada repetiu-se a mesma cena dos outros povoados, isto é, fogo do ar, salvas de ronqueiras, beija-mão etc. (LUZ, 1979, p. 181).
Durante a estadia, houve cerimônias religiosas e homenagens a D. Carlos. No domingo, dia 3 de outubro, foi oferecido um almoço, quando foram realizados vários discursos exaltando a presença do bispo e “os benefícios feitos com tanta dedicação e desinteresse”, sendo erguidos “diversos brindes” (LUZ, 1979, p. 184). Entre as homenagens, foi lida a poesia “Gratidão”, por um dos expectadores, sendo exaltadas suas qualidades como apóstolo e pastor e como homem caridoso, puro, bondoso, abnegado e do bem (LUZ, 1979, p. 184). D. Carlos retribuiu as homenagens doando um retrato seu, que foi colocado na sacristia da igreja. Na despedida, José Antonio Pereira discursou como “representante do povo” e o agradeceu por ter “empreendido uma longa e penosa viagem” para levar assistência àqueles que estavam privados desses recursos espirituais, de instrução e de “recursos de toda natureza” (LUZ, 1979, p. 186).
Na viagem de retorno, a comitiva se hospedou na fazenda Boa Esperança. Durante o almoço, Antonio Francisco Rodrigues Coelho discursou em nome do povo, desejando um “feliz regresso”. D. Carlos simbolizava a justiça, a liberdade e o amor, sendo a religião católica um dos principais alicerces da sociedade. O povo mato-grossense foi representado como “contrito e respeitador”, que nutria “consideração e alta veneração” à pessoa do bispo e cujos conselhos seriam seguidos. Por isso, nas despedidas, as pessoas choravam e sempre afirmavam que se lembrariam das suas glórias (LUZ, 1979, p. 190). Coelho, para valorizar as iniciativas de D. Carlos, recorreu, como estratégia narrativa, aos estigmas de Mato Grosso como fronteira-sertão:
A nossa alegria é justa e natural. Quem como V. Exa. tem feito tantos sacrifícios, percorrendo uma zona extensíssima, e ainda quase desabitada, para curtir nos corações dos fiéis a verdadeira religião do mártir do Gólgota; quem como V. Exa., tem exposto à chuva, ao frio e sofrido mil dificuldades em transpor rios e pantanais, por estes desertos imensos, para derramar por sobre uma população inteira o verbo inspirado da verdadeira caridade; quem como V. Exa. arrostando a toda a sorte de perigos, caminha sem descanso e sem cessar, espalhando benefícios, conselhos, já formando famílias e já arrancando do cativeiro míseras criaturas que viviam subjugadas pelo despotismo dos homens, fazendo-as fitar desassombradas o sol esplendoroso da liberdade (LUZ, 1979, p. 189-190).
Coelho assumiu as despesas do transporte de Ladário a Miranda, como compensação pelas fadigas e desvelos por que passou durante a viagem, “pelo muito que tem feito em prol da religião, da caridade e da liberdade”, pela civilização de Mato Grosso e pela difusão dos ideais abolicionistas. Ele também disponibilizou uma carreta, puxada por quatro bestas, permitindo que o bispo viajasse mais comodamente e chegasse a Campo Grande (LUZ, 1979, p. 191). Para Luz (1979, p. 190), essas iniciativas eram demonstrações de apreço à pessoa e autoridade de D. Carlos e à elevada civilidade, cortesia, urbanidade e refinamento de Coelho.
Em Nioaque, na despedida, houve uma reunião de “senhoras e cavalheiros” para um concerto na residência episcopal. A orquestra, que se compunha de uma harpa e de uma rabeca, executou várias músicas “ao sublime”, pela “alma, colorido, movimento correto das mãos”. Ao término, “os aplausos rebentavam em toda a sala”. Após o recital, foi servido um chá e foram trocados vários brindes (LUZ, 1979, p. 193).
