Resumo: O objetivo deste artigo é mostrar como ilustrados de Lima, imbuídos de fervor patriótico, construíram nas páginas do periódico Mercurio Peruano (1791-1795) a imagem de um Peru grande, que incluía desconhecidas paragens além dos Andes: o chamado país do Ucayali. Para isso, os mercuristas encontraram nos registros de missionários franciscanos dos anos 90 do século XVIII, que adentraram na região, a experiência e a descrição presentes no seu programa epistemológico. Recorrendo a uma intervenção editorial, que chamamos aqui de “transliteração”, os rios Ucayali, Huallaga, e seus afluentes apareceram nas páginas do Mercurio, iluminados por luzes ilustradas, como um Peru idealizado, de prosperidade futura.
Palavras-chave:Ilustração criollaIlustração criolla, Mercurio peruano Mercurio peruano, Ucayali Ucayali, Amazonia Amazonia, Peru Peru.
Abstract: The purpose of this article is to show how the enlightened criollos of Lima, built in the pages of the newspaper Mercurio Peruano (1791-1795) an image of a larger Peru that included unknown regions beyond the Andes: the so called Ucayali country. To achieve such a purpose, the mercurists found in the records of the Franciscan missionaries of the 90s, the experience and description that were present in their epistemological program. Applying an editorial intervention that we will call here “transliteration”, the Ucayali, Huallaga, rivers and its tributaries appeared in the pages of the Mercurio illuminated by the lights of the Enlightenment.
Keywords: Enlightened criolla, Mercurio peruano, Ucayali, Amazonia, Peru.
Dossiê
Ilustração limenha e o Peru além dos Andes no periódico Mercurio Peruano (1791-1795)1
The Enlightened Lima and the Peru beyond the Andes in the newspaper Mercurio Peruano (1791-1795)

Recepção: 25 Fevereiro 2019
Aprovação: 13 Junho 2019
Em 1992, Mary Louise Pratt considerou a viagem de Charles de la Condamine pelo rio Amazonas, apresentada em Paris em 1745, a primeira ocasião em que os “olhos dos impérios”, através do astrônomo francês, pousavam sobre o rio Amazonas. Esse olhar imperial de viajantes ilustrados e cientistas apontava para as possibilidades de exploração econômica de recursos como a quinquina, a salsaparrilha, o cacau, na região (LA CONDAMINE, 1945, p. 5). Comentando a mesma viagem, Jorge Canizares-Esguerra (2011) a inscreveu no que Antonello Gerbi (1996) já tinha chamado de “polêmica do Novo Mundo” ou debate sobre a inferioridade natural da América.
Os resultados “científicos” da viagem de La Condamine foram seguidos por outros empreendimentos de maior fôlego na América do Sul, inscritos dentro da aplicação do Sistema Naturae de Carl Von Linneu para a classificação de espécies vegetais. Assim, entre 1777 e 1792, os botânicos Hipólito Ruiz López e José Antonio Pavón y Jiménez percorreram diversas regiões do Peru e do Chile, coletando, desenhando, conferindo e classificando espécies; completaram, dessa forma, iniciativas de projetos anteriores, como a Botánica del Peru, de Joseph Jussieu, e permitiram, em 1792, a Juan Tafaya e Francisco Pulgar estabelecer o Jardim Botânico de Lima2. As múltiplas atividades e desdobramentos dessas expedições, que articulavam projetos entre o Peru e a Espanha, Lima e Madri, provocou também o que Margarita Eva Rodriguez García chamou de “revelação de diferença de interesses entre a metrópole e a colônia”, expondo conflitos entre o governo do vice-reinado e a universidade de San Marcos, entre médicos e boticários e, principalmente, segundo a autora, entre espanhóis e criollos (RODRIGUEZ GARCÍA, 2006, p. 222).
Canizares-Esguerra examinou também o papel cumprido pelos letrados criollos, que, em resposta às críticas dos “sábios” europeus analisados por Gerbi, em “O Novo Mundo: História de uma Polemica”, ([1955] 1996) – Georges-Louis Leclerc, o conde de Buffon, Cornelius Franciscus de Pauw, ou Cornelis de Pauw – teriam desenvolvido o que ele chamou de uma “epistemologia patriótica”, uma forma de examinar a América partindo de sua afirmação como “pátria dos criollos” (CANIZARES-ESGUERRA, 2011, p. 255). Contudo, para o filósofo Johnny Octavio Obando Moran, a forma como foi desenvolvido esse conhecimento, que dava grande importância à experiência, não teria sido realizada nas apregoadas ideias ilustradas dessa elite, mas “dentro del contexto del realismo sustancialita que manejaba, precisamente, el aristotelismo-tomista tridentino hispánico en la colonia del Perú” (OBANDO MORÁN, 2013, p. 9). Trata-se de interpretação dessa inteligência criolla da segunda metade do século XVIII, já apontada amplamente por Beatriz Helena Domingues (2007), ao inserir vários autores nas particularidades da “Ilustração católica”3.
Este artigo inscreve-se dentro desse debate historiográfico, destacando o teor patriótico-peruano dos discursos dos iluministas limenhos, no momento em que se sentiram chamados e habilitados para intervir em defesa do que para eles era o Peru, o qual, como desenvolveremos aqui, iria além dos Andes. Para configurar a produção discursiva dessa elite sobre o Peru além dos andes, o Ucayali, selecionamos em nossa pesquisa o periódico Mercurio Peruano, que circulou bissemanalmente em Lima entre 1791 e 1795, chegando a publicar 416 números e 3.568 páginas. Considerado um dos mais importantes periódicos publicados na América Hispânica, abordou em suas páginas assuntos como botânica, clima, cartografia, economia, história etc. Era sustentado pela Sociedade de Amantes del País, por sua vez, um dos espaços em que os ilustrados limenhos, criollos, espanhóis e estrangeiros, na sua totalidade homens brancos, manifestavam-se em relação ao presente e ao futuro do Peru4.
Nós nos deteremos, pois, nos protocolos utilizados por essa elite limenha ilustrada para realizar tal apropriação, recorrendo a um expediente escriturário que chamamos aqui de “transliteração”, a qual foi realizada pelos editores do Mercurio Peruano, os mercuristas. A transliteração consistia em um método que permitia aos articulistas referir, parafrasear, resumir e utilizar, com propriedade, descrições, análises, conclusões de autores ou textos, com os quais se estabelecia uma concordância que poderia levar a certa identificação. A transliteração permitiu, assim, um amplo diálogo e a seleção de informações e autores que, além de mostrar sua atualidade, conferiu conteúdo e fundamento às posições expostas no Mercurio.
