Dossiê

Professores pesquisadores e o desafio de trabalhar com a História difícil: uma experiência de estágio supervisionado

Faculty researchers and the challenge of working with the story: a supervised internship experience

Adriane de Quadros Sobanski
Universidade Federal do Paraná, UFPR, Brasil
Camila Quadros

Professores pesquisadores e o desafio de trabalhar com a História difícil: uma experiência de estágio supervisionado

Antíteses, vol. 11, núm. 22, pp. 613-634, 2018

Universidade Estadual de Londrina

Recepção: 11 Outubro 2018

Aprovação: 12 Dezembro 2018

Resumo: Há evidências de que os Cursos superiores de História ainda mantém uma dicotomia entre os estudantes do Bacharelado, formados para ser os historiadores, pesquisadores, e os estudantes da Licenciatura, voltados ao aprendizado de metodologias e recursos para repassar o conhecimento desenvolvido pela Academia na Educação Básica. Ao promover uma formação inicial, ressignificando a função dos professores de História com historiadores, sobretudo com a identificação da pesquisa, os futuros professores de História reconhecem na sua ciência de referência as condições de produção de conhecimento e do desenvolvimento de aulas mais significativas, sobretudo quando os conteúdos dizem respeito à Burdening History, ou História Difícil.

Palavras-chave: Pesquisa, Formação de professores, História difícil, Epistemologia, Estudantes.

Abstract: There is evidence that the upper courses of History still keeps a dichotomy between students of Baccalaureate, trained to be historians, researchers, and Graduate students, focusing on learning methodologies and resources for pass on the knowledge developed by the Academy in basic education. To promote initial training redefines the function of teachers of History with historians, particularly with the identification of research, future history teachers recognize in your reference science production conditions knowledge and the most significant development, especially when the contents relate to Burdening History, or history Difficult.

Keywords: Research, Teacher education, Burdening history, Epistemology , Students .

Introdução

As possibilidades de investigação acerca da formação inicial e continuada de professores são bastante amplas. No caso específico da formação inicial dos professores de História as investigações têm sido ampliadas com novas concepções acerca da profissionalização e das experiências metodológicas desenvolvidas diante das necessidades apresentadas nas salas de aula da Educação Básica.

O papel da pesquisa, durante o processo de formação inicial dos professores de História, tem merecido grande destaque, pois este fundamento é entendido como elemento primordial para que os professores se reconheçam enquanto produtores de conhecimento, refletindo sobre sua prática cotidiana no ambiente escolar.

É importante salientar que a formação dos professores ainda está envolvida num processo de dicotomia presente nos cursos superiores. No caso específico do curso de História, essa dicotomia se apresenta na opção entre a licenciatura, que tem por objetivo a formação dos futuros professores da Educação Básica, e o bacharelado, responsável pela formação dos historiadores, aqueles profissionais orientados a trabalhar com os materiais do passado e que teriam, portanto, a competência de trabalhar com a pesquisa histórica e desenvolver a produção de conhecimento.

Essa formação, portanto, se constrói a partir da perspectiva de que os futuros professores que irão trabalhar diretamente com os estudantes da Educação Básica apenas vão reproduzir o conhecimento elaborado pela academia e por seus colegas historiadores. Mantém-se, desse modo, a separação entre a pesquisa e o ensino, entre os pesquisadores e os professores.

Considera-se, portanto, que da mesma forma que na divisão capitalista de trabalho presente na sociedade, essa dicotomia formativa dos profissionais da educação também se faz presente. Aqueles que seguem a vida acadêmica, os historiadores, recebem uma formação específica e, desse modo, são instrumentalizados e responsáveis pela realização de pesquisas e produzir conhecimento e, portanto, possuem uma função intelectual. Por outro lado, os estudantes que se tornarão professores da Educação Básica recebem uma formação específica de como executar o que a academia produz, restando a eles um trabalho mais técnico, de repetição e de reprodução, numa visão instrumental do conhecimento.

A essa perspectiva capitalista, da qual a escola não consegue se descolar, Arroyo (1991) denomina de “nova cultura tecnológica”. De acordo com essa perspectiva, a escola deixa de cumprir sua função de formar os cidadãos adequadamente para o novo mercado de trabalho, pois essa divisão capitalista do trabalho separa, cada vez mais, o trabalho intelectual e o trabalho manual, deslocando o saber e a qualificação do trabalhador.

Afirma ainda o autor que a cada divisão de tarefas percebe-se com mais clareza a expropriação do saber do trabalhador.

Como profissionais do educativo passamos a ver nesses processos uma história da expropriação do saber e da qualificação do trabalhador. A história da produção passou a ser uma história em torno do eixo: domínio do saber sobre o trabalho. Dependendo do grau desse domínio pelo trabalhador concluíamos pela capacidade formadora ou deformadora de cada fase dessa história (ARROYO, 1991, p. 171).

Segundo Nóvoa (2002), essas características levam os professores a uma perda de prestígio profissional, posto que seu conhecimento não possui nenhum valor de acordo com os parâmetros acadêmicos. No entanto, ainda de acordo com Nóvoa, mantém-se um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que ocorre uma desvalorização profissional, coexiste um discurso no qual os professores aparecem como elementos fundamentais para uma sociedade do conhecimento. O autor ainda afirma que

Os professores nunca viram o seu saber específico devidamente reconhecido. Mesmo que se reitere a importância de sua missão, a tendência é considerar sempre que lhes basta dominar bem a sua matéria de ensino e ter uma certa aptidão para a comunicação, para o trabalho com os alunos. O resto não é indispensável (NÓVOA, 2002, p. 227).

Liston e Zeichner (1997) fazem uma crítica a esse sistema de formação de professores que promove a dicotomia entre a pesquisa e o ensino. Segundo eles, os pesquisadores ficam limitados a uma produção específica dentro do espaço da Academia. Nessa direção, os intelectuais, produtores de conhecimento, dedicam suas pesquisas a assuntos específicos, dominando algumas áreas e relegando outras. Já os professores da Educação Básica, devido às condições objetivas em que se encontram, ficam destituídos do direito de realizar a produção do conhecimento, limitados às necessidades constantes de satisfazer suas demandas práticas impostas pela sala de aula: planejamentos, avaliações, preparativos de aulas, disciplina.