A comitiva retornou a Miranda no dia 21 de outubro, sendo sua chegada anunciada com repiques de sinos, música de pancadaria e fogos de artifício. A residência episcopal pertencia a Antonio Canela, de nacionalidade italiana. A casa “estava convenientemente adornada” e correspondia ao alto emprego a que era destinada. Na porta uma tabuleta “artisticamente acabada”, onde se lia Haec est victoria quae vincit mundum: fides nostra (Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé) (LUZ, 1979, p. 193-194). Nas paredes, havia “quatro grandes quadros de rica moldura com as figuras da fé, da esperança, da oração e do êxtase”. À noite, as casas foram iluminadas e houve “manifestações de regozijo”, tais como repique de sinos, salvas e fogos de artifício (LUZ, 1979, p. 194).
Luz (1979) elogiou inúmeros indivíduos pela qualidade da oratória e pelo uso correto do vernáculo. Antonio Figueiredo Rodrigues Coelho, no discurso para homenagear D. Carlos, pediu desculpas pelo uso de “palavras incorretas”, devido à sua “inaptidão, para exprimir o brinde”, ressaltando, ao contrário, sua erudição. Como grande orador, soube esmerar-se na pronúncia das palavras e no uso correto e poético do vernáculo (LUZ, 1979, p. 170). Em Miranda, o tenente Alencar discursou de “improviso” e feito “naquela frase rendilhada e elegante em que a inteligência cultivada tão aplaudidamente impõe-se aos que têm a satisfação de ouvi-lo, foi brilhantíssimo de elegante e de verdade, e muito honroso àquele povo” (LUZ, 1979, p. 157).
Segundo Bourdieu (1988, p. 36-52), a língua não é somente um instrumento de comunicação, mas também de poder. Os emissores restringiam-se a D. Carlos, aos principais membros da comitiva episcopal e às elites locais, as únicas que estavam autorizadas a tomar a palavra e a se dirigirem aos destinatários legítimos, reconhecidos e reconhecedores. O poder de tomar a palavra funcionava como indício da posição hierárquica e de classe social favorecendo, dessa forma, a dominação. A população em geral, ao contrário, estava condenada ao silencio, porém poderia aceitar ou não as mensagens, pois escutar nem sempre levava a crer. O domínio da oratória e da gramática permitiam as produções de discursos adaptados e coerentes àquelas ocasiões. As elites ao discursarem, mesmo quando improvisavam, se vigiavam para obter, sem esforço aparente, a correção linguística e da pronúncia e em demonstrar o domínio de formas rebuscadas, favorecendo a aceitabilidade por parte dos receptores. O uso do pronome de tratamento adequado para D. Carlos também supõe a internalização das regras de gramática, da polidez, das barreiras hierárquicas. Em suma, o domínio prático da língua reafirmava o pertencimento dessas elites à cultura superior e letrada.
Muitos indivíduos pertencentes às elites foram elogiados por Luz (1979) pela polidez, cortesia, amabilidade, urbanidade, delicadeza, honradez e boa educação. Em Nioaque, Luz registrou preitos de reconhecimento, “acima dos elogios”, ao tenente-coronel Pedro Jose Rufino e à sua “virtuosa esposa”, Anna Joaquina, pelas “maiores delicadezas e atenções” e por prodigalizarem “as maiores provas de atenção e simpatia” à comitiva e a Luiz Bassi, responsável pelo “arranjo e serviço da mesa”, sobretudo por esta ser “delicadíssima, abundante e variada, o que muito o honra como perito na arte culinária” (LUZ, 1979, p. 168). Em Formosa, na casa de Theodoro Paes da Silva Rondon, foi acolhido “muito urbanamente”, tratando a comitiva episcopal “do melhor modo possível” (LUZ, 1979, p. 159). O proprietário do sítio Bonfim, Benedito de Souza Canavarros, foi descrito como um homem de “caráter honrado e sentimentos generosos” (LUZ, 1979, p. 160). Em Forquilha, Antonio da Costa Maranhão e sua esposa, Francisca Candida, receberam os viajores “com demonstração de benevolência e alto apreço” e foram “incansáveis em dar assinaladas mostras a provas de sua satisfação