Dossiê

Christus: aggiornamento católico e teologia da libertação em uma revista jesuítica mexicana (1968-1973)

Christus: catholic aggiornamento and theology of liberation in a mexican jesuitic magazine (1968-1973)

Igor Luis Andreo
Universidade Estadual de Londrina , Brasil

Christus: aggiornamento católico e teologia da libertação em uma revista jesuítica mexicana (1968-1973)

Antíteses, vol. 12, núm. 23, pp. 431-465, 2019

Universidade Estadual de Londrina

Recepção: 27 Fevereiro 2019

Aprovação: 17 Junho 2019

Resumo: A revista Christus consiste em um periódico jesuítico de grande longevidade (de 1935 até a atualidade) e suma importância para uma parcela da intelectualidade católica mexicana, tendo sido fundado como um órgão ligado à oficialidade episcopal do país, no intuito de orientação sacerdotal em um momento turbulento, de perseguições e atritos entre a Igreja católica e o Estado mexicano, todavia, ao longo do recorte aqui focado (1968-1973), analisamos ideias sociopolíticas defendidas por sua linha editorial que marcaram um período no qual se iniciou o distanciamento entre um setor jesuítico ligado à Teologia da Libertação e as hierarquias episcopal e da Companhia de Jesus mexicana.

Palavras-chave: México, Periódico, Teologia da libertação.

Abstract: Christus magazine consists of a Jesuit periodical of great longevity (from 1935 to the present) and of great importance for a portion of the Mexican Catholic intellectuals, having been founded as an organ connected with the episcopal official of the country, with the purpose of priestly orientation in a turbulent moment of persecution and friction between the Catholic Church and the Mexican State. However, throughout the focus here (1968-1973), we analyzed sociopolitical ideas defended by its editorial line that marked a period in which occurred the began of the distancing between a Jesuit sector linked to Liberation Theology and the episcopal hierarchies and of the Mexican Society of Jesus.

Keywords: Mexico, Periodicals, Liberation theology.

Neste artigo propomos apresentar análises presentes em nossa Tese de Doutoramento (ANDREO, 2015), cujo foco foi realizar um estudo histórico-comparativo, entre os anos de 1966 e 1980, adotando como fontes e objetos da pesquisa uma revista católica brasileira e uma revista católica mexicana que se alinhavam à Teologia da Libertação. Centraremos este artigo nas análises relativas ao ideário societário e político-econômico (e suas transformações ao longo do período recortado) defendido apenas pela linha editorial da revista mexicana Christus, entre os anos de 1968 a 1973.

Existe uma vasta literatura acerca da Teologia da Libertação1, todavia, concordamos com Malik Tahar Chaouch ao interpretar que a “[...] mayoría de los textos existentes sobre el tema quedaron confinados en la apologia militante, la hostilidad polémica y la fascinación especulativa” (CHAOUCH, 2007, p. 428). Nestes textos, sobretudo naqueles produzidos por militantes, construiu-se uma espécie de “senso comum” acerca da Teologia da Libertação: esta seria a expressão intrínseca (reflexo e reflexão)2 de um amplo movimento social com caráter popular, progressista e singularmente latino-americano.

Não queremos aqui negar as ligações da Teologia da Libertação com a formação de movimentos sociais e populares, tampouco sua presença no terreno sociopolítico de ações coletivas, suas proximidades e afinidades evidentes com os espaços do espectro político que podem ser denominados como “progressistas” ou ainda o protagonismo latino-americano de seus agentes e espaços de atuação, entretanto, procuramos nos associar a interpretações mais complexas dos fenômenos que intentam – de uma forma mais geral, como por exemplo, Malik Chaouch (2007) e Mairon Valério (2012), ou focados em pontos ou regiões específicos, como Émile Poulat (1977), Roberto Blancarte (1992) e André Corten (2004) – demonstrar, em síntese, seu caráter transnacional e transcontinental, intelectual e predominantemente hierárquico eclesiástico (ou ao menos dependente de agentes, instituições e apoio ou tolerância de setores da hierarquia católica), além de suas raízes comuns com grupos considerados “conservadores”, fincadas no catolicismo social “intransigente integral”; desta forma relativizando maniqueísmos simplificadores corriqueiramente associados às interpretações do tema: Igreja popular x Igreja institucional ou hierárquica, Igreja progressista x Igreja conservadora, Igreja latino-americana x Igreja europeia, entre outros.

Construiremos nossas análises a partir das informações obtidas em diversos autores, com perspectivas teóricas distintas, muitas vezes divergentes, todavia procurando basear nosso entendimento do aggiornamento católico e da Teologia da Libertação em apropriações livres das indicações de Pierre Bourdieu (1989, 1992, 1996, 2007), isto é, grosso modo, partindo do entendimento do espaço interno de atuação do catolicismo como um campo social relativamente autônomo, no qual os agentes, movidos por interesses interiorizados referentes à posição que ocupam no mundo social, dividem-se (de acordo com a distribuição quantitativa e qualitativa do capital simbólico no campo) em grupos em luta pelo reconhecimento social e consequente conquista do controle e administração de certo tipo de poder simbólico, neste caso, o monopólio da manipulação legítima dos “bens de salvação”, desta forma buscando – nos limites das regras, categorias e censuras impostas pelo campo, reconhecidos e aceitos pelos agentes (ou seja, ignorados como historicamente construídos e arbitrários) – conservar ou modificar a distribuição interna de capitais, assim logrando a imposição de sua particular representação social de mundo como norma geral.

Assim sendo, concordamos com Malik Chaouch (2007, p. 439-440) ao interpretar a Teologia da Libertação como resultante de uma disputa acerca da missão do cristianismo contemporâneo. Para tratar disso é necessário retomar sucintamente certos fatores históricos do desenvolvimento do catolicismo social. Em linhas gerais, o catolicismo intransigente integral diz respeito às correntes, surgidas após a Revolução Francesa, que buscavam (e buscam) impor (ou restaurar) um ideal católico de sociedade, isto é, um pensamento “integral”, porque baseado em uma concepção global do ser católico que não separa o social do religioso, e “intransigente”, porque interpreta este catolicismo integral como alternativa única frente às outras doutrinas sociais. No decorrer do século XIX a corrente intransigente integral se dividiu internamente, possuindo como oposição central a recusa antimoderna absoluta de adaptação, frente à aceitação em se adaptar à sociedade moderna com intuito de cooptar a questão social, o que, por sua vez, se desenvolveu ao longo do século XX opondo-se, de acordo com as circunstâncias locais em vigência, ao capitalismo liberal ou à revolução socialista (POULAT, 1977). Desta maneira, procura-se compreender as contradições internas do catolicismo social no século XX, apesar das possíveis afinidades e alinhamentos, de forma mais complexa e para além da mera oposição entre catolicismo conservador e progressista.

Após a crise desencadeada como desvendamento dos horrores durante a Segunda Guerra Mundial, novas correntes teológicas começaram articular-se na Europa e a partir da década de 1950, de um ponto de vista social, em muito se tornaram tributárias ao que Eduardo Déves-Valdés (2003, p. 21-44, 2012, p. 525-529) aponta como o grande êxito (até mesmo epistêmico/ paradigmático) das teorias baseadas no conceito de desenvolvimento, cuja rápida penetração e hibridização geraram, entre outros, um pensamento social cristão desenvolvimentista3, o que foi legitimado com a assunção de João XXIII ao papado em 1959 e, sobretudo, pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), desta maneira fortalecendo redes católicas “terceiro-mundistas”. Estes posicionamentos podem ser associados com o que Roberto Blancarte (1992) denomina como posturas neointransigentes, isto é, grupos católicos abertos ao diálogo com o “mundo moderno”, mas ainda interessados em sua reconversão a um projeto social cristão.

Desta forma, interpretamos a Teologia da Libertação como resultado de um processo de radicalização – ocorrido a partir de meados da década de 1960 em meio às disputas simbólicas no campo religioso – de um grupo de intelectuais inseridos no seio de redes católicas “terceiro-mundistas” com origem (neo) intransigente que haviam migrado para a América Latina (mas mantiveram trocas intelectuais importantes com o velho continente).

No final da década de 1960, membros das cúpulas eclesiásticas ligados a essas redes de ativismo católico passaram a controlar – o que se manteve até meados dos anos 70 – o Conselho Episcopal Latino Americano (CELAM). Como aponta Mairon Valério (2012) foi a partir deste ponto que se intensificaram os processos de radicalização intelectual em razão de um projeto de poder político institucional da nova direção do CELAM, que visava impor ao restante da Igreja latino-americana sua posição favorável à atuação católica direta e efetiva nas questões sociais, o que demandava uma interpretação unificadora do subcontinente latino-americano que legitimasse sua especificidade social, econômica e, consequentemente, teológica, levando paulatinamente à adoção das teorias marxistas da dependência4 como interpretação da América Latina, em substituição às teorias desenvolvimentistas – principalmente de origem no CEPAL – assim impulsionando o nascimento da Teologia da Libertação em moldes predominantes até meados da década de 1970, quando houve uma mudança no controle do poder no CELAM (marcadamente representada pela eleição de Alfonso López Trujillo5 ao cargo de Secretário-Geral da instituição em finais de 1972) e a Teologia da Libertação, sem contar mais com este respaldo institucional, começou a assumir características distintas, mais defensivas e majoritariamente focadas em construções de solidariedades e resistências comunitárias ao invés da anterior ênfase em projetos de ruptura estrutural ou sistêmica, assim tornando mais explícitas suas heranças intransigentes ligadas aos ideais comunitários católicos (concomitantemente com a ascensão de outros atores).

Assim sendo, entendemos que estudos mais recentes e críticos acerca da Teologia da Libertação tendem a enfatizar, entre outros pontos, o seu caráter transnacional e transcontinental, em função das redes internacionais de ativismo católico, fundamentais para seu surgimento e que mantiveram sua produção intelectual circulando intensamente mesmo após a perda de controle institucional do CELAM, isto é, focam-se, em certo sentido, nas conexões da Teologia da Libertação acima das conjunturas das Igrejas nacionais, uma vez que estas garantiam certa autonomia relativa frente às determinações locais. Contudo, em nossa Tese de Doutoramento procuramos refletir até que ponto a pertença a grupos passíveis de serem enquadrados no âmbito da Teologia da Libertação, todavia inseridos em contextos nacionais paralelos, porém historicamente marcados por diferentes relações entre o Estado e a Igreja e por peculiares tradições sociopolíticas, étnico-culturais, entre outras, resultou em respostas e construções intelectuais socioteológicas distintas, que não se adequavam ou mesmo contradiziam os processos identificados como característicos desses caminhos percorridos pela Teologia da Libertação.