Sendo assim, já no número 79 do tomo III, folhas 84 - 90, o articulista do Mercurio, na ocasião Hipolito Unanue, serviu-se de uma relação de 1665 do jesuíta Francisco de Figueroa, a qual diz ter consultado e que lhe teria sido muito útil para o artigo “los Trajes de los Indios que habitan en las Montañas del Perú”, copiando textualmente alguns parágrafos, resumindo outros e comentando-os em diálogo com autores clássicos. Em outro número, a respeito da “Geografia física del Perú” (MP, 1792, t. IV, n. 105, f. 15-16), ao falar dos Andes, traz informações e descrições de autores jesuítas, como os padres Amich e Acosta, e de estudiosos e viajantes como Antonio de Ulloa e La Condamine, citando, às vezes com o recurso do rodapé, a página do texto referido. Finalmente, em uma de suas últimas edições, referindo-se às viagens realizadas nos rios Ucayali, Huallaga, Chipurana, Mayro e outros, o Mercurio parafraseia o padre missionário Fray Narciso Girbal (MP, 1798, t. XI, n. 381, f. 276).
Para o assunto que nos interessa neste artigo, o Ucayali, o Mercurio Peruano serviu-se dos diários de missionários franciscanos que registravam suas missões e expedições “daquele país”. Tais diários, devidamente editados, foram publicados pelo periódico, que, ao mesmo tempo, financiou a impressão do primeiro mapa cartografado sobre o Ucayali, de autoria do padre Sobreviela. Comentamos essa complexa “transmissão textual” destinada a levar até os leitores do Mercurio Peruano o desconhecido Ucayali5.
Se Mary Louise Pratt considerou os primeiros registros científicos sobre o Amazonas dentro dos textos que se faziam presentes “aos olhos do império”, apresentaremos aqui o que seriam essas regiões aos “olhos da elite limenha” do final do século XVIII. Esses olhos ilustrados que, através de operações de enunciações patrióticas afirmativas, “descobriam” para seus leitores um Ucayali passível de ser conhecido e apreendido pela História Natural e pela cartografia, e de ser integrado ao Reino do Peru como promessa de lisonjeiro futuro para a “Religião e o Estado”.
Além de mostrar as ideias mais reveladoras do papel cumprido pelo jornal e de seus principais redatores em relação ao Ucayali e seus projetos de incorporação ao Peru, apresentamos, pois, para os estudiosos as diversas abordagens do periódico e sua construção de uma imagem do reino do Peru e de um sentimento positivo em relação a ele como pátria dos que ali habitavam.
Visando desenvolver essas ideias, dividimos nosso artigo em quatro tópicos: “1. Ilustração limenha: os mercuristas entre a tradição e a modernidade”; “2. O Mercurio Peruano e a afirmação patriótica da ideia de Peru”; “3. O Mercurio Peruano: descrição científica do Peru e a apropriação discursiva do mundo natural”; “4. Apropriação discursiva do Ucayali no Mercurio Peruano: o Peru imaginado pelos criollos”; e, por fim, a conclusão com os resultados de nossa pesquisa.
El espíritu del siglo es propenso a la ilustración, a la humanidad y la filosofía. La América, que desde muchos tiempos se hallaba poseída de esas mismas ideas, se ha unido insensiblemente en adoptar un medio muy oportuno para transmitirlas; este es el de los Periódicos (MP, 1791, t. I, f. 308)6.
A partir do enunciado acima, o Mercurio Peruano nos mostra a importância e o lugar discursivo em que a imprensa periódica ilustrada americana do século XVIII estava inserida7: construir uma filosofia ilustrada telúrica. Isso só foi possível a partir do conhecimento acumulado ao longo do século XVIII, permeado pelo forte incremento de ideias ilustradas europeias.
As diversas formas de sociabilidade moderna que foram surgindo no século XVIII, a partir das tertulias, de um lado, e das chamadas Sociedades Económicas de Amigos del País ou sociedades patrióticas, de outro, estão dentro da proposta de François-Xavier Guerra de pensar a Ilustração em um sentido mais amplo de modernidade. Trata-se de sociedades econômicas que institucionalizaram a preocupação de melhoria da pátria, de seu país. “Lo verdaderamente importante era que, puesto que la luz – las ‘luces’ – está llamada de por sí a iluminar todas las cosas” (GUERRA, 1992, p. 97). Todas as diversas temáticas se transformam em objetos passíveis de reflexão de que a solução dependia da razão bem empregada:
La insistencia sobre el país y la patria tuvo una importancia particular en América, pues produjo muchos estudios geográficos, investigaciones sobre la flora y la fauna, recuento de los recursos y estadísticas económicas que contribuyeron a reforzar las identidades locales y el correspondiente patriotismo, al apelar a estos elementos para contrarrestar las opiniones muchas veces peyorativas de los europeos (GUERRA, 1992, p. 97-98).
No caso peruano, o Mercurio foi um importante meio de difusão de ideias, bem como de produção de discursos de apropriação de uma natureza imaginada e pátria. Para entender essa formulação, a qual estamos emprestando de Guerra, nos é evidente a necessidade de uma breve apresentação do que foi a Ilustração limenha, seus personagens mais entusiastas, como se deu a criação do periódico e, a partir daí, a construção dos discursos sobre um Peru imaginado e suas contradições ilustradas-ideológicas.
Com o advento dos Bourbons, a sociedade espanhola experimentou um intenso fluxo de ideias no século XVIII. “La nueva dinastía comprensiblemente favoreció la renovación material, social y cultural de la nación española mediante la importación de libros y el establecimiento de nuevas instituciones, tales como las academias y las sociedades económicas” (GUIBOVICH-PÉREZ, 2005, p. 48). Tais academias e sociedades econômicas seguiam modelos similares já existentes na Europa8. De modo similar à Espanha, surgiu na América as “Sociedades amigos del país”. No caso peruano, José Rossi y Rubi, um italiano que desde 1780 vivia no vice-reino do Peru, funda em Lima, junto com outros intelectuais, La Sociedad de Amantes del País no final da década de 1780, considerada a primeira a alcançar uma existência institucional9.
A figura de Rossi y Rubi é central nas origens do pensamento ilustrado limenho. Ele organizava encontros literários com outros intelectuais durante a década de 1780, de onde saiu a primeira Academia Filarmônica, em 1787, que contava com o importante médico e cientista Hipólito Unanue entre seus membros. Essa academia tinha como propósito servir a “pátria”, a qual não se resumia apenas a Lima ou ao antigo Tahuantinsuyu. Essa noção de pátria é diferente do que entendemos hoje. Os termos “patria” e “nación” não são sinônimos, como mostra María del Rosario Solís, citada por Catherine Poupeney Hart :
El uso que los mercuristas hacen del vocablo nación para significar el Perú registra un déficit palmario: sin embargo, con la noción de patria sucede lo contrario. En una proporción de casi 60% del total de veces que el término es utilizado en el Mercurio, la patria representa el territorio del Perú –indistintamente país, ciudad o provincia. La noción de país queda englobada en la noción de patria; es más, para López Soria patria y país comparten el mismo significado. Es la patria, y no siempre la nación, la depositaria de una carga afectiva que comprende sentimientos humanistas, cívicos y altruistas. Dentro de esta perspectiva, el “amor patrio” en los textos del Mercurio, constituirá un tema motor por medio del cual la razón ilustrada se impregnará de “sentimiento”, prefigurando as un romanticismo racionalista que décadas más tarde influenciará el proceso de formación cultural y política de la América meridional (POUPENEY HART, 2009, p. 177).
