Sociedades científicas

A malandragem no país da ditadura: humor, deboche e política no cinema realizado por Hugo Carvana

To be a rogue in the country of the dictatorship: humor, mockery and politics in the movies made by Hugo Carvana

Reinaldo Cardenuto
Universidade Federal Fluminense, Brasil

A malandragem no país da ditadura: humor, deboche e política no cinema realizado por Hugo Carvana

Antíteses, vol. 12, núm. 23, pp. 602-630, 2019

Universidade Estadual de Londrina

Recepção: 14 Abril 2019

Aprovação: 11 Junho 2019

Resumo: Em 1973, após consolidar-se profissionalmente como ator, Hugo Carvana lançou-se à direção de filmes. Propondo um estilo de criação a aproximar heranças artísticas distintas, as chanchadas carnavalescas e o engajamento do Cinema Novo, o cineasta voltou-se para a realização de longas-metragens humorísticos, de comicidade debochada, nos quais estabeleceu leituras críticas ao Brasil da ditadura militar. Influenciado pela dramaturgia de Vianinha, na perspectiva de desnudar contradições sociais presentes no país, Carvana construiu uma filmografia popular, inserida na indústria cultural, a demarcar oposições aos valores do universo burguês. Redigindo roteiros em parceria com Armando Costa, o cineasta dirigiu na década de 1970 as obras Vai trabalhar, vagabundo (1973) e Se segura, malandro (1978), nas quais exercitou uma recusa irônica à ideologia conservadora vinculada ao progresso capitalista e à ética do trabalho. Por meio de um elogio à vigarice e à “boa” malandragem, tratadas como resistência criativa dos desvalidos aos desmandos autoritários, seus filmes propuseram uma abordagem romântica em torno da classe popular, representado-a como orquestradora de um desvio irreverente ao aburguesamento do mundo. Celebrando a sagacidade do povo, Carvana fez do riso um instrumento de refutação às hierarquias sociais, compondo painéis satíricos a expor o mal-estar vivido pela sociedade brasileira em tempos ditatoriais.

Palavras-chave: Hugo Carvana, Ditadura militar brasileira, Cinema brasileiro, Humor político, Arte de engajamento.

Abstract: In 1973, after consolidating himself as a professional actor, Hugo Carvana started directing movies. Proposing an approximation between two different artistic heritages, the film genre of the “chanchadas” and the Cinema Novo movement, the filmmaker made humorous feature films, debauched comedies, in which he established critical readings to Brazil of the military dictatorship. Influenced by the dramaturgy of Vianinha, in the perspective of undressing social contradictions present in the country, Carvana developed a popular filmography, inserted in the cultural industry, in which he opposes the values of the bourgeois universe. Writing their screenplays in partnership with Armando Costa, the filmmaker directed, during the 1970s, the movies “Vai trabalhar, vagabundo” (1973) and “Se segura, malandro” (1978), in which he proposed an ironic refusal to the conservative ideology in defense of capitalist progress and the work ethic. Through a compliment of cheating and “good” trickery, treated in his movies as a resistance of the poor to authoritarian forces, Carvana developed a romantic approach to the popular class, representing it as an irreverent detour to bourgeois ideology. Celebrating the wit of the poor people’s, the filmmaker found in humor a way of refuting social hierarchies, thus exposing the malaise of Brazilian society during the dictatorship.

Keywords: Hugo Carvana, Brazilian military dictatorship, Brazilian cinema, Political humor, Art of engagement.

