Dossiê

Recepção: 29 Março 2019
Aprovação: 05 Junho 2019
DOI: https://doi.org/10.5433/1984-3356.2019v12n23p166
Resumo: Este artigo analisa aproximações e vicissitudes entre a revista paraense Belém Nova e a Revista de Antropofagia, paulista, a partir dos manifestos literários veiculados por elas na década de 1920. Mesmo próximas quando consideramos o caráter combativo e modernista de suas publicações e a presença de autores publicando em ambas, diferenças em relação à percepção da regionalidade e brasilidade veiculadas por elas são pontos chave para melhor compreender as revistas culturais do período e o próprio movimento modernista. As relações foram pensadas a partir da ligação dos modernistas de São Paulo com os da Amazônia, especialmente Oswald de Andrade, Raul Bopp, Abguar Bastos e Oswaldo Costa. Compreendendo os manifestos enquanto instrumentos de disputas utilizados pelos autores e pelas revistas, parte-se do debate acerca dos modernismos brasileiros, passando pelas disputas regionais sobre a preponderância artística e estética, até chegar na relativização destas barreiras regionalistas/bairristas. Além disso, constatando a presença de autores da Amazônia ligados à revista Belém Nova e ao modernismo do norte nos quadros da Revista de Antropofagia, partimos da hipótese de que os contornos do movimento antropofágico foram sendo definidos com a presença de ideias e ideários existentes entre os artistas nortistas. A Revista de Antropofagia seria porta-voz de um movimento cujas raízes extrapolam a regionalidade paulista, fazendo a junção da modernidade e da tradição brasileiras na tentativa de reconfiguração do modernismo nacional.
Palavras-chave: Modernismo, Amazônia, Antropofagia, Revista, Manifesto.
Abstract: This article analyzes the approximations between the Belém Nova magazine and the Revista de Antropofagia, from the literary manifestoes published by them in the 1920s. Even when we consider the combative and modernist character of their publications and the presence of authors publishing in both, differences in relation to the perception of the regionality and brasility conveyed by them are key points to better understand the cultural magazines of the period and the modernist movement itself. The relations were thought from the connection of the modernists of São Paulo with those of the Amazon, especially Oswald de Andrade, Raul Bopp, Abguar Bastos and Oswaldo Costa. Understanding the manifestos as instruments of disputes used by the authors and the magazines, one starts from the debate about the Brazilian modernisms, going through the regional disputes over the artistic and aesthetic preponderance, until arriving at the relativization of these regionalism. In addition, observing the presence of authors from the Amazon linked to the Belém Nova magazine and the modernism of the north in the pictures of the Revista de Antropofagia, we start from the hypothesis that the contours of the anthropophagic movement were defined with the presence of ideas and ideas existing among the artists. The Revista de Antropofagia would be the mouthpiece of a movement whose roots extrapolate the regionality of São Paulo, bringing together Brazilian modernity and tradition in an attempt to reconfigure national modernism.
Keywords: Modernism, Amazônia, Anthropophagy, Magazine, Manifest.
Introdução
O lançamento de revistas foi muito recorrente no modernismo brasileiro e teve início nas duas primeiras décadas do século XX, convertendo-se em espaços de disputas pela preponderância ideológica, literária, política e estética, reunindo nomes hoje consagrados pela crítica literária1. Valendo-se de avanços técnicos e tecnológicos europeus, superiores aos dos jornais, tornaram-se moda e passaram a ditar moda a partir de seus baixos custos de produção gráfica, aglutinando diversas informações em um único exemplar, com pequena quantidade de páginas e união maior entre texto e imagens. Esta união de novidades passou a atrair mais o público leitor, distinguindo-se do livro e do jornal, onerosos e densos para grande parte da população nesta época. Nem tão imediatas quanto os jornais nem tão reflexivas quanto os livros, as revistas se popularizam na Primeira República em meio ao início do processo de comunicação de massas (OLIVEIRA; VELLOSO; LINS, 2010). Além disso, a presença de ilustrações, ao transformar suas páginas em objetos cada vez mais atraentes, possibilitou que analfabetos, em grande número no Brasil, fizessem parte deste mercado editorial, pois as mensagens e informações eram passadas e compreendidas, em parte, por meio de imagens. Buscando dar maior visibilidade para suas intenções neste contexto, indivíduos e grupos passaram a fundar revistar temáticas e publicar seus manifestos no que acreditava-se ser o melhor modelo de imprensa.
Neste contexto são fundadas, em Belém do Pará, a revista Belém Nova e, em São Paulo, a Revista de Antropofagia, ambas alinhadas ao movimento modernista nacional, mas com intenções artísticas próprias em relação às nuances regionais, o que fica nítido nos manifestos nelas publicados. De certo, os autores do norte conheciam as obras dos autores do sul, mas o inverso não ocorria, com algumas exceções, entre elas Oswald de Andrade, Tarcila do Amaral, Mario de Andrade e, em especial, Raul Bopp, que conviveu entre os artistas de Belém por algum tempo. As obras do Pará e do Amazonas mais conhecidas, no sul, eram justamente aquelas cujos autores deixavam a região norte e eram reconhecidos em São Paulo ou no Rio de Janeiro, como é o caso de Inglês de Souza. Com o lançamento da Revista de Antropofagia em maio de 1928, uma das intenções de seus idealizadores é implementada, isto é, desenvolver um movimento antropofágico nacional convidando autores de diversas regiões para publicarem em suas páginas. Logo em seu primeiro número, por intermédio de Raul Bopp, dois artistas belenenses são convidados, Abguar Bastos e Oswaldo Costa. Este publica constantemente na revista até seu último número e aquele é autor de dois dos mais importantes manifestos artísticos amazônicos, publicados na revista Belém Nova. Dois autores paraenses publicaram em outros números da Revista de Antropofagia, Clóvis de Gusmão e Eneida de Moraes, mas não serão aqui considerados por não estarem diretamente vinculados à manifestos.
De posse destas informações, algumas questões surgiram: de que maneira as revistas citadas acima puderam ser inseridas nos ambientes culturais de Belém e de São Paulo da década de 1920? Havia relações entre elas? Qual o espaço e qual o teor dos manifestos publicados nas revistas? Como estes manifestos refletiram nas obras artísticas dos seus autores? Respondidas estas questões, outras mais se impuseram: de que maneira os autores vindos da Amazônia foram inseridos na Revista de Antropofagia? O movimento antropofágico, construído a partir das publicações da Revista de Antropofagia, possuía características do modernismo amazônico? Se sim, quais? Para responder estas perguntas, primeiramente será tratado sobre o surgimento de revistas em Belém e em São Paulo na Primeira República, intrinsecamente ligadas aos movimento modernistas e suas cisões, assim como sobre os manifestos artísticos nelas publicados. Em um segundo momento serão analisados os manifestos de Abguar Bastos publicados em Belém Nova e sua participação poética na Revista de Antropofagia. Por fim será considerado o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, e o texto de Oswaldo Costa, A “Descida” Antropophaga, publicados no primeiro número da Revista de Antropofagia a fim de estabelecer proximidades entre eles e de identificar a Amazônia que Costa insere nas páginas da revista. Estas análises servirão para demonstrar duas hipóteses: de que a Revista de Antropofagia não foi apenas elemento difusor do modernismo paulista,mas aglutinador de diversas tendências e de que artistas e intelectuais provenientes da Amazônica contribuíram para a construção do movimento antropofágico, comumente creditado apenas a Oswald de Andrade e a alguns artistas paulistas.