De acordo com Guibovich-Pérez (2005, p. 53), o estatuto da Sociedad assinalava “que la Sociedad había sido fundada para ‘ilustrar’ la historia, la literatura y las ‘noticias públicas’ del Perú”. Pois “las constituciones declaraban que el patriotismo, la humanidad y la filosofía habían sido los impulsores del establecimiento de la Sociedad, y que la religión y la autoridad habrían de ser respetados por sus miembros”. Dos trinta membros acadêmicos eleitos por pluralidade de votos, 22 eram limenhos. A principal tarefa dos acadêmicos era escrever para o Mercurio Peruano.
Em 1793, a partir desse novo status, a Sociedad levou Unanue a escrever um ambicioso plano de temas e de interesses para o Mercurio:
El plan, presentado en la junta del 12 de febrero de 1793, era extenso y quizá demasiado ambicioso, porque comprendía 25 divisiones y 75 subdivisiones temáticas. Las principales divisiones eran la Historia Antigua, la Historia Civil Moderna, la Geografía, la Historia Eclesiástica, la Literatura Peruana, la Política, la Educación Moral, la Economía Pública, la Agricultura, el Comercio, la Física, la Química, la Mineralogía, la Botánica, la Anatomía, la Medicina Práctica, la Historia Natural, las Bellas Letras, la Poesía y las Noticias Públicas. Se publicó en el Mercurio Peruano, n. 331, 6 de marzo de 1794, ff. 151-158, y n. 332, 9 de marzo de 1794, ff. 159-160 (GUIBOVICH-PÉREZ, 2005, p. 54-58).
O conteúdo do Mercurio foi bastante diverso, no qual a economia teve presença muito significativa, junto com a filosofia e a literatura. O MP imprimiu numerosas descrições corográficas das regiões do vice-reino peruano, embora o propósito fosse a melhoria da economia como avanço do conhecimento.
Tratava-se de um periódico dirigido a um público em geral culto e necessariamente erudito. Os editores do Mercurio eram conscientes da necessidade de fazer concessões ao público leitor, no sentido de seduzi-los, não de espantá-los. Rosario Solís comenta que Rossi y Rubi foi o mais prolixo produtor de artigos para o Mercurio. Ele almejava a criação de um leitor ilustrado para o periódico. O mercurista, em seu objetivo de difundir a cultura da ilustración no Peru, durante toda sua participação “en la aventura del Mercurio” até sua partida para Espanha em 1793 (tomos I, II, III, IV, VII e VIII), se “ve precisado a diagnosticar e identificar el ‘gusto’ del lector concreto, para luego, sobre esa base, implantar un plan de acción tendiente a promover una nueva sensibilidad y crear un lector ilustrado” (ROSARIO SOLÍS, 2007, p. 76).
O primeiro número do Mercurio data de janeiro de 1791. Sua principal motivação, segundo seus editores, foi pela
[...] escasez de noticias, que tenemos del País mismo, que habitamos, y del interno; y los ningunos vehículos, que se proporcionan para hacer cundir em el Orbi Literario nuestras nociones, son las causas donde nace que un Reino como el Peruano, tan favorecido de La naturaleza en la benignidad del Clima, y en la opulencia del Suelo, apenas ocupe un lugar muy reducido en el cuadro del Universo que traza los Historiadores. El reparo de esta falta é el objeto primitivo del Mercurio […] (MP, 1791, t. I, f. 9).
Puente Brunke comenta que a maioria das páginas estava dedicada a três matérias, conforme a classificação realizada por Jean-Pierre Clément10: “‘conocimiento del país’, ‘ciencias’ y ‘economía’. Se trataba de las materias consideradas como de mayor ‘utilidad práctica’, y cuyo desarrollo contribuiría eficazmente al logro de la ‘felicidad’ del país”11. Portanto, a proposta do Mercurio foi a difusão das luzes e a defesa do país. Isso por meio do conhecimento prático em escritos sobre educação, higiene, agricultura, demografia, astronomia etc. Ou seja, difusão do “conhecimento útil” e apropriação cognitiva da realidade local.
Segundo o peruanista Jean-Pierre Clément, estima-se que, dos 517 assinantes do Mercurio, 19,70% dedicava-se à administração pública; 12,55%, à hacienda (administração financeira); 17,50%, a atividades econômicas; 13,35% pertenciam à Igreja; 12,20% eram intelectuais; 9,10%, militares; e 15,30%, indeterminados. Se agrupássemos em estamentos, teríamos: clero, 15,85%; nobreza, 27,85%; Estado llano, 51,65%; indeterminado, 4,65%. Para definir a função dos intelectuais em uma categoria gramsciana, Obando Morán aponta que 85% pertenciam ou tinham ascendência intelectual. Quanto à residência dos assinantes, 53,60% estavam situados em Lima; 18,20%, em outras partes do vice-reino do Peru; 8,50%, em outros vice-reinos; 2,30%, em outras partes do mundo; e 17,20% eram indeterminados12.
No Mercurio, os artigos sobre história e sociedade eram marcados por ambiguidades. Enquanto exaltavam os “reis” incas e suas descrições do passado, desqualificavam as populações indígenas com as quais conviviam. Tais posições refletiam o medo que existia entre espanhóis e criollos, causado pelo levante indígena de Santos Atahualpa, na selva central em 1742, pelos motins em Lima e Huarachori, em 1750, e pela grande rebelião de Tupac Amaru, no centro do Peru entre 1780 e 1783. Nesses levantes, caciques e lideranças indígenas, comandando diversos grupos étnicos e sociais, além de rebelarem-se contra as autoridades coloniais, contestavam a sociedade de privilégios e “clientelaje”, nas quais se inseriam criollos e espanhóis, através do exercício de cargos como os de corregedores, catedráticos, secretários, assessores, ouvidores, visitadores (QUIROZ CHUECA; QUIROZ CABAÑAS, 2014, p. 132).
Os mercuristas redigiam seus artigos sobre o que entendiam ter sido a história do país e sobre a constituição da sociedade peruana de então. Para Quiroz Chueca e Quiroz Cabañas, a história deveria servir aos criollos para construir sua identidade como grupo social em um período em que seu poder político diminuía perante as reformas imperiais:
La urgencia es, pues, resaltar el papel central que cumple el Perú en el imperio español y el carácter occidental de la civilización peruana. Para esto, los mercuristas presentan las bondades naturales y culturales del país que consideran parte integrante de la civilización occidental y cristiana a través de España al tiempo que toman distancia del indio contemporáneo considerado nuevamente como bárbaro luego de la violencia desatada en los levantamientos tenidos a lo largo del siglo XVIII (QUIROZ CHUECA; QUIROZ CABAÑAS, 2014, p. 133).