Um projeto de cinema popular1

Antes de dirigir seu primeiro filme, Hugo Carvana foi, por quase duas décadas, ator em várias obras teatrais e cinematográficas. De 1955, quando estreou em Trabalhou bem... Genival!, de Luiz de Barros, até 1959, ano em que participou do longa-metragem Pé na tábua, de Victor Lima, a trajetória de Carvana foi predominantemente marcada pela interpretação de pequenos papéis no gênero musical da comédia carnavalesca. Contratado para trabalhar em produções de cineastas como Carlos Manga e Aloísio de Carvalho, participando de oito filmes realizados no período por Watson Macedo, o artista emprestou seu corpo e sua gestualidade para diversas atuações como figurante. Sobretudo com a função de preencher a cena dramática a partir de papéis sem fala, algo que raramente concedia o direito contratual de ter o nome nos créditos das produções, Carvana surgia nos longas-metragens em aparições fugazes, pontuais, ora descendo uma escadaria ao lado da estrela Eliana Macedo (Sinfonia carioca, 1955), ora presente no fundo de um restaurante onde acontece grossa pancadaria (Depois eu conto, 1956)2. Os poucos anos nos quais o artista se envolveu com filmes de chanchada, sempre por meio de breves incursões, não devem, no entanto, diminuir a importância que a experiência teve na formação do futuro cineasta. Um dos gêneros mais populares da história do cinema brasileiro, com altos índices de bilheteria garantidos pela mescla entre humor e canções comerciais, as comédias carnavalescas fixaram-se em Carvana como valor cultural, tornando-se para ele um dos modelos que os filmes nacionais deveriam manter ativos no sentido de lhes garantir um lugar social de destaque. Pelo restante da vida, em muitos depoimentos públicos (RANGEL, 1973; PASQUIM, 1974), ele rememoraria o gênero não apenas como percurso inicial de sua trajetória, mas principalmente como arte de essência popular, de comicidade irreverente, que mobilizava seus processos criativos enquanto diretor de cinema.

O percurso do ator Carvana, entretanto, sofreria uma mudança significativa a partir do ano de 1959. Considerado por ele o ato inaugural de uma nova fase em sua trajetória, algo que ampliaria sua compreensão acerca dos fundamentos do campo cultural (ZAPPA, 2005, p. 28-39), o artista se envolveria com o Teatro de Arena na passagem das décadas de 1950 a 1960, assumindo um papel dramático na encenação carioca da peça Revolução na América do Sul (de Augusto Boal). Atuando posteriormente em outras montagens oriundas do teatro engajado, a exemplo de O pagador de promessas (Dias Gomes, encenação de 1960) e Meia volta vou ver (Vianinha, Grupo Opinião, em 1967), Carvana viveu não somente o desafio de interpretar papéis dramáticos mais complexos, mas também a experiência de adquirir consciência política e sensibilidade social ao lado dos principais nomes da moderna dramaturgia brasileira. A passagem dos palcos aos filmes engajados do Cinema Novo foi rápida. No intervalo de dez anos, antecedendo sua decisão de dedicar-se à direção de longas-metragens, o artista tornou-se um dos intérpretes mais recorrentes do novo movimento cinematográfico, personificando personagens de relevo em obras como Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962), Os fuzis (Ruy Guerra, 1963), O desafio (Paulo César Saraceni, 1965), Terra em transe (Glauber Rocha, 1967) e O bravo guerreiro (Gustavo Dahl, 1968). O envolvimento com a classe artística de esquerda, cuja diversidade ideológica confluiu no desenvolvimento de um campo cultural voltado para a arte de conscientização política, transformou a visão que Carvana possuía sobre o próprio ofício. Em sua segunda fase como ator, a despeito de não se filiar a agremiações políticas ou tornar-se militante (CARVANA, 2010), o artista foi atravessado por uma estrutura de sentimento que o sociólogo Marcelo Ridenti (2010) conceituou como “brasilidade revolucionária”. A expressão cultural em compromisso com o engajamento e a denúncia das contradições, em defesa da autoria nacional e avessa à colonização estrangeira, voltada à representação politizada da classe popular e à leitura marxista de mundo, encontrou no artista um entusiasta e simpatizante. Para além da chanchada, que lhe serviu como primeira escola, o Teatro de Arena e o Cinema Novo, ao lhe revelarem a “função social da arte” (apud ZAPPA, 2005, p. 34), também se tornaram experiências formativas para os filmes que realizaria como cineasta.