Justamente por essas condições com as quais os professores da Educação Básica convivem, Liston e Zeichner (1997) acreditam que estão criando saberes constantemente, assim como as estratégias que constroem no cotidiano de suas práticas apresentam teorias sobre a maneira de compreender os valores educacionais. Para eles as teorias construídas pelos professores são teorias tanto quanto aquelas produzidas nas universidades e, portanto, devem ser consideradas. Esses teóricos acreditam que a experiência docente é produtora de conhecimento, por meio de uma sistematização, que passa por uma postura crítica do educador sobre suas experiências, ou seja, Liston e Zeichner consideram a prática profissional como práxis. Por esse motivo existe uma importante demanda para ampliar o conceito de pesquisa e atender os requisitos levantados pelo trabalho de professores, supervisores e diretores na escola básica.

Existe uma marcada diferença entre a produção de conhecimentos e sua aplicação, assim como entre os papeis respectivos de produtores e usuários. Se afirma, em geral, que os investigadores produzem conhecimentos que podem ser utilizados pelos professores e administradores das escolas. Por outro lado, há uma postura alternativa que sustenta que os profissionais produzem conhecimentos úteis que dependem do contexto, são particularistas e estão sempre vinculados com valores sociais, pessoais e educativos específicos. Nessa perspectiva, o conhecimento útil é quase sempre conhecimento extraído da ação e reflexão práticas sobre a ação prática (LISTON; ZEICHNER, 1997, p. 145).

A partir do início do século XX, com o surgimento do termo “disciplina” são elencados os conhecimentos, ou seja, os conteúdos a serem trabalhados nas escolas. Desse modo surge também uma didatização específica, influenciada pela pedagogia e pela psicologia, com uma normatização que se deveria utilizar para o uso escolar do conhecimento. Cabia à escola, então, organizar os conteúdos e selecionar o que deveria ser ensinado em cada série e de acordo com cada faixa etária.

Liston e Zeichner (1997) afirmam que

[...] na história da formação dos professores e da investigação educativa encontramos fundamentos para aumentar a amplitude da separação entre a produção e a aplicação dos conhecimentos dos professores e investigadores (LISTON; ZEICHNER, 1997, p. 148).

Iglesias e Pérez (1994) afirmam que o que ocorre dentro de uma sala de aula faz parte de um “sistema vivo” onde, constantemente, se desenvolvem situações e interações entre todos os sujeitos envolvidos. Segundo esses autores, a sala de aula promove diferentes formas de aprendizagem sobre conhecimentos específicos sendo que, para tanto, os professores se utilizam de diferentes metodologias de ensino.

Ao se propor uma aprendizagem por meio da pesquisa, o que se pretende não é transformar os estudantes em “pequenos historiadores”, mas que aprendam História. Uma metodologia baseada na pesquisa para o ensino de História se refere muito mais ao fato de que a ideia de pesquisa se converte num eixo que articula o conjunto das diversas atividades que se desenvolvem na aula (IGLESIAS; PÉREZ, 1994, p. 187).

Trabalhar com pesquisa em sala de aula significa que o professor da Educação Básica tem autonomia, inclusive, para selecionar o conteúdo mais apropriado ao que pretende trabalhar, já que as produções acadêmicas específicas do conhecimento histórico não são, necessariamente, as melhores propostas para que aconteça a aprendizagem histórica. Neste caso, cabe ao professor não apenas a seleção dos conteúdos a ser trabalhados, como a seleção das propostas de aprendizagem. Desse modo, requer do professor que gere situações em sala de aula que permitam a problematização do conteúdo selecionado.

De acordo com Rüsen, ao tratar da aprendizagem em História deve-se pensar a partir do que denomina de “matriz disciplinar”, ou seja, um “conjunto sistemático dos fatores ou princípios do pensamento histórico determinantes da ciência da História como disciplina especializada” (RÜSEN, 2001, p. 29). A pesquisa no ensino de História, portanto, pressupõe a necessidade de que os professores de História dominem o campo científico com o qual trabalham, compreendendo a existência de uma didática específica da História. Desse modo entende-se que as aulas de História na Educação Básica devem deixar de ser entendidas como a “tradução de formas e valores de estudiosos profissionais para a sala de aula” (RÜSEN, 2010, p. 21).

A partir da constatação da História enquanto uma ciência especializada e da necessidade, por parte dos professores, de dominar a teoria da História, Rüsen afirma que é preciso, nas aulas de História, fazer com que os estudantes se apropriem dos processos de construção do conhecimento histórico. Ao entender esses processos, passam a ter condições de se apropriar da própria ciência.

Segundo Rüsen, a realização da pesquisa nas aulas de História é o resultado da soma de questões específicas que passam, primeiramente, pelo domínio da teoria da História, ou da historiografia, por parte dos professores de História. Além disso, deve-se considerar os interesses da vida prática apresentados pelos estudantes a partir de um determinado passado. São essas ideias que levarão ao empírico, ao método, a partir da utilização de fontes históricas. “A pesquisa serve para garantir o conteúdo empírico das histórias” (RÜSEN, 2001, p. 103). Esse método, por sua vez, é o caminho que deve ser percorrido ao passado para a compreensão do presente.

A seleção do que deverá ser ensinado em sala de aula surge, então, como um novo aspecto a ser resolvido pelos professores de Educação Básica, uma vez que não é possível dar conta de todos os períodos e acontecimentos históricos. A seleção de alguns conteúdos ainda pode encontrar resistências, pois se enquadram dentro do que Bodo Von Borries determina como Burdening History, ou a chamada História difícil. Bodo von Borries (2011) observa que aprender sobre experiências pesadas é mais difícil do que tratar de temas que apresentam considerações positivas. Afirma também que a aprendizagem inclui o processo de conflito e mudança. Define, portanto, que a burdening history “[...] inclui o sentimento de culpa, responsabilidade, vergonha e luto, mas que estas questões necessitam ser apreendidas, levando-se em conta determinados problemas” (SCHMIDT, 2015, p. 16).

Este artigo, portanto, busca delinear a maneira como a formação inicial dos professores de História acontece, sobretudo com a experiência do estágio supervisionado. Essa experiência está ancorada na concepção de que os professores de História também são historiadores e, portanto, devem ter consciência acerca da sua ciência de referência e da necessidade de desenvolvimento de pesquisa.