Nesse contexto, perante as manifestações rebeldes andinas e os ecos das revoluções francesa e haitiana,“se busca definir el principio ordenador de la sociedad colonial peruana”, e saber se tomava posição moderna, ilustrada, racionalista ou se continuava com conceitos pré-ilustrados que funcionaram anteriormente para “controlar la sociedad e impedir las manifestaciones de protesta”. Assim, o que interessava aos mercuristas era estabelecer “que los Andes tienen un alto grado de civilización en su historia y los incas sirven perfectamente para este fin pues presentan un nivel elevado de civilización previa a la suya que, por definición, ha de ser necesariamente superior”. (QUIROZ CHUECA; QUIROZ CABAÑAS, 2014, p. 132).
Sobre a sociedade peruana, Guibovich-Pérez afirma que as posturas sociais e políticas dos mercuristas foram moderadas e até colaboraram com o absolutismo colonial (GUIBOVICH-PÉREZ, 2005). As ideias sociais presentes no Mercurio “son propias del racionalismo despótico”, buscando inserir a razão a serviço do Estado a fim de “buscar los medios para preservar el orden social y así garantizar la continuidad del orden colonial en los Andes” (QUIROZ CHUECA; QUIROZ CABAÑAS, 2014, p. 135).
Os mercuristas, tentando demonstrar seu valor intelectual – criollos limenhos ligados às esferas altas e médias do poder político colonial –, apresentavam-se como capazes de assumir responsabilidades de confiança nessa estrutura política colonial, ou melhor, hábeis intelectualmente para realizar estudos sobre a realidade do vice-reino (QUIROZ CHUECA; QUIROZ CABAÑAS, 2014, p. 132). Eles se viam como “jóvenes en el servicio del Rey, otros graduados en los diversos ejercicios de la Universidad, otros ministros del altar, hemos abrazado unánimes y gustosamente la difícil empresa de abrirnos una nueva senda, que nos conduzca al término feliz de ser útiles a la Patria” (MP, 1793, t. VII, f. 6). Como entende Guerra, na América parece faltar o papel motor do Estado, e isso fez com que as “élites ilustradas americanas hubieran tenido que demostrar con hechos fehacientes” (GUERRA, 1992, p. 103), por meio dos periódicos e outras publicações, seus valores intelectuais.
A respeito do tipo de Ilustração presente no periódico, nos é útil a excelente síntese de Beatriz Helena Domingues sobre “Ilustración católica”. Segundo a autora, essa Ilustração é entendida como uma corrente da Ilustração racionalista europeia voltada a demonstrar a não existência de conflito entre o cristianismo e uma compreensão científica e moderna da realidade do mundo e da história. Assim,
[...] para los adeptos de esta corriente, la concepción ilustrada del mundo no podía reducirse al estrecho racionalismo crítico y antirreligioso de los filósofos. Sus obras – sean históricas, literarias o científicas – están animadas por el deseo de penetrar en los nuevos campos que la ciencia y a erudición les abrirán. De tal forma que, a pesar del rechazo a los postulados anticristianos de los enciclopedistas y de los filósofos en general, su afán para conciliar tradición y novedad se amparaba en bases intelectuales sólidas, visibles en su método, en su exégesis y en su estilo (DOMINGUES, 2015, p. 282).
Na mesma linha, a concepção do filósofo Johnny Octavio Obando Morán sobre a matriz ilustrada do periódico permite-nos perceber que o Mercurio, no século XVIII, aparece como uma expressão renovadora das ideias da época no Peru. Porém, essa renovação foi bastante parcial, por ter-se reduzido ao âmbito do conhecimento, que era muito deficitário, e ainda por não “decir que fue empirista de claro signo realista tomista” (OBANDO MORÁN, 2013, p. 1).
Sustenta o filósofo a permanência de uma tônica “ontológica tomista-aristotélica hispânica” que “afectó a todos los aspectos de la conciencia y el pensamiento”. E a dimensão ontocognoscitivo teria sido concebida em uma esfera empirista-realista. Nessa linha, a Ilustración peruana foi lida com olhos “ontológicos tomista-aristotélicos hispânicos”, e isso teria acentuado o conhecimento descritivo como verdadeiro conhecimento (OBANDO MORÁN, 2013, p. 1).
Ainda nos é pertinente comentar que o Mercurio, ao buscar expressar o melhor possível as características físicas e naturais do Peru ante a “falsa ideia” vinda de fora (Europa), desenvolveu uma autorrepresentação de reflexo, tal como propõe Obando Morán. Para ele, os mercuristas, em geral, percebiam-se em sentido intelectual dotados das “melhores” virtudes humanas, intelectuais e masculinas – autorrepresentação tomada de seus antecessores hispânicos. Inversamente, consideravam as classes baixas o seu oposto, pois, por trabalharem com as mãos, eram detestáveis a eles (OBANDO MORÁN, 2013, p. 12). Foi nesse sentido de Ilustração que a elite criolla se propôs a pensar o Peru e expô-lo nas páginas do Mercurio.
El principal objeto de este Papel Periódico, según el anuncio que se anticipó en su Prospecto, es hacer más conocido el País que habitamos, este País contra el cual los Autores extranjeros han publicado tantos paralogismos (MP, 1791, t. I, f. 1).
Com estas palavras, José Rossi y Rubi, redator do primeiro artigo do Mercurio, intitulado “Idea General del Peru”, de janeiro de 1791, nos insere nos debates teóricos ocorridos ao longo do século XVIII. Mas de que paralogismos ele está falando? Um caminho de resposta está na “polêmica do novo mundo”.
As formas como foi visto o Novo Mundo desde o século XVI até o século XIX foram abordadas em 1955 por uma obra pioneira que permanece como referência até hoje: O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900), do italiano Antonello Gerbi. Esses registros teriam começado nos diários de viagem de Colombo, passando por diversas crônicas, cartas de ordens religiosas, relatos de viagens etc., chegando até meados do século XX. Muitos desses textos, como aponta Neide Gondim (1994, p. 63), manifestavam “visões utilitaristas, edênicas, eurocentristas, ambíguas, benevolentes, infernistas [...]” e, sobretudo, detrativas.
Gerbi no quinto capitulo de sua obra “a segunda fase da disputa”, mostra como as visões discriminatórias, degenerativas, excludentes e preconceituosas dos europeus foram enfatizadas por diversos autores que, durante o século XVIII, se enquadrariam na chamada “Ilustração europeia”, responsável por causar um debate polêmico ao depreciar a América e considerá-la inferior. Em resposta, no final do século XVIII, surgiram novas construções teóricas americanas de defesa. Mesmo assim, no século XIX, teorias de conteúdo depreciativo sobre o continente americano ainda foram propostas por Hegel,inspiradas pelos naturalistas europeus do século XVIII, sendo os mais notáveis o francês Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, e o holandês Corneilius De Pauw e Willian Robertson (GERBI, 1996).