Revistas e manifestos
A história das revistas ilustradas e literárias na Primeira República pode ser definida em duas fases distintas (MARTINS, 2001), cujo divisor é 1922, ano de balanços e tomadas de posição, ano em que houve, no âmbito político, a fundação do Partido Comunista do Brasil e do levante dos 18 do Forte, que marcou o início do movimento tenentista. Na esfera da imprensa, o centenário da Independência fez fervilhar reflexões acerca da identidade do país; no domínio da arte, a Semana de Arte Moderna e o lançamento da revista Klaxon sinalizavam novas perspectivas, novas estéticas; a eleição de Arthur Bernardes para presidente do país e oficialização do hino nacional brasileiro foram fatores preponderantes para isso. Estas revistas inauguram uma nova linguagem jornalística, com estética moderna, recorte, colagem, fragmento, justapondo imagens a poemas, capas atraentes, diagramação nova e elegante para os padrões, cores, qualidade do papel, enfim, poderosos atrativos que cativavam os leitores, integrando-os e/ ou traduzindo este universo de valores simbólicos.
Na maior parte das vezes, quando se pensa em moderno e modernismo, alegoriza-se imagens, significados e sentidos relacionados a São Paulo e a Semana de Arte Moderna de 1922. Assim, deve-se desvincular este olhar unidirecional de que teria sido a partir de São Paulo que o modernismo se tornou profícuo e que teria sido neste Estado, ou cidade, que o modernismo se alicerçou e se espalhou/influenciou o restante do país. Dessa maneira, o próprio conceito de moderno torna-se objeto de disputa e controvérsias entre os intelectuais do país e criam-se trincheiras em forma de revistas que assumem três significações diferentes na Primeira República: simbolistas na virada do século XIX para o XX; cosmopolitista; e busca das tradições nacionais. As revistas paulistas de 1910 defendiam, em sua maioria, a campanha civilista passando, a partir de 1920, à apologética da terra paulista, visando o Centenário da Independência em 1922, recheando suas páginas com discussões sobre a valorização da raça paulista e sua contribuição para a independência do país.
Modernismo paulista
De 1920 a 1922, os projetos para as comemorações do Centenário da Independência eram conflitantes nos periódicos, representando a diversidade do país e revelando as diversas dimensões de percepção e/ou projetos em curso em torno da questão nacional. Nesse processo é lançada uma revista que destoa das outras, incluindo seu nome, derivado da buzina externa dos automóveis, a revista Klaxon, porta-voz do grupo modernista da Semana de Arte Moderna. Na primeira página de seu primeiro número encontram-se os motivos pelos quais os editores lançaram a revista e suas intenções:
[...] a lucta começou de verdade em princípios de 1921 pelas columnas do “Jornal do Commercio” e do “Correio Paulistano” Primeiro resultado : “Semana de Arte Moderna” — espécie de Conselho Internacional de Versalhes. Como este, a Semana teve sua razão de ser. Como elle: nem desastre, nem triumpho. Como elle: deu fructos verdes. Houve erros proclamados em voz alta. Pregaram-se idéias inadmissíveis. E’ preciso reflectir. E’ preciso esclarecer. E’ preciso construir. D’ahi, KLAXON. E KLAXON não se queixará jamais de ser incomprehendido pelo Brasil. O Brasil é que deverá se esforçar para comprehender KLAXON (KLAXON, 1922, p. 1).
Segundo Martins, falando sobre Klaxon:
A buzina estridente, de som dissonante, alastrou-se, ecoando até hoje como um ponto de inflexão na recorrente busca nacional. São Paulo, com a velha oligarquia no poder apontava, via uma publicação requintada, conquanto esdrúxula e marginal, a possível modernidade. Ao contrário de seu gritante progresso material, primitivo e retrógrado em seu curso, anunciava no texto impresso, a nacionalidade possível. O nascimento de Macunaíma, foi sua contrafação. Visualizava-se, finalmente, o País, o homem, o seu ethos cultural (MARTINS, 2001, p. 553).
Este grupo modernista paulista longe se ser homogêneo, considerava que a metrópole paulista teve uma montagem multifacetada, que inclui considerações raciais (paulista, multietnia), o momento histórico e o ambiente (metrópole do século XX, industrialização e resultantes: urbanização, economia monetária, paisagem citadina, multidão), que convergem na visão de cultura como “sintoma”, “produto” da época e lugar geográfico (GALVÃO JÚNIOR, 2013). Como pode ser percebido, a autopercepção e a escrita dos intelectuais são alteradas consideravelmente a partir de uma vivência urbana. Tal redefinição é tanto individual quanto coletiva.
Todo este movimento, em São Paulo, culminou na Semana de Arte Moderna, que foi um ambiente de exposição e de conciliação das diferenças destes jovens que visavam construir um novo conceito de arte, de estética e de política adaptada aos novos tempos. O objetivo principal da Semana era, então, se impor contra o Romantismo, o Naturalismo, o Parnasianismo e o Simbolismo. O que unia estes modernistas eram inimigos em comum, ou seja, faziam oposição às tendências dominantes, entretanto não havia clareza na trajetória a ser seguida. Esta questão vai gerar, rapidamente, a formação de grupos que passam a publicar juntos, pintar juntos, isto é, que começam a imaginar, construir e compartilhar um mesmo caminho e direção a ser seguida pelo movimento2. Neste contexto, as revistas literárias ganham força.
Ao mesmo tempo em que os grupos vão se formando, há a necessidade de se afirmar e de se diferenciar perante os outros,havendo cisões,rixas,desentendimento e, em diversos casos, até violência física nas redações de jornais e perseguições pelas ruas. Em 18 de março de 1924, Oswald publica, no Correio da Manhã, o Manifesto da poesia Pau-Brasil – mesmo ano em que André Breton publica o Manifesto do Surrealismo – propondo uma poesia extremamente ligada à realidade nacional, um redescobrir do Brasil. Dentre as propostas, temos a defesa de uma língua sem arcaísmo, sem erudição, “Como falamos. Como somos” (ANDRADE, 1972), natural, em que se deveria ver com olhos livres. A exaltação do carnaval como acontecimento religioso da raça foi importante instrumento de luta.
No livro gerado a partir do manifesto, publicado em Paris, cuja capa contém a estilização da bandeira nacional desenhada por Tarsila do Amaral e o título Pau Brasil substituindo o lema positivista ordem e progresso, contém dedicatória a Blaise Cendrars por ocasião da descoberta do Brasil. Estas palavras lembram a chegada de Cendrars ao Brasil e a viagem ao barroco mineiro que, segundo os modernistas paulistas, marca simbolicamente o início do movimento modernista de fato e a relação tradição/modernidade. Marca também a estreia de Oswald na cena literária. Paulo Prado, no prefácio do livro, afirma que “Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra” (PRADO, 1971, p. 7). No mesmo sentido, Oswald afirma que se “alguma coisa eu trouxe das minhas viagens à Europa dentre duas guerras, foi o Brasil mesmo. O primitivismo nativo era o nosso único achado de 22, o que acoroçoava então em nós Blaise Cendrars” (ANDRADE, 1991). Descobrir o Brasil, assim, equiparava-se a desmontar três instituições nacionais: gramática oficial, tradição católica e discurso histórico.
Na busca em promover uma revisão cultural do Brasil, Oswald propõe a valorização do elemento natural que, nos dizeres de Jorge Schwartz (1995), foi o ponto inicial da proposta do movimento antropofágico, isto é, assimilar as qualidades do inimigo estrangeiro e fundi-las às nacionais. Esta perspectiva foi materializada na Revista de Antropofagia que, em seu primeiro número, traz o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, Poema, de Abguar Bastos, e A “Descida” Antropophaga, de Oswaldo Costa. Dessa maneira, o problema da dependência cultural é resolvido a partir da perspectiva nacional-cosmopolita. É importante atentar para o fato de que estes modernistas sempre cultuavam o moderno, a sociedade moderna, velocidade, carros, edifícios enormes, etc., entretanto a partir de pau-brasil constrói-se a noção de que o elemento moderno deveria aglutinar-se ao nacional, ou seja, não deveria ser o moderno importado da Europa ou Estados Unidos apenas, mas algo construído a partir de nossas raízes com a estética moderna. Para exemplificar, cito um trecho de uma entrevista concedida por Oswald de Andrade a Joaquin Inojosa para o Jornal do Commercio, em Recife. Oswald comenta sobre a cidade de Recife:
Como é que no Brasil existe uma cidade de aspecto tão encantador, de um progresso tão acentuado, e não na conhecem todos os brasileiros, e a ignora a maioria dos sulistas? [...] Sinto-me brasileiro, aqui. [...] Veja as cores dessas casas antigas: excelentes, repare na pintura dessas casas modernas: horríveis. Horríveis para nós, para o nosso ambiente. A arquitetura deve refletir a paisagem. A daqui apresenta tonalidades diversas, sedutoras, maravilhosas. Por que não aproveitá-la no cadinho da arte? Por que abandoná-la pela importação estrangeira? E não pense que há incoerência nas minhas expressões, porque sou modernista. Sou-o, sobretudo, por ser brasileiro. [...] Podemos muito bem construir um arranha-céu numa arte nossa, sem essa arquitetura de cartão-postal que parece dominar o Brasil inteiro (JORNAL DO COMMERCIO, 1925).