Para a realização do estágio supervisionado, fundamentado na Educação Histórica, foi necessário realizar a seleção das fontes e dos conteúdos, identificados de acordo com o que o historiador Bodo Von Borries denominou como História Difícil.

A formação inicial e a dicotomia ensino e pesquisa

Como já mencionado, existe uma tendência em realizar uma divisão das tarefas no que se refere à formação inicial nos cursos superiores de História. Um exemplo dessa dicotomia na formação inicial de professores e pesquisadores pode ser observada no curso superior de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), instituição onde estudava a graduanda que fez o estágio supervisionado e aplicou as atividades no Colégio mencionado neste artigo.

A atual grade curricular do curso de História da (UFPR mantem a disciplina da Prática da Docência, quando os graduandos vão às escolas para o estágio obrigatório somente no último ano do curso, fazendo com que os estudantes tenham pouco contato com a Educação Básica até então. Exceções podem ser mencionadas nos casos daqueles estudantes que participavam de projetos como o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID)1, a partir do qual mantinham uma relação mais próxima das escolas de Educação Básica e dos estudantes antes da realização obrigatória da prática de docência. É interessante observar que segundo esse documento que embasa a existência do PIBID está a justificativa de que a estrutura dos cursos superiores de Licenciatura tem deixado a formação inicial dos professores muito aquém das necessidades apresentadas nas salas de aula das escolas de Educação Básica.

Aqui, novamente, é importante ressaltar que a dicotomia entre Licenciatura e Bacharelado fica ainda mais evidente, pois as disciplinas específicas para formação de professores de História ficam a cargo dos professores do Departamento de Educação. Ou seja, no curso de História não há preocupação em formar os futuros professores, assim como as disciplinas não são organizadas de modo a relacionar a pesquisa histórica com a realidade da sala de aula da Educação Básica.

Em ambos os casos, os documentos oficiais enfatizam que a pesquisa é considerada um elemento fundamental, sendo que estes determinam que as competências específicas do professor e do historiador devem andar juntas no processo de profissionalização. Na prática, as diferenças são bastante grandes, sendo possível observar que a estrutura dos cursos de Bacharelado é composta de disciplinas que se destinam à formação de historiadores, portanto com um currículo que tem, em sua essência, uma forte concepção da pesquisa.

Assim, os graduandos de Licenciatura se aproximam do ofício do professor de História apenas quando entram em contato com disciplinas como Didática e Metodologia do Ensino de História. Aqui, novamente, encontra-se um problema, pois percebe-se a pouca ou nenhuma relação do magistério com o o ofício de historiador, ou seja, novamente a dicotomia desenvolvida na formação inicial se evidencia: ou forma-se o historiador ou o professor.

Dessa dicotomia acaba surgindo a polêmica relacionada à importância da Licenciatura, que é a localização das disciplinas pedagógicas fora dos Departamentos de História. Comumente, aos Departamentos de Educação fica a incumbência de trabalhar com as disciplinas de cunho pedagógico.

Segundo Cainelli

As Diretrizes dos Cursos de História optaram manter a dicotomia ensino/pesquisa/extensão claramente defendendo a ideia de que primeiro forma pesquisadores/historiadores e depois fornece a instrumentação que levará a alguma profissão complementar, professor do ensino fundamental e médio, gerenciador de patrimônio entre outras, que tenham como base de formação o conhecimento específico da História (CAINELLI, 2001, p. 75).

Observa-se que a preocupação com a formação do futuro professor de História ainda não se ocupa em iniciar um historiador-professor, mas instrumentalizar esses futuros profissionais para lidar com um saber escolarizado e didatizar a sua prática em sala de aula.

Seguindo uma determinação do Ministério da Educação, a partir de 2019 a estrutura dos cursos superiores de História, entretanto, terão uma alteração em seu currículo. Os estudantes que forem aprovados no vestibular entram no curso de História, mas somente ao final do 4º semestre deverão escolher qual área seguirão, se o Bacharelado ou a Licenciatura. Conforme a página do departamento de graduação em História da UFPR na internet,

Quem opta pelo Bacharelado tem, nos dois anos seguintes, disciplinas que aprofundam diferentes temáticas históricas e a prática da pesquisa. [...] Quem opta pela Licenciatura tem a mesma formação para a pesquisa e estará também habilitado para exercer a docência em nível fundamental ou médio. O tempo mínimo para a conclusão da Licenciatura é de 4 anos e meio2.

Com esta alteração confirma-se o que já se notava antes e o que vem sendo apontado neste artigo com relação a distância que há na formação dos graduandos em História, pois para aqueles que optarem pelo Bacharelado sua formação será direcionada para o campo da pesquisa e para o ofício historiográfico, enquanto que os estudantes da Licenciatura serão conduzidos para uma formação limitada a metodologias e práticas para o trabalho em sala de aula, sem vínculo com a historiografia e sua ciência de referência.

O documento também afirma o seguinte:

O profissional formado no curso, em Bacharelado ou Licenciatura, estará capacitado para realizar pesquisa; trabalhar em arquivos, bibliotecas, museus, meios de comunicação; formular e implementar projetos de preservação do patrimônio histórico-cultural; assessorar eventos e exposições3. (grifo nosso).

É interessante constatar que, em nenhum momento, ao se referir à reformulação do Curso se faz referência à Licenciatura e a forma como o desenvolvimento da pesquisa pode se relacionar com o magistério. Não há referências, no site do Departamento de História, ao trabalho desenvolvido pelo futuro professor de História e como o trabalho com pesquisa, bibliotecas e museus podem ser relacionados a essa função.

A reformulação dos cursos de graduação em História permite uma reflexão ampliada acerca da Licenciatura e a maneira como a formação inicial tem preparado os futuros professores da Educação Básica. Duas possibilidades podem ser aventadas: ou esses professores continuam reproduzindo o conhecimento que as Universidades constroem ou são entendidos como aqueles que podem e devem produzir conhecimento, refletir sobre sua prática e compartilhar experiências.

Uma nova perspectiva, portanto, da formação inicial dos acadêmicos de História deve ser pensada no sentido de promover uma formação completa para os estudantes que optam pela Licenciatura. Uma perspectiva que os entende enquanto professores-historiadores.