Nos anos 1990, o equatoriano Jorge Canizares-Esguerra, pesquisando como seriam as Histórias Naturais sobre América, para completar e/ou ampliar as ideias de Antonello Gerbi, aumentou a “polêmica” ao discutir sobre os registros construídos do Novo Mundo. Ele identificou que os jesuítas, no final do XVIII, criticavam as metodologias de conhecimentos europeus sobre o Novo Mundo e, ao fazerem isso, estavam produzindo uma “epistemologia patriótica” (CANIZARES-ESGUERRA, 2011, p. 288), Acerca deste assunto, insere-se o movimento de construção, exaltação e de apropriação da selva central peruana, por meio do discurso apresentado por essa Ilustração criolla, no que concerne ao nosso objeto específico, o Mercurio Peruano e a apropriação do Ucayali.
Os redatores do Mercurio desenvolveram suas epistemologias próprias a partir da influência e da ressignificação da Ilustração espanhola. Por parte dos criollos, toda essa ressignificação reverberou em “orgulho telúrico”, em um amor pela terra à qual pertenciam. Como aponta Sebastián Wierny, ao se sentirem profundamente ofendidos por essas difamações feitas pelos ilustrados europeus, alguns dos destacados redatores do Mercurio, tal como José Rossi y Rubi, Hipólito Unanue e Pedro Nolasco Crespo, “responderán a éstos, punto por punto, y empleando un discurso similar, es decir basado en teorías científicas (o seudocientíficas), y ofreciendo datos empíricos para invalidar el argumento de sus oponentes” (WIERNY, 2010, p. 96).
A Ilustração criolla distingue-se da Ilustração europeia presente na América, pois assume condições próprias e um sentimento patriótico, uma identidade patriótica. Esses criollos tinham uma identidade local: escreviam como quitenhos, limenhos etc., não como espanhóis. O Mercurio fez parte dessa construção patriótica. Foi nos textos mercuristas que os criollos limenhos ilustrados desenvolveram sua “epistemologia patriótica”.
O imaginário que se construiu no período que antecede à independência do Peru, especialmente no momento em que foi produzido o Mercurio, estava permeado de discursos patrióticos, pois “desde el establecimiento del Mercurio, hemos procurado dar à luz algunas descripciones de distintos territorios del País, con el doble motivo de dar a conocer su situación local y sus costumbres, su industria y su comercio” (MP, 1793, t. VIII, f. 258)13. Tratava-se de mostrar as regiões desconhecidas e desfazer os erros cartográficos do passado, para marcar o território e desenvolver o comércio na região.
Assim, entendemos que os discursos dos criollos no Mercurio Peruano, referentes à natureza americana, especificamente à região hoje chamada no Peru de “selva central”, que compreende o rio Ucayali e seus tributários, são de apropriação. Tais discursos nutriam-se das ideias da Ilustração católica quanto ao potencial humano de conhecimento e à consolidação da História Natural. A respeito, destaca Rodriguez García, o paradoxo entre botânica e ilustração nas páginas do periódico estava “quiado por la voluntad de sacar la máxima utilidade prática al universo vegetal”. Ou, como assinala Hipolito Unanue no MP, “La utilidad común, repetiremos por instantes, es el alma de nuestras tareas, y son imponderables las particularidades que ofrece el estudio de la botánica a las Artes, a las Ciencias y al Perú” (MP, 1791, t. II, n. 45, f. 76). Ainda, esses discursos apropriativos estavam dentro dos debates sobre inferioridade e superioridade em relação à natureza e à legitimação do Estado como promotor do saber e das ciências, no marco das reformas bourbônicas.
Com isso, ao ler e analisar os artigos do Mercurio, situamo-lo em um horizonte mais amplo: os redatores do Mercurio, ao detalhar e nomear nas suas páginas rios e vales e descrever com emoção a natureza e os habitantes do Ucayali, estariam configurando uma ideia de um Peru além do litoral, além dos Andes. Um Peru que incluía a selva oriental definitivamente conquistada, ocupada, cartografada, que deixaria de ser a fronteira estabelecida pelas conquistas inca e espanhola para tornar-se promessa de futuro de um novo país.
Durante o século XVIII houve maior interesse dos impérios ibéricos por suas possessões ultramarinas, e as terras coloniais americanas, que forneciam suas principais riquezas, mereceram atenção especial. Por parte dos portugueses, isso correu por meio das reformas pombalinas; e pela Espanha, mediante as reformas bourbônicas –, que incluíram políticas e ações para a reformulação das relações com suas colônias. O setecentos foi o século do desenvolvimento das ciências modernas, e os impérios ibéricos absorveram e transcenderam essa modernização no campo político e comercial, buscando novas fontes de riqueza em suas possessões ultramarinas (PUIG-SAMPER, 2011, p. 1).
Ao longo da segunda metade do século XVIII, o governo espanhol projetou e executou ambiciosas expedições com intuito de demarcar territórios e “investigar los posibles usos medicinales y comerciales de la vegetación tropical” (NIETO OLARTE, 2003, p. 418). Os relatos diários de diferentes exploradores eram compostos da descrição de possíveis plantas referenciais para o comércio de medicamentos e para a farmacologia, como a “quina”, medicamento utilizado para diversos tratamentos. Percebemos aí interesses inter-relacionados: botânicos, científicos, políticos e comerciais. Era preciso desenvolver uma História Natural americana que abarcasse esses objetivos e a justificasse14.
O Mercurio Peruano fez da botânica um aspecto evidente no seu conteúdo, em particular pela relevância que foi conferida a algumas matérias, como a dissertação sobre a coca, de Unanue, ou sobre a quina, de Jose Celestino Mutis, incluídas nos últimos números do periódico. Os impactos que teve no Peru, entre os ilustrados, os resultados das expedições de Hipolito Ruiz e Jose Antonio Pavon em relação à flora de Chile e Peru, a ideia de instalar um jardim botânico em Lima e os debates sobre a criação de uma cátedra de Botânica na Universidade de San Marcos podem explicar o interesse pela botânica presente no Mercurio (RODRIGUEZ GARCIA, 2006, p. 222). Assim, Unanue publicou, nos números 44 e 45 do Mercurio, “Introducción a la descripción científica de las plantas del Perú”, e o clérigo Francisco Gonzales Laguna publicou, no número 367, as “Memorias de las plantas extrañas que se cultivan en el Perú”. Nos seus dois artigos, como em vários outros, Unanue fez uso do que aqui chamamos de “transliteração”, ao mencionar o modo como era constituída a História Natural: “el sistema debe ser la reunion de divisiones y subdivisiones, apoyadas en principios estables y determinados” (MP, 1791, t. II, n. 45, f. 78), que tomou da obra de Linneo. O Mercurio utilizou também o mesmo recurso no artigo “Proyecto económico sobre la internación y población de los Andes de la provincia de Guamalies [...]”, de número 33 (MP, 1791, t. I, f. 299), ao falar do valor comercial da quina amarela, apresentando a narrativa do comerciante espanhol dom Juan de Bezares.