Breve trajetória da revista Christus até 1968

Christus foi fundada por jesuítas em dezembro de 1935, como substituto da Gaceta Oficial de Arzobispado, órgão oficial do episcopado mexicano que havia desaparecido em meio ao contexto marcado por perseguições à Igreja e expulsão de alguns membros da hierarquia católica – contexto este que Nora Pérez-Rayón (2004) identifica como ápice (1913 a 1938) do “anticlericalismo radical” na sociedade mexicana. De acordo com Roberto Blancarte (1986, p. 53-54), de sua fundação em 1935 até os primeiros anos da década de 1960, a revista constituía-se como um braço informativo do episcopado, visando educar aos sacerdotes a partir da Doutrina Social católica.

Em seus anos iniciais defendeu os direitos eclesiais e atacou ao comunismo, ao qual associava o presidente Lázaro Cárdenas6. No entanto, a partir de 1938 ocorreu a primeira transformação na revista (BLANCARTE, 1986, p. 54), em consonância com a mudança no controle do Episcopado, que iniciava uma etapa de transição para um novo modelo eclesial, se adaptando à realidade pós-revolucionária a partir do estabelecimento de relações não litigiosas com o Estado e, posteriormente, com o interesse em manter boas relações com os sucessivos governos7, o que suprimiu de Christus as críticas a Cárdenas e seus sucessores, entretanto sem abandonar a defesa da Doutrina Social católica.

Com o abandono da terminologia socialista aplicada à educação durante o governo de Miguel Aleman (1946-1951), consolidou-se o Modus Vivendi entre a hierarquia católica e o Estado, marcado por posturas anticomunistas em comum, uma vez que foi neste período que se acentuou na Igreja a visão do comunismo como um inimigo maior que o capitalismo, o que se refletiu em Christus, onde se abandonou qualquer tipo de crítica às medidas governamentais, escassearam quase por completo as abordagens de temas estritamente laico-sociais e voltou-se à questões religiosas transcendentais ou intraeclesiásticas e ao combate – além do próprio comunismo – ao protestantismo que, sobretudo via Estados Unidos, iniciava sua incursão ao território mexicano.

A partir de meados dos anos 1950, com o retorno dos grupos intransigentes ao controle episcopal no México, Christus passou por uma segunda transformação (BLANCARTE, 1986, p. 56) e voltou a interessar-se por temáticas sociais, sendo que a partir de 1963 “[...] la revista comienza a plantear los problemas sociales y políticos de uma forma abierta” (BLANCARTE, 1986, p. 56).

No entanto, sob o impacto da efervescência social desencadeada a partir de meados dos anos 1960 e, especialmente a partir do movimento estudantil mexicano de 1968 e da Conferência de Medellín8 – que causou reações fortes e inesperadas em alguns setores eclesiásticos mexicanos, uma vez que a Igreja do país até então se encontrava relativamente isolada do restante do clero latino-americano9 – começou a haver na revista Christus uma crescente independência ideológica frente ao episcopado, até a adoção explícita de uma linha voltada à “opção pelos pobres”10 e à Teologia da Libertação.

Interpretamos que o marco inicial dessa transformação foi a assunção do sacerdote jesuíta Enrique Maza11 à direção da revista, em 196812 e é a partir deste ponto que iniciaremos a apresentar as análises da revista mexicana neste artigo.

O início da transição de revista sacerdotal para periódico ligado a redes de militância social católica

Para nossas análises nos embasamos, sobretudo, nas orientações de Tania Regina de Luca13, que recomenda trabalhar a documentação periódica como fonte e, concomitantemente, objeto da pesquisa, ou seja, propõe uma metodologia que procura superar “[...] o uso instrumental e ingênuo que tornava os periódicos como meros receptáculos de informações a serem selecionados, extraídos e utilizados ao bel prazer do pesquisador” (DE LUCA, 2006, p. 116). Todavia, em razão do espaço, não abordaremos neste artigo as minúcias metodológicas realizadas acerca do periódico em questão, nos atendo majoritariamente a algumas das conclusões que alcançamos14.

Apoiados em análises da materialidade do periódico, interpretamos que Christus não apresentava atrativos para além de seu próprio conteúdo. Seu público alvo principal, os sacerdotes mexicanos, não demandava a necessidade de apelos estéticos ou imagéticos .

No entanto, a partir de 1971 a revista transformou-se: o número de autores leigos teve um aumento; o subtítulo “revista mensual para sacerdotes” mudou para “revista mensual de teologia”; e a subdivisão em seções na revista aumentou, sendo que quatro delas (de onde saíam sempre os destaques das capas neste período) tornaram-se fixas: La Iglesia en la Actualidad – que abre a revista comumente com colaboradores constantes e textos curtos, La Iglesia en su Realidad Social – a segunda e também com colaboradores recorrentes e textos de poucas páginas, Cuaderno – onde encontram-se os textos mais longos – e Documentos – cujo espaço diminuiu em relação ao período anterior, sobretudo no que se refere à apresentação de textos do pontífice ou do Episcopado Mexicano; também o editorial foi modificado e tornou-se uma pequena “Presentación”, ou seja, uma síntese não analítica dos textos em destaque na edição.

Essas mudanças na materialidade de Christus eram reflexo do intuito de seu diretor, de que, para além do público sacerdotal, a revista passasse a dirigir-se também aos agentes laicos das pastorais, assim transcendendo a “mentalidade pré-conciliar de superioridade do clero frente ao restante da comunidade cristã”. Desta forma, Enrique Maza também convidou como colaboradores alguns estudantes e professores jesuítas ligados a um grupo que procurava não somente aprender teologia por meio das revelações da Sagrada Escritura, mas, a partir do diálogo com pessoas em contato direto com a atividade pastoral, queriam “Aprender la teología produciendóla [...] en los acontecimientos de la historia presente y pasada [...] desde el pueblo, desde las bases” (VALLE NORIEGA, 2011, p. 312). Tal grupo de estudos – no qual participavam colaboradores da revista a partir de 1971 como o próprio Luis del Valle, que tornou-se um expoente da Teologia da Libertação no México e nos anos 1980 foi diretor da Christus, além de Alfonso Castillo15, que também veio a ocupar tal cargo – formou o Centro de Reflexión Teológica (CRT), fundado oficialmente em 1975, mas que informalmente existia desde anos anteriores.

Desta forma, apesar de assuntos intraeclesiásticos continuarem a ser publicados com relativa regularidade, é possível perceber que as temáticas que tratam de questões sociais passaram a ser o foco central da revista mexicana.

Sob a justificativa de dedicar-se a outros projetos, Enrique Maza deixou a revista Christus a partir da edição de abril de 1973, e assim o controle do conteúdo passou (indireta e gradualmente) para o grupo de teólogos do CRT, o que interpretamos como marco de transição a uma nova etapa quanto à forma de apresentar as questões relativas às temáticas que elencamos para a pesquisa, o que se consolidou a partir de 1977, quando ocorreu nova transformação na revista, tanto em conteúdo, quanto em aspectos de sua materialidade, evidenciando que o grupo do CRT havia assumido definitivamente o controle editorial – o que se confirmou quando ainda em 1977 a direção foi formalmente assumida por um membro do CRT – levando a Buena Prensa (editora oficial da Cia de Jesus no México) a deixar de publicar a revista a partir de 1978, entregando-a à responsabilidade (autônoma frente ao episcopado) do próprio CRT.

Desta forma, interpretamos que a revista Christus entre 1971 e 1977 passou por uma transição paulatina na qual cada vez mais se dedicou à apresentação de textos analíticos do que à publicação de documentos oficiais, tornando-se uma revista voltada para análise socioteológica da realidade mexicana, e em menor medida latino-americana.

Tal transformação reflete no decrescente número de dioceses que a adotam como periódico oficial: em 1968 a Arquidiocese de Jalapa e mais vinte e nove dioceses empregavam Christus como boletim oficial; em 1971 esse número permanecia relevante, mas já havia diminuído para vinte dioceses, o que interpretamos como consequência das abertas críticas à inação temporal do clero mexicano; todavia, com as mudanças a partir de 1971 esse número caiu para apenas nove em 1973, gerando um duplo efeito, por um lado, abria a possibilidade para maior liberdade frente à hierarquia, por outro, diminuía a garantia de circulação da revista, obrigando a direção a buscar leitores em outros espaços para além do meio estritamente eclesiástico, o que a levou, num período posterior, a depender de redes de ativismo católico ligadas à Teologia da Libertação16.

Os setores intransigentes do catolicismo mexicano e a Companhia de Jesus

Segundo Roberto Blancarte (1992), a partir de meados da década de 1950, quando setores intransigentes retomaram o controle episcopal, a maioria dos grupos de opinião da Igreja mexicana estava convencida da necessidade de manter a separação Igreja-Estado, no entanto, não renunciava à posição (intransigente integral) de busca pela imposição de uma sociedade cristã: “En otras palabras: una sociedad cristiana con un estado laico, pero respetuoso a las Iglesias [...]” (BLANCARTE, 1992, p. 260). As diferenças entre os grupos quanto ao assunto eram táticas e, portanto – apesar de certas coincidências – não podem ser simplificadas em uma separação entre “direita” e “esquerda”.

A partir do início da crise do “regime revolucionário” mexicano na década de 196017, pode-se apontar uma divisão em três grupos principais: um primeiro, que se encontrava em vias de desaparecimento desde o início da crise e propunha restaurar a cooperação com o Estado nos moldes do período de vigência do Modus Vivendi, apontando que ele havia levado a Igreja de uma época de perseguição à outra de bonança; no outro extremo começa a surgir um grupo (que se tornaria muito ativo, porém nunca majoritário) que propunha o enfrentamento direto ao Estado, por interpretar o período do Modus Vivendi como sinônimo de cumplicidade da Igreja com as injustiças sociais; por fim, havia o grupo majoritário, que também acreditava na necessidade de acabar com identificação Igreja-Estado, mas encontrava-se “perdido” em meio à ebulição social do país e hesitava quanto aos meios para fazê-lo. Esse segundo e minoritário grupo, favorável à ação direta da Igreja frente às injustiças sociais, dividiu-se entre posicionamentos quanto às temáticas sociais que foram tornando-se cada vez mais radicais, chegando inclusive a defender o recurso às armas, e outros mais moderados, entre os quais Blancarte (1992) enquadra o jesuíta e comunicador social Enrique Maza.