e prazer. Todos os cômodos nos foram proporcionados”, e Dona Francisca “teve a fineza” de presentear o bispo com uma almofada bordada a retrós, com sofisticado acabamento (LUZ, 1979, p. 161). Ao partirem, na manhã do dia 28 de setembro, foram servidos “excelente leite”, café, pão, queijo e manteiga, e era de se admirar “o aprimorado modo por que servia a todos a Exma. Sra. D. Francisca, distintíssima rio-grandense, em quem se acham reunidos todos os dons que podem fazer uma esposa perfeita, um verdadeiro tipo de dona de casa” (LUZ, 1979, p. 162). O proprietário da fazenda Boa Esperança, Antonio Figueiredo Rodrigues Coelho, teria dispensado “o melhor tratamento possível, com o que confirmaram os justos títulos por que é tão falada sua casa onde todos tem ufania e gosto de serem hospedados” (LUZ, 1979, p. 170). Na fazenda Canta-Galo, o acolhimento foi considerado afetuoso, “havendo o maior contentamento e franqueza na hospitalidade oferecida” (LUZ, 1979, p. 171). Na fazenda Porto de Santa Rosa, propriedade de João Caetano Teixeira Muzzi, a comitiva foi recebida “com um cavalheirismo exemplar” e, na segunda passagem da comitiva pela fazenda, todos os cuidados transformaram “os aborrecimentos de uma fadigosa viagem num paraíso de delícias. De antemão combinavam as coisas tão bem que estiveram ao abrigo de qualquer surpresa” (LUZ, 1979, p. 173, 189). Os proprietários da fazenda Passa Tempo, o tenente Joaquim Gonçalves Barbosa Marques e sua esposa Eufrosina Garcia Leal rodearam o bispo com “grandes atenções, muita bondade e franqueza. A hospedagem preparada foi tão boa” (LUZ, 1979, p. 175). Na fazenda Lageado, propriedade de José Pereira Martins, foram recebidos “com pompa já tantas vezes descrita” (LUZ, 1979, p. 180). Em Campo Grande, José Antonio Pereira, que era um “distinto cavalheiro”, concedeu “um tratamento franco e generoso quanto permitiam os recursos do lugar” (LUZ, 1979, p. 181). No retorno a Nioaque, “recebemos uma hospitalidade rodeada de extremas finezas” (LUZ, 1979, p. 192). Ou seja, em Mato Grosso, havia civilização e pessoas educadas, eficientes, polidas e elegantes.
Os cardápios incluíam pratos variados e sofisticados e, em Miranda, foram elaborados por um chef de cozinha. A dieta alimentar nas residências mais abastadas tinha um cardápio diversificado e variavam em quantidade e qualidade. No café da manhã era servido queijo, manteiga, leite, pão, bolachas e bolos. As demais refeições incluíam vinho e carnes variadas de peixes, de bovinos, de aves e de caças. A dieta dos mais pobres, ao contrário, era constituída de farinha de mandioca, churrasco e tereré. Durante a viagem pastoral havia dias “de magro”, quando a comitiva estava viajando, e outros “de gordo”, quando estavam hospedados. Porém, havia dias que deveriam ser “de magro”, mas que foram “de gordo, pois tivemos excelente matolagem e todos comeram com bom apetite” (LUZ, 1979, p. 172).
Outro aspecto que identificava o grau de civilização e progresso alcançados era a qualidade das residências. Os principais membros da comitiva eram hospedados em residências especialmente preparadas para servir de residência episcopal e, durante os deslocamentos, nas sedes das fazendas mais abastadas. Luz (1979) pautava suas observações nas teorias do higienismo, que defendiam a necessidade de reformas para higienizar os espaços urbanos e mudar os padrões sociais e de comportamento das populações. Dessa forma, conferia ares mais científicos para explicar o que observava e para fundamentar suas propostas. Ele valorizava aquelas residências com cobertura de telhas, que tivessem muitas divisórias e boas condições de saneamento e salubridade. Havia em Miranda “59 casas cobertas de telha e umas poucas de capim” e, em Campo Grande, havia “86 casas, quase todas de telhas”. Em Miranda, nenhuma foi elogiada e, em Nioaque, apenas duas casas foram consideradas boas (LUZ, 1979, p. 151-152, 163).