Modernismo amazônico
Tais questões também eram discutidas em Belém com reflexos, ou não, de São Paulo em suas iniciativas. Nesta cidade, por volta das décadas de 1910 e 1920, ocorre o surgimento de diversas associações “dos novos” que passaram a combater o parnasianismo a partir de ideias nativistas e nacionalistas por meio de um novo eixo de preocupações. Entretanto, ao contrário do que ocorrera em São Paulo, esta pretendida ruptura com o passado não ocorreu de forma tão profunda. Resumindo, a busca das raízes nacionais no século XIX visava criar uma unidade nacional enquanto na década de 1920 foi marcada pela procura das especificidades locais; o sentido original do Brasil perpassaria pelas especificidades.
A literatura modernista observada pelo prisma amazônico presente neste trabalho não considera, obviamente, uma linha evolutiva cujo polo irradiador do modernismo teria sido São Paulo, afinal é inconcebível que realidades tão díspares sejam apenas reflexos ou meras cópias. Além disso, a busca de especificidades locais por estes intelectuais e artistas da década de 1920 não aceitaria modelos facsímiles de outras regiões. Plágio, falsificação e decalque estavam fora de cogitação.
Uma diferenciação importante. Esta geração nova amazônica, herdeira daquela que transitou entre o fim do século XIX e início do XX, cujo propósito concentrava-se na busca da identidade nacional a partir do resgate do passado e mantinha diálogo próximo com a Europa, encontrou nova realidade a partir da decadência da borracha e do fim da Belle-époque na década de 1910. Neste sentido, os “novos” confrontam os valores, os heróis e as glórias do passado a partir de outros valores a eles apresentados e por eles construídos. Sobre estes aspectos, Figueiredo afirma que:
De um modo geral o alvo de luta parecia o mesmo do Velho Mundo: como lá, lutava-se aqui contra os preconceitos estéticos, os espartilhamentos acadêmicos, as normas estabelecidas e a inércia do gosto e da tradição. Na Amazônia, porém, apesar da convergência de propósitos, o campo de batalha seria muito diferente. Por cá, ao invés do drama da guerra, a geração de Bruno de Menezes assistiu atônita à construção de uma República que estava muito longe da ideologia de liberdade dos manuais escolares de Theodoro Braga. Impondo-se contra vários aspectos das oligarquias locais, os ‘novos’ foram declarados antipatriotas, derrotistas e desertores da causa brasileira. Em poucos anos, passou-se em revista o recente passado republicano nacional, duvidando-se cada vez mais dos modelos de crescimento, progresso e modernização ambicionados para o país (FIGUEIREDO, 2012, p. 46).
Em meio às novas realidades política, econômica e cultural dois grupos que debatiam sobre literatura, artes, política e mundanizes foram formados no início da década de 1920 em Belém. A um deles, conhecido como Academia ao Ar Livre, fizeram parte dois dos autores que publicaram na Revista de Antropofagia, Clóvis de Gusmão e Abguar Bastos, além de Braguinha, Proença, Orlando e Nunes Pereira. O outro grupo, mais boêmio, liderado por Bruno de Menezes, reunia-se em meio aos bares do Ver-o-Peso e ficou conhecido como Academia do Peixe-Frito devido à origem mais modesta dos seus membros e ao tira-gosto que acompanhava as discussões. Este último possuía uma visão mais popular e engajada, de cunho anarquista, cujas críticas também se faziam em relação à sofisticação dos encontros literários em cafés, à moda parisiense.
Da união destes dois grupos, embora um pouco diferentes, surgiu, em 1921, a Associação dos Novos, apelidada de Vândalos do Apocalipse por Bruno de Menezes, com a intenção de “destruir para criar”. O grupo contava com a participação de Ernani Vieira, Jacques Flores, Paulo Oliveira, Abguar Bastos, De Campos Ribeiro, Clóvis de Gusmão, Bruno de Menezes, seu diretor, e outros. Retomando a década de 1820 como mito de origem de um novo projeto de nação por uma perspectiva literária, este grupo apresentou a proposta de uma nova identidade nacional pela perspectiva do Norte. Entretanto, não rejeitou ou atacou firmemente os “velhos” literatos do início do século, mas confluiu-se a eles, ou seja, houve conciliação entre “novos” e “velhos”, entre “presente” e “passado”. O que os diferenciava era justamente a questão política do foco interpretativo, cujo eixo deixa de ser o passado e passa a se concentrar nos problemas presentes, do exclusivamente nacional para o regional.
A revista Belém Nova foi um espaço exemplar que uniu estes setores intelectuais. Em sintonia com o movimento modernista brasileiro, esta revista teve circulação quinzenal entre 15 de setembro de 1923 e 15 de abril de 1929, chegando a uma tiragem de aproximadamente 5 mil exemplares. Sua impressão ocorria na Gráfica Oficial do Estado e a redação era localizada na rua 28 de setembro, n 06, em Belém. Entre poesias, ensaios literários, contos, novelas, crônicas, reportagens locais, anúncios comerciais e colunas sociais, foram publicados manifestos, como de Bruno de Menezes e Francisco Galvão, que apresentavam ao norte as bases da nova estética como reflexo de São Paulo e do Rio de Janeiro, e Abguar Bastos, em que, por um viés bairrista e/ ou regionalista, conclamava a união dos estados das regiões norte e nordeste e a independência intelectual e artística perante os estados do sul e sudeste do país. Da união destes grupos em torno de um movimento e de uma revista surgiram artigos de cunho modernista, manifestos e obras individuais das quais, segundo Figueiredo (2012, p. 86), muitas permaneciam essencialmente europeias, quase cópias estrangeiras. Em 1927 surgiu uma exceção que contribuiu para alterar os modos de percepção da arte, da literatura e da política local. Um manifesto que aprofundava as ideias de um anterior, à geração que surge, de mesmo autor: Flami-n´-assú, de Abguar Bastos. A nosso ver, este se aproxima do Manifesto da Poesia Pau-Brasil e do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, já citados e que serão analisados mais à frente. Assim, as intenções de atualização estética e histórica nacional destes intelectuais, escritores e artistas foram construídas conjuntamente em forma de grupos que foram se unindo e geraram o movimento modernista paulista e o movimento modernista amazônico, que se relacionavam, possuíam características comuns, mas também especificidades. A partir destes movimentos, surgiram revistas que eram verdadeiros fronts de batalhas – o que justifica a escolha do título – e, em seus interiores, propostas concretas foram aglutinadas em forma de manifestos. Estes, armas de luta e defesa de seus ideais.