Assim sendo, interpretamos que a linha editorial adotada por Christus desde a assunção do padre Enrique Maza à direção da revista em 1968 relaciona-se com grupos surgidos em função de transformações na Companhia de Jesus do México, que sentenciaram distintos rumos posteriores para a revista mexicana até seu rompimento definitivo com a hierarquia episcopal do país, em 1978.

O ano de 1965 constitui ponto de inflexão na Companhia de Jesus. Foi quando a ordem alcançou seu ápice quantitativo e, simultaneamente, foi “bafejada” pelos ares do aggiornamento18 Conciliar, o que se materializou com a eleição do padre Pedro Arrupe y Gondra como Prepósito Geral (COSTA, 2011, p. 79). Iraneidson Costa (2011, p. 91-92) defende que tais transformações são consequentes de um plano de renovação do apostolado social da Cia de Jesus, colocado em prática na América Latina a partir do final da década de 1950 e no qual se buscava transcender ao assistencialismo, posicionando-se no campo político em defesa dos trabalhadores e contrariamente ao capitalismo liberal, mas concomitantemente constituindo forma de combate ao “inaceitável comunismo ateu” e às “infiltrações” da ideologia marxista entre proletários e intelectuais.

As interpretações sobre a “Era Arrupe” são diversas, mas é inegável que suas diretrizes que incentivavam a ação social dos jesuítas em consonância com as orientações Conciliares do Vaticano II e em linha sociopolítica análoga ao que defendia o Papa Paulo VI em sua Carta Encíclica Populorum Progressio (que abordaremos mais adiante), logo geraram atritos, tanto advindos de setores contrários a tal tipo de politização, quanto de setores que paulatinamente foram se radicalizando em suas ações sociais e esperavam que o padre Arrupe as legitimasse. De maneira que, por motivos distintos, durante os anos do generalato de Pedro Arrupe (1965-1981) houve um encolhimento de um quarto do corpo da Companhia de Jesus, passando de aproximadamente 36 mil para 27 mil membros19.

No México, a Cia de Jesus foi dividida em duas Províncias entre 1958 e 1969. O padre Enrique Gutiérrez Martín del Ocampo foi quem regeu a Província Mexicana Meridional de 1967 a 1969 e, com a junção em uma única Província novamente, esteve à frente da Cia de Jesus mexicana a partir de 1969. Partindo das informações fornecidas por Luis G. del Valle Noriega (2011, p. 113-120) entendemos que a partir de 1968, após encontrar-se com o padre Arrupe em uma reunião preparativa para a Conferência de Medellín, o padre Enrique Gutiérrez procurou enquadrar o Apostolado Social nas diretrizes advindas tanto do seu superior hierárquico na ordem, quanto do Vaticano sob o papado de Paulo VI. Todavia, para tal empreitada, convocou um grupo de teólogos jesuítas, dentre os quais se encontram figuras que vieram a fundar o Centro de Reflexión Teológica (CRT), que vivenciaram um processo de radicalização de seus posicionamentos sociopolíticos.

Desta forma, interpretamos que o padre Enrique Maza foi colocado à frente de Christus com a missão de adequar a linha editorial às novas diretrizes da Companhia de Jesus, isto é, próximas aos posicionamentos que advinham do Vaticano sob o pontificado de Paulo VI. Para isto, Enrique Maza trouxe consigo como colaboradores parte destes mesmos teólogos convocados pelo Provincial Enrique Gutiérrez para assessorar o Apostolado Social da Companhia, entretanto, paulatinamente este grupo (que se radicalizava cada vez mais e assim entrava em conflito com a hierarquia episcopal, mas era relativamente respaldado pelo Provincial da Ordem até sua substituição no início de 1974), passou a controlar a revista, direcionando sua linha editorial para posicionamentos sociais que escapavam ao controle hierárquico episcopal e jesuítico mexicano.

Portanto, até meados da década de 1970 o público leitor principal eram membros do clero de diversas dioceses ao longo do território mexicano, mas, com suas paulatinas radicalizações, a revista, cuja grande distribuição era garantida por suas estreitas ligações com a hierarquia episcopal, vivenciou uma contínua perda deste público, cada vez sobrevivendo mais em função das motivações ideológicas de seus editores e, para sua manutenção, tornando-se dependente da circulação promovida por redes de ativistas católicos que, por outro lado, permitiram que a revista se tornasse uma referência para a intelectualidade ligada à Teologia da Libertação (VALÉRIO, 2012, p. 117-119).

Frei Enrique Maza e o “desenvolvimentismo cristão” da linha editorial de Christus entre 1968-1970

A partir de 1968, com a assunção de Enrique Maza ao controle da revista e frente à crise de estabilidade política que se instaurou com o movimento estudantil iniciado em julho20, o conteúdo de Christus paulatinamente começou a encaminhar-se em direção a preocupações sociopolíticas relativamente autônomas ao controle episcopal.

Optamos por incluir os editoriais da revista entre os textos a serem selecionados para análise, uma vez que (apenas para o período entre 1968 e 1970) são apresentadas opiniões editoriais. Interpretamos que isto ocorria em razão de que a revista era concebida como um órgão da Companhia de Jesus e ligado à oficialidade do Episcopado mexicano, o que configurava o editorial como espaço privilegiado para expressão de opiniões próprias e, muitas vezes, divergentes das diretrizes hierárquicas.

Interpretamos que há um debate nas páginas de Christus nesse período entre três posicionamentos: colaboradores com tendências antissistêmicas e aqueles com proposições mais moderadas, que se dividem entre a defesa de uma atuação social por parte da Igreja que se atenha ao âmbito da “conversão moral” e outra que advoga por uma participação mais ativa em prol da humanização do modelo de desenvolvimento adotado no México, sendo que há ampla vantagem (numérica e em destaques) para esta última, que claramente marcava a linha editorial adotada pela direção da revista21.

Em maio de 1968 a revista Christus publicou a “Carta Pastoral do Episcopado mexicano sobre el desarrollo y integración del país – En el Primer Aniversario de la Encíclica Populorum Progressio”. Tal documento é de fundamental importância para o pensamento quanto às transformações sociais e será retomado por diversos artigos na revista mexicana neste nosso primeiro período de análise.

A Carta do Episcopado visa apresentar uma proposta pastoral adaptada à realidade mexicana acerca do papel da Igreja no combate ao subdesenvolvimento, baseando-se nos apontamentos da Populorum Progressio22 ou seja, busca apresentar formas para colaboração com o desenvolvimento nacional, evitando os meios revolucionários marxistas/ comunistas. Todavia, para pensar essa realidade nacional percebe-se uma nítida apropriação dos posicionamentos de Pablo González Casanova (2009).

Nesse período, González Casanova havia publicado duas obras pioneiras quanto ao emprego do conceito de “colonialismo interno”: um artigo em 1963 e o clássico livro La Democracia en México (GONZÁLEZ CASANOVA, 2009), em 1965. Entendemos que nesses dois textos é possível interpretar o conceito sob uma perspectiva desenvolvimentista – o que foi posteriormente revisado pelo autor, que procurou torná-lo indissociável de um escopo antissistêmico marxista (GONZÁLEZ CASANOVA, 2006).

Em linhas gerais, o colonialismo interno é explicado como resultado da marginalização econômica, sociopolítica e cultural – característica das sociedades subdesenvolvidas (GONZÁLEZ CASANOVA, 2009, p. 89) – de parcelas rurais da sociedade, não integradas ao franco desenvolvimento técnico, econômico e educacional do país, o que no caso em foco caracterizaria a situação de comunidades indígenas por todo o México e estaria intimamente ligado a um preconceito étnico-cultural. Desta forma, González Casanova criou uma explicação dualista para a realidade social mexicana entre integrados ao desenvolvimento nacional e os marginalizados deste, caracterizando estes últimos como as vítimas de um processo colonialista exercido internamente e que se caracteriza como continuador das formas de exclusão, violência, dominação e exploração, anteriormente mantidas pela metrópole.

Na Carta Pastoral afirma-se que o México vive um processo de grande desenvolvimento em diversas áreas, que o aproxima a modos de vida dos países mais “avançados”, mas há desequilíbrios nesse desenvolvimento, faltando integração nacional:

[...] fenómeno que algunos llaman dualismo, el cual consiste en la yuxtaposición [...] de dos mundos o sectores de la población, en condiciones de vida completamente opuestas [...] Algunos expertos han hecho notar que existe en nuestro país, no solo dualismo, sino un verdadero colonialismo interno. Es patente, en efecto, que estos dos modos de vida [...] se dan relaciones de explotación de uno por el otro (CASTRO VILLAGRANA, 1968, p. 399, grifo nosso).

Apesar de não citado no documento, em algumas partes do texto são reproduzidos literalmente trechos do livro de González Casanova (2009). No entanto, toda ênfase fornecida por este ao preconceito étnico-cultural e exploração colonial interna dos indígenas no México apaga-se na Carta Episcopal, que se refere especificamente aos indígenas em um único parágrafo ao longo de todo o extenso documento. A meta apresentada na Carta é o rompimento com o desenvolvimento frio, desumano, puramente técnico-econômico, desequilibrado e imposto de cima para baixo, isto é, encomenda-se aos governantes e a todos os “homens de bem”, com o auxílio da Igreja, que o crescimento econômico seja combinado com ações sociais descentralizadas de saúde, educação e distribuição de renda, de modo a integrar o país e alcançar um desenvolvimento integral, no qual todos possam participar como responsáveis ativos e beneficiários.

Assim sendo, interpretamos que a linha editorial da revista neste período está atrelada ao “desenvolvimentismo cristão”, que possuía como um de seus elementos centrais a busca por reformas socioeconômicas profundas, mas recusando a identificação com vias armadas ou qualquer forma de socialismo/ comunismo. Contudo, em momento algum se preocupam em apontar sobre caminhos político-econômicos, uma vez que não abordam temas recorrentes no debate intelectual do período como, por exemplo, se este desenvolvimento poderia basear-se na entrada de capitais estrangeiros no país ou não.

Enrique Maza encabeça esse posicionamento com dois artigos e doze editoriais. Além dessa expressiva quantidade de editoriais tratando de questões sociais, um dos artigos está destacado na capa e o outro consiste em uma resposta sistematicamente crítica a um texto (provavelmente imposto pela hierarquia jesuítica) publicado na revista, ou seja, o redator usou sua posição para direcionar os posicionamentos sociais.