Formação inicial: pesquisa e experiência em sala de aula

De acordo com o atual currículo de Licenciatura em História, na Universidade Federal do Paraná, os estudantes são obrigados a cumprir uma carga horária de estágio supervisionado em escolas de Educação Básica. Esse estágio, comumente, se compõe de duas partes: a primeira se refere a observação das instalações e regimento da escola, visando compreender seu funcionamento estrutural e, sobretudo, pedagógico. Inclui-se, nessa fase, o contato com o professor-supervisor e os estudantes. Num segundo momento, com assessoria do professor-supervisor, o acadêmico de História deve elaborar um plano de aula a ser aplicado em uma turma previamente selecionada. É, neste momento, que o papel da pesquisa desse futuro professor de História entra em cena.

Em 2017, dois planos de aula, pautados na perspectiva da Educação Histórica e, portanto, na importância da pesquisa nas aulas de História, foram aplicados em duas turmas de terceiro ano do Ensino Médio de uma escola da rede estadual de Curitiba. Os conteúdos, selecionados a partir do encaminhamento da professora-tutora, foram desenvolvidos levando-se em consideração questões conflituosas que permeavam as discussões em sala de aula e o cotidiano dos estudantes. Segundo Cooper (2006) “descobrir sobre o passado envolve todos os aspectos da vida humana, e descobertas sobre ele podem não se constituir num processo fácil.”

Entendendo que a História toma como seu objeto de estudo a relação temporal passado-presente, Rüsen afirma que a função do ensino de História é tornar racional a nossa ida ao passado, sendo que a consciência histórica ocorre no processo de consciência sobre o passado contido no presente e projetado no futuro. As maneiras de pensar o passado, portanto, é que permitem ao professor historiador selecionar e organizar os conteúdos que pretende trabalhar em sala de aula (SOBANSKI, 2017, p. 140).

A elaboração desses planos de aula foi feita a partir dos conteúdos de História, racismo e eugenia no Brasil da década de 1930 e Ditadura militar, e se encontram inseridos dentro do que o historiador alemão Bodo von Borries chama de burdening history ou história difícil, pesada.

Von Borries afirma que a História sempre é escrita a partir dos pontos de vista do presente, o que pode provocar interpretações equivocadas acerca do passado. Desse modo, conhecer e compreender a História exige que se volte ao passado para conhecer como os sujeitos daquela época pensavam a sua própria condição em seu presente vivido. Além disso, também relembra que a escrita da História normalmente é feita pelos vencedores, o que pode ocultar muitas situações e sujeitos envolvidos num determinado passado.

Considerando-se que o espaço escolar, sobretudo da Educação Básica, utiliza os materiais produzidos a partir de pesquisas desenvolvidas para esse fim, percebe-se a existência de materiais didáticos com versões canônicas sobre a maioria dos conteúdos de História e que passam a ser entendidos enquanto verdades inquestionáveis.

Uma visão global do conhecimento histórico é uma ilusão, embora uma generalização. Isso é teoricamente impossível também, porque nós não precisamos de uma “visão global”, mas várias delas (uma feminista, uma liberal, uma socialista, uma ecológica, etc., versões da história global) e uma comparação crítica entre elas (VON BORRIES, 2016, p.184).

É preciso, portanto, realizar uma investigação inicial para entender como esse conteúdo em especial se faz presente na sala de aula e nos conhecimentos prévios apresentados pelos jovens estudantes. Tendo como ponto de partida a importância que recai sobre a formação inicial dos professores de História e a relação teoria e prática, assentada sobre o uso da pesquisa sobre sua própria prática, a Educação Histórica se apresenta como a proposta dentro da qual esta experiência de estágio supervisionado se apoia.

De acordo com essa perspectiva da Educação Histórica, não interessa apenas saber História, mas o uso que se faz dela. É o que Lee identifica como sendo a Literacia Histórica, ou seja, a capacidade de “ler o mundo historicamente” (LEE, 2006). Essa capacidade deve ser desenvolvida tanto por alunos quanto professores, sobretudo a partir da ideia de orientação temporal, ou seja, através da “consciência história”, ideia que dialoga com o conceito desenvolvido por Rüsen (2001), e que se embasa na preocupação com o saber histórico, com o pensar historicamente de crianças e jovens, bem como dos professores (SOBANSKI, 2008).

No campo específico da Educação Histórica importa entender como os estudantes aprendem História, por isso a ênfase no domínio da ciência de referência e na pesquisa realizada a partir da investigação dos conceitos substantivos e de segunda ordem. O campo de investigação da Educação Histórica estuda as ideias históricas dos sujeitos em contextos de escolarização tendo, como princípio, que as intervenções didáticas significativas na aprendizagem histórica exigem o conhecimento das ideias históricas de alunos e professores. A principal referência para esse campo de investigação, portanto, é a própria epistemologia da História.

Ao entender a importância do conhecimento da epistemologia da História, apoiando-se nos estudos de Rüsen, e nas reflexões sobre o modo como esses estudos podem modificar a forma de pensar dos professores de História, bem como de suas aulas, a Educação Histórica tem servido como importante suporte para a realização de investigações que apontam para a compreensão dos professores da Educação Básica.

De acordo com Rüsen

[...] no estudo de História, a teoria desempenha um importante papel na profissionalização didática dos historiadores. Esse papel consiste em transmitir aos historiadores em formação uma concepção sólida da especialidade profissional de sua ciência (RÜSEN, 2001, p. 38).

Somando-se a essa necessidade de repensar a formação dos professores de História, a Educação Histórica, pautada na teoria do historiador e filósofo alemão Jörn Rüsen, vem colaborar com novas discussões sobre o ensino e a aprendizagem de História e, de forma imprescindível, sobre as ações dos professores-pesquisadores, sobretudo no que se refere ao desenvolvimento da consciência história dos estudantes.

Nessa perspectiva, Schmidt (2015) utiliza o conceito de historiador professor e afirma que para a formação desse profissional

[...] requeria-se à formação do historiador professor, um sólido conteúdo científico, um consistente preparo de pesquisador, teórico e prático, envolvendo o compromisso político de transformá-lo significativamente na relação com a práxis, não com a prática em si mesma, mas com o mundo real, concreto e histórico de si mesmo e dos seus alunos (SCHMIDT, 2015. p. 517-528).

