Dossiê
Mapeando uma cultura profissional transnacional: as revistas (pan)americanas de arquitetura no Cone-Sul (1920-1940)
Mapping a transnational professional cultura: the (pan)american architectural magazines in the Southern Cone (1920-1940)
Mapeando uma cultura profissional transnacional: as revistas (pan)americanas de arquitetura no Cone-Sul (1920-1940)
Antíteses, vol. 12, núm. 23, pp. 282-305, 2019
Universidade Estadual de Londrina

Recepção: 28 Fevereiro 2019
Aprovação: 20 Abril 2019
Resumo: O presente artigo busca indicar como as revistas técnicas de arquitetura e urbanismo de quatro países do Cone-Sul americano (Argentina, Brasil, Chile e Uruguai) possibilitam mapear uma cultura profissional transnacional. A intensa circulação de ideias, projetos, textos e pessoas no entreguerras, sobretudo a partir de 1920, data em que ocorreu o I Congresso Pan-Americano de Arquitetos, nos permite refinar a abstrata noção de “circulação” que se consolidou na historiografia da arquitetura e do urbanismo nas últimas décadas, bem como identificar os limites da categoria de “rede” para se pensar um campo em franca disputa e embate, portanto, dinâmico. Espera-se, com isso, contribuir para uma historiografia que extrapole os limites nacionais e enfatize como esses momentos, espaços ou atitudes de se promover o debate foram constitutivos para a disciplina ao longo do século XX e assinalar a noção de “nebulosas” como alternativa aos limites identificados em relação ao caráter rígido e cartesiano das redes.
Palavras-chave: Congressos Pan-Americanos de arquitetos, Associações.
Abstract: This article aims to show how the arhitectural and urban planning magazines in four countries of the american Cone-South (Argentina, Brazil, Chile and Uruguay) make it possible to map a transnational professional culture. The intense circulation of ideas, projects, texts and people since 1920, when the First Pan-American Congress of Architects took place, allows us to refine the abstract notion of “circulation” that has consolidated in the historiography of architecture and urbanism in the in the last decades, as well as identifying the limits of the category of “network” to think a field in dispute. It is hoped, therefore, to contribute to a historiography that goes beyond national limits and to emphasize how these moments, spaces or attitudes of promoting debate were constitutive for the discipline throughout the XX century and to mark the notion of“nebulae”as an alternative to the limits identified in relation to the rigid and cartesian character of the networks.
Keywords: Pan-American Congresses of architects, Professional associations, Pan-americanism.
Introdução
En el Brasil no se ha fundado hasta el presente ninguna academia o facultad especial de arquitectura, ni ve la luz revista o periódico destinado exclusivamente a difundir preceptos o reglas sobre tan interesante materia. [...] No existe pues, en el Brasil una Asociación de Arquitectos, porque el numero de éstos no alcanza todavia a formar un núcleo suficiente para organizar con solidez y utilidad tanto del punto de vista teórico como práctico (ARQUITECTURA..., 1915, p. 51).
O diagnóstico, tomado aqui como epígrafe, sobre o precário campo profissional dos arquitetos no Brasil foi publicado em 1915 nas páginas da revista uruguaia Arquitectura. O texto era a transcrição da correspondência de um colega não identificado do Rio de Janeiro endereçada ao presidente da Sociedad de Arquitectos del Uruguay, Horacio Acosta y Lara (1875-1966)1. O brasileiro atribui essa ausência de índices de institucionalização do campo profissional – a fundação de uma faculdade de arquitetura, uma revista ou periódico para difundir as regras do campo e uma associação profissional que o organizasse – ao alto número de estrangeiros, sobretudo europeus, contratados para a realização de obras públicas e particulares na cidade do Rio de Janeiro.
O informe sobre a “situação do Brasil” era finalizado com a reafirmação da consideração e estima que os profissionais brasileiros nutriam por seus colegas uruguaios e um agradecimento por tê-los enviado a “importante revista Arquitectura”. Nota-se, em razão da frequência desse tipo de correspondência e interlocução, a circulação de publicações e revistas técnicas de arquitetura e urbanismo entre esses países nas primeiras décadas do século XX, bem como o compartilhamento de preocupações sobre a prática profissional e o esboço de um projeto político a ser perseguido baseado na necessidade de se pautar o caráter americano das construções.
A busca por esses índices de institucionalização do campo nesse período, portanto, não era um movimento nacional e aconteceu, concomitantemente, em diversos países americanos entre as primeiras décadas do século XX2. Mapear esse movimento exige, por sua vez, um olhar transnacional que consiga extrapolar as narrativas nacionais que tendem a enfatizar peculiaridades e especificidades de cada país. O presente artigo pretende identificar os diálogos e a circulação de ideias e projetos entre determinados países do Cone Sul americano (Argentina, Brasil, Chile e Uruguai) entre as décadas de 1920 e 1940 de maneira a conformar e disputar uma cultura profissional transnacional.
Os debates locais, publicados e difundidos pelas revistas técnicas das associações profissionais nacionais, são relacionados às disputas e conclusões tiradas em espaços de debate transnacionais, os Congressos Pan-Americanos de Arquitetos (referidos, a partir daqui, pela sigla CPAs), que, apesar de terem sofrido mudanças em sua configuração e papel político, acontecem até os dias de hoje3. Em um levantamento preliminar é possível indicar as seguintes fontes como base para se apreender e analisar os discursos publicados e vinculados a instituições de diferentes países: Revista de Arquitectura - Órgano de la Sociedad Central de Arquitectos de Chile; Revista Architectura Mensario de Arte (Brasil); Architectura no Brasil; Architectura e Construcções (Brasil); Revista Arquitectura - Órgano Oficial de la Sociedad de Arquitectos del Uruguay; Revista de Arquitectura - Órgano Oficial de la Sociedad de Arquitectos y del Centro de Estudiantes de Arquitectura (Argentina)4.