Em suma, seus textos defendem a busca por reformas sociais pacíficas, impulsionadas após pressões da opinião pública, animadas pela Igreja e empreendidas pelos governantes, constituindo-se na adoção de um novo modelo de desenvolvimento, mais humano (leia-se cristão), que incluísse uma contrapartida social (promoção humana integral para a dignidade humana)23 para além do mero assistencialismo e permitisse a participação das “massas populares conscientizadas” no processo de desenvolvimento nacional; desta maneira opondo-se ao modelo de desenvolvimento “neocapitalista liberal” estritamente técnico-econômico e excludente. A urgência da implantação de tal modelo é justificada como forma de evitar que as propostas violentas e comunistas prevaleçam, uma vez que o cenário social é injusto (violência institucionalizada)24, tornando-se insuportável para as “massas” – e nele a Igreja será identificada com os poderosos quando ocorrer a “iminente conscientização” dos marginalizados.

Nos textos de Enrique Maza, há uma insistência constante na necessidade de atuação sociopolítica direta da Igreja ao lado dos pobres e para além do assistencialismo, igualmente enfatizando suas diferenças para com o comunismo:

[...] ‘comunista’ dentro de nuestras estructuras, se está convirtiendo en sinónimo de‘sacar la cara por los pobres’,‘no estar de acuerdo con los privilegios de los ricos’, ‘no estar de acuerdo con las injusticias o las estructuras injustas’, ‘no estar de acuerdo con un estrecho capitalismo en que medran pocos y sufren muchos’, ‘exigir igualdad y justicia para todos’. Seguramente los comunistas deben estar felices con este significado de la palabra [...] callar es ser cómplice [...] en toda situación de violencia institucionalizada [...] No queda, pues, más camino que estar en favor o en contra de la situación injusta [...] Querer mantenerse apolítico en todo este caso es [...] tomar una posición política de complicidad. Cómoda, pero política. La disyuntiva es [...] en favor o en contra de la violencia institucionalizada [...] ¿De parte de quién estamos?” (MAZA, 1969, p. 1163-1164).

Toda essa aparente radicalização discursiva não significa que para o frei Enrique Maza a meta ou meios para as transformações não seja “desenvolvimento integral” por meio de reformas e convencimento pacífico. O autor faz a ressalva de que, em regimes latino-americanos nos quais se violam aos direitos humanos mais básicos (dentre os quais cita mais de uma vez o Brasil) estar-se-ia colocando em prática um compromisso social cristão com o pobre e oprimido que, não desejando a violência como meio para a mudança das estruturas injustas, rejeitaria soluções paliativas que somente logram a manutenção de uma situação insuportável. Todavia, a situação mexicana seria diferente e, apesar de também se caracterizar por enormes desequilíbrios econômicos e educacionais, demandaria que a Igreja, com base na Conferência Medellín e, sobretudo, na Carta Pastoral do Episcopado mexicano (reivindicada como base argumentativa em quase todos os seus textos), igualmente se tome partido pelos pobres e oprimidos, mas sem a exigência de mudanças tais quais imperam em ditaduras, fazendo-se necessário uma repartição mais justa, isto é, uma “humanização” (cristã) do desenvolvimento econômico-industrial.

Enrique Maza ainda aponta que considerar o mundo “capitalista liberal” como cristão é um erro, uma vez que nesse sistema vive-se em profunda imoralidade: “[...] hemos hecho de la civilización del hombre y de la religión, de la justicia y del amor, un mercado” (MAZA, 1970, p. 428), concluindo que a situação se encontra prestes a “explodir” e cabe à Igreja tomar posição, fora da perspectiva comunista, em favor da “dignidade humana” e, portanto, contra essa “mercantilização” do homem.

Interpretamos que as posturas de Enrique Maza refletem o esgotamento da estabilidade do regime político mexicano e o início de um não alinhamento crítico de setores da Igreja ao Estado, além do posicionamento conciliatório antirrevolucionário, anticapitalista e anticomunista, isto é, a posição (neo) intransigente defendida pelo autor.

Enrique Maza aponta o movimento estudantil25 como a reação de uma nova juventude politicamente consciente de sua dignidade humana, assim exigindo às autoridades a reforma de instituições frente a uma ordem injusta estabelecida e um estrangulamento dos canais de participação sociopolítica, o que não deixou alternativas de expressão aos estudantes a não ser a saída às ruas. Denuncia o absentismo da Igreja em meio a essa que “[...] há sido la lucha por libertad y justicia, y nosotros no participamos en ella” (MAZA, 1968, p. 1236), contudo previne que isto não significa que deva-se apoiar incondicionalmente aos manifestantes, uma vez que essa juventude que deseja a construção de um “mundo comunitário e fraterno”26, em meio a seu idealismo, facilmente se sente tentada à violência, sobretudo por conta desse posicionamento apolítico da Igreja, que não fornece lideranças cristãs à juventude, e assim sendo, as reivindicações legítimas do movimento estudantil em seu início (recusa a acusação corrente de que o movimento fosse comunista em suas raízes)27 foram parcialmente capitalizadas por grupos marxistas “terroristas” (com comunistas internacionais infiltrados) após a também “terrorista” reação do poder estabelecido, sendo necessário agora o estabelecimento de um meio termo via diálogo pacífico entre ambas as partes – orientado por uma Igreja ativa socialmente – caracterizando uma autêntica democracia.

O diretor de Christus ainda apresenta seu entendimento sobre os caminhos possíveis a serem estabelecidos no país após o movimento estudantil: uma ditadura apoiada pelos Estados Unidos; uma ditadura apoiada pela União Soviética (sob o risco de intervenção dos EUA); a continuação e endurecimento da “ditadura de partido do PRI”28 (o que seria apenas o adiamento dos problemas); e o termo médio – que consiste em sua proposta para o país: paulatinas reformas para o desenvolvimento e democratização política do México, com uma aliança “não colonialista” com os Estados Unidos, assim aproximando-se da América do Norte e afastando-se da América Latina (lócus do subdesenvolvimento no continente)29, acrescentando que: “La nueva civilización tendrá que tener rasgos de Occidente, con su capitalismo, y rasgos de comunismo [...]” (MAZA, 1968, p. 1249).

Apesar de colocar-se no papel de juiz das ações estatais ao tecer duras críticas ao caráter do regime instituído, chegando a empregar mais de uma vez o termo “ditadura de partido”30 e afirmando que o movimento estudantil marca uma ruptura na qual pela primeira vez os “de baixo” afirmam que as benesses democráticas resultantes da Revolução Mexicana não existem mais (MAZA, 1968, p. 1255), Enrique Maza não marca uma ruptura com o Estado, ressalvando que as reformas que o país necessita somente podem ser realizadas pelo governo federal e, ademais, afirma que tem havido grandes êxitos governamentais no que se refere ao desenvolvimento do país, sendo que problemas de tal magnitude não são passíveis de soluções abruptas sem provocar o caos, desta forma desqualificando as propostas de ruptura revolucionária.

Anticapitalismo cristão: 1971-1973

A partir de 1971 é nítida a ênfase anticapitalista assumida por Christus. O desenvolvimentismo foi praticamente descartado como solução e a teoria da dependência começou a surgir paulatinamente como ferramenta para compreensão da realidade vivenciada no México e na América Latina – o que em certa medida acompanha o desenrolar da Teologia da Libertação. Contudo, instaurou-se um debate entre a defesa de uma meta “anticapitalista cristã” – identificável ou não com um “socialismo humanizado” – intermediária entre o pecado capitalista e o comunismo da URSS, a ser alcançada sem recurso à violência; e uma minoritária opção radical, abertamente favorável às guerrilhas e ao socialismo, entendidos como parte da missão temporal cristã. Em razão do espaço, nos ateremos ao primeiro e majoritário posicionamento.

Interpretamos que a transformação a partir de 1971 foi impulsionada – para além da já mencionada crise de legitimidade do sistema político – pelo I Congreso Nacional de Teología: Fe y Desarrollo, que acabou por acirrar as disputas internas no seio da Igreja ao legitimar em território mexicano a tendência à radicalização latente entre alguns setores católicos, sobretudo ligados à Companhia de Jesus do país.

Diversos autores corroboram o I Congreso Nacional de Teología realizado em novembro de 1969 como marco desse acirramento interno na Igreja mexicana. No entanto, há um fator externo que também contribuiu para dividir a Igreja no período: o governo de Luis Echeverría (1970-1976)31 que, em resposta à crise do regime político, foi o primeiro presidente a adotar uma retórica de autocrítica ao sistema, o que convenceu muitos setores católicos, incluindo a maior parte do episcopado.

Todavia a divisão entre os posicionamentos frente ao Estado não pode ser confundida com a interpretação da doutrina social católica. Em termos ideológicos, o setor hierárquico aproximava-se mais do grupo que entendia o alinhamento com o Estado como compactuar pecaminosamente com a injustiça social, no entanto, as manifestações de radicalização de parte dos membros deste após o I Congreso de Nacional de Teología atemorizaram a hierarquia, o que acarretou na adoção de uma postura de “cooperação condicionada”, aprovando o governo Echeverría, mas fazendo exigências sociais e criticando aspectos do sistema, enquanto procurava lidar com as forças internas, buscando reestabilizar o poder decisório hierárquico, o que foi logrado a partir de 1973/ 1974.

Analisando as Conclusões do I Congreso Nacional de Teología (publicadas na revista Christus em fevereiro de 1970) é possível perceber que a“mão hierárquica” foi suficientemente forte para amenizar o tom radical que comumente atribui-se ao evento, tornando a maior parte do documento carregada de ambiguidades que possibilitam, em nosso entender, tanto interpretações “anticapitalistas”, quanto “reformistas”.

Para este artigo focaremos nas análises dos textos de um autor, que se destaca quanto à posição predominante da revista entre 1971 e 1973: Alfonso Castillo, colaborador fixo com seis textos elencados (três deles destacados nas capas), sendo quatro na seção La Iglesia en la Actualidad e dois na seção, La Iglesia en su Realidad Social.