Entendendo o papel importante da formação inicial dos professores de História, pensados também como historiadores, portanto pesquisadores de sua ciência de referência, sobre a seleção dos conteúdos a serem desenvolvidos durante o estágio supervisionado, von Borries afirma que o tipo de aprendizagem esperado pressupõe alguns pré-requisitos.

Aprender ou compreender história não é somente um processo cognitivo, mas também uma questão de emoções, estética e julgamentos morais. Assegurar-se de conectar certos pequenos pedaços de passado (alguns chama fatos) pode ser importante, mas não é suficiente. A questão é: como dar uma versão geral, válida e consonante da narrativa histórica e como lidar com os efeitos para o presente. O ato mental de assimilar, digerir e superar histórias difíceis é decisivo (VON BORRIES, 2016, p. 36).

De acordo com essas premissas, os pré-requisitos foram considerados na elaboração de dois planos de aula, desenvolvidos para os terceiros anos do Ensino Médio, a partir da abordagem da burdening history. É importante ressaltar que esses planos trouxeram recortes temporais específicos que não são abordados nos livros didáticos usados pelos estudantes. Da mesma forma, a seleção e utilização das fontes exigiu a utilização de uma metodologia diferenciada.

Para trabalhar com os conteúdos da burdening history, usamos instrumentos que favoreceram um melhor aprendizado, o que adveio da pesquisa prévia na estruturação dos planos, evidenciando, assim, como o trabalho do professor de História pressupõe o trabalho de historiador.

Para haver pesquisa histórica, portanto, é preciso que existam problemas que deverão ser resolvidos historiograficamente. A pesquisa é uma atividade pela qual o professor historiador deve responder, empiricamente, por meio das fontes, dos problemas históricos. As respostas obtidas com os problemas iniciais transformam a empiria e a teoria em histórias concretas por meio de narrativas históricas (SOBANSKI, 2017, p. 86).

No artigo Aprendizagem da “burdening history”: desafios para a educação histórica, Schmidt (2015) apresentou os resultados de uma pesquisa a partir da qual os estudantes explicavam as mudanças ao longo da história, em decorrência dos grandes feitos (guerras, revoluções, crises econômicas), e não reconhecem a importância dos sujeitos como agentes históricos. Para ela, isso indica uma “desumanização” da História, sem que os alunos compreendam que a História se faz por meio das ações humanas e que os fatos históricos não existem por si só. Por isso, ela considera necessário construir o conhecimento histórico a partir de critérios pelos quais os jovens consigam entender a história como resultado das ações humanas, reconhecendo que eles são também sujeitos históricos.

A necessidade de entender a possibilidade e limites da ação é o que traz a ação histórica para a província da consciência histórica. Consciência histórica pode até mesmo ser redefinida como a compreensão que coisas mudam ao longo do tempo em modos fundamentais – que mundos são feitos e desfeitos -, que pessoas comuns desempenham um papel na mudança histórica e que orientar a si mesmo em relação à mudança histórica é uma tarefa central para todas as pessoas (SCHIMIDT, 2015, p. 12).

Partindo das pesquisas de Bodo von Borries em artigo publicado sob o título Coping with burdening history (VON BORRIES, 2011), Schmidt aponta que a “aprendizagem de experiências pesadas de danos, injúrias, culpa/vergonha (ou todos estes) são muito mais difíceis do que a aprendizagem de casos afirmativos de vitórias, glórias e satisfações”. É justamente neste caso que os dois conteúdos selecionados se encaixavam.

Na primeira fase do estágio, ainda durante as observações, foi possível identificar que determinados conteúdos históricos envolviam mais os estudantes do 3º ano do Ensino Médio, como quando a professora-tutora abordou a formação do nazi-fascismo na Europa. Por isso, o primeiro plano de aula foi pensado a partir da reação de alguns estudantes negros quando o assunto do racismo, defendido por aqueles governos totalitários, foi discutido em sala. A proposta era explorar como o racismo científico foi fundado e quais efeitos ele gerou no começo do século XX, não só na Europa, como também no Brasil.

Sendo assim, na primeira aula do estágio foi utilizado o documentário “Menino 23 – infâncias roubadas no Brasil”,4 produzido a partir da tese de doutorado do historiador Sidney Aguilar Filho, sobre uma fazenda no interior de São Paulo para onde foram enviados cerca de 50 meninos negros, retirados de um orfanato no Rio de Janeiro, na década de 1930. A propriedade pertencia à família Rocha Miranda, da qual alguns membros tinham negócios com alemães nazistas, e serviu como sede do partido da Ação Integralista Brasileira. O filme explicita como o racismo científico e a eugenia foram fundamentados entre os séculos XIX e XX, seus efeitos na sociedade brasileira e também nas ações nazistas, assim como narra a história daqueles meninos, submetidos a trabalhos forçados naquela fazenda.

O documentário impressionou os estudantes, especialmente os estudantes negros e, na aula seguinte, foram discutidos os pontos apresentados, ressaltando que os discursos racistas e eugênicos eram aceitos pela sociedade daquele contexto histórico - não era algo exclusivo da política nazista alemã -, demonstrando, assim, que esse passado não possui relação somente com a Alemanha nazista, mas também se refere à realidade brasileira na mesma época.

Além disso, naquele momento se aproveitou para debater algumas questões importantes da atualidade, por exemplo, no que tange a reprodução de certos “discursos de ódio”, os quais são justificados com a ideia da “liberdade de expressão”. Aqui é importante salientar que essa discussão trouxe, visivelmente, certo desconforto para as turmas de modo geral. Embora os estudantes negros tenham declarado de forma enfática a forma como se sentiram ao ver o filme e na sua vida cotidiana, foi possível perceber que a maioria dos colegas, brancos, estavam desconfortáveis com o assunto e sua condução.