Manifestos e poesia
Belém Nova
Os manifestos3 modernistas, enquanto textos dissertativos, persuasivos, expositores públicos de princípios, intenções artísticas e acompanhados por vocativos e conclamações foram publicados principalmente nas nascentes revistas literárias, mas também, esporadicamente, em jornais. Embora os textos fossem de autorias individuais, as ideias que os continham já vinham sendo discutidas por grupos de amigos ou parceiros de labuta por algum tempo e foram levados à cabo por diferentes linguagens artísticas4, como a já comentada poesia pau-brasil. Um poeta importante e que deve ser considerado neste contexto é o belenense Abguar Bastos, que foi atuante em seu meio publicando poemas e manifestos em revistas, flertou com o movimento antropofágico e publicou na Revista de Antropofagia. Nascido em Belém (1902) e formado em direito em 1925, Bastos levou sua carreira jornalística ao lado de diversas outras mais rentáveis, como bancário, secretário e prefeito interino da prefeitura de Coari/AM, tabelião, redator da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (MENEZES, 1978; ABREU; BELOCH, 1984). Em relato a Edgard Cavalheiro (1944), Bastos afirma que no Norte de sua adolescência a transição entre o parnasianismo e o modernismo ocorreu por meio do simbolismo levado pela onda futurista e que aceitavam tudo que trazia rótulo de novidade sem mesmo procurar adivinhar as intenções. “Bastava que tratasse de material de combate para logo acreditarmos nele” (BASTOS, 1944, p. 16). Foi o caso tanto de textos e obras estrangeiras quanto brasileiras provenientes de outras regiões, como afirma ele:
Elegíamos novos nomes no altar da consagração: Guilherme de Almeida, Bopp, Ronald, Felipe de Oliveira, Tarsila, Cecília Meireles, Mário de Andrade, Álvaro Moreira, Drummond, Ascenso, Oswald [...].
Mas na minha terra, além de Graça Aranha e de Bopp, a influência crescia mais no rumo de Mário e Oswald de Andrade.
Mário por via de seus sensacionais estudos sobre a arte moderna e de sua farta contribuição ao movimento. Oswald por ter lançado o primeiro romance absurdo do modernismo: Trilogia ao exílio. Ainda guardo os debates feridos em minha terra em torno desse livro [...] (BASTOS, 1944, p. 16).
Como expõe em seu depoimento, admirava timidamente Mario de Andrade devido à Paulicéia Desvairada e mais profundamente Oswald de Andrade devido ao seu programa reformador da arte e da literatura nacional expresso no Manifesto da Poesia Pau-Brasil de 1924. Tal admiração foi motivo de divergências entre Bastos e Bruno de Menezes, seu companheiro em Belém Nova. Ainda em 1923, com o lançamento desta revista, havia surgido divergências entre eles quanto à forma de encarar o regionalismo e a aceitação de diretrizes do sul do país, em especial São Paulo e Rio de Janeiro. Para Bruno de Menezes, o Norte tinha muito a aprender com as experiências do Sul, ou seja, o regionalismo, para ele, deveria ser compreendido em conformidade com o que vinha ocorrendo com o restante do país, especialmente o Sul. Para Abguar Bastos, entretanto, o “regionalismo amazônico” deveria ganhar contornos próprios e específicos, dissociados de outras influencias regionais e nacionais. Em 1923, Bastos publica o Manifesto à geração que surge em Belém Nova, no mesmo número que Bruno de Menezes defende em tom de manifesto suas ideias.
À Geração que surge conclama artistas e intelectuais à defesa, valorização e produção da literatura e artes amazônicas. “Seja o Pará baluarte da Liberdade nortista”, pois o “Sul, propositadamente, se esquece de nós”. “A literatura equatorial é uma história de mitologia que se anda a contar nos corredores da Academia Brasileira”, “ergamo-nos” norte e nordeste e “criemos a Academia Brasileira do Norte. Exportemos as obras dos Estados do Norte. Exportemos” (BASTOS, 1923). Sob a perspectiva regionalista de Bastos, exportar obras do Norte adquire sentido de enviar e publicar também nos outros estados da federação, enquanto o sentido de exportação de Pau-brasil referia-se ao estrangeiro, à Europa.
Após conclamar suas ideias neste manifesto e sob o impacto do Manifesto da Poesia Pau-Brasil em Abguar, este publicou em 1927, na revista Belém Nova, o Flami-n’-assú, a “grande chama”, a fim de combater o passadismo literário e convocar os intelectuais paraenses para o movimento renovador que na Amazônia deveria ganhar feições próprias, dadas as peculiaridades da natureza:
Assunto-vos agora o meu propósito de uma corrente de pensamento, cara à cara à que se inicia no sul com esta pele genuína: “Pau-brasil”. [...]
Apesar disso, noto, inflexível, que o repiquete “pau-brasil” ainda não é o próprio volume da nacionalidade. [...]
FLAMI-N’-ASSÚ é mais sincera porque exclui, completamente, qualquer vestígio transoceânico; porque textualiza a índole nacional; prevê as suas transformações étnicas; exalta a flora e a fauna exclusivas ou adaptáveis do país, combate os termos que não externem os sintomas brasílicos, substituindo o cristal pela água, o aço pelo acapu, o tapete pela esteira, o escarlate pelo açaí, a taça pela cuia, o dardo pela flecha, o leopardo pela onça, a neve pelo algodão, o veludo pela pluma de garças e sumaúma, a “flor de lótus” pelo “amor dos homens”. Arranca, dos rios as maravilhas ictiológicas; exclui o tédio e dá, de tacape, na testa do romantismo; virtualiza o Amor, a Beleza, a Força, a Alegria e os heróis das planícies e dos sertões, e as guerras de independência; canta ruidosa os nossos usos e costumes, dando-lhes uma feição de elegância curiosa (BASTOS apud ILDONE, 1990, p. 292-294).
Com Flami-n’-assú, Bastos exaltava o homem amazônico, o falar amazônico, os costumes, lendas e mitos, folclore, fauna, flora, culinária, modo de vida, assim como defendia a mudança da visão do restante do país acerca da Amazônia, ou seja, apenas um local exótico e idílico. Este manifesto pode ser encarado como contramito amazônico. Podemos identificar no texto uma nova concepção de nacionalidade que, em uma conferência em Manaus em 1928 e, posteriormente, em 1944, o autor aborda. Segundo ele, uma coisa era o nacionalismo e outra a brasilidade, ou seja, a síntese brasileira. O nacionalismo, em sua concepção, era subjetivista, se apoiava na psicologia das massas, “cheirava a bacharelismo do império” (BASTOS, 1944, p. 23), pensava em latim, queria regras, programas, estratificava a consciência brasileira, “se envergonhava do jacaré”, não mostrava os dramas e lutas da vida, não aceitava que se falasse em “tragédia da seringa, do cacau, da cana de açúcar, do algodão e da castanha” (BASTOS, 1944, p. 24). A brasilidade, por sua vez, era objetiva, se apoiava na ação das massas, perdia a pose do bacharel, “não se acanhava de andar de pé no chão atrás de mato, de índio, macumba, tajá, minhocão, uirapuru”, queria a sensibilidade pura, a índole, o Brasil em si. Ele acreditava que pau-brasil iniciara a concepção de brasilidade. Em suas palavras:
Uma coisa era o nacionalismo, o tolo nacionalismo, e outra era a brasilidade, a síntese brasileira. Determinados grupos se deixaram exaltar pela simbologia exagerada, em torno não do que havia de vivo na humanidade brasileira, mas justamente à roda do que sobrava abstração e mito. O verdeamarelismo não teve outra intenção. O movimento “pau-Brasil” era mais sincero, era brasilidade porque procurava resolver os problemas da terra (BASTOS, 1944, p. 24).