Antes de adentrarmos os artigos entendemos que é importante elucidar alguns pontos acerca das guerrilhas ativas em território mexicano neste período. Após o “Massacre de Tlatelolco” em 1968 membros radicais remanescentes do movimento estudantil espalharam-se e começaram a organizar-se em alguns pontos do país. Tais grupos eram pequenos, comumente com menos de uma centena de membros, porém formavam organizações guerrilheiras bastante ativas. Jorge Castañeda (1994, p. 80-83) aponta as guerrilhas mexicanas como uma exceção para o período pós Revolução Cubana até meados da década de 1970 por dois motivos: primeiramente porque ao menos duas guerrilhas instauradas em rincões rurais do Centro e do Sul do México (que não lograram alcançar alianças com os grupos urbanos), inseridas em uma tradição de rebeliões camponesas armadas, apresentavam uma inserção popular-camponesa efetiva, o que as diferenciava dos demais focos revolucionários latino-americanos; e segundo porque, ao contrário do que ocorreu para com grupos de diversos países latino-americanos, o regime cubano – constantemente apoiado pela política externa dos sucessivos governos do PRI em diversas instâncias internacionais – não forneceu qualquer tipo de apoio aos revolucionários mexicanos, o que foi decisivo para seu isolamento e desarticulação.

De acordo com Roberto Blancarte (1992, p. 276), em muitos casos, principalmente nas zonas urbanas, as guerrilhas eram compostas por vários membros oriundos de movimentos estudantis católicos e que, decepcionados com aquilo que consideravam posições reformistas de suas organizações de origem, optaram por lançar-se à luta revolucionária, inclusive a Liga 23 de Septiembre, um dos mais destacados movimentos guerrilheiros urbanos do período, foi fundada com a participação de jesuítas insatisfeitos com os posicionamentos sociais de seus hierarcas.

Segundo Julio Scherer García e Carlos Monsiváis (1999), a resposta estatal veio com a instauração da chamada “guerra sucia” contra os grupos de esquerda, visando seu extermínio.O ápice desta“guerra suja”foi o novo massacre perpetrado contra uma manifestação estudantil e de trabalhadores na Cidade do México, ocorrido no dia 10 de junho de 1971, que deixou como saldo dezenas de mortos32 e é apontado como marco da instauração de um regime brutal de repressão aos grupos de esquerda no México, inclusive com recurso sistemático a técnicas de tortura, mantido ao menos até o início do governo do presidente José López Portillo, em 1977. Ademais, pode ser interpretada como símbolo da persistência de um regime político autoritário em território mexicano, que sistematicamente responde a seus questionadores de maneira repressiva e violenta.

Passemos às análises dos artigos. Alfonso Castillo comenta a denúncia feita pela Procuradoria da República a um grupo de dezenove membros do Movimiento de Acción Revolucionária (MAR), acusados de receber treinamento em técnicas de guerrilha na Coréia do Norte33 no intuito de impor um regime marxista-leninista no México. Segundo o autor, em seu depoimento os acusados negam que pretendessem derrubar o governo mexicano e, ao invés disso, afirmam que apenas visavam apresentar ao povo a ideia da possibilidade da mudança de sistema, “despertando a consciência nacional” para que assim o próprio povo optasse por realizar tal mudança. Todavia, Castillo aponta que as atitudes do MAR – assaltos, “adestramento” político-militar na Coréia do Norte, escolas de guerrilha em diversos pontos do país, roubo de armamentos do exército, entre outros – não se caracterizam como meios para apenas “despertar a consciência” popular, denunciando sua meta de ação: “A la violencia institucionalizada se enfrentan con la violencia armada, propiciadora de una mayor violencia institucionalizada” (CASTILLO, 1971a, p. 7) Por outro lado, o autor apresenta desconfianças quanto à afirmação da Procuradoria de que emprega somente medidas estritamente legais para combater estes grupos guerrilheiros:

A la violencia del Movimiento de Acción Revolucionaria, el gobierno responde con violencia. El gobierno también usa lo que la conduzca a su finalidad. Si ese medio es la tortura, pues la usa […] La violencia no es cristiana, ni evangélica, afirma Pablo VI. El que sigue Cristo, no se avergüenza de decir que […] prefiere la paz a la guerra […] Pero […] La auténtica paz tiene como condición la justicia. Paz que nunca se alcanza, pues la justicia siempre exige irse realizando en el tiempo, en la historia […] Responder con violencia a cualquier agresión violenta implica negar un valor clave. Destruir al hombre para salvar al hombre […] la pretensión del jefe del MAR, crear conciencia en el pueblo de la posibilidad de un cambio de sistema, es plenamente justa. Para crear esa conciencia la Iglesia siempre ha dejado clara su posición. Toda concientización […] deberá ver con profundo respeto a la persona humana […] Querer instrumentalizar y utilizar hombres es una de las graves tentaciones de los revolucionarios actuales […] (CASTILLO, 1971a, p. 8).

Desta maneira, Alfonso Castillo opõe-se aos meios armados porque, além de constituírem uma violência condenável por si só, geram respostas que aumentam a própria “violência institucionalizada”. Além disso, concorda que é necessário transformar o sistema, ou seja, nas entrelinhas assume uma posição anticapitalista, mas pautada no ideário escatológico cristão que recusa a busca por um futuro temporal definitivo e previamente conhecido, isto é, recusa o ideal utópico comunista, o que o leva ao entendimento da conscientização como atrelada à manutenção da dignidade do homem, que não pode ser tratado como mero instrumento para a ruptura revolucionária.

O autor também tece reflexões acerca da prisão de um bispo no Peru (Monsenhor Bambarén), em função de este ter celebrado missa para um grupo de “invasores” de propriedades estatais, mas que foi prontamente libertado, recebendo um pedido formal de desculpas do próprio presidente, Juan Velasco Alvarado34. Castillo afirma que a “revolução” e as medidas de expropriação petrolífera e reforma agrária do governo peruano geraram um clima de esperança e, apesar de ressalvar a falta de uma reforma política e insuficiência de esforços para resolver o problema habitacional que teria causado as invasões, justifica a ação de combate a estas como meio de evitar que se tornem algo sistemático e demonstra compreensão dos motivos que levaram ao encarceramento momentâneo do bispo, uma vez que este, ao celebrar missa, fez-se presente em meio a infratores da lei e “Aceptar una solo invasión seria dejar la puerta abierta para futuras acciones [...] Esto [misa] no conviene al gobierno porque significaría algo como consagrar la invasión” (CASTILLO, 1971b, p. 7-8).

Todavia, esse caso é abordado por Castillo no intuito de contrapor a forma de atuação do bispo peruano àqueles cristãos que defendem possuir como missão provocar a reflexão no homem acerca das estruturas ou sistemas injustos, não importando os meios empregados. Para Castillo isto é um erro, porque, frente às mudanças na ordem – inevitáveis para o caminho em direção à plena realização do Reino de Deus – a ação temporal da Igreja pode causar conflitos ao levantar sua voz contra quaisquer obstáculos impostos à salvação integral do homem, mas sempre visando à superação desses conflitos e não criá-los, pouco importando a “nobreza” das intenções finais, uma vez que não é papel da Igreja dividir, causar ódios, enfrentamento, destruição: “Nada más lejano de la palabra y de la vida de Cristo” (CASTILLO, 1971b, p. 8). Assim sendo, conclui que o bispo Bambarén cumpriu positivamente sua missão ao “[...] estar junto a un grupo de ‘violadores de la ley’, como son los invasores [...] fue una ocasión de manifestar los valores que Cristo vino a confirmar [...] Fue una expresión de solidaridad con los que no tienen techo. Un signo más de que la Palabra de Dios está viva” (CASTILLO, 1971b, p. 8).

Portanto, o autor aborda este caso no intuito de criticar os setores cristãos que defendem a “provocação de conflitos”, ou seja, as vias revolucionárias, ao mesmo tempo em que toma muitos cuidados quanto às críticas ao regime peruano – não vinculado oficialmente ao bloco comunista soviético – apontando timidamente sua falta de democracia, mas o saudando por suas reformas e medidas nacionalistas, interpretadas como signos positivos de um suposto caminho social inovador e anticapitalista.

Tratando do massacre ocorrido em 1971, aponta duas possibilidades: a imposição intransigente da lei e a conservação de uma ordem puramente externa, uma vez que colocada nas coisas materiais e não nas relações inter-humanas, em suma, uma “mano dura” comparável ao fascismo, aos EUA de Nixon e ao bloco marxista-leninista soviético (CASTILLO, 1971c, p. 7); ou o rompimento com a “ficção democrática” e o estabelecimento do diálogo entre o povo e o governo estatal, com liberdade para a busca de novos caminhos, em uma ação que “humaniza o homem” ao reconhecer as dúvidas, ao mesmo tempo em que respeita as leis sem encará-las como absolutas: “Ve en ellas el marco donde tenemos que movernos, pero exige que evolucionen [...] las instituciones son incapaces de cambiar radicalmente al hombre, a no ser que lo quieran destruir. En cambio, el hombre si es capaz de cambiar radicalmente las instituciones” (CASTILLO, 1971c, p. 7-8).

Alfonso Castillo apresenta também uma análise da “carta manifesto” do movimento Sacerdotes Para el Pueblo (SPP)35 apontando-o como voltado para a “salvação libertadora” de todo o homem, especialmente dos pobres e oprimidos, além de corroborar os argumentos da carta para “condenação radical” ao capitalismo, que coloca barreiras à necessária transformação da sociedade, mas, por outro lado, enfatizando que o documento do SPP não faz qualquer menção ao comunismo ou socialismo: “No quieren condenar fantasmas actuales, porque ya tenemos bastantes con los obstaculizadores reales de esa transformación” (CASTILLO, 1972, p. 7), o que entendemos que visa amenizar o implícito conteúdo de caráter pró-socialista dessa “carta manifesto” do SPP.

Seguindo essa mesma linha argumentativa, Castillo defende o SPP como um avanço para o meio eclesiástico mexicano e refuta totalmente as eventuais acusações de comunismo ao movimento, atribuindo-as à descrição insuficiente da nova sociedade que se propõem a contribuir para edificação e sugerindo que o façam de forma mais clara e com base nas Escrituras Sagradas. Ademais, para o autor o SPP não pode ser interpretado como comunista porque está: “[...] rechazando cualquier comunismo al afirmar qué nos parece imprescindible y urgente la constitución de una conciencia colectiva que lleve […] el pueblo mismo a la dinámica de la autodeterminación y autogestión por medio de la participación en las decisiones […]” (CASTILLO, 1972, p. 7-8), ou seja, nas entrelinhas percebe-se que Alfonso Castillo “força” sua leitura (neointransigente), que é tanto anticapitalista, quanto anticomunista, à carta do SPP, uma vez que identifica toda proposição comunista/ socialista como sinônimo de “totalitarismo” no qual inexiste participação popular.