Luz (1979, p. 162) criou diferenciações entre casebres, ranchos e casas, em razão do número de peças e do tipo de telhado, e não em virtude da técnica construtiva. Os ranchos tinham pequena quantidade de peças, em geral duas, e os casebres apenas uma. Foram descritas inúmeras edificações simples, de pau a pique e sem reboco, cobertas com capim e palha, com poucos compartimentos, com chão batido e poucos utensílios domésticos. Almeida (2014, p. 348), ao analisar os inventários post-mortem, constatou que a maioria dos grandes proprietários rurais vivia em habitações rústicas, com mobília e objetos essenciais para a sobrevivência no campo. Ou seja, viviam de “forma simples”.
As residências mais abastadas eram poucas e localizavam-se nos Campos de Vacaria. Em sua maioria, eram construídas com madeira e tijolos, cobertas com telhas de barro, tinham muitos compartimentos, varandas, móveis (armário, banco, baú, cadeira, mesas, camas, cômoda, canastra, guarda-roupa, sofá), decorações (tais como papel de parede, quadros, almofadas, oratórios) e variados utensílios domésticos. Tinham também jardins e pomares e áreas separadas para os hóspedes. Esses detalhes, ao mudarem o visual acanhado do interior e do exterior das residências, as tornavam luxuosas para os padrões da época.
A opulência dessas construções não servia apenas para o deleite e conforto dos moradores, mas era também uma demonstração do requinte, da distinção e da opulência do seu proprietário. Em Forquilha, a residência de Antonio da Costa Maranhão tinha “duas salas de frente forradas de mimoso papel bordado” (LUZ, 1979, p. 162). A residência da fazenda Porto de Santa Rosa foi elogiada por atender às normas higienistas vigentes na época. Ela seria “confortável”, “aprazível”, “espaçosa”, “arejada” e “iluminada”, higiênica e teria elegantes móveis. A divisão dos espaços permitia a separação dos hóspedes da área restrita aos familiares, evitando os contatos indesejados. A sede da propriedade incluía inúmeras construções e tinha jardim e pomar:
A casa da vivenda é ótima; bem construída, espaçosa e ornada de elegantes móveis. Os cômodos são excelentes e tão convenientemente divididos, que sendo ocupados por hóspedes, ficam estes inteiramente independentes da família. Há outras casas próprias para mantimentos; um engenho de cana, olaria, tenda de ferreiro, e estava em começo uma casa de serraria bem montada. A fazenda é aformoseada por árvores frondosas e circundada de muitas fruteiras, notando-se muito gosto nas partes componentes dessa bela morada, devido ao natural, ativo e industrioso de seu proprietário, que entende de tudo um pouco e exerce um pouco de todas as profissões (LUZ, 1979, p. 173).
Outra residência elogiada foi a da sede da fazenda Passa Tempo, sendo considerada “boa e espaçosa, tem o pavimento quase todo assoalhado e estava pintada de novo” (LUZ, 1979, p. 177-178). O assoalho revelava o refinamento, a sofisticação da construção e o poder aquisitivo dos proprietários, por tratar-se de um detalhe raro de ser encontrado na região.
O dever da hospitalidade, a inclinação à oratória, o cumprimento das etiquetas e as normas de convívio social criavam imagens oficiais e idealizadas dos locais visitados, na tentativa de atestar o avanço do processo civilizatório. As elites procuravam difundir autoimagens de civilizadas, inteligentes, cultas, progressistas, educadas e amantes das artes e das humanidades. As boas maneiras e a cortesia seriam virtudes de indivíduos educados e civilizados: em sua conduta, não poupavam esforços para servir ao outro em todas as suas necessidades, até o máximo de suas capacidades, o que revelava sua civilidade e boa educação.