Abordamos esses artigos a partir da proposta de Michel Foucault de pensar a História Natural, no fim do século XVIII, em sua categoria taxonômica e discursiva, em que, para saber sobre a natureza, se passou a buscar por experiências, observações e leis que pudessem organizar um domínio mais complexo sobre os seres vivos. E sob os diferentes regimes teóricos, a “possibilidade de classificar os seres vivos, sustentando que toda a natureza pode entrar numa taxionomia” (FOUCAULT, 2016, p. 172-173).
Foucault ressalta que a História Natural é o espaço aberto à representação de uma análise que se antecipa à possibilidade de nomear e de ver o que se poderá dizer. Nesse âmbito discursivo, a História Natural aparece como capaz de criar uma linguagem comum, um nome comum das coisas, que se dava pela representação, e a estrutura por meio da linguagem: “a visibilidade do animal ou da planta passa por inteiro para o discurso que a recolhe” (FOUCAULT, 2016, p. 181). O livro, nesse sentido, torna-se o herbário das estruturas. Visto sob esta perspectiva, o artigo sobre botânica de 29 de maio de 1791, do MP, intitulado “Introducción à la descripción científica de las plantas del Perú”, registra que, “La Botánica, es aquella parte de la Historia Natural, que ensena a distinguir por señales claras y características unas plantas de otras, da a cada una el nombre que le corresponde, y la grava en la memoria” (MP, 1791, t. II, f. 69).
Para Foucault, a história natural se aloja intrinsicamente na linguagem, “pois que ela é essencialmente um uso regulado dos nomes e tem por fim último dar às coisas sua verdadeira denominação” segundo a possibilidade de representá-los num sistema de nomes”, ou como entende o autor, a partir de um a priori histórico (FOUCAULT, 2016, p. 219-220). Tal como compreendiam os mercuristas, “la historia natural del Perú es fecunda en prodigios. Todos los sistemas que se han trazado en Europa sobre esta materia, están sujetos à mil ampliaciones cuando aquí se hace la aplicación de sus teorías” (MP, 1791, t. I, f. 6).
No marco da concorrência com outras potências coloniais, como a Holanda e a Inglaterra, os interesses políticos, taxonômicos e econômico-comerciais se faziam objetivos primordiais: “Las políticas económicas coloniales estimularon el desarrollo de la farmacia y la taxonomía vegetal, y que dichas prácticas constituyen importantes formas de control tanto de la naturaleza como de la sociedad” (NIETO OLARTE, 2003, p. 419).
Descobrir, conhecer, nomear, classificar é igual a tomar posse. A Ilustração europeia, com o estudo da natureza americana, sobretudo da selva amazônica, se colocou particularmente como detentora de todos os territórios, incluindo os saberes específicos dos nativos perante a natureza. As técnicas classificatórias ou taxonômicas dos naturalistas europeus para nomear, classificar e ordenar representaram o instrumento de apropriação. Nesse sentido, segundo Branning, Nieto Olarte infere que “todo objeto ‘descubierto’ tiene que haber pasado por un proceso de construcción” (BRANNING, 1981 apud NIETO OLARTE, 2003, p. 420).
Nessa concepção, o próprio Linneu aponta em sua obra que sempre houve uma visão teleológica e funcional da natureza, pois “quién por primera vez reconoce un lugar, una planta a una medicina proclama su derecho de posesión” (NIETO OLARTE, 2003, p. 420).
A propósito dessa universalidade da linguagem classificatória em relação à América hispânica, Santiago Castro-Gómez, inspirado em Foucault, acredita que, durante o século XVIII, a Ilustração eleva “la pretensión de crear una metalenguaje universal capaz de superar las deficiencias de todos los lenguajes particulares” (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 14) A linguagem da ciência possibilitaria “generar un conocimiento exacto sobre el mundo natural y social, evitando de este modo la indeterminación que caracteriza a todos los demás lenguajes” (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 14). O ideal científico ilustrado foi de tomar “distancia epistemológica” ante a linguagem “comum”, considerada como erro e confusão.
Ainda segundo Castro-Gómez, a Ilustração funcionou como uma montagem de discursos-enunciados, tanto no centro quanto na periferia colonial,
[...] al creerse en posesión de un lenguaje capaz de revelar el “en-sí” de las cosas, los pensadores ilustrados (tanto en Europa como en América) asumen que la ciencia puede traducir y documentar con fidelidad las características de una naturaleza y una cultura exótica (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 14).
Nomear a natureza significa ordená-la, colocá-la sob o domínio sistemático da linguagem científica. O ideal do naturalista ilustrado no século XVIII foi tomar distância da linguagem comum com o fim de alcançar o punto cero que “le permita describir el mundo con objetividad”. Dessa forma, descrever o mundo natural a partir de “un solo punto de vista, desde una plataforma única y utilizando un lenguaje universal válido en todo tiempo y lugar: tal era el ideal ilustrado del punto cero. Este será también el ideal que inspirará las grandes exploraciones científicas del siglo XVIII” (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 208). Seguindo estas posições, podemos compreender a conjuntura específica em que foi escrito o Mercurio Peruano: tanto como foi apreendido pelos ilustrados criollos limenhos, por meio do discurso classificativo, gerando, com isso, uma epistemologia limenha patriótica, quanto pelas expedições, explorações e publicações de narrativas sobre regiões desconhecidas dos vales amazônicos, provocando concomitantemente um sentimento de “orgulho telúrico”.
Afirmar a ideia de Peru era afirmá-lo nas suas diversas regiões, as conhecidas e as desconhecidas, entre elas a chamada “montanha”, e tornar presentes no imaginário de seus leitores regiões que nem todos sabiam que faziam parte do Peru, pois localizavam-se na imprecisa fronteira oriental, em direção à selva, em regiões de rios pouco conhecidos e navegados, como Ucayali, Huallaga, Pastaza, Marañon, e habitadas por indígenas arredios.
Ante a impossibilidade física de trasladar-se à selva, os redatores do MP recorreram ao uso de narrativas de outros autores, numa forma que chamamos aqui de transliteração. Este recurso era comum na escrita de crônicas missionárias desde o século XVII, enxertando-se na narrativa, completos ou em sínteses, cartas, descrições, diários, procedentes de vários autores, que podiam ser mencionados ou não. Cabia ao “editor” a escolha dos textos a serem incluídos. A transliteração permitia introduzir num texto maior um texto menor de outro autor, com suas marcas de autoria, porém constituindo-os numa única narrativa. Três resultados, entre vários, obtinham-se do uso da transliteração: o texto maior influía na narrativa menor, alterando-lhe o sentido. O texto menor constituía um referente para que o texto maior pudesse enunciar predicados próprios. E, finalmente, o texto menor comunicava aos leitores o testemunho da experiência de terceiros que apareciam na primeira pessoa, transmitindo as emoções do protagonista e do autor.