O período do entreguerras, que delimita o recorte temporal aqui adotado, é identificado como momento em que a arquitetura americana – e sobretudo o que hoje entendemos como arquitetura latino-americana – passa a elaborar e consolidar referentes próprios em termos de estilos e práticas profissionais5. A elaboração desse novo lugar da América era pauta frequente nesses Congressos e nos debates entre associações profissionais locais publicados nas revistas técnicas. Ao longo das cinco primeiras edições, vinte países foram representados por meio de profissionais agrupados em delegações cuja participação era inconstante6. Frente a esse quadro heterogêneo, é possível identificar um forte engajamento de, ao menos, cinco países. Apenas quatro participaram de todas as edições entre 1920 e 1940: Argentina, Chile, Estados Unidos e Uruguai. O Brasil não participou da edição de 1923, sediada no Chile, mas enviou delegações a todas as demais. Esse engajamento e intensa circulação de ideias e projetos entre esses quatro países do Cone-Sul justificam o recorte espacial aqui trabalhado.
Desde 1916, com a criação do Comité Permanente responsável pela realização desses eventos, é possível identificar uma estratégia de se extrapolar as barreiras nacionais em prol da difusão da pauta profissional. Esse movimento conforma o que grande parte da historiografia entende por rede profissional, ou seja, a articulação entre profissionais de diferentes países a partir de um objetivo comum. As dinâmicas dessas articulações, entretanto, de caráter instável e não-linear, dificultam sua apreensão como quadros fixos e estáveis, ou mesmo duradouros. Por essa razão, o presente artigo busca, também, apontar para os limites da categoria de “rede”, tão comumente difundida na historiografia da arquitetura, e indicar as potencialidades de um outro modo de pensar: as nebulosas.
As revistas técnicas de arquitetura e a questão profissional
Um exame preliminar da historiografia que analisa esse processo de institucionalização e regulamentação profissional de quatro países do Cone Sul nos permite afirmar que, menos do que uma coincidência, havia um compartilhamento de temas, debates e estratégias a partir da circulação de saberes e informações levada a cabo por uma rede de profissionais.
Elena Mazzini e Mary Méndez argumentam sobre os efeitos dessa institucionalização do campo na sistematização e elaboração de projetos profissionais no Uruguai. A arquitetura – e, por extensão, o arquiteto – estaria em um não-lugar no início do século XX no país: socialmente perdia espaço para os engenheiros e, internamente ao próprio campo, revisava sua produção a fim de adequá-la aos “novos tempos”. Em meio a esse dilema, os uruguaios são apontados pelas autoras, também uruguaias, como os primeiros no Cone Sul a institucionalizar sua prática profissional e formular estratégias para a formação de uma cultura profissional a partir da convergência de objetivos dessa classe e os setores públicos considerados renovadores, responsáveis por formular um “projeto modernizador nacional” baseado em uma concepção de progresso (MAZZINI; MÉNDEZ, 2012)7.
A formação de uma cultura profissional tributária a um contexto de modernização nacional progressista, contudo, não é uma peculiaridade da história uruguaia, que não é tomada aqui como pioneira. As primeiras décadas do século XX, destacadas pelo apelo modernizador e moderno de determinados projetos políticos, são apontadas como período em que os arquitetos puderam elaborar novas maneiras de legitimar sua prática profissional e garantir domínio e tutela das intervenções pensadas e implementadas em diversas cidades e países americanos.
A noção de “legitimar” é importante pois indica que, para além da dimensão legal dessa campanha profissional – que teve como resultado a promulgação de uma série de decretos e leis que visavam normatizar as práticas profissionais –, ela se apoiava, em grande medida, na publicização de suas pautas e reivindicações. Os arquitetos, nesse sentido, operavam a partir de uma aparente contradição: a necessidade de se especializar as atividades e a formação profissional, ao mesmo tempo em que era preciso difundir suas demandas, que deveriam extrapolar os círculos profissionais e informar, também, ao público amplo de “clientes” e da sociedade.
No Brasil, os debates sobre a regulamentação da profissão tensionaram o campo da construção civil durante as décadas de 1920 e 1930 e estimularam uma intensa atividade editorial e a fundação de associações em que se reuniam os profissionais para elaborar suas pautas e difundir a importância de uma prática regulamentada8. A recorrência desse tipo de campanha nos indica como, naquele momento, os arquitetos repensavam sua profissão e forjavam um novo lugar na sociedade em um exercício de legitimação política e social.
No eixo Rio de Janeiro-São Paulo, entre 1916 e 1935, foram fundadas quatro instituições que, em seus conflitos e divergências, nos permitem delinear como a arquitetura era pensada e polemizada. Na capital paulista, depois de tentativas frustradas desde o final do século XIX, foi fundado, em 1916, o Instituto de Engenharia (IE) e, em 1930, o Instituto Paulista de Arquitetos (IPA)9. De caráter regional, o IPA foi fundado a partir das recomendações dos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos que, desde sua primeira edição, em 1920, advogavam pela maior articulação entre as associações profissionais, pensadas a partir de uma hierarquia que ia do regional ao continental. O Instituto Paulista, então, respondia à Sociedade Central dos Arquitetos, sediada no Rio de Janeiro.