Entre 1973 e 1974, quando esteve às voltas com a direção e a circulação comercial de seu primeiro longa-metragem, intitulado Vai trabalhar, vagabundo (1973), Carvana concedeu para a imprensa uma série de depoimentos sobre a dupla filiação cinematográfica que marcou seu percurso até aquele momento. Experiências que haviam se desenvolvido por vias ideológicas e estéticas distintas, a comédia carnavalesca e a militância cultural aproximavam-se de modo singular, qual síntese criativa, no projeto fílmico que estimulava o artista rumo ao trabalho de realização. A crítica demolidora que o Cinema Novo promoveu nos anos 1960 contra a chanchada, ao acusá-la de alienante e refutá-la como parte de uma tradição “autenticamente” brasileira, pouca ressonância encontrou, por exemplo, em um Carvana que não partilhava da recusa às heranças dramatúrgicas e formais consolidadas pela comédia. A proximidade do artista com a arte engajada, com a intelectualidade nacionalista de esquerda, não o levou a abdicar do aprendizado adquirido nos primeiros anos de carreira profissional. De modo particular e vivaz, Carvana absorveu um conjunto de lições tomadas a partir da experiência vivida com os cineastas da chanchada, selecionando aspectos do gênero que retomaria (e atualizaria) em suas produções como diretor. Seu interesse por estes filmes, em linhas gerais, residia principalmente na fórmula criativa que os dotava de ampla circulação nas salas de cinema. Para além de um star system bem construído e do uso de canções com forte apelo comercial na indústria fonográfica, traços que convocavam o público ao consumo dos longas-metragens, o gênero também usufruía de um humor irreverente que alcançava, na opinião do artista, diálogos reais com extratos populares da sociedade brasileira (DADDARIO, 1973).

O interesse por esse modelo de comédia, vindo de alguém cujo desejo era tornar-se artista popular (ALBUQUERQUE, 1979), não se desenvolveu, no entanto, sem um punhado de críticas estimuladas pela sensibilidade política adquirida na década de 1960. Ainda que não refutasse a chanchada, antes utilizando-a como pressuposto para seu próprio cinema, Carvana nela enxergava algumas limitações criativas (e ideológicas) a serem superadas. Embora fosse um caminho de inspiração para alcançar as massas, o gênero lhe parecia excessivamente ingênuo nas representações de um país profundamente contraditório como o Brasil (FERREIRA, 1978). De seu ponto de vista, os filmes da chanchada, considerados pueris e ilusórios, promoviam um tratamento fantasioso do país, uma dramaturgia “que se [fechava] e se completava nela mesma” (apud RANGEL, 1973), ignorando os problemas enfrentados por uma nação problemática e socialmente cindida. De fato, esse parece ser o tom que predomina em diversas produções nas quais Carvana atuou como figurante. Em Rio fantasia (1957), Baronesa transviada (1957) e Alegria de viver (1958), realizações de Watson Macedo, os enredos que transcorrem em um Rio de Janeiro moderno e cosmopolita resultam em desfechos românticos, ingênuos, nos quais apaziguam-se os conflitos através de soluções dramáticas inverossímeis à torpe realidade brasileira. Ao findarem de modo redencionista, a partir da ascensão social da classe popular, da benevolência humanista dos patrões ou da felicidade alcançada por meio de casamentos interclassistas, tais narrativas fantasiavam um país inexistente, propondo tratamentos distantes das fraturas sociais expostas naquele período por filmes como Rio, Zona Norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos.

Aquilo que Carvana afirmava ser algo ausente nas chanchadas, as críticas e denúncias à condição brasileira, emergiu como epicentro do processo artístico levado adiante pelos diretores do Cinema Novo. A arte engajada, ao deslocar para o centro de suas narrativas representações politizadas em torno da classe popular e dos dilemas estruturais do país, voltou-se para um ato criativo revelatório das contradições oriundas de nossa (de)formação autoritária enquanto nação. O Brasil das fraturas, dos famintos, da elite econômica responsável pela miséria e pela exclusão, do povo castrado em sua rebeldia graças à necessidade diária de sobrevivência, tornou-se temática recorrente das obras cinemanovistas realizadas na década de 1960. Durante esse período, em uma parcela dos filmes nos quais Carvana interpretou papéis, a perversão humana foi assunto central: a violência militar a serviço dos interesses coronelistas em Os fuzis, a atualização do autoritarismo político em Terra em transe, a supressão dos desejos emancipatórios da esquerda em O desafio e O bravo guerreiro. Integrando-se ao Cinema Novo, Carvana adquiriu consciência das mazelas, filiou-se a um sentimento coletivo em compromisso com o engajamento artístico (PASQUIM, 1974) e vivenciou, como ator, um trabalho de interpretação a aproximá-lo “do comportamento e do modo de falar do brasileiro” (apud ZAPPA, 2005, p. 34).