As elites também se esmeraram em desconstruir os estigmas de fronteira-sertão. Para tal, concentraram-se em exaltar seu papel como civilizadoras dos sertões e em demonstrar suas ideias, seus valores, seus costumes e seus comportamentos polidos. Procuravam também demonstrar o desenvolvimento econômico e tecnológico já alcançado, o domínio do homem sobre a natureza e as potencialidades que garantiam à região um futuro promissor. Esses progressos teriam ocorrido por suas iniciativas, por sua impavidez para ocupar, desenvolver e devassar os sertões. Seria um grupo diferenciado pelo refinamento e pela cultura, tornando-se um baluarte dos valores civilizatórios e do progresso.
A valorização da oratória e da escrita os tornava produtores de bens simbólicos cujo objetivo era reforçar os elementos distintivos da elite local e sua aptidão e interesse pelas letras, humanidades, religião, canto, música, poesia e gastronomia. Sua erudição e refinamento poderiam ser atestados no domínio da língua portuguesa, assim como de alguns dizeres do latim, pré-requisitos para consolidar a sua participação à classe culta, letrada e superior, que os distinguiam dos demais, e para atestar que estariam aptos a disseminar os preceitos da civilização na sociedade. O progresso material deveria ser acompanhado por aquele relativo ao espírito humano. Outro aspecto que evidenciava o pertencimento à elite era o consumo de produtos de luxo, tais como joias, papel de parede, vinhos, móveis finos, utensílios domésticos, assim como os investimentos na qualidade das refeições e no conforto das moradias (LUZ, 1979, p. 160, 162, 168, 176).
A propagação de culturas específicas e a ostentação econômica criavam, reforçavam e escamoteavam as desigualdades, os distanciamentos, as hierarquias e as distinções existentes na sociedade, tanto entre o bispo e os demais segmentos da sociedade quanto entre as elites e a população, e promoviam e consolidavam sua posição de mando na sociedade, capacitando-as à atuação política, administrativa e cultural.
A má educação e os deslizes na etiqueta e na cerimônia
Apesar dos esforços em impor autoimagens positivas acerca do município de Miranda e da sua população, nem sempre foi possível controlar todas as circunstâncias e indivíduos. Os festejos e as comemorações realizados durante a visita pastoral promoviam os contatos da comitiva episcopal com a elite local e com a população, servindo para treinamento e aperfeiçoamento de hábitos, comportamentos e costumes destes. A mudança nos comportamentos, nos padrões de sentimentos e de conduta está associada ao entrelaçamento e interdependência crescentes entre as pessoas, orientando-as e exercendo pressão umas sobre as outras (ELIAS, 1993, p. 54). O cônego Ferreira, juntamente com os seminaristas, incumbiu-se de manter a ordem, a etiqueta e o cerimonial com “um ou dois psius” (LUZ, 1979, p. 128). De acordo com Luz (1979, p. 131), Ferreira era um “experimentado disciplinador, que se afligia por qualquer coisa, tendo quase sempre a paciência alterada”. Porém, a descarga emocional fora do controle era considerada ruim e inconveniente, devendo ser planejada e moderada.
No relatório da viagem pastoral, ficou evidente a existência de padrões diferentes de moral, de sentimentos, de comportamentos e de costumes em Mato Grosso. As experiências e os intercâmbios partilhados não eram iguais, uma vez que os contatos sociais e íntimos forçados ocorreram, na maioria das vezes, entre indivíduos de origens sociais, étnicas e culturais diferentes, instituindo um profundo abismo em relação aos costumes, aos vestuários, aos gestos, aos modos à mesa e à fala, sobretudo em relação à população pobre cujos valores sociais e comportamentos diferiam dos considerados civilizados. A etiqueta e o cerimonial também foram criados para instituir, legitimar e instaurar diferenças sociais e privilégios na sociedade, como demonstrou Elias (1993, 1994, 2001).