A discussão durante a aula abriu espaço para que se explicasse a origem de certos comentários preconceituosos e que se tornaram comuns ao longo do tempo - como “um negro tão bom, que a alma deve ser branca”; “se negro não erra na entrada, erra na saída”, entre vários outros jargões populares. Demonstrou-se, com isso, que essas afirmações não são originadas de forma espontânea, mas que representam o imaginário e a ideologia de um contexto histórico no qual o racismo era socialmente aceito. Desse modo o debate foi realizado buscando discutir a ideia de que certas “opiniões” devem ser combatidas já que, na verdade, se tratam de discursos que embasam a marginalização e a opressão de determinados grupos sociais, o que se construiu historicamente e se mantém na contemporaneidade.

Em seguida, os estudantes se dividiram em duplas e receberam as atividades avaliativas, que se tratavam de duas propostas distintas. A proposta “A” apresentava um texto sobre a política “Paranista”, do começo do século XX, e um texto sobre a vida da paranaense Enedina Alves Marques, primeira mulher negra a frequentar o curso e se formar como Engenheira Civil no Brasil pela Universidade Federal do Paraná em 1947.

A opção por fontes históricas referentes ao Paraná também se justifica pelo fato de buscar uma alternativa ao que comumente é apresentado nos livros didáticos de História, os quais geralmente priorizam os acontecimentos canônicos da História nacional ou da História Geral.

Na proposta “B” havia um trecho com o discurso realizado pelo então Deputado Federal do Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro, em uma palestra no clube “A Hebraica do Rio”, no dia 03 de abril de 2017. Nessa palestra, bastante polêmica, o deputado se referiu aos moradores de uma comunidade quilombola que teria visitado. A outra fonte era composta pela letra da música “Bate a poeira”, da rapper Karol Conka. Aqui também houve a intenção de trazer a perspectiva regional ao escolher a música da cantora negra curitibana.

Os documentos selecionados para a atividade tratavam de períodos diferentes para que se pudesse estabelecer a relação entre aquele contexto histórico, do início do século XX, com a atualidade brasileira.

Em posse dos documentos, os estudantes deveriam explicar a relação daqueles textos apresentados com o que havia sido abordado no documentário e na aula. Também deveriam explicitar como a história de Enedina Alves Marques e a música da rapper Karol Conka serviam como exemplos de resistência e superação do racismo. A questão da resistência foi ressaltada para que os estudantes percebessem que, mesmo em situações socialmente opressoras, ainda há essa possibilidade.

De maneira geral, os estudantes entenderam as propostas e apresentaram bons resultados. Um caso, em especial, destoou dos demais, pois como foi previsto desde a elaboração desse plano de aula, aqueles estudantes negros, que haviam servido como inspiração para essas regências, ficaram bastante envolvidos pela atividade e na última aula (quando todos deveriam apresentar seus textos), usaram boa parte da aula para contar suas experiências de vida, compartilhando de que maneira eles sofriam com o racismo diário e quais caminhos eles encontravam para resistir e superá-lo. Eles narraram que, naquele momento, haviam entendido como essa marginalização social começara no passado, mas que também ficaram inspirados em conhecer a história da engenheira negra paranaense, pois perceberam que mesmo que os negros sofram, historicamente, com o racismo no Brasil, eles não aceitam essa posição social inferior e marginal. Com essas aulas se percebeu que os planos alcançaram êxito, já que foi possível ensinar História fazendo com que os estudantes refletissem fazendo relações entre diferentes temporalidades, no caso, entre o passado e o presente.

É importante sublinhar que a intenção não é transformar os estudantes em historiadores, porém a partir da constatação da História enquanto uma ciência especializada e da necessidade, por parte dos professores, de dominar a teoria da História, Rüsen afirma que é preciso, nas aulas de História, fazer com que os estudantes se apropriem dos processos de construção do conhecimento histórico. Ao entender esses processos, passam a ter condições de se apropriar da própria ciência.

Como ciência, a História baseia-se no fato de que a operação basilar do testemunho pela experiência é metodizada. Uma vez metodizada de maneira especificamente científica, essa operação basilar assume a forma de pesquisa em História. O pensamento histórico faz-se científico ao se submeter, por princípio, à regra de tornar o conteúdo empírico das histórias controlável, ampliável e garantível pela experiência (RÜSEN, 2001, p. 101).

Com base nas reflexões de Rüsen acerca das funções didáticas do conhecimento histórico, a cognição histórica situada tem sido um importante referencial para superação da dicotomia entre teoria da história e práticas escolares, pois os problemas didáticos são tratados como questões específicas da ciência da história. “A didática da história se situa nessa relação direta com a ciência da história, na medida em que se concebe como ciência do aprendizado histórico e não como ciência da transmissão do conhecimento histórico produzido pela ciência da história”. (RÜSEN, 2012, p. 16).

Por cognição histórica situada entende-se uma investigação que parte de um referencial teórico-metodológico específico da ciência histórica. Segundo Cainelli e Schmidt (2011, p. 11-12).

[...] a pesquisa em Educação Histórica pressupõe uma reflexão sobre a natureza do conhecimento histórico, tendo como objetivo apurar quais os sentidos que os indivíduos atribuem à História. Trata-se de uma área de investigação cujo foco está centrado, principalmente, nas questões relacionadas à cognição histórica, tendo como fundamento principal a própria epistemologia da História.

As investigações em Educação Histórica revelam a preocupação em compreender elementos do pensamento histórico e formação da consciência histórica de crianças e jovens, demonstrando que ensinar e aprender História significa desenvolver competências pautadas no conhecimento histórico.

O processo de elaboração do segundo plano de aula foi semelhante, à medida que também foram selecionados conteúdos que podem ser classificados de acordo com a burdening history. Nesse caso, a temática foi a Ditadura Militar, tema recorrente em discussões atuais, cujas interpretações têm sido bastante polêmicas na sociedade brasileira. A opção foi por seguir esse viés e demonstrar que houve uma ditadura militar no Brasil, assim como quais foram as bases que a estruturaram.

Na primeira aula, foram destacados alguns fatos específicos e importantes do contexto nacional e internacional, no ano de 1968, a fim de esclarecer os impactos na política do país, por exemplo, com a publicação do Ato Institucional n.º 5. A partir disso, foram analisados alguns aparatos políticos, criados pelos militares naquele ano (todos retirados do site do Planalto do Governo Federal), demonstrando as bases que estruturaram nossa Ditadura:

Outro ponto discutido se referiu à questão da memória que se construiu sobre a Ditadura, especialmente no que tange às pessoas que foram presas e/ou mortas pelos militares. Assim, a seleção das fontes históricas foi feita a partir de 80 fichas de presos políticos da época, coletadas do relatório final da Comissão Nacional da Verdade.