No entanto, esse aprendizado crucial para a formação do artista viria acompanhado de algumas restrições ao projeto do Cinema Novo. No ano de 1973, às voltas com a direção de seu primeiro filme, Carvana identificava como uma das falhas desse movimento cinematográfico justamente aquilo que a chanchada obtivera em abundância: a comunicação com amplas camadas da população. Evitando tratar de condicionantes externos responsáveis pela circulação limitada das obras engajadas, a exemplo de um mercado exibidor dominado por interesses estrangeiros e restritivo ao produto nacional, o artista concentraria suas críticas naquilo que considerava um problema interno aos cineastas politizados. Em sua opinião, os espectadores, de modo geral, sentiam-se pouco identificados com um cinema no qual as narrativas por vezes tendiam ao esquematismo ideológico, à proposição cerebral de teses políticas sobre o Brasil, em que a espontaneidade dramática, o lirismo e os sentimentos pareciam perder força para certo desnudamento didático da realidade social (DADDARIO, 1973; RANGEL, 1973). Embora nem toda obra cinemanovista contivesse para ele tal problema, esse recuo da potência e da sedução emocional para a prevalência da reflexão política e “professoral” (apud DADDARIO, 1973), Carvana aí enxergava um dos empecilhos para a circulação maior dos filmes realizados por setores vinculados ao engajamento artístico.

Na lógica do texto que aqui se desenvolve, recuperar os depoimentos concedidos pelo artista entre 1973 e 1974, todos publicados na imprensa, tem por finalidade mapear traços de seu pensamento quando se encontrava no processo de assumir-se cineasta. As falas de Carvana, particulares a alguém que transitava pelo campo cultural há quase duas décadas, não devem ser encaradas como afirmações objetivas ou tampouco irrefutáveis sobre o que foi a trajetória do cinema brasileiro nos anos 1950 a 1970. A despeito de serem documentos fundamentais para a pesquisa intelectual, desvelando opiniões dos sujeitos históricos em suas contemporaneidades, os testemunhos são fontes de conhecimento atravessadas pela subjetividade e por preferências pessoais, nas quais revelam-se memórias e pontos de vista específicos acerca de questões referentes ao passado. Diferente do esforço de objetividade e de distanciamento que são pressupostos para o ofício dos historiadores acadêmicos, as declarações feitas por Carvana em torno do cinema brasileiro, lançadas no calor de sua transformação em cineasta, surgem como assertivas pessoais de um artista que procurava afirmar culturalmente seu novo projeto de realização fílmica. As análises que produziu sobre a chanchada e o Cinema Novo, longe de se atrelarem ao compromisso científico, resultaram não somente de suas experiências íntimas, mas sobretudo das seleções que ele operou em cima de tais repertórios para a constituição do próprio projeto cinematográfico. Nesse sentido, interessado em dirigir filmes com apelo de público, Carvana encontrou na chanchada um modelo. Ao mesmo tempo, decidido a realizar obras de cunho social, algo que não enxergava presente nas comédias carnavalescas, tomou de empréstimo o espírito engajado do Cinema Novo, evitando reproduzir aquilo que para ele era um erro interno a esse movimento, certo didatismo de supressão emocional. Independente das complexidades pertencentes às duas experiências cinematográficas, tais foram as leituras e seleções que o artista promoveu em torno de ambas. Ao confluir tradições portadoras de ideologias e estéticas distintas, Carvana encontrou a singularidade de seu projeto: um cinema político, de crítica social e de desvelamento das contradições, mas afiliado a um humor debochado e irreverente inspirado em heranças da comédia musical brasileira. Em síntese, ainda que o artista não tenha utilizado tais expressões, uma espécie de “chanchada política” ou, invertendo posições, um “Cinema Novo carnavalesco”3.