Abguar Bastos, além de admiração pelo Manifesto da Poesia Pau-Brasil, tornou-se amigo de Raul Bopp quando este viajou a Belém para concluir o quarto ano de Direito e para onde viajava sempre que podia para assistir a festas folclóricas. No Norte, fez uma série de poemas sobre “cidades velhas, com sinos que ‘vão conversar com Deus sobre a saudade’” (BASTOS, 1944, p. 24) e se aproximou dos modernistas da cidade, como Bastos, Clóvis de Gusmão e Oswaldo Costa. A Bastos, escreve:
[vamos] tomar o pulso da terra. Consultar a floresta. Você aí agite essa Amazônia em combinação com o pessoal do Pará. Hostilmente. Intolerantemente. Não se pode fazer uma cruzada amena. Derrabada grande. Enforque o pessoal a cipó [...] O Brasil (vamos parodiar o velho Heródoto) é um presente do Amazonas. A arte brasileira, legítima, nossa, há de vir também daí, molhada de húmus e cheia de barulho de mato [...] Jurupari é nosso legítimo Moisés. Temos um fabulário riquíssimo. É só catar, colecionar, na maneira simples e ingênua como o povo conta (BOPP apud BASTOS, 1944, p. 20).
Revista de Antropofagia
Após diversos contatos, cartas enviadas e recebidas e a publicação dos dois manifestos de Bastos na revista Belém Nova, houve o convite, por parte de Oswald de Andrade, Raull Bopp e Tarsila do Amaral para que ele integrasse o movimento antropofágico e publicasse no primeiro número da Revista de Antropofagia, ao lado do Manifesto Antropófago. A revista teve duas fases, intituladas como “dentições”. A primeira possuía o formato de 33 por 24 cm e 8 páginas por número. Totalizando 10 números, foi editada mensalmente de maio de 1928 a fevereiro de 1929 e contou com Antônio de Alcântara Machado como diretor e com Raul Bopp como gerente.
Embora traga em suas tiragens o valor de 500 réis por número, Boaventura (1995) supõe que ela não tenha sido vendida, restringindo-se à distribuição entre escritores e artistas. Além disso, seu formato original possui uma apresentação simples, como se fosse uma revista concebida apenas para circular entre conhecidos, como ocorreu com outras revistas de Vanguarda Europeia, a exemplo de Projecteur, Z1 e Proverbe. Nesse período, seu leitor era a elite intelectual brasileira, sem base social uniforme, igual a todo público de arte de exceção, panorama que irá mudar em sua segunda fase.
Ao todo, na primeira dentição, assinaram 62 autores entre nomes reais e pseudônimos. O autor que mais publicou foi Antônio de Alcântara Machado, totalizando vinte artigos ao longo das dez edições. Se considerarmos intervenções juntamente com Raul Bopp, o número chega a 22. O autor tem, na revista, basicamente o mesmo papel que Mário de Andrade possuía em Klaxon, ou seja, editoriais e resenhas de livros. Ficava, então, responsável pelo artigo de abertura e resenhava obras na página quatro de cada número da Revista. Com apenas Antônio de Alcântara Machado presente em todos os números, Yan de Almeida Prado em quase todos eles e uma maioria de autores publicando apenas um artigo em dez números da revista, pode-se afirmar que uma das políticas editoriais era prezar pela variedade e alternância de autores que estivessem, nem que fosse minimamente, em concordância com a antropofagia. Talvez uma experimentação.
Havia contribuições do Grupo verde-amarelo ou Anta, que mais tarde teria relações cortadas com o grupo: Plínio Salgado, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo. Um dos motivos que levou à discordâncias e corte nas relações entre os dois grupos foi a maneira de pensar o nacionalismo (ufanismo) e questões políticas, chegando a Integralismo, Revolução Constitucionalista, Comunismo, Anarquismo. Gerações literárias em transição estavam presentes nesta dentição, se mesclando a redatores de filiações políticas diversas, ou dúbia, em um cotidiano de mudanças rápidas. Outrossim, este ecletismo e rotatividade de autores parece ser inclusive uma das características iniciais do movimento antropofágico, ainda em fase de construção e maturação.
De 1922 a 1929, embora haja discussões e confrontos entre grupos que pensavam a nacionalidade, principalmente a partir da estética, da eleição de símbolos e emblemas diferenciados que representassem a brasilidade e de disputas de poder simbólico e literário, como é o caso do movimento da poesia pau-brasil e o grupo Anta, inicialmente, e deste com a antropofagia depois, o cerne da questão é a busca pela nacionalidade, justamente o que parece atrair estes dois pólos inicialmente díspares. Em guerra pela estética, a nacionalidade unia. No geral, tupi ou caraíba, verde-amerelo ou vermelho, anta ou avestruz, não importava quando se pensava em buscar as raízes nacionais brasileiras, pelo menos até a primeira fase da Revista de Antropofagia.
O que esperar da primeira dentição? Antropofagia. Externa e interna. A Primeira Dentição, como um todo, foi mais estética, imbuída de um nacionalismo ainda abstrato, eclética e uma ideologia entre o antiimperialista e utópica. O primeiro volume parece resumir a primeira dentição, apresentando O Abapuru, de Tarsila do Amaral, esteticismo de Mario de Andrade por meio de poemas, críticas literárias promovidas por Alcântara Machado, um estudo acerca da linguagem tupy feita pelo verde-amarelo e futuro integralista Plínio Salgado, textos antropófagos de Oswald de Andrade e de Oswaldo Costa, com o Manifesto Antropófago e “A “Descida” Antropophaga”, consecutivamente. Este modelo parece manter-se até o décimo e último número da primeira dentição.
Como demonstrado, nesta dentição foram publicados autores de diversas variantes do modernismo brasileiro, levando-nos a crer que a Revista de Antropofagia não seria apenas um modelo de exportação do modernismo paulista para as demais regiões brasileiras, mas aglutinava diversos modelos que ajudaram a construir o movimento antropofágico. Toda a argumentação e exemplificação até o momento fez crer que esta fase da revista foi genérica, heterogênea, eclética e indefinida teórica e poéticamente, mas seu valor enquanto veículo midiático de divulgação e evolução da linguagem do Modernismo é inegável. A revista não obedece a uma temática padrão. Possui poemas, estudos, contos, fragmentos de livros, poucos desenhos, ponderações sobre folclore, notas irreverentes e brincadeiras.
Esta primeira fase da Revista de Antropofagia coincide com a Segunda fase da revista Belém Nova. A primeira circulou entre maio de 1928 e fevereiro de 1929 enquanto a segunda de agosto de 1928 a março de 1929. Após o fechamento de Belém Nova por atritos com a oligarquia e políticos locais5, as publicações foram retomadas a partir da nova estética flami-n´-assú, anteriormente abordada. Embora tenham concebido a nova estética, cada um a seu modo, todos giravam em torno de uma mesma característica: a valorização da fala regional e a criação de uma nova identidade a partir do jogo político entre o regional e nacional (FIGUEIREDO, 2012, p. 112). Clóvis de Gusmão residia no Rio de Janeiro e juntara-se a Oswald de Andrade e Raul Bopp na antropofagia, conclamando seus parceiros amazônidas e os apresentando às letras paulistas por meio da revista, como é o caso de Eneida de Morais e Abguar Bastos.
Estes, em 1929, publicaram seus livros mais representativos em um momento de intimidade com o modernismo antropofágico e de despedida de Belém Nova da cena intelectual belenense: A Amazônia que ninguém sabe, de Bastos, e Terra Verde, de Eneida de Moraes. Foi em meio a este clima revolucionário das letras na Amazônia que Abguar Bastos, Eneida de Moraes, Clóvis de Gusmão e Oswaldo Costa deram sua contribuição para o movimento e para a Revista de Antropofagia. Na primeira fase apenas Bastos e Costa. No primeiro número Bastos parece aplicar, em versos, sua teorização dos dois manifestos trabalhados anteriormente e publicados em Belém Nova em forma de poesia afinal, comenta ele, “no norte, coube à poesia a tarefa de servir de estandarte às novas ideias”. Segue:
Ella vae sozinha, tropeçando nas colheitas.
Bate-lhe o sol nos hombros. Ella sente que um gosto humano deflora-lhe a bocca e illumina-a de absurdos.
Parece que um choro quer sorrir dentro de si. Parece que o sangue dentro de si quer matal-a e jogar-lhe clarões por cima.
Aquillo é o universo que se despenha dos seus cabellos. (Pará) (BASTOS, 1928).