Processo semelhante ocorreu na capital federal quando, no início da década de 1920, foram fundadas duas associações: em 1921 o Instituto Brasileiro de Arquitetos (IBA) e, no ano seguinte, a Sociedade Central de Arquitetos (SCA). Apesar de menos brusca do que em São Paulo, essa cisão profissional entre duas instituições pode ser entendida como a demarcação de posições nesse contexto de configuração da figura do arquiteto nacional. A união do IBA e da SCA aconteceu poucos anos depois, em 1924, com a fundação do Instituto Central dos Arquitetos (ICA), também promovida pelas conclusões dos Congressos Pan-Americanos. O órgão foi responsável por organizar a edição de 1930 do evento, que aconteceu no Rio de Janeiro. Cinco anos depois, o instituto muda de nome para Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), sigla vigente até os dias de hoje. Essa fragmentação e aparente desorganização institucional são partes fundamentais da história do IAB e um dos efeitos das frequentes discordâncias existentes dentro de um mesmo grupo de arquitetos10.
Esse processo, bem como a relação entre institucionalização e a fundação de revistas e periódicos técnicos especializados, também são enfatizados na historiografia argentina e chilena. Para Silvia Cirvini, as revistas técnicas aparecem, na Argentina, no final do século XIX como um correlato da organização de associações profissionais, científicas e acadêmicas. A função das revistas técnicas, nesse período, era a de difundir ideias e propostas em torno do “quehacer” profissional. Cirvini, para além de mapear as revistas argentinas e indicar os diferentes matizes encontradas nesse corpus documental, argumenta sobre sua centralidade para se pensar as articulações entre o que ela chama de plano estrutural dos fenômenos políticos e culturais e as plurais e múltiplas trajetórias individuais e de grupos consolidados por esses empreendimentos editoriais (CIRVINI, 2011)11.
De maneira mais enfática, mas partindo desses mesmos índices institucionais e cronologias, o chileno Max Aguirre insere as revistas de arquitetura em um “triângulo estratégico” para a inserção cultural dos arquitetos chilenos. Ao atrelar sua fundação e circulação às dinâmicas da organização gremial e à própria modernidade, seu artigo também analisa a institucionalização da arquitetura chilena desde os primeiros anos do século XX até a década de 1940. Assim como Cirvini, o processo tem como plano de fundo a cultura moderna e os debates assentados em temas como a defesa do exercício profissional, a habitação popular, transformação e expansão das cidades americanas, etc. As revistas são, nesse contexto, instrumentos de transformação dessas ideias em ação coletiva, possibilitando o debate e implementação de projetos profissionais e do próprio diálogo entre meio profissional e autoridades públicas e administrativas. Além disso, ele ressalta outros dois papeis desse tipo de periódico no período, recuperados na presente análise: comunicar e mobilizar os arquitetos em torno de uma agenda de preocupações e tarefas e os agrupar de maneira a fortalecer o sentimento de pertencimento a um grupo, ou grêmio, profissional (AGUIRRE GONZÁLES, 2001).
Órgãos veiculados a associações com o propósito de difundir ideias–colocadas em debate e, portanto, ação – de forma a delimitar e informar uma agenda compartilhada por um grupo profissional. Os argumentos identificados até aqui não deixam dúvidas sobre a importância das revistas de arquitetura como fontes para estudos sobre a história da profissão. Para além de caracterizar esse suporte, é importante pontuar que o conteúdo dessas revistas era, também, heterogêneo. Em suas páginas, é possível encontrar a publicação de projetos, concursos e textos dos mais variados assuntos, desde trabalhos considerados extremamente técnicos até reflexões artísticas e filosóficas. Por serem veiculadas a associações profissionais, as revistas também publicavam, parcial ou integralmente, as atas das sessões em que se reuniam seus membros filiados e uma série de informes de cunho institucional. Dentre eles, é interessante ressaltar a publicação recorrente e periódica de uma lista de livros, revistas e correspondências recebidas de profissionais e instituições estrangeiras. Ou seja, elas nos permitem mapear esses diálogos, dissensos e debates que, nesse momento, mobilizavam essa institucionalidade recém-instaurada, articulando o campo a temas ou questões identificadas pelos profissionais como relevantes.
Embates por uma cultura profissional transnacional: os Congressos Pan-Americanos de Arquitetos
O compartilhamento de demandas profissionais e estratégias para implementá-las por diversos países americanos nesse período não era, em nenhuma medida, acidental. Se é possível observar a circulação de ideias entre determinados países e arquitetos por meio das revistas, esses debates parecem ter ocorrido de forma mais direta, na primeira metade do século XX, nos CPAs. A realização desses eventos desde 1920 possibilitou a consolidação de uma rede – ou nebulosa - profissional transnacional responsável por colocar em ação, debate e embate questões e temas compartilhados por uma cultura profissional.
Os Congressos eram pensados como momentos em que a profissão de arquiteto pudesse ser debatida e relacionada aos problemas enfrentados pelos jóvenes países americanos, adjetivação muito utilizada nesses espaços. O estudo de sua organização e efetiva realização nos permite identificar e entender os efeitos de um movimento que vai além da simples e abstrata circulação de ideias. Esses profissionais operavam complexas articulações entre seu campo e prática profissionais e as novas teorias e políticas (econômicas, culturais e comerciais) que pretendiam definir um novo lugar para a América.