De acordo com Cooper (2006, p. 5)

Procurar conhecer sobre o passado envolve fazer inferências (boas adivinhações) sobre fontes, traços do passado que permaneceram. As fontes podem ser visuais, como as fotografias, pinturas, anúncios. Podem ser músicas – canções, jogos do passado, músicas populares da infância da avó. Organizações voluntárias podem ser contactadas para permitir que as crianças conversem com pessoas mais velhas – fontes orais. Fontes podem ser coisas que foram feitas no passado, desde broches a castelos, encontradas em casa ou em museus. Elas podem ser escritas; para as crianças menores incluem: pulseirinhas do bebê, cartões de aniversário, livros de fotos antigas, nomes em estátuas e memoriais.

Cooper afirma que ao entrar em contato com as fontes históricas, os estudantes passam a desenvolver argumentos e tentar explicar seu ponto de vista sobre o passado em questão. Segundo ela, dessa variedade de pontos de vista podem sair explicações diversas, implicando numa troca de opiniões que possam ser igualmente válidas.

As fichas sobre os presos políticos durante a Ditadura Militar no Brasil foram organizadas de maneira que a primeira parte continha os dados da pessoa, sua foto e breve biografia (se era casado, tinha família, atuação política, formação profissional, etc.), enquanto a segunda parte relatava o que havia acontecido com aquela pessoa, quando foi presa, quais circunstâncias, se está desaparecida, etc. Na segunda aula, cada estudante recebeu uma dessas partes da ficha, pois eles deveriam encontrar, na turma, quem estava com a outra parte podendo, assim, ter acesso a toda história daquela pessoa. Para favorecer a identificação entre os estudantes e a pessoa, cuja ficha haviam pego, os meninos receberam fichas de homens e as meninas as fichas de mulheres.

Exemplo das fichas entregues aos estudantes, na aula
sobre a Ditadura Militar (1ª e 2ª parte, respectivamente):
Exemplo das fichas entregues aos estudantes, na aula sobre a Ditadura Militar (1ª e 2ª parte, respectivamente):


Depois de terem completado a ficha, a atividade foi iniciada com algumas questões apresentadas no quadro a seguir e direcionadas aos estudantes. Caso alguma dessas questões estivesse presente em suas fichas, os estudantes deveriam se manifestar.


A reação dos estudantes com a dinâmica da atividade foi alterada na medida em que a relação com os documentos, se acentuava, pois a aula, que havia começado animada, com eles se reunindo em duplas e conversando, foi se tornando mais tensa e carregada de surpresas, sinais de consternação e até mesmo de descrença. Ao final estavam impressionados em descobrir aquelas histórias, pois conforme as perguntas iam sendo feitas, os estudantes foram tomando consciência sobre aquele contexto, entendendo que determinados pré-conceitos não são suficientes ou chegam a ser equivocados em relação àquelas pessoas.

Ao ler as fichas, os estudantes encontraram pessoas como eles, que tinham planos futuros, estudavam. Um exemplo é a ficha sobre Marco Antônio Dias Baptista, estudante secundarista que, aos 15 anos, se tornou o mais jovem desaparecido político. Alguns pais de família, como o bancário Abelardo Rausch de Alcântara, casado, com três filhos, que foi morto por um órgão do governo, em 1970. Conheceram o jovem Ary Abreu Lima da Rosa, que se envolveu no movimento estudantil, enquanto cursava Engenharia, em Porto Alegre e, por conta disso, foi preso, depois internado em uma clínica psiquiátrica, supostamente se suicidou, quando, na verdade, teve seu laudo de morte fraudado, já que foi morto por ação perpetrada pelo Estado. Pessoas como Silvano Soares dos Santos, que perdeu a memória devido às torturas sofridas na prisão e morreu abandonado num hospital psiquiátrico, aos 41 anos de idade.

Os estudantes descobriam que até mesmo oficiais do Exército foram mortos pela Ditadura, como o Major Joaquim Pires Cerveira, preso em Curitiba, sendo que, posteriormente, sua esposa também foi presa sem acusação. Mulheres como a professora Lígia Maria Salgado Nóbrega, que morreu grávida, em uma operação policial realizada no Rio de Janeiro. E Ana Rosa Kucinski, levada, com o namorado, para a “Casa da Morte”, em Petrópolis, onde foi torturada, sofreu violência sexual e teve seu corpo incinerado.

O objetivo, com essa atividade, era demonstrar como certas “verdades” históricas não fazem sentido, quando recuperamos elementos do passado a partir das fontes históricas. Ideias como “o regime militar no Brasil foi brando”, “a Ditadura só prendeu quem era subversivo”, “quem fosse pai de família não sofria perseguição”, “eram todos comunistas e terroristas”, “eram só jovens rebeldes e desocupados”, entre várias outras, que perdem sentido quando o contexto da Ditadura Militar é analisado a partir de seus registros. Além disso, ficou evidente que a violência foi utilizada como instrumento de governo pelos militares brasileiros, o que impede de considerar a Ditadura como branda e mostra que não há justificativa para o desrespeito aos direitos humanos, conforme essas histórias apontaram.

Na terceira aula, encerrando esse conteúdo, foram discutidos os movimentos populares pela Lei da Anistia e pela Campanha Diretas-Já, procurando salientar que a população brasileira não ficou “inerte” durante todo o período da Ditadura, aceitando as imposições dos militares. A fim de ilustrar esses movimentos populares, mostramos a música “O Bêbado e a Equilibrista”,5 considerado o hino da Anistia; a música “Tô voltando”,6 explicando como ela foi associada àquele contexto, no qual os exilados estavam retornando para o Brasil; e a música “Pelas tabelas”, escrita por Chico Buarque, em 1984, em meio as grandes passeatas pelas Diretas-Já. A última aula foi destinada à atividade, a qual consistia na escrita de uma carta à pessoa cuja dupla havia pego. A carta deveria responder a alguns critérios especificados na tabela a seguir.