“Ella” pode ser a representação da Amazônia vista sob um novo prisma. A imagem que o poema traz não é algo sobre a Amazônia, representando a passividade, mas a partir da Amazônia. A natureza vem e a transforma em humana. Há a interação homem-natureza, ou seja, não é mais a representação do “caboclo triste”, do “inferno verde”. É a natureza se apresentando a ela, mas o que age é o gosto humano. A ação do poema não vem do exterior, mas do interior. Do interior vem “o universo que se despenha dos seus cabellos”. O universo está no interior. A Amazônia se apresenta verdadeiramente ao mundo, é exportada, revelada. O referencial regionalista de Abguar se apresenta no poema. Bastos segue e, ao mesmo tempo, não segue os parâmetros da revista. Ele anuncia suas impressões particulares a partir do modernismo amazônico de características regionalistas, ainda que diferente de Bruno de Menezes6.
Com estes versos Abguar Bastos inicia e encerra sua participação na Revista de Antropofagia, revista esta representativa do início do pensamento antropofágico que, segundo ele, apresentava uma “via exageradamente folclórica”, que evoluiria para uma “nova concepção do fenômeno modernista”, qual seja, “o homem brasileiro, sim, mas integrado no concerto do homem universal” (BASTOS, 1944). Sua única participação, logo no primeiro número, reflete o interesse dos idealizadores em sua figura, afinal foram escolhidos a dedo de acordo com as aspirações estético-políticas, e um desinteresse ou não concordância por questões pessoais, artísticas e políticas que a revista veiculava. Estes aspectos são facilmente compreendidos quando conhecidos certos aspectos de sua vida, como trajetória social, artística e política, com especial ênfase em dois manifestos escritos por ele, um de 1923 e outro de 1927.
Manifestos e devoração
Manifesto Antropófago
Oswald de Andrade publica em 1928 o Manifesto Antropófago na Revista de Antropofagia ao lado dos paraenses Abguar Bastos e Oswaldo Costa. Ele baseou-se no cubismo francês pois percebeu que aquilo que os cubistas europeus procuravam na África e na Polinésia como suporte exótico e moderno, poderia encontrar no Brasil, na natureza, no índio e no negro, em elementos da cultura popular como carnaval, na cozinha, mas aglutinando-os aos símbolos da modernidade. Nos dizeres de Haroldo de Campos (1974, p. 49) seria como um “indianismo às avessas”. Propõe-se, assim, que a cultura importada fosse reelaborada, transformando o que veio de fora em produto exportável. Schwartz (1995) defende que tal manifesto é uma síntese das ideias amadurecidas durante a etapa heroica do modernismo brasileiro. Na visão de Anderson Pires da Silva (2009), o movimento antropofágico seria uma reação ao próprio Modernismo, movido à blague, à polêmica, à controvérsias. Dentre os autores utilizados como fontes de inspiração para a construção do manifesto, pode-se detectar, com facilidade, Marx devido às questões sociais e ao Manifesto Comunista, Freud e Breton pela recuperação do elemento primitivo no homem civilizado, Montaigne e Rousseau pela revisão dos conceitos de bárbaro e de primitivo.
Com linguagem metafórica, humorística, poética e repleta de aforismos, privilegia-se as dimensões revolucionárias e utópicas, deslocando o objeto estético (de Pau-Brasil) para o sujeito social e coletivo pela tomada de consciência da necessidade do uso das revolucionárias técnicas da vanguarda europeia a fim de reafirmar os valores nacionais numa linguagem moderna. Dessa maneira, o bom selvagem de Rousseau torna-se um mau selvagem devorador do europeu, a assimilação do outro, invertendo a relação colonizador/colonizado. Segundo Oswald, em entrevista ao O Jornal, do Rio, em maio de 1928, a intenção seria voltar ao estado natural, não primitivo, da História.
Oswald traça um perfil do Brasil passando por variedade étnica, culinária, cores, religião, sexualidade e reconstrói a história do país elegendo a Deglutição do Bispo Sardinha pelos caetés de Alagoas como o marco inicial da nossa história. Explica ele, em entrevista publicada n´O Jornal, do Rio, em 18 de maio de 1928, que o dia em que os aimorés comeram o Bispo Sardinha deve constituir a grande data americana, pois deveríamos escapar do ser brasileiro no sentido político-internacional, ou seja, brasileiros portugueses, nascidos aqui, que se insurgiram contra seus próprios pais. Deveríamos assumir que somos americanos, filhos do continente América, “carne e inteligência a serviço da alma da Gleba” (ANDRADE, 2009, p. 66). Pelo viés antropofágico, o fim que deu a Sardinha possui uma dupla interpretação: admiração devido a ele ser representante do povo interessado em derrubar aquele presente utópico dado ao Homem ao nascer, a Felicidade, e vingança, pois os portugueses não se contentavam em vir nos visitar e explorar economicamente. Sardinha veio com o objetivo de impor seu deus, seus hábitos, sua língua: “Isso não! Devoramo-lo. Não tínhamos, de resto, nada mais a fazer” (ANDRADE, 2009, p. 67).
Benedito Nunes afirma que há no Manifesto um “diagnóstico” e uma “terapêutica” da sociedade brasileira traumatizada pela repressão colonizadora que teria começado com a proibição do ritual antropofágico. A volta ao “matriarcado de Pindorama” seria elemento recalcado pela cultura messiânica: ócio, alegria, ausência de classes. Para haver um desrecalque cultural brasileiro, dever-se-ia ocorrer uma operação freudiana, ou seja, transformar o Tabu em Totem. Sendo assim, a identidade nacional teria uma natureza psicanalítica do conflito com a paternidade, pois a autonomia literária seria um questionamento da autoridade do pai, a literatura portuguesa, e a afirmação da maioridade.
A questão da escolha do conceito da antropofagia, simbólico, ocorreu também por uma questão de trocas interna e externa. Na Europa da década de 1920, entre futuristas e dadaístas, a pauta de questionamento e revisão de padrões culturais geraram um manifesto e a fundação da revista Cannibale por Francis Picabia, com quem Oswald e Tarsila tiveram contato em Paris e eram assíduos leitores. No Brasil, o Diário da Noite publicava, em 1926, em forma de folhetim, aventuras de Hans Staden entre os selvagens, traduzidas por Monteiro Lobato. Tais obras, somadas às de Theodor Koch Grünber, parecem ter inspirado os modernistas, essencialmente Mario de Andrade, na construção de Macunaíma. Lobato também traduziu Histoire d´um Voyage fait em La terre Du Brésil, de Jean Léry, em que narra o convívio entre os tupinambás, descrevendo os hábitos canibalescos. Este livro seria uma fonte para o primeiro capitulo de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, e Canide Ioune, de Villa-Lobos.
Segundo Benedito Nunes:
[...] precedendo a antropofagia oswaldiana, cujo manifesto data de 1928, há toda uma temática do canibalismo na literatura europeia da década de 20. Essa temática, associada a motivações psicológicas e sociais, exteriorizou-se por certas metáforas e imagens violentas, usadas, como meio de agressão verbal, pela retórica de choque do Futurismo e Dadaísmo (NUNES, 1979, p. 22).
Segundo o autor, as obras de Marinetti, a revista Cannibale, o Manifesto Canibbale e Dadaphone fazem parte de um processo de inter-relações que constrói a história da literatura. Blaise Cendrars também escreve sobre a antropofagia, contribuindo sobremaneira para a construção das ideias dos responsáveis pela Revista de Antropofagia. De qualquer forma, há presença destes autores no contexto e nas obras de Oswald de Andrade, mas retirado o exotismo eurocêntrico na busca de manifestação e realidade provenientes das raízes culturais do ameríndio, na base da tradição formadora do país (FONSECA, 2007). Haroldo de Campos afirma que, no Brasil, com a antropofagia de Oswald dos anos 1920, surgiu a necessidade de se pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético com o universal:
A ‘Antropofagia’ oswaldiana é o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliada do “bom selvagem”, mas segundo o ponto de vista desabusado do “mau selvagem”, devorador de brancos, antropófago. Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação; melhor ainda, uma “transvaloração”: uma visão crítica da história como função negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriação como de expropriação, desierarquização, desconstrução. Todo passado que nos é “outro” merece ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado. Com esta especificação elucidativa: o canibal era um “polemista” (do grego pólemos = luta, combate), mas também um “antologista”: só devorava os inimigos que considerava bravos, para deles tirar proteína e tutano para o robustecimento e a renovação de suas próprias forças naturais (CAMPOS, 1975, p. 15).