No almoço oferecido a D. Carlos e sua comitiva em Campo Grande, um dos ilustres convidados, que era jovem, não sabia utilizar garfos, facas e copos à mesa e, estando com o “prato feito”, viu-se em “apertos” (LUZ, 1979, p. 185). Para Luz (1979), não saber se comportar à mesa e não dominar o uso de talheres denunciavam sua má educação e falta de refinamento. Ou seja, o desagrado e o incômodo deviam-se ao fato de ele pertencer a um grupo seleto, cuja expectativa era de que fosse educado, sofisticado e tivesse boas maneiras à mesa, por razões de higiene e civilidade. Para Luz (1979), essas formas de conduta eram condenáveis e representavam um desrespeito à pessoa do bispo, sendo incompreensível o porquê de esse hábito ainda não estar disseminado na sociedade. Agravou a situação o fato de ele ter reparado que eram 13 pessoas à mesa e que tal número “era fatídico, aziago, cheio de feitiço”. Assim, sentiu-se desencorajado a participar do almoço. Para neutralizar tais energias negativas, “benzeu-se e amendrontado pôs-se fora do lugar balbuciando esconjuras que não pude compreender”. Luz (1979, p. 186) o qualificou como um “coitado”, “simplório” e “fraco como uma criança”. Diante da situação embaraçosa, D. Carlos tentou dissimular “jeitosamente o caso”, solicitou que dessem novo assento à mesa e mudou a conversação para outro tema, reforçando sua imagem de homem educado e cortês. Porém, não evitou “uma enorme explosão de riso”, devido ao “susto que uma inocente brincadeira tinha causado” (LUZ, 1979, p. 186).
Luz (1979, p. 84, 129, 179) reprovava também a má pronúncia das palavras e o uso incorreto do vernáculo, criando situações que, para ele, eram cômicas e lamentáveis. Em Aurora do Campeiro, na porta da casa que serviu de residência episcopal, havia uma placa em que se lia “Orora do Campeiro” (LUZ, 1979, p. 179). Na fazenda Lageado, propriedade de José Pereira Martins, foram recebidos “com pompa”, porém na porta da residência “havia um letreiro no qual não pude ler coisa alguma, apesar do esforço inteligente que despendi para compreender” (LUZ, 1979, p. 180). O uso incorreto do vernáculo era considerado risível e lamentável e denunciava a ignorância e a falta de civilidade. Assim, segundo Luz (1979, p. 70), exigia-se a correta sujeição às formalidades da etiqueta e a capacidade de conversar e escrever com erudição. A polidez de fachada foi atribuída à pouca escolarização, ao isolamento geográfico e à ignorância a respeito das regras mais simples de convívio social.
Durante a viagem de retorno, em Nioaque, no dia 17 de outubro, um indivíduo procurou o bispo na hora do almoço, tendo entrado na residência episcopal provisória, sentado numa cadeira, dobrado uma perna sobre a outra e acendido um cigarro. O tenente Carlos Augusto Peixoto de Alencar o repreendeu por portar-se com demasiada liberdade e foi convidado a retirar-se do recinto: “[...] mostrando-lhe no mapa da sala a serventia desta para a praça, deu-lhe voz de: direita volver, marche e rua. O sujeito desconcertou-se e foi-se para não mais” (LUZ, 1979, p. 192-193). O comportamento desse indivíduo foi interpretado como resultado da sua má educação e incivilidade. Ele errou ao planejar a visita em horário inapropriado (do almoço), ao entrar na residência episcopal sem pedir licença, ao não demonstrar respeito à autoridade eclesiástica, ao sentar, ao dobrar a perna, ao acender um cigarro e ao não saber cumprimentá-lo. Esses comportamentos despertaram sentimentos de asco, repugnância, incômodo e desagrado por parte do clero e dos militares presentes. Coube ao tenente Alencar a missão de retirá-lo, poupando o bispo de se indispor com o tal indivíduo. Essa passagem descrita no relatório é pedagógica: era uma exigência social o respeito às autoridades, sendo obrigação dos indivíduos, por iniciativa própria, incorporar boas maneiras; caso contrário, experimentariam constrangimentos em virtude da sua má educação e falta de polidez. Segundo Luz (1979, p. 193), seu comportamento também seria motivado por ele ser “desprovido de massa cerebral”.