Por fim, realiza uma análise da recepção do Encuentro Cristianos Por El Socialismo (ocorrido no Chile) pela grande imprensa mexicana, concluindo que: El Heraldo (diário com a segunda maior circulação no México, após Excélsior) centra-se apenas em acusações simplórias de “abominação marxista”, sempre se baseando na recusa pré-conciliar da ação temporal cristã, por interpretar a missão da Igreja como meramente ultraterrena, desqualificando o Encontro sem fundamentação e defendendo o capitalismo acriticamente, uma vez que partindo do pressuposto de que os problemas latino-americanos não são estruturais, mas relativos a ações e intenções individuais; enquanto Excélsior tece críticas que o autor considera “fundamentadas”, apontando que não fica claro o que se entende por socialismo, além de analisar que predominou no Encontro um “irrealismo” político e histórico, desconhecimento do marxismo, generalizações, entre outros.

Em síntese, podemos apontar que neste período da revista Christus predominam apropriações sociológicas de caráter marxista que permitem aos autores, a partir da priorização teológica do “pobre”36 como ponto de partida, identificá-lo com uma classe social oprimida que possui interesses antagônicos à classe no poder. Esta classe pobre/ operária, uma vez conscientizada (pelo catolicismo engajado), possuiria condições para protagonizar a transformação da sociedade, com a destruição do sistema capitalista, gerador da situação de “pecado institucionalizado”, passando, para maioria dos colaboradores, a um socialismo democrático e humanizado pelo cristianismo. Todavia, esse anticapitalismo nas páginas de Christus não implicava na aceitação de meios violentos, pelo contrário, a maior parte dos autores recusava as vias armadas guerrilheiras.

As mudanças a partir de abril de 1973 relacionam-se com a troca de comando na revista. O desligamento de Enrique Maza é explicado, no edital do próprio número de abril de 1973, como motivado por “questões pessoais”, todavia, Luis de Valle afirma que Enrique Maza entregou a revista às mãos dos teólogos da “tônica nova” que havia convidado como colaboradores, sendo que foi Alfonso Castillo – que como apresentamos anteriormente foi um dos fundadores e viria a ser o primeiro diretor do Centro de Reflexión Teológica (CRT) em 1975 – quem “[...] Se encarregó en la práctica del contenido de la revista Christus [...] Enrique Maza los dejó y pidió que ellos se encargaron de la revista. Lo hicieron. No podían al principio aparecer como tales y quién tomó ese cargo fué Xavier Cuenca”37 (VALLE NORIEGA, 2011, p. 313-314).

Interpretamos que a escolha da Buena Prensa pelo padre Xavier Cuenca como diretor foi uma estratégia no sentido de conter a radicalização dos posicionamentos sociais na revista, inserindo-se no bojo de tentativas análogas empreendidas no mesmo período tanto na Companhia de Jesus, quanto no Episcopado mexicano e no CELAM.

Assim sendo, passou a ocorrer certo diálogo (ou embate) nas páginas de Christus entre uma posição “moderada” e mais acorde às diretrizes vaticanas e da ordem jesuítica, à qual interpretamos a presença como lograda por interferência da direção do padre Xavier Cuenca, ou seja, da “mão” da própria Buena Prensa; frente a posicionamentos mais radicalizados, que alcançaram superioridade tanto no que se refere à quantidade de textos publicados, quanto na ocupação de espaços destacados na revista, o que atribuímos à “direção invisível” do CRT por meio da figura de Alfonso Castillo, que, ademais, a partir do número de janeiro de 1975 passou a ocupar o cargo de subdiretor de Christus. Embate este que, em razão do espaço, não abordaremos neste artigo.

Considerações finais: o legado político cristão

Atentando para o fato de que os setores católicos mexicanos que encamparam o aggiornamento – e suas radicalizações interpretativas que levariam à Teologia da Libertação – não receberam, em termos quantitativos e temporais, o mesmo respaldo ou, ao menos, a mesma tolerância hierárquica que a obtida em território brasileiro, interpretamos, seguindo a linha defendida por Daniel Levine e Scott Mainwaring (2001), que tais grupos vão alcançar menor êxito quantitativo e assumir um caráter mais pulverizado, adotando mais precocemente uma postura defensiva e dependente de redes ligadas à militância social católica. De tal forma, é possível pensar o pequeno grupo de teólogos ligados ao CRT, que paulatinamente assume o comando da revista Christus, como um (ainda que não o único) dos epicentros da Teologia da Libertação mexicana – especialmente quanto aquilo que se refere à produção de pensamentos sócio-teológicos.

Acompanhar o pensamento social que norteava o periódico mexicano nesses primeiros anos de nosso recorte temporal (1968-1973), nos permitiu analisar como importantes setores cristãos ligados ao aggiornamento traduziram para seu contexto nacional um ideal de “bem-comum” ligado ao conceito de desenvolvimento técnico-industrial, focando na necessidade da “humanização cristã” de tal desenvolvimento, ou seja, grosso modo, uma redistribuição social e regional, para o qual o próprio “sentimento cristão” teria papel fulcral, inclusive na medida em que impulsionaria a ajuda solidária dos ocupantes das posições políticas e econômicas de poder e dos próprios países centrais aos países em vias de desenvolvimento; e, em seguida, passaram para a predominância de interpretações, ligadas de diferentes formas, com as teorias da dependência econômico-estrutural dos países latino-americanos, o que, em última instância, apontava para a impossibilidade de um desenvolvimento capitalista autônomo e socialmente humanizado ou, ao menos, para limitações inerentes a tal desenvolvimento em tais estruturas dependentes. Tudo isto levou a diversas e criativas formas de se pensar e conciliar o cristianismo como essa necessidade, implícita ou explícita, imperativa ou limitadamente contornável, de se romper com o “pecado estrutural” que assolava a região.

Refletir acerca de tais possibilidades históricas desenvolvidas pelo pensamento social cristão nos remete a algumas posturas defendidas pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek. Em “O absoluto frágil”, Zizek (2015), mantendo sua perspectiva de realizar críticas a partir das próprias bases dos objetos analisados, propõe que, ao invés de se “tolerar” as crenças religiosas cristãs (focalizando aquilo que chama de retorno de obscurantismos e fundamentalismos) desde que estas se mantenham afastadas de interferências no âmbito sociopolítico público, se cobre, pelo contrário, o conhecimento, reflexão e ação ligados aos próprios fundamentos e legados de suas crenças religiosas:

Contra a velha calúnia liberal que traça um paralelo entre a noção cristã e a marxista “messiânica” de história como processo final de libertação dos fiéis [...] não deveríamos destacar que isto só funciona para o marxismo “dogmático” ossificado, e não para o seu núcleo libertador? [...] nossa premissa aqui é exatamente o oposto: em vez de adotar uma posição tão defensiva [...] o que devemos fazer é inverter a estratégia, defendendo plenamente aquilo de que somos acusados: sim, existe uma linhagem direta entre cristianismo e marxismo; sim, o cristianismo e o marxismo deveriam lutar do mesmo lado da barricada contra o furioso ataque dos novos espiritualismos – o legado cristão autêntico é precioso demais para ser deixado aos fanáticos fundamentalistas (ZIZEK, 2015, p. 27).

Entendemos que – tal qual intentamos realizar neste artigo – analisar e apresentar aspectos da história recente do ideário sociopolítico cristão/ católico, sobretudo em países com os maiores contingentes de pessoas que se declaram católicas, casos de Brasil e México, pode servir como base para estas reflexões e diálogos propostos por Slavoj Zizek.