Na trajetória do cinema brasileiro, a busca por uma confluência entre elementos formais da chanchada e heranças dramatúrgicas de cunho político, aproximando humor, musicalidade popular e engajamento social, não surgiria como projeto estético apenas no cenário histórico dos anos 1970, por meio de proposições encabeçadas por realizadores como Hugo Carvana. Conforme pesquisa desenvolvida por Luís Alberto Rocha Melo (2006), no período em que Carvana viveu sua juventude e suas experiências iniciais como ator, mais especificamente nas décadas de 1940 e 1950, um conjunto específico de artistas, com graus variados de envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), propôs-se à realização de filmes nos quais a exposição das contradições sociais emergiria a partir de uma síntese criativa entre as práticas da comédia carnavalesca e as tradições engajadas do realismo crítico. No esforço de consolidar um cinema nacional-popular, estimulando a politização do campo cultural, nomes como Alinor Azevedo, Alex Viany, José Carlos Burle e Nelson Pereira dos Santos procuraram absorver alguns aspectos que dotavam a chanchada de grande popularidade, a exemplo do humor, do star system e da música, depurando-os de temáticas tidas como “alienantes” em prol de narrativas marcadas pela preocupação social e pela denúncia à condição miserável da classe popular (MELO, 2006, p. 8-62). A despeito das dificuldades para efetivar tal projeto, em parte devido às fragilidades daquele contexto histórico em relação ao desenvolvimento de um cinema brasileiro independente e autoral, longas-metragens como Moleque Tião (1943), Tudo azul (1952) e Rio, zona norte (1957) traduziram de modo plural uma estratégia nacionalista, de brasilidade à esquerda, na tentativa de dialogar com um público massivo a partir do “‘filme musical’ que pudesse conscientizar, emocionar e divertir” (NAPOLITANO, 2014, p. 77). Ainda que a breve lembrança desses filmes permita observar que a busca de aproximações entre a chanchada e o realismo crítico não foi uma novidade da década de 1970, situando Carvana em uma possível linha temporal mais ampla de síntese entre o humor e a política, ao mesmo tempo é curioso notar que em nenhuma de suas falas públicas, no decorrer da vida, o cineasta se referiria a tal projeto como influência para a consolidação de seu cinema. Para Carvana, a “chanchada política” pré-Cinema Novo, como proposta de engajamento das massas, mediando a leitura das injustiças via musicalidade popular, seria um repertório pouco reconhecido ou quem sabe até ignorado. Aquilo que daria base ao seu estilo fílmico situava-se, de acordo com o realizador, sobretudo em práticas criativas emergentes no cenário repressivo da ditadura militar.

Na primeira metade dos anos 1970, Carvana não seria, portanto, o único artista vinculado ao campo cultural de esquerda que se propôs a desenvolver um humor de extração política. Passado o assombro diante do fracasso revolucionário desencadeado pelo golpe de 1964, alguns realizadores provenientes do Cinema Novo, em uma autocrítica à recusa das heranças carnavalescas, propuseram a composição de filmes cômicos capazes de tecer críticas às contradições da sociedade brasileira. O desejo de ampliar a comunicação com os espectadores, estimulado pela reflexão de que o cinemanovismo falhara na conquista de um lugar social mais amplo, parece estar na origem das incursões cômicas de Joaquim Pedro de Andrade e de Cacá Diegues, cineastas que também buscaram aproximações, ainda que momentâneas, com a estética da chanchada. Curiosamente, as obras com conteúdo humorístico que realizaram naquele período, Macunaíma (1969) e Quando o carnaval chegar (1972), contaram com participações criativas de Carvana. Intérprete de um papel secundário no primeiro filme, o artista escreveu o argumento e foi protagonista do segundo. Embora uma parcela dos diretores oriundos do Cinema Novo se interessasse pelo humor, tal vínculo, no entanto, ocorreu apenas de modo pontual, reaparecendo posteriormente em poucos filmes realizados por remanescentes do movimento. Diferente dessa eventualidade, a obra de Carvana foi atravessada integralmente pela comédia, em um total de nove longas-metragens tributários das tradições provenientes da chanchada.