Por sua longa duração e participação de muitos países e profissionais, os Congressos Pan-Americanos de Arquitetos já foram alvo de análises e aparecem na historiografia como importantes fóruns de debate e deliberação profissional. Muitas dessas narrativas, entretanto, não privilegiam sua dimensão transnacional e recorrem aos eventos para abordarem determinadas trajetórias ou a suposta consolidação de estilos, tidos como turning points do campo profissional12. De diferente maneira, ao enfatizar a circulação de ideias como uma recusa ao pressuposto da importação de modelos, ideias e projetos, a coletânea Urbanismo na América do Sul torna-se um índice de novas perspectivas nos estudos da história da arquitetura e urbanismo. Organizada por Marco Aurélio Filgueira Gomes em 2009, a obra forma um quadro heterogêneo que atesta como a noção se tornou um lugar comum nos estudos sobre história da arquitetura e do urbanismo a partir de diferentes pressupostos (GOMES, 2009).
A ênfase, de modo geral, está no papel da circulação de ideias na elaboração de soluções aos problemas urbanos comuns à várias cidades do continente – mesmo que somente em sua porção sul. Alguns dos capítulos reforçam uma tradição interpretativa que eclipsa a complexidade do campo ao insistir na busca pelas origens e na celebração de arquitetos europeus canonizados pela historiografia. Dois deles, entretanto, escapam desses facilitadores de análises e abordam essas inter-relações por meio dos CPAs. Gomes e José Carlos Huapaya Espinoza indicam como os Congressos consolidaram e possibilitaram o processo de trocas profissionais e acadêmicas, se tornando difusores de formas plurais de pensar a cidade (GOMES; ESPINOZA, 2009, p. 35). Fernando Atique, por sua vez, vai além da simples circulação e mapeia uma rede profissional a partir desses eventos, enfatizando a pluralidade nas interpretações do pan-americanismo pelos delegados e delegações participantes (ATIQUE, 2010)13.
Uma diferenciação importante entre o movimento de circulação de ideias e o efetivo embate entre elas é enfatizada por Josianne Cerasoli a partir da mesma ênfase na pluralidade. Ela destaca diferentes visões de futuro e de presente disputadas nesses eventos, entendidos como momentos singulares para identificar a formulação de ideias sobre o que deveria ser a inserção do arquiteto na configuração de uma paisagem cultural no continente. Cerasoli argumenta sobre, mais do que a circulação, a força do uso de tais ideias, que atuam intensamente enquanto circulam e acabam por, nesse caso, conferir materialidade e vida ao abstrato conceito político do pan-americanismo (CERASOLI, 2012).
A importância das revistas para, em termos gerais, as dinâmicas do campo profissional do período e, em termos específicos, a implementação desse projeto profissional baseado na transnacionalidade e na circulação de ideias, é um dos argumentos implícitos da obra organizada pelos argentinos Ramón Gutiérrez e Jorge Tartarini e o uruguaio Rubens Stagno, Congresos Panamericanos de Arquitectos – aportes para su historia. Ela se tornou referência para os estudos sobre esses Congressos e reúne os temas de todas as edições ocorridas entre 1920 e 2000 de maneira a elaborar, segundo os organizadores, uma visão integradora da prática arquitetônica no continente (GUTIÉRREZ; TARTARINI; STAGNO, 2007). Esse exercício de síntese e catalogação proposto pelos autores se baseou, em grande medida, nas publicações sobre os eventos encontradas nas revistas dos países participantes.
Nota-se, na análise dessas referências, que apesar da ênfase nas revistas do país sede de cada edição, as revistas da Argentina e do Uruguai, em um primeiro plano, e do Chile e do Brasil, em um segundo, são referências constantes para o exame de todas as edições dos eventos. O já mencionado compartilhamento de uma cultura profissional e de estratégias para legitimá-la se expressa na similaridade entre os títulos, que variavam entre “arquitectura”; “architectura” e “revista de arquitectura” incorporando, em alguns casos, as palavras “urbanismo” ou “construções”.
A estreita relação entre as revistas e os congressos pode ser observada nos debates sobre a realização de um congresso de arquitetos americanos, antes mesmo da efetiva implementação desse projeto. A proposta pode ser encontrada nas páginas da revista Arquitectura (Uruguai) desde a primeira metade da década de 1910, quando era debatida, mesmo que em termos mais genéricos, pela Sociedad Central de Arquitectos do Uruguai (ARQUITECTURA..., 1914, p. 3). Nesse período, entre a idealização e realização dos eventos, os arquitetos uruguaios se empenharam em trocar correspondências e, segundo eles mesmos, convencer colegas do Brasil, Cuba, Paraguai, Peru, Equador e da Pan American Union, sediada em Washington (EUA), sobre a necessidade e viabilidade do projeto.
Um informe publicado em 1915 afirma que os uruguaios já haviam recebido “elocuente aplauso” dos arquitetos de todos esses países e esperavam, ainda, a manifestação de outras nações para dar inícios aos trabalhos de organização efetiva do que considera ser:
[...] un mérito más en el campo de la cultura intelectual que tendremos en nuestro haber de pueblo joven y trabajador, ansioso de encarrillar sus energias en un sentido de eficaz contribución al progresso general de la América [...] alma joven que siente con ardor ingenuo y busca las formas de expresión propria para reverlarlo (ARQUITECTURA..., 1915, p. 50).
Eles previam a realização do primeiro Congresso em 1917, o que não ocorreu. Naquele ano, os editores dessa mesma revista publicaram uma nota em suas crônicas sobre os esforços empenhados para a realização do que consideravam uma das mais importantes e felizes ideias da associação, a realização do primeiro Congresso de Arquitetos Americanos. Chamo a atenção para a ausência da adjetivação pan-americana que irá caracterizar os eventos quando de sua efetiva realização. Afirmam terem iniciado os trabalhos e preparações, presididos pelo arquiteto Alfredo Campos, mas suspenderam as ações pelos acontecimentos decorrentes da “guerra europea”, sobretudo pelo papel desempenhado pelos Estados Unidos.