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Notas

1 João Batista Libânio (1999) afirma que tal produção é abundante ao ponto de tornar o desafio de acompanhá-la impraticável para um único leitor.
2 Por exemplo: essa interpretação da Teologia da Libertação como “reflexo e reflexão” acerca de um amplo movimento social que a precedeu foi construída por Leonardo Boff e replicada de forma relativamente acrítica mesmo em uma obra fundamental sobre o tema como a de Michel Löwy (2000).
3 Raúl Prebisch – Secretário Executivo da Comissão Econômica Para América Latina e Caribe (CEPAL) entre 1949 e 1963 – foi um dos mais destacados autores a fornecer as bases das teorias desenvolvimentistas, entre outros pontos, defendendo que há uma desigualdade entre exportadores de bens manufaturados e exportadores de bens primários (países do “Terceiro Mundo”), frente à qual são necessárias, por parte dos governos destes últimos, intervenções na infraestrutura de seus países para o estabelecimento de um novo padrão de desenvolvimento que leve à industrialização e difusão dos progressos técnicos e seus frutos.
4 Optamos por falar em teorias da dependência, no plural, por entendermos que a partir de meados da década de 1960 iniciou-se um amplo debate em diversos meios intelectuais latino-americanos sobre a dependência, no qual havia uma disputa entre distintas interpretações, sendo que Theotônio dos Santos (2000) traça uma divisão entre “neomarxistas”, dentre os quais, entre outros, inclui a si próprio, Vânia Bambirra e, talvez como maior expoente, Ruy Mauro Marini; autores que se encontravam fora da tradição dialética marxista, cujo principal destaque é André Gunder Frank, que propõe um esquema estático de expropriação internacional (sintetizado na interpretação de que o desenvolvimento capitalista nos países dependentes não passa de um desenvolvimento de sua situação subdesenvolvida), o que o separaria do enfoque dialético dos neomarxistas; e por fim, aqueles que T. dos Santos denomina como marxistas ortodoxos – mas que o Fernando Correa Prado (2011) coloca fora do âmbito marxista e Cláudia Wasserman (2009) classifica como “etapistas” – cujos representantes seriam Enzo Faletto e, sobretudo, Fernando Henrique Cardoso, que aceitam o papel positivo do desenvolvimento capitalista e, implicitamente, a impossibilidade de uma ruptura socialista em curto prazo na América Latina, posição consagrada em obra clássica de 1970 (CARDOSO; FALLETO, 1984) que, grosso modo, defende a possibilidade de expansão e diversificação econômica em um“desenvolvimento desigual e combinado” a partir do conhecimento das condições históricas concretas e específicas da situação de dependência estrutural em cada país e consequente ação do Estado. De acordo com Fernando C. Prado (2011), ao contrário do que passou na maior parte dos meios intelectuais latino-americanos – o que inclui o caso mexicano, onde Ruy M. Marini exilou-se em 1965, passando para o Chile entre 1971 e 1973 e retornando ao México em 1974 para lecionar na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) – no meio intelectual brasileiro a teoria da dependência ganhou espaço, com o já citado livro de Cardoso e Falleto (1984), apenas a partir de 1970 e ademais, o debate entre as distintas posições foi nulo ou distorcido, centrando-se na perspectiva defendida por Fernando H. Cardoso, uma vez que os outros autores permaneceram pouco conhecidos no Brasil em razão da censura e suas ideias apenas chegavam através de filtros produzidos por meio de artigos de Cardoso que tiveram ampla circulação e resumiam as outras proposições ligadas à teoria da dependência afirmando, entre outros pontos, que para estas não era possível qualquer tipo de desenvolvido capitalista nos países dependentes, aos quais sobrava apenas a busca pela ruptura com o sistema socioeconômico vigente, posição que Prado entende ser possível atribuir categoricamente apenas a André G. Frank.
5 O então sacerdote Alfonso López Trujillo – notoriamente identificado como defensor de posturas consideradas conservadoras em temas sociopolíticos e, sobretudo, morais – pouco antes de assumir o cargo de Secretário-Geral do CELAM havia sido nomeado pelo papa Paulo VI como bispo auxiliar da Arquidiocese de Bogotá (Colômbia), em 1970. O episcopado colombiano foi dos mais unanimemente refratários à Teologia da Libertação (LEVINE; MAINWARING, 2001).
6 Esta identificação com o comunismo empreendida pela Igreja mexicana – e até mesmo pelo Vaticano com o Papa Pio XI (1922-1939) – em grande medida devia-se aos fortes estímulos fornecidos pelo presidente Lázaro Cárdenas (1934-1940) à educação laica e, inclusive, apoiada em uma terminologia socialista.
7 Roberto Blancarte (1990, 1992), a partir das bases apontadas por Émile Poulat (1977), propõe uma análise de longa duração das relações entre Igreja e Estado no México pós-revolucionário, grosso modo, afirmando que desde os arreglos – que colocaram fim à Guerra Cristera em 1929 – a Igreja mexicana foi controlada por grupos católicos “intransigente integrais”, que se caracterizavam pela exaltação da tradição e rechaço ao presente, ideal de uma sociedade organizada em corpos e associações, rechaço ao individualismo, socialismo e liberalismo político, econômico e religioso, etc., configurando um projeto que buscava reverter o processo de secularização, recuperando o espaço social, sobretudo entre os operários, ambicionando converter novamente as massas a uma sociedade regida por princípios cristãos, não importando o tipo de governo, assim colocando-se em oposição ao liberalismo ou socialismo de acordo com as circunstâncias. A partir de 1938 a Igreja mexicana passou por um momento excepcional em sua história, uma vez que grupos transigentes pragmáticos assumiram seu controle, o que levou a uma relação de Modus Vivendi (acomodo entre duas partes em litígio) com o Estado, que começou a ser rompido a partir de 1950, quando paulatinamente os grupos intransigentes voltaram a assumir o controle hierárquico mexicano.
8 Em decorrência do impulso produzido pelo Concílio Vaticano II, em 1966 convocou-se a Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino Americano, realizada em 1968, em Medellín (Colômbia). Entre 1966 e 1968 houve uma eclosão de declarações, documentos e reuniões realizados como preparativos. Foi a partir desses preparativos que as teorias da dependência começaram a se impor como uma alternativa ao desenvolvimentismo, por meio de especialistas que auxiliavam os bispos. Todavia, os documentos finais da Conferência de Medellín são plurais, em decorrência das influências distintas que recaíam sobre a Igreja católica latino-americana do período. No que tange às questões sociais e econômicas, o conteúdo da carta encíclica Populorum Progressio predominou como base para a maior parte dos documentos. Por outro lado, as posturas que foram mais assimiladas pela embrionária Teologia da Libertação foram as que enfatizavam a sistêmica dependência latino-americana e propunham formas radicais para seu rompimento e, ao invés de encomendarem a solução dos problemas a ações provenientes da solidariedade e caridade dos mais favorecidos, focavam em diversas formas da Igreja contribuir para a libertação material e espiritual dos mais pobres, muitas vezes identificando-a com a ruptura dessa dependência estrutural.
9 Tal peculiaridade é referente às relações históricas do Estado mexicano com a Igreja católica, o que não cabe aqui abordar.
10 A palavra “pobre” aparece 38 vezes nos documentos do Concílio Vaticano II (CORTEN, 2004, p. 305), contudo foi com a retomada empreendida pela Teologia da Libertação que o termo passou a ser um conceito central. Por outro lado, a Teologia da Libertação, para além de certas características comuns, não se constituiu enquanto doutrina única, homogênea. Desta forma, segundo João Batista Libânio (1999), o conceito de pobre podia ser pensado de maneiras diversas, desde o objeto a partir do qual se constrói a teologia até como o sujeito da transformação da sociedade e da Igreja, ou seja, os protagonistas das emancipações, o que na “primeira fase” majoritariamente revolucionária comumente se confundia com “operariado” ou “classe operária”, mas posteriormente, com o direcionamento do foco para bases comunitárias a partir da perda do poder diretivo no CELAM, em meados da década de 1970, somado ao recuo das esperanças em rupturas sistêmicas imediatas em um momento de retração da “onda revolucionária” na América Latina em período aproximado (MARTÍN ÁLVAREZ; REY TRITÁN, 2012), começou-se a ultrapassar este tipo de identificação, sobretudo quando se iniciou a incorporação efetiva de questões ligadas à discriminação étnicas, de gênero, etc.
11 Enrique Maza nasceu em El Paso, em 1929. Em 1945 ingressou na Cia de Jesus e em 1959 decidiu tornar-se jornalista, seguindo o conselho do então padre Pedro Arrupe, o que o levou a cursar (1959-1962) uma prestigiada Universidade de Jornalismo, no Missouri (Estados Unidos). Regressando a seu país tornou-se colaborador do maior jornal do período, Excélsior e entrou para a equipe editorial da revista Christus, até assumir sua direção em 1968. Em 1976 fez parte da equipe que fundou a revista Proceso, que fazia oposição ao stablishment e possuía grande circulação, chegando a vender mais de cem mil exemplares semanais na década de 1970, o que a configurava como a revista de maior circulação no México.
12 A revista Christus segue sendo publicada e reivindicando sua ligação com a Teologia da Libertação, longevidade atípica que evidencia a importância que ocupava em seu meio, uma vez que, de acordo com Pablo Rocca (2007, p. 6), revistas somente se mantêm por longos períodos caso consigam, entre outros fatores, estabelecer um projeto editorial e, consequentemente, um público (que podem – projeto e público – modificar-se ao longo tempo), o que por si constitui um fator indicativo de sua relevância.
13 Regina Crespo (2010, p. 12), na Introdução da obra “Revistas en América Latina”, aponta a obra de Tania Regina De Luca (1999) sobre a Revista do Brasil como um dos trabalhos “ilustrativos” do desenvolvimento recente das pesquisas dedicadas à análise de publicações periódicas literárias e culturais. Entendemos que as reflexões de Tania de Luca partem e aprofundam orientações apresentadas em diversas obras de Roger Chartier, por exemplo, no artigo “O mundo como representação” (CHARTIER, 1991).
14 Para tal observação a consultar da própria Tese de Doutoramento, que se encontra com acesso eletrônico livre (ANDREO, 2015).
15 Alfonso Castillo Sánchez Mejorada nasceu na Cidade do México, em 1944. Ingressou na Companhia de Jesus em 1962. De 1964 a 1968 e de 1970 a 1974 obteve, respectivamente, licenciatura em Filosofia e Teologia, ambas pelo Instituto Libre de Filosofia, também na Cidade do México. Atuou como professor de Filosofia no Montezuma College, Nuevo México (EUA), de 1968 a 1970. Foi ordenado sacerdote em 1974, quando passou a ministrar aulas no mesmo instituto de teologia no seio do qual teve origem o Centro de Reflexión Teológica, sendo seu primeiro diretor quando ocorreu a fundação oficial em 1975 e até 1979. De Janeiro de 1975 a outubro de 1977 foi subdiretor de Christus, sendo que de acordo com Luis del Valle (2011, p. 313) em grande medida já era responsável pelo conteúdo da revista, assumindo o cargo de diretor a partir de novembro de 1977 até agosto de 1979, mesmo ano no qual abandonou a ordem jesuíta e o sacerdócio, motivado por fatores institucionais e pessoais: por um lado, em razão da acentuação dos conflitos e consequentes impedimentos diversos impostos a colaboradores de Christus e membros do CRT pela hierarquia mexicana e do CELAM, sobretudo no que se refere à organização e debates para o III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada ainda em 1979 em território mexicano (Puebla) – inclusive o próprio Alfonso Castillo não foi credenciado para participar do evento; e por outro, em função do início de seu relacionamento com sua futura esposa, Cecilia López, com quem publicou conjuntamente uma obra no início da década de 1980, na qual descrevem essa visão (que tende à maniqueísmos) de uma situação de antagonismo entre o episcopado e o setor “progressista” da Igreja católica no México (ARIAS; CASTILLO; LÓPEZ, 1981). Parte das informações acerca de Alfonso Castillo foi fornecida em entrevista realizada pelo autor via correio eletrônico (09/04/2014).