A “Descida” Antropophaga
No mesmo primeiro número da revista outro paraense é publicado. Oswaldo Costa nasceu em Belém em 1900 e mudou-se para o Rio de Janeiro ainda jovem, com 18 anos de idade, onde ingressa na Faculdade de Direito e inicia sua carreira jornalista no Correio da Manhã (JÁUREGUI, 2015). Na década de 1920 interessou-se pelos modernistas e ligou-se ao nascente grupo antropofágico. Oswald de Andrade, em carta a Carlos Drummond de Andrade, em 1929, refere-se a Oswaldo Costa como um “autêntico Cunhambebe”, fazendo referência ao famoso chefe “cannibal” Tupinambá do século XVI. Cunhambebe é figura exposta por Hans Staden (1974, p. 132) em Duas viagens ao Brasil:
Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto cheio de carne humana. Comia de uma perna, segurou-a diante da boca e perguntou-me se também queria comer. Respondi: “Um animal irracional não come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro homem?”. Mordeu-a então e disse : “Jauára ichê”. Sou um jaguar. Estágostoso.
Segundo Viveiros de Castro (1986), esta passagem pode vir a ser uma “tirada humorística”, mas também representa as diferentes visões dos protagonistas. Cunhambebe não era um homem a comer outro homem, era um jaguar a comer um homem, ou seja, um inimigo a comer um inimigo. Revela-se a perspectiva cultural e simbólica da própria ação canibalesca. Além disso, percebemos a “influencia” que Hans Staden teve para Oswald, em particular, e para o movimento antropofágico, em geral.
Assim, neste primeiro número Oswaldo Costa publica um artigo intitulado “A ‘Descida’ Antropophaga” que, nos dizeres de Jáuregui, “could be called, without exaggeration, the other anthropophagic manifesto7. Nele, o autor questiona a fidelidade cultural brasileira à Europa, detectando que na história do Brasil celebra-se o colonialismo e demonstra a necessidade de uma descolonização cultural antropófaga. Costa inicia o manifesto a partir da noção de “descida”. A palavra sempre vem entre aspas, demonstrando que não se trará o significado usual da palavra, descida ou de descendência, mas que a tomará enquanto força cultural, pois cita: “A ‘descida’ agora é outra. [...] Ha quatro séculos, a ‘descida’ para a escravidão. Hoje, a ‘descida’ para libertação”. A palavra, assim, leva dois significados. O primeiro refere-se à colonização, em que os indígenas foram dominados, escravizados, proibidos de fazer a antropofagia, aculturados do século XVI ao XIX. Mais especificamente, a primeira noção de descida refere-se à prática do descimento indígena do período colonial8. Desde o Regimento de Tomé de Sousa de 1547 até o Diretório Pombalino de 1755, esta política era largamente praticada como forma hábil e menos sanguinária de retirar o indígena de seu habitat e torná-lo um trabalhador e povoador. De maneira resumida, o objetivo dos descimentos era transferir povos inteiros para aldeias que ficavam próximas aos povoados dos portugueses. Tais expedições, com fins religiosos ou não, deveriam conter, em seus quadros, jesuítas, em respeito à Lei de 24 de fevereiro de 1587 para que não houvesse violência, com exceção das guerras justas: convencer os índios do “sertão” de que é de seu interesse aldear junto aos portugueses para sua própria proteção e bem-estar.
A “outra” “descida” de Costa, então, é para a libertação. É a tomada de autonomia do Brasil para libertar-se da Europa. É como se o protagonismo indígena na história fosse reconhecido a partir daquele momento, com aquele manifesto, com aquele movimento, antropofágico. Contra a submissão e a escravidão, os descendentes dos antropófagos de outrora deveriam devorar o inimigo, o estrangeiro, para assimilar ritualisticamente o melhor do outro e fortalecer-se, começar de novo. Por este viés, ele afirma, em tom de blague, que a antropofagia seria o segundo movimento mais sério do mundo, ficando atrás apenas do Dilúvio. Deus, decepcionado com a humanidade, decidiu apagar tudo para começar de novo. “Foi intelligente, pratico e natural”, mas por fraqueza deixou Noé. Noé representa o estrangeiro, a imposição da religiosidade católica ao brasileiro natural. Não restava alternativa senão comer Noé em letras maiúsculas: “NOE’ DEVE SER COMIDO”. Promover esta revolução pós-dilúvio com características antropofágicas é retroceder ao índio antes da “descida”, antes de sair do seu povoado, ao índio em estado natural e não primitivo.
Sobre a concepção de cultura que os brasileiros teriam, comenta que os portugueses podem fazer chacota das propostas do movimento antropofágico por encararem a revolta como mero resultado de uma cultura, ou seja, reagindo contra a cultura, estamos dentro da cultura. Afirma que o possível sorriso civilizado saído por entre os dentes de ouro dos “PEROS”9 será descabido, afinal o que temos não é cultura europeia, mas a experiência dela. Diz não aos quatro séculos de colonialismo jurídico pela crítica ao Direito Romano, à filosofia importada e repetida nas cátedras a partir do exemplo kantiano do julgamento sintético a priori, artístico e estético. Zomba da europeização de Anita Malfatti ao pintar Veneza. Propõe reagir contra a civilização que “inventou o catálogo, o exame de consciência e o crime de defloramento. “SOMOS TODOS JAPYASSU’”, escreve ele n’A Descida....
A partir desta citação, Oswaldo Costa passa a devorar, no artigo, exemplos presentes na história e na historiografia brasileira e nos relatos de viajantes, sempre invertendo a negatividade com as quais as personagens nacionais eram tratadas. Japy-Assu, por exemplo, está presente no livro de Claude d´Abbeville, Histoire de La Mission dês Péres Capucins ET terres circonvoicines, trecho em que Abbeville conta que o indígena entregava sua filha em casamento aos portugueses de bom grado e que isso era considerado honroso para ele. Citando Japy-Assu, Oswaldo Costa se coloca contra o servilhismo cultural pois parece inverter tal questão, gerando um duplo significado em relação às relações de matrimônio entre os missionários e os indígenas. Em primeiro lugar, a entrega de mulheres em matrimônio cristão tem a intenção de fortalecer os laços entre os dois povos e, em segundo, oferece-las aos estrangeiros significa transformá-los em genros, logo os estrangeiros deveriam ser obedientes aos seus novos sogros de maneira simbólica ou material (CASTELNAU-L’ESTOILE, 2013). Devorar a cultura do outro para manter-se mais forte e, caso não ocorresse da maneira esperada e os estrangeiros impusessem a monogamia, o batismo, a castidade e os tentasse tirar de sua condição natural, deveria ser usado o “tacape inheiguára”.
A citação de tal tacape, além de remeter à ideia bélica e de ritual antropofágico, sugere a devoração de outra personagem, Padre Antônio Vieira, que se juntou aos missionários do Grão-Pará para lutar contra um povo indígena, Inheiguára. Em carta, Vieira escreve ao rei para informar que havia vencido as batalhas contra essa “gente de grande resolução e valor, e totalmente impaciente de sujeição”, informando sua escravização e repartição, mas Costa seleciona apenas o primeiro trecho, em que ressalta suas qualidades de resistência ao descimento, tanto deles quanto à ajuda a outros povos na luta contra o sevilhismo colonial. Costa põe Vieira contra Vieira. Enquanto Vieira se gabava por ter conquistado os indígenas a muito custo, Costa creditava a positividade maior aos índios que resistiram e impediram outros tantos de serem descidos.