Levando-se em consideração esse aspecto singular a Carvana, torna-se oportuno, na fatura deste texto, discorrer sobre outro artista de esquerda cuja obra também foi continuamente marcada pelo humor como leitura crítica do país. Após afirmar-se na década de 1960 como um dos principais nomes da dramaturgia moderna brasileira e do teatro em resistência ao regime militar, Oduvaldo Viana Filho dedicou-se sobretudo à escrita de roteiros cômicos para a televisão. No início dos anos 1970, em um cenário no qual o meio teatral enfrentava dura crise econômica, agravada por perseguições provenientes da censura ditatorial, Vianinha encontraria na Rede Globo um lugar não apenas para a sobrevivência financeira, mas também para a continuidade de seu ofício como dramaturgo. Espaço criativo relativamente novo, com certa abertura à experimentação narrativa e buscando consolidar-se como meio de comunicação de massa, a televisão atraiu um número substancial de autores vinculados à esquerda cultural, a exemplo de Armando Costa, Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri e Paulo Pontes. Enxergando na TV não apenas uma garantia de estabilidade econômica e criativa, Vianinha lançou-se a ela imbuído de uma reflexão oriunda de sua trajetória na militância artística. A inquietação que o atravessava desde os tempos do Teatro de Arena e do Centro Popular de Cultura (CPC), o fato de a arte política pouco atingir extratos populares de público, talvez encontrasse uma saída dentro de um meio expressivo que a cada dia ganhava mais espaço no cotidiano da população. Coerente com seus pensamentos, o dramaturgo desenvolveria, na Rede Globo, um caminho criativo para tentar alcançar os espectadores sem perder de vista a crítica social em tempos de ditadura. Seus roteiros, todos compostos para séries televisivas, se vinculariam à chave do humor político.

Tornando-se uma fonte de inspiração para Carvana, pois ambos confluíam na aposta em uma potência política da comédia, Vianinha exercitou sua verve humorística em dois programas que tiveram boa acolhida de público no auge repressivo do autoritarismo militar. Redigindo episódios para as séries Caso especial (1972-1974) e A grande família (1973-1974), o dramaturgo desenvolveu na televisão um humor vinculado à comédia de costumes, com narrativas voltadas à classe média baixa, cujo epicentro localizava-se na observação crítica das dificuldades enfrentadas pelos brasileiros em meio às ilusões do milagre econômico ditatorial. Em contracorrente às expectativas geradas pelo projeto desenvolvimentista conservador, com sua promessa de ampliação da cidadania por meio do acesso ao consumo, os personagens de Vianinha deparavam-se com uma condição recorrente de precariedade, vivendo em um país injusto onde prosseguia distante a inserção social mais ampla de setores populares da sociedade. A partir de roteiros em que o centro narrativo era a família suburbana das grandes cidades, nos quais o riso provocava reflexões, o dramaturgo destrinchava problemas cotidianos à boa parte dos espectadores. Em seus enredos televisivos, as temáticas giravam em torno das dívidas contraídas graças às compras a prazo, das complicações financeiras em decorrência do nascimento de novos filhos ou do habitual costume da classe média em submeter-se às figuras de poder na tentativa de ascender socialmente4. Ao expor os dilemas da sobrevivência por meio do humor, em especial aqueles envolvendo a cultura patrimonialista enraizada na constituição do país, Vianinha tornou-se um marco para o estilo que Carvana buscava em sua própria cinematografia. Raro exemplo de um artista engajado, oriundo da esquerda nacionalista dos anos 1950 e 1960, que fez da comédia crítica um elemento primordial para a sua criação, Vianinha era visto por Carvana, em depoimento de 1974, como aquele que lhe “ensinou [uma] dramaturgia [...], [a] refletir os anseios do povo [...], acessível a todas as pessoas [...], [na qual não se deveria] escamotear as coisas [...], [ampliando] as contradições” (apud PASQUIM, 1974). Ainda que o humor do dramaturgo fosse distinto ao de Carvana, cuja criação fílmica lançaria mão de um deboche, de uma carnavalização e de um erotismo nunca presentes nas obras do primeiro, ambos se encontravam afinados no desenvolvimento do humor político que oferecesse o “máximo de informação [crítica] para o povo” (idem). O cineasta e ator, que outrora interpretou papéis em peças de Vianinha como Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come (1966) e Meia volta vou ver (1967), chegaria, inclusive, a cogitar uma adaptação cinematográfica de seu texto teatral Chapetuba futebol clube (CERQUEIRA, 1978). No entanto, a morte precoce do dramaturgo, em julho de 1974, impediria possíveis parcerias criativas entre eles.