16 Para exemplificar brevemente tal transformação, aponta-se que o outro periódico abordado em nosso estudo, isto é, a brasileira e franciscana Revista de Cultura Vozes, a partir de 1975 – quando sua linha editorial passou a ser dominada pelo pensamento do então frei Leonatdo Boff, notório expoente da Teologia da Libertação – passou a indicar o recebimento de alguns números da revista Christus em sua redação.
17 Os preparativos para Conferência de Medellín (iniciados em 1966) levaram ao nascimento de grupos “neointransigentes pós-conciliares” em território mexicano, que foram respaldados por este contexto de instabilidade do regime político, cujo clímax foi o movimento estudantil de 1968, a partir de quando a Igreja mexicana passou a se colocar não contra ou favor do Estado a priori, mas como juíza das ações do Estado (BLANCARTE, 1992, p. 203-294).
18 Termo italiano, cuja tradução aproximada seria “estar em dia”, empregado pelo Papa João XXIII para expressar os intentos de que o catolicismo se “atualizasse” por meio do Concílio Vaticano II (1962-1965), adequando-se às realidades vivenciadas no “mundo moderno”.
19 A radicalização política de alguns setores jesuítas durante a “Era Arrupe” é inegável ao ponto de alguns críticos ferrenhos da Teologia da Libertação apontarem seu surgimento como desencadeado na Cia de Jesus, como é o caso de Ricardo de Cierva (1986), que dedica mais de quinhentas páginas a “desmascarar” a infiltração comunista na Igreja católica por meio de sacerdotes jesuítas ou Martin Malachi, que denuncia a “traição jesuítica” que permitiu a entrado do “mal”, isto é, do “comunismo ateu” no seio da Igreja, ocultado como “renovação moderna” nos manuais da Teologia da Libertação (COSTA, 2011, p. 89-90).
20 Soledad Loaeza (2013, p. 87-92), defende que, apesar de o México não ter se tornado uma ditadura no século XX, o sistema político estruturado após a Revolução Mexicana apresenta traços que permitem defini-lo como um regime autoritário, marcado, por um lado, pela concentração de poder que restringe o acesso ao poder político aos membros de um único partido estreitamente vinculado ao Estado (PRI); e por outro lado, pela limitação da participação, tanto em âmbito eleitoral, como dos canais para expressão das demandas sociais, cooptadas e incorporadas por meio de organizações controladas pelo próprio Estado. Desta forma, desde institucionalização da Revolução Mexicana se havia logrado a manutenção de grande consenso interno, até o final da década de 1950 quando, no bojo da reconfiguração das esquerdas na América Latina (KATZ, 2004), paulatinamente criou-se um ambiente de questionamentos cujo clímax foi o movimento estudantil de 1968, desencadeando uma crise de legitimidade do sistema político mexicano.
21 Em razão do espaço, neste artigo nos ateremos às análises relativas a este posicionamento preponderante.
22 Existem cinco textos de autoria do Papa Paulo VI em Christus neste período, todavia entendemos que estes não se diferenciam substancialmente de seus posicionamentos apresentados na Carta Encíclica Populorum Progressio (PAULO VI, 2014), lançada em 1967 e na qual interpretamos que o desenvolvimentismo, lido através de uma lente cristã antiliberal, mas também anticomunista, aparece como cerne das reflexões acerca das questões sociais. Em linhas gerais, as proposições sociopolíticas neste documento apresentam-se como a colocação de limites ao livre-mercado, à busca do lucro como fim em si mesmo, à fortuna desmedida e, até mesmo, ao direito de inviolabilidade absoluta da propriedade privada, defendendo que todo direito deve subordinar-se ao combate ao subdesenvolvimento, à garantia da subsistência e aos instrumentos para o desenvolvimento humano integral, isto é, coletivo e individual, e contemplando as áreas do econômico, social, político, cultural/ educacional e religioso. É possível enquadrar essas propostas como uma via que procurava colocar-se, em nítida chave de leitura modernizadora desenvolvimentista, entre, por um lado, um liberalismo sem limites e praticado em uma situação desigual entre países desenvolvidos, produtores de bens industrializados em constante valorização, e países subdesenvolvidos, exportadores de matérias-primas que não alcançam a mesma velocidade de valorização no mercado internacional,assim causando desigualdades e miséria; e por outro lado,opções marxistas revolucionárias, explicadas como um “mal” que somente ganhava força devido a esta situação injusta. Além disso, é a busca pela solidariedade universal que se apresenta como solução: reformas “profundas e urgentes” são afirmadas como necessárias para o alcance de tal desenvolvimento integral, mas são encomendadas como dever a ser cumprido por todos os “homens de bem”, sobretudo aos governantes e organizações que negociam as relações internacionais e aos que detém qualquer tipo de poder ou riqueza.
23 “Promoção humana”, “dignidade humana” e “desenvolvimento integral” são termos chave constantemente retomados pelos autores do meio eclesiástico “neointransigente” ao defenderem este tipo de posicionamento “reformista cristão” como forma de contraposição ao “totalitário comunismo ateu”, que esmaga as liberdades individuais, e ao tecnicismo do capitalismo liberal, meramente preocupado com um crescimento econômico, ainda que regional e socialmente desequilibrado e imposto de cima para baixo.
24 “Violência institucionalizada” é um termo impreciso, empregado com diferentes significados (nem sempre explicitados), que foi consagrado nas análises sociais do meio eclesiástico na Conferência de Medellín (1968) e apropriado por autores ligados à Teologia da Libertação, que comumente o associavam ao termo “pecado estrutural” e empregavam-no explicar a necessidade de ruptura com o status quo.
25 De acordo com Carlos Monsiváis (2012), o movimento estudantil mexicano de 1968 iniciou-se, em cores ideológicas múltiplas, como reivindicação por direitos humanos e civis, exigindo uma autocrítica estatal frente ao autoritarismo, assim demarcando a perda da legitimidade e estabilidade política inabalável que caracterizava o Estado mexicano instaurado após a Revolução. Para Monsiváis foi uma reivindicação ética, dentro dos marcos jurídicos legais, com consequências políticas e não o contrário, e que, frente à violenta reação governamental desembocou em uma grande insurreição moral e antiautoritária, com amplo apoio e participação da opinião pública. O ápice e marco simbólico do movimento e da repressão governamental foi o “Massacre da Praça das Três Culturas”, localizada na região de Tlatelolco, na Cidade do México, ocorrido no dia 2 de outubro de 1968, quando uma grande manifestação encabeçada pelo movimento estudantil foi rebelada pelas forças estatais, deixando um saldo de dezenas de mortos.
26 Enrique Maza enxerga no movimento estudantil seus próprios anseios com traços (neo) intransigentes.
27 O discurso do presidente Gustavo Díaz Ordaz (1964-1970) no intuito de legitimar o autoritarismo e violência para com o movimento estudantil e outros movimentos sociais mexicanos do período baseava-se na acusação de que estes se orientavam por infiltrações ideológicas exteriores (implícita ou explicitamente relacionadas ao “marxismo comunista”), frente às quais a “suscetível” juventude estudantil estava mais propensa a ser afetada, mas que não condiziam à realidade sociopolítica histórica do país, atípica por ser resultante das conquistas e institucionalização da Revolução Mexicana (JASO GALVÁN, 2014, p. 118-137).
28 PRI é a sigla para o Partido Revolucionário Institucional, fundado em 1929 sob outra nomenclatura e em cujo seio a Revolução Mexicana foi institucionalizada modelando o sistema político e o Estado no México do século XX (AGUILLAR CAMÍN; MEYER, 2000). O PRI manteve-se no controle do Estado por vias democráticas – porém muitas vezes enfrentando sólidas acusações de fraudes eleitorais – até o ano de 2000.
29 Este tipo de visão católica favorável a não aproximação do México ao restante dos “subdesenvolvidos” países da América Latina possui relações com o isolamento que a maior parte da Igreja mexicana manteve frente ao clero dos outros países do subcontinente, ao menos até o início dos preparativos para a Conferência de Medellín, por entender que sua trajetória histórica era peculiar e interessar-se mais em sanar seus problemas internos para com o Estado mexicano.
30 Mais de duas décadas antes da célebre caracterização de Mario Vargas Llosa acerca do sistema político mexicano como uma “ditadura perfeita”.
31 Em dezembro de 1970, Luis Echeverría Alvarez assumiu a presidência do México, adotando posturas interpretadas por alguns autores como “neopopulistas” (MOGUEL; LÓPEZ, 1990, p. 321-376; GONZÁLEZ GOMES; GONZÁLEZ GOMES, 2012, p. 176-192), caracterizadas por um discurso “reformista” que o diferenciava radicalmente de seu antecessor na presidência, Gustavo Díaz Ordaz (1964-1970). Por outro lado, o governo Echeverría mostrou-se continuador do autoritarismo e o êxito de suas ações nacionalistas foi pouco efetivo.
32 Da mesma forma que ocorre para o caso do massacre de 1968, as estimativas quanto ao número de mortos nas manifestações de 1971 variam muito, indo de doze até mais de uma centena. Além disso, no ano de 2004, Luis Echeverría tornou-se o primeiro ex-presidente na história moderna mexicana a enfrentar um indiciamento (aos 82 anos), acusado de ser o responsável pelas ações praticadas pelo grupo paramilitar de elite “Los Halcones”, que empreendeu a ação repressiva resultante no massacre de 1971.
33 Jorge Castañeda (1994, p. 83) aponta que os norte-coreanos, em meio ao hiato deixado pela não ingerência cubana, foram os únicos a algumas poucas vezes fornecer auxílios aos guerrilheiros mexicanos.
34 Neste período o Peru era presidido pelo Comandante Geral do Exército, General Juan Velasco Alvarado, que havia liderado o golpe protagonizado pela Junta Militar que, em 1968, derrubou o presidente Fernando Balaúnde Terry. Ao contrário dos outros regimes militares latino-americanos, após assumir o poder Juan Velasco Alvarado, apesar de manter uma retórica oficial de não alinhamento “nem com o capitalismo, nem com o comunismo”, aproximou-se ao bloco soviético e implantou medidas políticas de cunho nacionalista, com destaque para a expropriação das companhias petroleiras estadunidenses e a nacionalização de outros setores da economia, sobretudo a estatização da atividade pesqueira, além de uma tímida reforma agrária, todavia acompanhadas de fortes restrições à liberdade de imprensa.
35 Em tal manifesto afirma-se que o movimento objetiva a construção de uma nova sociedade no México, não com a participação do clero no poder, mas sim a do povo. Os autores afirmam opor-se radicalmente ao capitalismo pelas seguintes razões: sua economia organiza-se em função do lucro e monopólio de riquezas, escravizando os que são obrigados a vender sua força de trabalho, defendendo a apropriação privada dos bens de produção e, assim, dividindo a sociedade em classes opressoras e oprimidas, ademais, em “[...] nivel internacional origina la dependencia imperialista que sufren los países subdesarrollados, cada vez más invadidos por empresas ‘multinacionales’” (CHRISTUS, 1972, jun., p. 44). O SPP não se assume socialista ou revolucionário, tampouco apresenta quais seriam os meios válidos para a construção dessa nova sociedade. Por outro lado, sua análise do capitalismo mexicano denuncia o recurso ao pensamento marxista, inclusive com a breve passagem acerca das relações internacionais baseando-se nas teorias da dependência.
36 Conferir a nota de rodapé número 9.
37 Xavier Cuenca Cortina nasceu na Cidade do México em 1932 e faleceu em 2004. Ingressou na Cia de Jesus em 1949 e foi ordenado padre em 1964. Foi colaborador da Unión de Mutua Ayuda (UMAE), pastoral em conjunto entre diversas dioceses do México que enfatizava a atuação social a partir das orientações “reformistas”.
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