As revistas técnicas permaneceram como espaços privilegiados para a publicação das teses e embates ocorridos nesses eventos, possibilitando sua difusão em cada país participante. Apesar do Comité Ejecutivo de cada edição publicar as Actas y Trabajos, reunindo os temas e teses apresentados, bem como as deliberações de cada edição, as revistas cumprem um importante papel de preencher as lacunas que, eventualmente, são deixadas por essa documentação oficial14. Em sua quarta edição, sediada no Rio de Janeiro em 1930, o comitê não publicou as atas e trabalhos, tornando tais revistas um dos únicos registros sobre os debates e polêmicas entre partidários de ideias modernistas e defensores da arquitetura tida como tradicional. No ano de 1921, nessa edição da Revista de Arquitectura, é possível encontrar na Revista de Arquitectura (Argentina) a publicação dos trabalhos do argentino Raúl Fitte, “Responsabilidad profesional del Arquitecto”, apresentado no I Congresso como parte do tema 6; do peruano Santiago Basurco, “Casas baratas urbanas y rurales en América”, apresentado como parte do tema 4; e do argentino Narcisio Del Valle, “Casas econômicas”, elaborado para o mesmo tema (REVISTA DE ARQUITECTURA..., 1921).
Podemos acompanhar, nessa mesma revista, nos anos posteriores ao primeiro Congresso (1920), uma intensa campanha para que os debates e deliberações ocorridos no Uruguai fossem publicados e difundidos pela Sociedad Central de Arquitectos (SCA) não só aos profissionais do país, mas às autoridades públicas e demais técnicos. Esse empenho indicava como, segundo os arquitetos argentinos da SCA, os temas tratados nos Congressos eram maiores do que uma “questão técnica e profissional”:
El presente Congreso, como el que le precedió y que se fué celebrado em Montevideo, en marzo de 1920, tiende justamente a poner en contacto, con fines relacionados con la higiene y hermosura de las cuidades, a los profesionales que se dedican al cultivo de una manifestación de la belleza plastica que en todo tiempo fué considerada como la expressión más fielde la cultura, del estado económico y hasta del pensar y sentir de los pueblos. [...] En este sentido, el presente Congreso debe discutir, no sólo problemas de carácter técnico y profesional, sino también cuestiones que, como las que se refieren a las habitaciones obreras y la higiene y salubridad públicas, revisten verdadera importancia social (REVISTA DE ARQUITECTURA..., 1923a, p. 78).
Por esse motivo, anos mais tarde, em 1924, é possível encontrar correspondências entre os arquitetos argentinos e Bernardo Morales, do Chile, sobre a necessidade de se difundirem as conclusões do II Congresso, sediado em Santiago em 1923, em todas as repartições públicas e instituições privadas que poderiam se interessar e influir pelas decisões e votos daquela “assemblea profesional”.
A juzgar por la forma en que están llegando a la Sociedad las notas en que se acusa recbido de dichas conclusiones, podemos asegurar que se muestran, sumamente interesados los Ministerios, Intendentes, Gobernadores de provincias y demás autoridades, muchas de las cuales manifestan que las aplicarán en leyes y decretos futuros. Indudablemente, casi todos los temas tratados en el Congreso de Arquitectos de Santiago, son de actualida palpitante entre nosostros, y las conclusiones adoptadas muy dignas de que nuestras autoridades las tomen en consideración (REVISTA DE ARQUITECTURA..., 1924a, p. 86).
No mesmo número, em ata de uma sessão posterior da SCA, há o informe que o Comitê Organizador do II Congresso remeteu um total de 346 notas com cópias das conclusões do referido encontro a serem distribuídas em distintas instituições, corpos colegiados, repartições públicas e privadas.
O exame das edições dessa revista nos permite indicar uma enfática aproximação entre profissionais do Cone-Sul americano (sobretudo Argentina, Uruguai, Brasil e Chile) nas décadas seguintes a realização do I Congresso. Em 1921 é possível acompanhar pelas atas das sessões do Comité Directivo da associação uma série de visitas e conferências entre arquitetos argentinos e uruguaios. No mês posterior a realização do evento sediado no Uruguai, em julho de 1920, Alberto Coni Molina, Ricardo Gonzáles, René Villeminot, Raúl Rivera, Carlos Becker, Raúl Pasman e Francisco Squirru se reuniam em sessão ordinária da SCA e leram diversas correspondências recebidas dos países vizinhos, como do brasileiro Nereo Sampaio e do uruguaio Horacio Acosta y Lara, que teve votada e aprovada sua designação como sócio honorário da associação argentina por sua atuação no I CPA e por ser um “defensor de los interesses profesionales y un cultor incansable del arte arquitectónico.” (REVISTA DE ARQUITECTURA..., 1921).
No número seguinte, foram publicados dois extensos relatos sobre uma visita de estudantes argentinos ao Uruguai e de estudantes uruguaios à Argentina, intermediadas por essas duas associações e seus profissionais. Os artigos indicam como essas visitas incluíam roteiros arquitetônicos e artísticos que apresentassem culturalmente a Argentina para os colegas uruguaios da Facultad de Arquitectura de Montevideo e vice e versa:
Los estudiantes de nuestra Escuela, con motivo de la visita de nuestros colegas uruguayos, sirviéronles de guía en varias de sus excursiones, a diversos edificio publicos que deseavam conocer. Los futuros arquitectos uruguayos concurrieron a varias comidas y paseos que en honor de los mismos les fueron ofrecidos por el Centro de Estudiantes de Arquitectura, a fin de exteriorizar una vez más su complacencia por el viaje de aquéllos, que ha contribuído a afianzar los innumerables vínculos de amistad y companerismo ya existentes entre los estudiantes de las escuelas de arquitectura de amabas márgenes del Plata (REVISTA DE ARQUITECTURA..., 1921, p. 79).