No mesmo parágrafo d’A descida antropophaga, Oswaldo Costa foge da tradicional historiografia paulista e carioca e cita um trecho de uma obra histórica de seu conterrâneo, Henrique Américo Santa Rosa, História do Rio Amazonas. Neste, o autor escreve sobre a geopolítica e a história do Pará nas décadas de 1910 e 1920 a partir da construção da identidade amazônica. Como engenheiro-geógrafo-historiador, Santa Rosa entendia a Amazônia enquanto projeto de civilização e progresso em consonância com a expansão do neocolonialismo e o índio como entrave ao “desenvolvimento” da região. Em mais uma demonstração prática, além da teoria envolvida, Costa devora Santa Rosa e o cita, invertendo o sentido da frase citada no artigo: “Contra o servilismo colonial [...] o heroísmo sem roseta de Commendador dos carahybas, ‘que se oppuzeram a que Diogo de Lepe desembarcasse, investindo contra as caravelas e reduzindo o numero de seus tripulantes’” (ROSA, 1926). Nesta passagem do livro de Santa Rosa, o autor relata a resistência dos indígenas à expedição de Diogo de Lepe, espanhol, que chegou ao Brasil por Pernambuco antes de Cabral. O tema de Costa continua a ser a valorização do natural contra o estrangeiro.
Outro autor citado por Costa é João Francisco Lisbôa, autor maranhense do século XIX, vinculado à linha historiográfica próxima a Varnhagen, embora menos lembrado ou estudado que este. Com a independência política e a formação do Estado Nacional brasileiro, o IGHB dá inicio ao processo de construção de uma história do Brasil a fim de construir uma identidade própria, da qual eles faziam parte (REIS, 2000). Esta história deveria ser escrita a partir da ótica portuguesa e com documentos portugueses, ou seja, a “verdadeira” história do Brasil seria uma continuação da história lusa. Nessa perspectiva, se já na década de 1920 Varnhagen era tido como cânone ou exemplo máximo da historiografia brasileira do período e Lisboa colocado em segundo plano10, surge a questão: por que Costa escolheu Lisboa a Varnhagen para citar n’A Descida? Mesmo próximos historiograficamente, a principal diferenciação entre os dois era que Varnhagen via o indígena enquanto elemento contrário à civilidade e Lisbôa defendia o indianismo romântico como símbolo da nacionalidade (OLIVEIRA, 2000). Ambos entendiam a história brasileira, nas pegadas de Martius, como continuidade da história portuguesa, entretanto Lisbôa se aproximou um pouco mais da perspectiva da colônia, dos costumes e de práticas eleitorais regionais sem que isso significasse uma história regional. Assim, ao escolher Lisbôa como pêndulo historiográfico, Costa justificava e defendia suas intenções e, ao mesmo tempo, levava ao sudeste a perspectiva de um historiador do Norte acerca do indígena e da consciência nacional.
Além disso, cita Lisboa (1949) para justificar uma de suas teses, a de que a “paz do homem americano com a civilisação européa é paz nheengahiba”. A Paz nheengahiba, na verdade, é uma falsa paz que Padre Antonio Vieira travou com estes indígenas, hostis e quase inconquistáveis, da Ilha de Marajó/PA. Como já havia tido muitas batalhas entre os estrangeiros e os autóctones, Vieira teria partido para uma última tentativa e teria conseguido que todos jurassem fidelidade ao rei e à Igreja, mas os indígenas teriam tirado vantagem desta situação, fingindo em sua frente mas continuando com seus rituais e modos de vida, o que poderia incluir a antropofagia. Explica que o que eles, da antropofagia, deveriam fazer era a paz nheengaíba, uma paz falsa, aproveitar-se do estrangeiro para fortalecer a própria cultura, pois a paz do nheengaíbas não passava de uma “impostura”, ou seja, uma ação de enganar com falsas aparências ou falsas imputações. Esta impostura dos indígenas teria, por fim, gerado o conflito entre os colonos e os jesuítas, terminando pela expulsão dos últimos da região Norte do país em 1661. Se exaurir da impostura seria o objetivo da antropofagia.
“Quatro séculos de carne de vacca! Que horror!” foi a frase de cunho surrealista com que Costa fecha o artigo. Além de trazer a referência histórica da introdução da carne bovina no Brasil a partir de meados de 1830, a expressão “Que horror!” ironiza o alimento básico da nação, negando-o por ser um alimento inserido e imposto pelos estrangeiros aos autóctones e que teria substituído a antropofagia. Inverte o horror que causava o comedor de carne humana à Europa pelo o horror em comer carne de vaca sentido pelos índios, pela nação com o colonialismo. O horror por quatro séculos carne de vaca é o horror sentido pelos canibais, o horror pela “descida” à escravidão, pela dominação, pelo colonialismo, pela negação do bárbaro canibal. Ao contrário de Oswald de Andrade, há em Costa mais intuição interpretativa do que teoria e, de todos os antropófagos, é ele que ensaia com maior ênfase uma releitura contra-colonial da História e da Cultura.
Costa encontra no canibalismo outra modernidade, a modernidade canibal, base para um pensamento descolonizador – o que não é encontrado com tanta frequência em Andrade –, do Brasil enquanto mera cópia defeituosa da Europa. Ele representa uma voz alternativa que não tem sido considerada pelos críticos do modernismo brasileiro e marginalizado da história cultural nacional. Devorando Vieira e Santa Rosa, e utilizando Lisboa, Costa traz Belém e o Norte para a antropofagia. Não é a perspectiva que o Norte tem para os antropófagos, mas é a Amazônia analisando e contribuindo para a antropofagia que, mais tarde, seria exportada. A Descida, então, antes é um manifesto e um exercício antropofágico proveniente da Amazônia que diferencia, complementa e ajuda a construir o movimento antropofágico.
Conclusão
Como desenvolvido ao longo de texto, o agrupamento de jovens artistas em defesa de uma arte nova, adequada aos novos tempos e ao novo ritmo de vida, nas primeiras duas décadas do século XX, ocorreu quase que simultaneamente no norte e no sul do país, entretanto com características próprias. Em São Paulo, a partir do pujante setor cafeeiro e, em Belém, devido à borracha. A “modernidade” paulista e a “tradição” amazônica desencadearam modernismo diferentes, regionais, que geraram a formação de grupos que, por meio das revistas e dos manifestos nelas publicados lutaram por questões políticas, sociais e estéticas. Entre Belém e São Paulo parecia haver um abismo em sentido único. O norte conhecia bem a literatura do sul, mas o inverso não ocorria, gerando desconforto. Alguns, como Bruno de Menezes, desejavam se aliar à arte sulista e outros, como Abguar Bastos, defendiam o rompimento com o sul, a união com o nordeste e a valorização dos artistas regionais. Ao mesmo tempo em que estas discussões eram travadas, em São Paulo era publicada a Revista de Antropofagia como porta-voz do movimento antropofágico. Nela, além de Oswald de Andrade e seus idealizadores proporem a devoração do estrangeiro a fim de compor uma cultura própria, brasileira, a incorporação de artistas vindos da Amazônia trouxe uma nova ótica que contribuiu com a reconstrução da cultura brasileira que se almejava e que elegia a Amazônia como lar do homem natural.
É nesse sentido que Abguar Bastos traz, em sua poesia, a Amazônia humana, desmistificada, isto é, constrói poeticamente a partir de seus manifestos outrora publicados, defende uma causa, uma arte amazônica exportada. Da mesma maneira Oswaldo Costa publica praticamente um outro manifesto antropófago, mas este a partir de um prisma amazônico, devorando colonizadores e obras, e trazendo à tona histórias, fatos, autores, intelectuais que justificam a reescrita da história e a busca da verdadeira cultura nacional.
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Notas