Luz (1979, p. 191) também observou as roupas e a qualidade das mesmas. Ele mencionou o caso de um senhor, casado e sem filhos, que era proprietário de um sítio e que se preocupava demasiadamente em economizar, descuidando-se até do vestuário, que era “ultra velho, que não falava em seu favor”. Vestir-se adequadamente e de acordo com a ocasião e classe social a que pertencia era uma exigência social.
A opinião social tinha peso significativo na boa sociedade da época, a partir da qual procurava-se não colocar em risco a imagem de homem honrado. No sítio Bonfim, apresentou-se a D. Carlos “um tal Sr. Vasconcelos”, comprometendo-se “sem falta” e “quase jurando pela verdade de seu dito” em providenciar a condução necessária de Nioaque até Campo Grande. Porém, o referido senhor faltou à sua palavra, ilegitimando sua promessa e valores. Somente em Aurora do Campeiro a cumpriu, quando justificou-se com as “mais tocantes e humildes desculpas” (LUZ, 1979, p. 160, 179). Porém, sua atitude foi reprovada, pois a palavra empenhada sempre deveria ser cumprida.
Outro aspecto combatido por D. Carlos foi a alta criminalidade existente em Mato Grosso. No dia anterior à chegada da comitiva episcopal ao sítio Ar Novo, teria ocorrido no sítio um “horroroso assassinato”. Luz reforçou os “enérgicos protestos” de D. Carlos contra fatos dessa ordem, que depunham “contra a civilização e piedade cristã” de Mato Grosso e que não deveriam ser tolerados (LUZ, 1979, p. 188). Os mato-grossenses não estavam totalmente fora do controle das autoridades. Em Miranda, por exemplo, estava preso no quartel um indivíduo que tinha praticado, “em pleno dia, um horroroso homicídio” (LUZ, 1979, p. 154). D. Carlos defendia o aumento da vigilância, do controle, da repressão policial e das punições, a fim de normatizar a sociedade e diminuir a criminalidade e as lutas pelo poder no âmbito provincial.
Havia a exigência de que os mato-grossenses se tornassem civilizados, educados, cultos e elegantes. Para alcançar esse objetivo, os comportamentos humanos deveriam ser moldados e aperfeiçoados. Para Luz (1979, p. 154), o processo civilizatório ainda não estava completo, mas em andamento. Para reverter esse cenário era necessário “emendar o passado e cuidar do futuro”, ou seja, educar, civilizar e cristianizar os indivíduos, transformar e refinar seus costumes e comportamentos, entre outras ações. Para que o desenvolvimento fosse um fato plenamente estabelecido em toda a região, foram feitas as seguintes propostas: o aproveitamento de todas as potencialidades do local (riquezas naturais, fluviais e minerais); a intensificação do povoamento com nacionais e estrangeiros a fim de superar a escassez de mão de obra e investimentos; a repressão da criminalidade; e o aumento da integração e do comércio da região com outros centros, por meio de redes de comunicação e transportes, fluviais ou terrestres. A população deveria ser educada e disciplinada por meio da presença de padres e da criação de escolas, que seriam espaços para a aquisição e difusão de preceitos civilizacionais (LUZ, 1979, p. 183). Assim, o futuro seria marcado inevitavelmente pelo progresso e pela civilização.