Como já mencionamos aqui, o Mercurio Peruano teria adotado o que chamamos de “transliteração” como método de sustentação das suas matérias publicadas, incorporando textos, “estadísticas”, “noticias” de diversas procedências, numa seleção que constituía já um ato de edição, configurando-se, na maioria das vezes, uma intervenção no texto que o apropriava de tal forma que poderia parecer uma nova autoria, a do Mercurio. Em outros casos, a avidez do Mercurio por acompanhar novidades ou matérias que provocavam interesse ou debate o levou a reproduzir na íntegra artigos já publicados em outros jornais, como o caso da já mencionada dissertação sobre a quina, de Jose Celestino Mutis (RODRIGUEZ GARCÍA, 2006, p. 230).
Para o que nos ocupa neste artigo, interessados em dar conta de uma espécie de expedição à desconhecida região do Ucayali, os editores do Mercurio tiveram acesso às relações de viagem dos frades franciscanos Sobreviela e Girbal, que nos anos 90 do século XVIII adentraram nas selvas centrais, tendo Sobreviela chegado até à lagoa da grande Cocama, já no vale amazônico. Adquirindo os direitos sobre os “diários”, os editores do Mercurio os transliteraram, resumindo os textos originais num texto menor e produzindo um texto maior, que configura tanto a apropriação dos diários como a autoria do Mercurio no texto produzido.
Padre Sobreviela foi um dos mais influentes superiores (guardião na estrutura franciscana) do convento de Ocopa, ponto avançado do qual saíam os missionários com destino à selva. Padre Girbal, menos famoso, o sucedeu em suas expedições à montanha. Essas relaciones foram publicadas entre 1791 e 1794, com o título de Peregrinaciones, palavra de cunho religioso que faz referência a um sofrido trafegar na direção de um santuário ou lugar religioso. Segundo o MP, as relaciones seriam publicadas “por lo mucho que interesan a la Religión y el Estado el conocimiento de aquellos países y es necesario les preceda para su esclarecimiento la historia de las enunciadas misiones” (MP, 1791, t. II, f. 138). Praticando a transliteração do texto, o editor do MP, em muitos casos Hipolito Unanue, assume a posição de narrador, sintetizando, por exemplo, em 19 páginas as mais de 100 escritas pelo frade (MP, 1791, t. II, f. 141)15.
As relaciones, no caso de Sobreviela, de fato um minucioso diário, davam conta das viagens dos padres, dos percursos seguidos, registrando as datas e as distâncias percorridas, enumerando rios e acidentes geográficos e narrando as dificuldades vividas em razão da inclemência dos climas e os perigos de transitar nas montanhas e de atravessar os rios. Esses relatos referiam-se ainda aos contatos bem ou malsucedidos com os índios, lembrando com nostalgia a presença dos franciscanos em Pataz, Guamalies, Huanuco e Pampa del Sacramento, tempos atrás, quando a fé chegou a estar presente entre eles graças ao trabalho dos frades. Padre Sobreviela, além do diário e de diversas descrições, elaborou e deu a conhecer em 1791 o “Plan del curso de los rios Huallaga y Ucayali y de la Pampa del Sacramento”, acompanhado de uma narrativa explicativa. O “plan”, de fato, priorizava os rios, em particular o Huallaga, nessa altura mais conhecido, e marcava as sete entradas para a montaña que Sobreviela logrou estabelecer, destinadas a serem percorridas pelos missionários e futuros moradores da região. O MP, ao publicar as peregrinaciones, lamentou não poder publicar o mapa por falta de recursos econômicos (MP, 1791, t. II, f. 143). Falta que seria preenchida no findar do MP, com a publicação avulsa do mapa do padre Sobreviela e da descrição que o acompanhava16.

Apoiado nas relaciones, o MP pôde construir o seu próprio país do Ucayali, definido por três características: abundância natural, localização privilegiada e possibilidades de civilizar seus broncos habitantes, através da ação missionária dos franciscanos. Descreve assim o jornal: “La multitud y variedad de los peces que surcan sus aguas, no es menor que las vistosas y canoras aves que pueblan el aire y diversidad de cuadrúpedos que pasta en sus campiñas. Ojalá no abundaran tanto los insectos y sabandijas” (MP, 1791, t. II, f. 229). Essa visão edênica e harmoniosa passou a ser completada pela descrição do reino vegetal, que em
[...] competencia del mineral y animal explaya su fertilidad formando bosques dilatados de soberbios y frondosos árboles, de flores olorosas, de inestimables frutos y de bálsamos y gomas salutíferas que disueltas de continuo con el calor del clima ardiente exhalan ambrosía, e inundan de fragancia la atmosfera. Los espacios que desamparan las selvas los ocupa el salvaje Sípibo, el Sétebo, el Pano y el Cocama, disfrutando de las delicias que les franquea la benigna naturaleza (MP, 1791, t. II, f. 229).
A respeito da localização do Ucayali, o MP empolgou-se:
Rodeada de esta suerte por los ríos más opulentos del Orbe que se comunican con el mar del Norte y principales provincias de los virreinatos de las América meridional: atravesada de otros muchos y caudalosos que desaguan en los primeros, figura una península desde cuyo centro podía hacerse un comercio náutico casi con todos los puntos del globo (MP, 1791, t. II, f. 226-227).
De tais exaltações, acredita o investigador Pedro Favaron que,
[...] ante la selva real, desconcertante y llena de peligros, se abre una brecha ontológica que da pie a la selva imaginada. Es en esa distancia entre experiencia empírica y percepción cultural, que la Amazonía es proyectada por los europeos como tierra desierta, deshabitada, una suerte de terra nullius capaz de resucitar, incluso en pleno tiempo de la Ilustración, el fervor épico (FAVARÓN, 2010, p. 68).
Assinala Favarón, ainda, que tais sonhos podiam servir “como quimeras útiles, que incentivaran la colonización de la Amazonía. La élite intelectual confiaba en que la entrada occidental a la selva podía ejercer una impronta civilizadora sobre la región” (FAVARÓN, 2010, p. 59)
Assume também o narrador do Mercurio o lugar de Sobreviela: “Acaso no hay em las dos Américas otro país más ventajosamente situado, ni que goce de igual fecundidad” (MP, 1791, t. II, f. 226). Trata-se de uma referência recorrente de um dos mais expressivos resultados das viagens de Sobreviela: o estabelecimento de diversas entradas para a região e a confirmação das rotas fluviais que podiam ser seguidas até o Amazonas. Elas seriam o meio para ocupar aquelas regiões através das missões, que serviriam de âncora para que cristãos estabelecessem chácaras; para Sobreviela, por falta de rotas e caminhos, nunca se tinha conseguido realizar a riqueza das montanhas, mesmo com tantas missões, 67 missionários mortos e “incontáveis soldados” (MP, 1791, t. I, f. 294).