A visita foi retribuída no mês seguinte, quando, por convite do Centro de Estudiantes de Arquitectura de Montevidéo, uma comissão de estudantes argentinos conheceu a cidade vizinha na ocasião em que ela sediava o IV Salão Anual dos Estudantes de Arquitetura:
Una serie de excursiones, reuniones y paseos diversos por los diferentes lugares de esa ciudad pintoresca y simpatica, nos ha dejado la impresión de adelante y cultura. Las dos fotografias que reproducimos, la una el barrio Las Tejas, donde se levanta una serie de casas economicas obreras, pintorescas y de una arquitectura sencilla, en la que fuimos acompanados por los miembros dirigentes del Centro Estudiantes de Arquitectura y también por el arquitecto sr. Pérez Monteros [...]. En cuanto al salón fuimos gratamente impresionados; la severidad del conjunto y las bellezas de la concepción de los proyectos de arquitectura, como así a decorativa se refiere, responde por entero a la ensenanza en que el arquitectos Carré es su principal educador [...] (REVISTA DE ARQUITECTURA..., 1921, p. 82).
Anos mais tarde, em 1924, o tema das visitas e conferências internacionais voltava a ser pauta de uma sessão dos membros da SCA argentina assinalando esse tipo de troca e circulação profissional como fundamentais para que as posições elaboradas pelas entidades de classe conseguissem tomar forma de leis e normativas efetivas que regulamentassem o campo e a prática profissionais (REVISTA DE ARQUITECTURA..., 1924b, p. 436).
As revistas, além de frequentemente republicar os trabalhos apresentados nos Congressos, também difundiam os debates internos da Sociedad Central de Arquitectos (Argentina). Nessas atas é possível identificar como seus membros mobilizavam as conclusões desses eventos como diretrizes para embasar posicionamentos sobre diversas questões profissionais no período. No ano de 1924 é publicado como parte das atas da SCA uma consulta do presidente, Alberto Coni Molina, sobre um chamado para a realização de um concurso privado para a construção de hospitais em Buenos Aires. O entrave estava na não aceitação por alguns profissionais que o presidente da Sociedad tomasse parte no referido concurso, o que Molina contra-argumentou a partir das conclusões dos Congressos. A estratégia de convencimento foi bem sucedida, de modo que a Comissão Diretiva decidiu declarar que não havia nenhum inconveniente na questão de acordo com as conclusões do II Congresso Pan-Americano de Arquitetos no que se refere a organização e legitimidade dos concursos, públicos e privados (REVISTA DE ARQUITECTURA..., 1924b, p. 116).
Tomar as revistas como corpus documental para elaborar uma narrativa, dentre tantas possíveis, sobre a história da profissão de arquiteto ainda nos permite interpretar a importância, nesse período, das balizas políticas realizadas por esses profissionais em sua busca por apoio governamental e institucional. Havia um esforço ativo de sublinhar a participação, nesses eventos, de autoridades políticas dos países participantes, como reitores das universidades existentes no país sede, ministros ligados ao setor de obras públicas e prefeitos. No ano de 1923, em que o Congresso foi sediado no Chile, é possível observar a articulação entre diferentes fóruns transnacionais que se movimentavam em torno da ideia do pan-americanismo. A Revista Arquitectura (Argentina) publicou, nesse mesmo ano, muitos discursos proferidos em razão do Congresso. Dentre eles, o de Alcibíades Roldán, então Ministro da Instrução Pública no país que chamou a atenção para a centralidade do Chile naquele ano, sediando além dos CPA’s a V Conferência Internacional Americana.
Para ele, a importância dos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos estava, justamente, em colocar em contato profissionais que se dedicam ao “cultivo de una manifestación de la belleza plastica que en todo tiempo fué considerada como la expressión más fiel de la cultura, del estado económico y hasta del pensar y sentir de los pueblos”. A urgência desse tipo de circulação de saberes estava na condição especial em que se encontravam as cidades americanas: “encuentran en un período de formación, marchando a tientas en el camino de su futuro engrandecimiento, buscando acaso una forma nueva de belleza, seguridad y comodidad arquitetônicas [...]” (REVISTA DE ARQUITECTURA..., 1923a, p. 79).
O caráter inacabado das cidades americanas era também apontado por Ricardo Gonzáles na ocasião enquanto presidente do II Congresso. O passado colonizado das nações americanas indicaria, para ele, a necessidade de se aprimorar as linhas harmoniosas e os encantos derivados da Ciência, Técnica e Beleza criadora dos profissionais americanos:
Pero, sin embargo, desde los lejanos dias que formaron la jornada del Primer Congreso de Arquitectos, realizado em Montevideo, flota en el ambiente un espíritu magnífico, y parece que nueva vida impregna las actividades profesionales, buscando un camino que en los viejos pueblos la historia cuenta en las páginas de Roma y Grecia, como el summum del arte único, y que los contemporáneos se esfuerzan por traducir en obras prácticas en el progreso de las naciones del nuevo mundo de Cólon (REVISTA DE ARQUITECTURA..., 1923a, p. 80).