O resultado também foi bastante positivo, pois os estudantes compreenderam a proposta e escreveram cartas com narrativas envolvidas por forte empatia e sensibilização, com saudações como “saiba que sua luta não foi em vão”, “sua história será sempre lembrada”, “descanse em paz”. Um dos estudantes, por exemplo, se colocou no lugar de um neto contando ao avô falecido o que havia acontecido na história brasileira desde a sua morte. A maioria enfatizou as reflexões sobre a atual sociedade brasileira, com várias críticas em relação à crise econômica, política e segurança pública. No entanto, muitos ressaltaram a liberdade de expressão, o direito ao voto, destacando as conquistas feministas e questões LGBTs.

Trabalhar com pesquisa em sala de aula significa que o professor da Educação Básica tenha autonomia, inclusive, para selecionar o conteúdo mais apropriado ao que pretende trabalhar, já que as produções acadêmicas específicas do conhecimento histórico não são, necessariamente, as melhores propostas para que aconteça a aprendizagem histórica.

Neste caso, cabe ao professor não apenas a seleção dos conteúdos a ser trabalhados, como a seleção das propostas de aprendizagem. Desse modo, requer do professor que gere situações em sala de aula que permitam a problematização do conteúdo selecionado (SOBANSKI, 2017, p. 81-82).

Com estas atividades realizadas durante o estágio supervisionado quando uma acadêmica de História levou para o espaço escolar sua experiência de pesquisa nos auxilia na confirmação de que os professores de História são, também, historiadores. A pesquisa, neste caso, foi utilizada não somente como uma metodologia, mas como uma atividade que ressignifica a História enquanto uma ciência fundamentada em fontes comprovadamente utilizáveis.

Considerações finais

A dicotomia presente nos cursos superiores de História tem produzido uma geração de professores que não se vê enquanto produtores de conhecimento, mas como sujeitos destinados a, no máximo, desenvolver metodologias com o objetivo de realizar uma transposição didática. Desse modo, os professores de História não têm se compreendido como historiadores capacitados a realizar pesquisa e, portanto, produtores de conhecimento.

A formação inicial de professores de História, organizada a partir do currículo do curso superior, tem se mostrado distante da profissionalização do historiador. A concepção de que os futuros professores irão apresentar, em sala de aula da Educação Básica, o conhecimento desenvolvido por seus colegas na Academia, ainda é o referencial predominante. Desse modo, percebe-se que os professores de História encontram sua prática engessada devido a essa concepção, além dos problemas encontrados no cotidiano da realidade escolar.

É imprescindível, portanto, que a formação inicial de professores deve estar relacionada a uma nova concepção, a partir da qual se entenda sua capacidade e necessidade de produzir conhecimento, sobretudo por meio da pesquisa. O domínio de sua ciência de referência, aliado a uma didática específica da História promove a compreensão de que aulas dessa disciplina, na Educação Básica, devem deixar de ser entendidas como a “tradução de formas e valores de estudiosos profissionais para a sala de aula” (RÜSEN, 2010, p. 21).

A prática, no estágio supervisionado de História, se apresenta como excelente oportunidade de contato entre os futuros professores de História e a realidade da sala de aula. É importante que os acadêmicos de História, em contato com a teoria e as metodologias da pesquisa, sobretudo com o contato com as fontes históricas enquanto evidência de um passado específico, saibam conciliar a teoria e a prática em busca do desenvolvimento da consciência histórica dos estudantes. A didática da História, portanto, deve ser compreendida como elemento fundamental no desenvolvimento dos planos de aula e da concepção do ensino de História.

Ao aliar a pesquisa ao desenvolvimento da sua prática, sobretudo quando lida com conteúdos escolarizados que se enquadram dentro da História difícil, o professor de História promove o encontro de diferentes temporalidades, fazendo com que os estudantes passem a refletir sobre o passado de uma forma com a qual não estão acostumados a lidar. O desconforto e até mesmo a vergonha funcionam como propulsores da consciência histórica acerca de um determinado assunto que passa a ser analisado e compreendido de forma mais ampla.

Referências

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CAINELLI, Marlene. A relação entre conteúdo e metodologia no ensino de História: apontamentos para repensar a formação de professores, bacharéis ou profissionais de História. Saeculum: Revista de História, João Pessoa, n. 6-7, p. 71-83, jan./dez. 2001.

CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Introdução: percursos das pesquisas em educação histórica: Brasil e Portugal. In: CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Educação histórica: teoria e pesquisa. Ijuí: Unijuí, 2011. p. 9-17.

COOPER, Hilary. Aprendendo e ensinando sobre o passado a crianças de três a oito anos. Educar em Revista, Curitiba, n. esp., p. 171-190, 2006.

DIAS, José Carlos; CAVALCANTI FILHO, José Paulo; KEHL, Maria Rita; PINHEIRO, Paulo Sérgio; DALLARI, Pedro Bohomoletz de Abreu; CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. Mortos e desaparecidos políticos. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. v. 3.

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SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Formação do professor de História no Brasil: embates e dilaceramentos em tempos de desassossego. Revista Educação (UFSM), Santa Maria, v. 40, n. 3, p. 517-528, set./dez. 2015.

SOBANSKI, Adriane de Quadros. Como os professores e jovens estudantes do Brasil e de Portugal se relacionam com a ideia de África. 2008. 147 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008.

SOBANSKI, Adriane de Quadros. Formação de professores de História: educação histórica, pesquisa e produção de conhecimento. 2017. 260 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.

NÓVOA, António. Os professores e o “novo” espaço público da educação. In: TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude (org.). O ofício do professor: história, perspectivas e desafios internacionais. São Paulo: Vozes, 2002. p. 217-233.

RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora UnB, 2001.

VON BORRIES, Bodo. Jovens e consciência histórica. Curitiba: W. A. Editores, 2016.

Notas

1 Iniciado em 2007 com o objetivo de promover a formação inicial dos professores de História, após várias ameaças, em 2018 encontra-se praticamente encerrado pela falta de recursos.
3 Ibidem.
4 Direção: Belisário França. 79 min. 2016.
5 Composta em 1979, por Aldir Blanc e João Bosco e gravada por Elis Regina.
6 Composta por Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós.

Autor notes

Licenciada e Bacharel em História pela Universidade Federal do Paraná.
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