As viagens missionárias dos anos 90 do século XVIII começavam a estabelecer pautas de ações de comunicação, como construir caminhos de Tantamayo à ponte de Chinchima, do rio Monzon a Chicoplaya, e seguir navegando pelo Huallaga até o Marañon, beneficiando o comércio de Lamas, Maynas e Quixos (MP, 1791, t. I, f. 298-299); e também das imediações do Pastaza até próximo de Quito (MP, 1791, t. I, f. 295).
Destas informações e dos projetos recorrentes deles, o MP tirava práticas consequências, como a necessidade de substituir as pontes e os caminhos que na época de sua construção serviam só para levar tributos a Cusco (MP, 1791, t. I, f. 294-295). Tudo isto se tornava ainda mais possível com o mapa elaborado pelo padre Sobreviela, o qual, no findar do Mercurio, num grande esforço econômico, o jornal publica. Mapa este que teria fascinado o governador de Maynas, dom Francisco Requena, que, em correspondência citada pelo MP, dizia:
¿qué tropel de reflexiones y proyectos no me ha ofrecido la vista reflexiva de dicho mapa, sobre el modo de asegurar la Conquista de las naciones que habitan el Ucayali, Pachitea, Paro, y demás que a estos tributan agua; sobre la especie de embarcaciones que debía usarse por ellos: sobre el comercio de los frutos que dichos terrenos ofrecen; y en fin de todos los beneficios que la Religión y el Estado pueden prometerse que una gran parte de este continente […]? (MP, 1792, t. VI, f. 187-188).
Tornaria, assim, útil para ler e compreender esses apontamentos a proposta teórica de Castro-Gómez, a qual, utilizando a proposta de Deleuze e Guattari, chamou de estriaje de la tierra. Para esse autor, “la imposición de un modelo de organización y control estatal sobre el espacio que permitiera convertirlo em territorio, es decir, en un espacio sujeto al imperio del logos y la gubernamentalidad”. Onde “las políticas del territorio implementadas por el imperio español buscaban precisamente convertir el espacio de las colonias y sus pobladores en una cualidad objetiva, mensurable y, por ello mismo, controlable” (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 230).
Assim, ressalta Peralta Ruiz, “el asalto a la Amazonía desde los Andes era un asunto urgente e impostergable si se deseaba salvaguardar otra frontera geopolíticamente más importante como era la que se disputaban los dos imperios europeos con presencia en la América meridional” (PERALTA RUIZ, 2009, p. 29). A partir do virtual desenho do país imaginado do Ucayali, emerge em coerente composição a afirmação do imperativo destino de um território de grande potencialidade na perspectiva mercantil e como um ponto avançado e estratégico para contenção dos portugueses.
Ao fazer isso, para o historiador equatoriano Canizares-Esguerra, os criollos desenvolveram suas práticas epistemológicas próprias, que no decorrer das décadas seguintes formariam a consciência patriótica, a qual escondia todas essas estratégias de exploração e “conquista” da “floresta promissória” apropriada, então, como peruana. Nação imaginada17 pelos criollos nos alicerces de novas concepções de espaços, através da manipulação de representação da natureza americana carregada de fortes apegos emocionais.
Este artigo estabelece um diálogo com a historiografia que se tem debruçado em interpretar e caracterizar os criollos ilustrados do final do século XVIII, através da cultura católica na qual se incluíam e da Ilustração hispânica que era referência para a redação de seus textos e a realização de suas ações. Tal compreensão parte de sua conjuntura histórica, seguindo a postulação de uma Ilustração criolla formuladora de uma Epistemologia patriótica, como a chamou Canizares-Esguerra.
Construímos nosso artigo com base na escolha do Mercurio Peruano como objeto de análise – o periódico que, no final do século XVIII, reunia jovens ilustrados na tentativa de tornar Lima um lugar de luzes, de ideias, de projetos de transformação para o Peru. Um Peru que, além de Lima, seria para os mercuristas o Cusco pré-hispânico, o Potosí colonial, a Arequipa dos confins do sul do vice-reinado e também o rio Ucayali, vasto mundo desconhecido, cheio de promessas futuras. Partidários de transformar a experiência no fundamento do conhecimento, os mercuristas serviram-se do testemunho de outros autores para fazer-se presentes em todas as partes daquele extenso Peru. Publicaram, assim, nas suas páginas relatos de viagens, descrições, informações, diários, onde eram consignados experiências e testemunhos de terceiros, que levavam tanto os redatores como os leitores do periódico a paragens, paisagens e situações às quais de outra forma não teriam acesso.
Esses registros eram apropriados pelo periódico através de um recurso, prática, ou melhor, intervenção textual que temos chamado aqui de “transliteração”. Essa intervenção mantinha as peculiaridades linguísticas do autor, suas emoções e opiniões, mas enxugava o texto original, sintetizando e dando prioridade a passagens ou assuntos que interessavam aos editores do MP, e também fazendo uso de eufemismos que “traduziam” as expressões originais, alterando seus sentidos últimos.
O controle da transliteração, que incluía a possibilidade de fazer nomeações ou “traduções”, permitia ao lugar da última enunciação, no caso, o periódico limenho, conferir o sentido que desejasse na sua cruzada patriótica, tornando possível o aparecimento da brecha ontológica de que fala Favaron. Assim, quando Sobreviela e Girbal narravam suas experiências no meio de lodaçais, chuvas inclementes, subidas íngremes e descidas escorregadias, o MP enxergava um país maravilhoso, de recantos únicos e bosques que exalavam ambrosia. Da mesma forma, quando os dois franciscanos, em seus diários e descrições, estabeleciam cursos de rios e apresentavam opções de caminhos e entradas até Jeberos, na distante governança de Maynas, o MP projetava a ilusão de um entroncamento de vias de comunicação fluviais e terrestres que levaria o “rico país do Ucayali” a ligar-se comercialmente com o mundo; caminhos que deixariam de ser “um simples meio de levar tributos a Cusco”.
Exaltada assim a pátria imaginada pelos criollos, a livre pena dos mercuristas adjetivava a descrição substancialista, que transfigurava em bosque soberbo a selva apertada e escura, transformava o cheiro forte da vegetação apodrecida em exalação de ambrosia, e o índio selvagem, em cristão trabalhador de chácaras de colonos empreendedores. O país idealizado pelo periódico, ou melhor, a “quimera útil”, segundo Favaron, substituía um território que começava a ser “estriado” através de instrumentos como o mapa de Sobreviela.
Rossi, Unanue e companheiros, patrioticamente entusiasmados com a perspectiva de dominar e explorar economicamente espaços que naquele momento, com a elaboração e a publicação do mapa do padre Sobreviela, configuravam-se em territórios a ser incorporados de fato ao Peru, embarcavam na fantasia do progresso iminente com o aval das ciências e das artes, elegendo os criollos como produtores de conhecimento e gestores de tal epopeia. Portador de desejos que não admitiam procrastinação, o MP delineava assim, em ingênua pressa, o efêmero perfil da juvenil pátria pregada pelos letrados criollos.