Para Gonzáles, os arquitetos eram cultivadores espirituais e a arquitetura uma obra única, por permitir a expressão de caráteres que conformariam a peculiaridade americana frente a heranças estranhas importadas do velho continente. O final do discurso é marcado pelo tom fraternal, ao exaltar as demais nações como “patrias Hermanas” que deveriam se sentir em casa.
Acompanhar como os temas e questões tematizadas nos Congressos eram debatidas a nível local nas revistas técnicas ainda nos permite apurar uma cronologia que, de maneira teleológica, alinha as narrativas sobre esses eventos para um fim necessariamente modernista e que consolida uma relação hermética e hegemônica ao assumir uma influência estadunidense nos projetos e debates de outros países americanos. Os debates sobre a construção de arranha-céus e suas implicações urbanísticas são comumente reportados ao IV CPA, sediado no Rio de Janeiro em 1930, que teve a questão transformada em tema e contou com a participação de grandes nomes da arquitetura e do urbanismo que se contrapunham no debate sobre os estilos da época (como Lucio Costa, José Marianno Filho, Flavio de Carvalho e até Frank Lloyd Wright) (CERASOLI, 2012).
As polêmicas suscitadas pelos rascacielos, entretanto, podem ser encontradas em publicações argentinas desde o início da década de 1920. Um dos profissionais mais assíduos nos Congressos, o argentino Alejandro Christophersen foi autor de uma série de artigos que problematizavam esse tipo de construção, para ele, característica de povos sem tradição:
Los hombres de raza o educación latina, que conservan el patrimonio de la justa medida en sus creaciones de arte, no pueden tener admiración por los monumentos que sobrepasan los límites de la proporción, ni pueden simpatizar con ese desafío grosero de lo monstruoso y aplastador que tiende a disminuir nuestra propria individualidad (REVISTA DE ARQUITECTURA..., 1923b, p. 123-125).
Sua crítica, que encontra convergência em artigos de José Marianno Filho publicados no Brasil via Architectura e Construccções ou mesmo nas páginas do Diário da Noite, periódico carioca de grande circulação, caracterizava os arranha-céus como colmeias humanas baseadas em uma “mentira arquitetônica, traduzida por materiais irreais e enganosos” (MARIANNO FILHO, 1943, p. 88). Essa suposta peculiaridade latina indicada na crítica de Christophersen perpassa os debates de grande parte dos temas das primeiras 5 edições dos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos.
Menos do que tentar, a partir dessas reflexões, apontar para um pioneirismo desses profissionais do Cone-Sul, o objetivo dessa análise é o de enfatizar como, em termos da circulação de ideias – para além de uma perspectiva abstrata de como isso se dava –, as soluções para os problemas identificados nas cidades americanas por essa rede profissional transnacional (incluindo, aqui, as teses, resoluções, artigos e argumentos), eram formuladas no e pelo debate. Este, por sua vez, se desdobrava – em um movimento de tensão, disputa e reformulação – em diferentes escalas que iam do transnacional ao local.
Por esse caráter, não podemos ler as conclusões dos Congressos como definitivas – elas não tinham, sequer, força de lei nos países aderentes aos encontros. Esse dinamismo próprio que caracteriza a circulação de ideias no campo da arquitetura e urbanismo americanos nesse período se apoiava em grande medida nas revistas, de maneira a dotá-las de um papel legitimador, de modo a conferir autoridade a determinados posicionamentos e garantir que esse debate –e não as conclusões, por si – pudesse continuar fora da oficialidade dos Congressos e na vida pública de seus delegados e participantes. As revistas técnicas desses países, nessa perspectiva, foram os veículos que possibilitaram a movimentação de tais ideias, ou seja, que elas entrassem em ação a partir das articulações esboçadas e consolidadas nesses congressos profissionais.
Nebulosas redes
Esse movimento de circulação e diálogo entre profissionais de diferentes países a partir de suas associações profissionais é frequentemente encarado pela historiografia a partir da noção de “rede”. Rodrigo de Faria define rede profissional como aquela cuja atuação e produção de conhecimento tem um caráter especializado e técnico, baseados em uma cultura profissional e nos oferece caminhos metodológicos para pensar as implicações de se pensar por meio delas15.
Os esforços empreendidos no exame dos Congressos e das revistas pretende contribuir com esses estudos de maneira a ampliar essa categoria analítica, bem como questionar a noção de “cultura profissional”, largamente mobilizada por eles. Destacamos como o apoio nessa categoria, recorrentemente, enfatiza a existência de um suposto consenso, em alguma medida, entre as ideias e teses articuladas e elaboradas por esses arquitetos.
O estudo de Elena Mazzini e Mary Méndez tomado na introdução do presente artigo parte desse pressuposto. As autoras identificam a existência de uma cultura arquitetônica nesse período caracterizada por um “altissimo nivel de consenso” entre os arquitetos. A cultura arquitetônica é entendida por elas como um modelo, a partir do qual é estabelecida uma genealogia que reforça a “influência” francesa nos debates uruguaios (MAZZINI; MÉNDEZ, 2012, p. 43). Os esforços de George Dantas e os demais pesquisadores do Grupo de Pesquisa História da Cidade, do Território e do Urbanismo (HCUrb/UFRN), por outro lado, tem sido trabalhar a noção de cultura técnica como um ponto de partida para se lançar novos olhares e leituras para os documentos e formulações de uma determinada época em prol de compreender como se deu a construção de um campo comum de debate e interlocução. Para Dantas, o adensamento de um conjunto de questões e temas indica a construção de uma cultura técnica, cuja apreensão recai mais nos textos e nas relações sociais do que nas grandes obras técnicas em si (DANTAS; FERREIRA, 2017). O próprio léxico mobilizado pelo autor se apoia em metáforas astrofísicas e indica um movimento mais dinâmico do que aquele denotado pela categoria de “rede”. O movimento de se tornar mais ou menos denso um conjunto de questões denuncia como as relações entre esses profissionais também eram heterogêneas e, até certo ponto, instáveis. Partimos dessas reflexões para abordar a temática proposta sem, contudo, perder de vista que os debates ocorridos nos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos parecem indicar não uma, mas determinadas culturas técnicas em disputa e movimento.