Considerações finais
O relatório de Luz (1979) tinha como objetivo construir uma imagem intangível de D. Carlos, mostrar que era uma pessoa qualificada, apresentar imagens favoráveis de sua gestão e celebrar a grandeza de ser a maior autoridade sobre a Igreja Católica em Mato Grosso. O relatório evidenciava e propagandeava os avanços do processo civilizatório, para os quais a própria visita pastoral estava contribuindo, seja no aspecto religioso, seja político e moral; ao mesmo tempo, evidenciava os limites desse processo, que acabavam por reforçar os estigmas de Mato Grosso como fronteira-sertão.
As elites empenharam-se em construir e impor imagens positivas, pois eram orgulhosas das suas conquistas e progressos. As referências ao sertão, às correrias indígenas, à falta de comodidade e aos riscos à integridade física tinham como fim enobrecer e dignificar o empreendimento de D. Carlos. Apesar de as expectativas iniciais serem negativas, as elites conseguiram desfazer as imagens que os estigmatizavam, com as quais não concordavam e se mobilizavam para desconstruir. Entre as imagens que as elites e os poderes locais procuravam divulgar e que foram aceitas por Luz (1979), podem-se destacar:
1. As suas origens sociais e étnicas eram superiores e seletas. Eram migrantes paulistas, mineiros, piauienses, maranhenses, sul-rio-grandenses e, entre os estrangeiros citados, estavam os italianos.
2. Como pioneiros eram patriotas, pois estavam ocupando áreas “vazias” e desenvolvendo-as ao explorar suas riquezas e potencialidades. Ao lutarem contra as hostilidades do meio, seriam empreendedores, destemidos e corajosos, pois se sacrificavam em benefício do país ao lutarem contra a barbárie e o atraso. Os discursos em torno do “pioneirismo” criavam distinções e hierarquias e garantiam a “primazia de mando na sociedade” por várias gerações desses proprietários rurais (ZORZATO, 2000, p. 36, 56).
3. Seriam defensores do progresso e da civilização que estariam lutando contra as intempéries do meio e a resistência das populações indígenas, as quais seriam obstáculos a serem superados por meio do extermínio e da civilização, a fim de retirá-las do “embrutecimento rude e silvestre” (LUZ, 1979, p. 153). Nesse sentido, eles eram os civilizadores dos sertões.
4. Difundiam autoimagens de que eram educados, cultos, polidos, inteligentes, sóbrios, capacitados para consolidar em sua plenitude o progresso, o desenvolvimento e a civilização. Demonstravam ter interesse pelas artes, letras, poesia, canto, música erudita, religião, humanidades e instrução. Seus costumes e comportamentos eram equivalentes aos modelos culturais emanados da Europa e da corte imperial.
5. Essas elites instituíam suas marcas de distinção e de pertencimento a alta sociedade. Sua vida social era marcada por jantares, almoços, recitais, chás, saraus, reuniões comemorativas e abolicionistas e nas agendas de festividades religiosas (missas, batizados, enterros, casamentos, procissões).
6. Apesar dos seus esforços e conquistas, não eram valorizados pelas autoridades provinciais, que não atendiam às suas reivindicações e não investiam na região. Nesse sentido, as elites valorizavam a iniciativa privada em detrimento da presença e da participação do Estado. As transformações deviam-se aos moradores que ocupavam a região, compravam terras, fundavam povoados, investiam em atividades econômicas diversificadas e no comércio, construíam residências, igrejas, cemitérios e escolas e abriam caminhos. Por serem trabalhadores e terem iniciativa e novas ideias, promoviam a civilização e o progresso.
7. Seriam católicos e submissos aos poderes temporais e espirituais. O elevado número de sacramentos e de cerimônias religiosas demonstrava a sujeição das autoridades, das elites e da população à autoridade episcopal, expressa nas homenagens, juramentos, reverências e falas. Sua catolicidade também poderia ser comprovada na construção de igrejas e cemitérios.
8. Veiculavam que, no sul de Mato Grosso, o processo civilizatório e o progresso estavam em andamento a passos acelerados. Assim, projetavam um futuro glorioso, pois a região seria o Éden, o celeiro econômico, e estaria fadada a um grande destino.
Referências
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Notas