Apesar de compartilharem pressupostos, esses profissionais não partilhavam plenamente das mesmas opiniões sobre sua formação profissional, seu papel na sociedade ou mesmo suas atribuições e deveres. A ênfase, aqui, recai, por outro lado, nas disputas por essas categorias e pela ausência de um modelo único de referências. Esse tenso e constante jogo entre convergências e dissensos caracteriza a dinâmica do campo profissional mapeado aqui a partir das revistas. Os embates ocorridos no interior dessa classe profissional podem ser entendidos, então, como as disputas entre os diversos profissionais que se pretendiam uma comunidade especializada e coesa (WEINSTEIN, 2000, p. 27).
Esse caráter plural e até certo ponto instável e difuso, onde a entrada e movimentação de determinados profissionais pode ser identificada a partir de diferentes pressupostos, escalas e tempos e densidades, talvez torne insuficiente a noção de rede. A metáfora remete à materialidade de um tecido, em suas heterogêneas composições, onde se entrelaçam e se interligam fios em um regime de cadeia. Essa potente inter-relação entre os membros de uma rede seria o motor que tornaria possível a difusão e compartilhamento de determinadas perspectivas especializadas sobre o campo profissional e a circulação de ideias.
Menos do que desprezar essa metáfora, ao apontar seus limites e seu caráter estático e cartesiano, pretendo indicar como o dinamismo de um campo profissional em franca disputa dificulta o exercício de fixar, a partir de uma tessitura material e rígida, plurais relações e ligações transnacionais de arquitetos na primeira metade do século XX. Ao buscar saídas para esse dilema metodológico e insistir na importância das palavras nas narrativas sobre a história da arquitetura, do urbanismo e da cidade, vou ao encontro das provocações e reflexões de Margareth Pereira, que defende o “pensar por nebulosas”.
Essa atitude em relação ao conhecimento e à história, mais do que um posicionamento metodológico ou um conceito, tem sido definido por ela a partir de seu tríplice significado: como metáfora de um modo de pensar e fazer história, como narrativa e como ação. Apoiada nas teorias da história de Walter Benjamin e nas leituras dessas reflexões por Georges Didi-Huberman, ela afirma que a ideia busca se distanciar de perspectivas que evitam ou encobrem com véus “as errâncias e hesitações das reflexões no ir e vir de seus questionamentos e, em suma, denegando resultados inconclusos, provisórios, contingentes” (PEREIRA, 2018, p. 246).
Não pretendo entrar no debate benjaminiano e suas concepções acerca da história, antes, julgo mais produtivo para o presente artigo, resgatar outro diálogo operado por Pereira na elaboração das nebulosas: os trabalhos do sociólogo francês Christian Topalov. Ao estudar os movimentos de reforma na França do século XIX, ele se deparou com uma heterogeneidade que permeava a ação de distintos grupos engajados em prol de um mesmo objetivo. Nesse contexto, defendeu o uso da palavra “nebulosa” para exprimir o que ele interpretou como um universo finito, mas com contornos indecisos. A atitude de assumir as descontinuidades e identificar densidades e zonas relativamente vazias foi apreendida por Pereira em suas reflexões e é deslocada no presente artigo para enfatizar como os Congressos Pan-Americanos de Arquitetos podem ser interpretados como um conjunto de singulares, instável, dialógico e somente apreensível por seus momentâneos e oscilantes consensos. As conclusões e posições afirmadas nesses espaços de debate e deliberação profissional, como observado nas revistas, não eram estáticas. Participavam, de outro modo, dessa movimentação e ação de ideias que, por meio das nebulosas, conseguimos apreender de maneira não homogênea.
As lacunas, espaços vazios ou menos densos, dessa forma, não são desprezados, mas trazidos ao debate por compor essa movimentação. Diferente da ideia de rede, que também enfatiza os nexos e articulações, o pensar por nebulosas nos permite situar essas interações e dotá-las do dinamismo histórico de seu tempo. O aceite ao convite feito por Margareth Pereira para pensar por nebulosas – pontualmente esboçado aqui–, está longe de conseguir esgotar suas possibilidades e dificuldades. A tentativa, entretanto, é justificada pela premissa ressaltada pela autora: buscar deslocar as ideias de transferência de saberes prontos que se apoiem em modelos analíticos fixos e a ideia hermética de culturas hierarquizáveis (PEREIRA, 2018, p. 256). Buscou-se, com esse diálogo, formas alternativas de mapear embates por uma cultura profissional transnacional no campo da arquitetura e do urbanismo na primeira metade do século XX. O movimento operado entre redes e nebulosas permitiu enfatizar a complexidade e dinamismo do singular plural que mobilizou heterogêneos profissionais a escreverem e teorizarem sobre as polêmicas relacionadas a seu ofício. O trânsito de pessoas, publicações, textos e revistas, como explorado, indicam a necessidade de se investir em novas formas de apreensão e narração históricas que consigam se aproximar desse aspecto plural e dinâmico e se afastar de narrativas conclusivas e totais.
Referências
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Notas
Autor notes