Ao evocar o percurso televisivo de Vianinha, destacando a diversidade do humor político durante a ditadura, meu objetivo não é apenas salientar a importância desse dramaturgo como inspiração artística para Carvana, mas também incluir no debate um segundo nome fundamental para a consolidação do projeto fílmico do cineasta no decorrer da década de 1970. Figura em torno da qual inexistem informações biográficas mais completas, em parte devido a uma historiografia que o posicionou nas margens do campo cultural de esquerda, Armando Costa foi, por muitos anos, o principal parceiro criativo de Vianinha. Escritor de peças e roteiros audiovisuais, trabalho que sempre realizou em conjunto com outros artistas, Armando Costa protagonizou experiências centrais do teatro engajado dos anos 1960, tornando-se coautor de obras dramatúrgicas idealizadas por Ferreira Gullar, João das Neves, Paulo Pontes e Vianinha. Integrante do CPC e sócio-fundador do Grupo Opinião, do qual também foi produtor, seu nome acabaria se vinculando à arte de resistência produzida antes e depois do golpe de 1964, quando redigiu peças como Auto dos noventa e nove por cento (1962), Opinião (1964), Meia volta vou ver (1967) ou A saída, onde fica a saída? (1968). Particularmente interessado pelo humor na chave crítica, que conseguiu exercitar em alguns de seus textos teatrais, Costa se dedicaria sobretudo ao cinema e à televisão a partir do início dos anos 1970, mantendo um vínculo de proximidade com Vianinha na roteirização de episódios para a série A grande família. Ao que tudo indica, no entanto, ele adentraria a nova década ampliando seu horizonte criativo para além das parcerias habituais. A partir de então, inserindo-se de modo ativo na indústria de entretenimento, Costa se voltaria para uma arte menos condicionada às questões da militância política, concentrando sua atuação na coautoria de roteiros cômicos nos quais o humor apareceria em formato leve, despojado e distante de possíveis esquematismos ideológicos. Talvez por sentir-se exausto face aos compromissos da politização cultural que viveu durante anos, ele passaria a trabalhar com uma comicidade aberta às tradições mais comerciais e popularescas, procurando, na medida do possível, preservar artifícios críticos de leitura social5.

Essa postura de Armando Costa, parecida com a do próprio Carvana, o levaria a estabelecer novas lugares de atuação durante a década de 1970. Em parceria com o cineasta Pedro Carlos Rovai, por exemplo, ele seria corroteirista de alguns filmes próximos ao gênero da pornochanchada, cerca de cinco comédias acentuadamente comerciais nas quais nota-se, como um fundo do enredo, a recorrência de críticas de viés comportamental. Em um longa-metragem como Ainda agarro esta vizinha (1974), que também contou com Vianinha na criação do roteiro, ou no caso de Nos embalos de Ipanema (1978), a predominância de um humor erótico escrachado, de um riso escangalhado por meio de estereótipos, esquetes e deboches, convive com uma dose sutil de refutação ao tradicionalismo moral da sociedade brasileira. Enquanto o primeiro filme inclui a história de uma jovem forçada pela tia a casar com um gigolô em nome da ascensão social, o segundo se concentra em um garoto de programa suburbano que se encontra submetido às pulsões sexuais e possessivas da elite carioca. Em uma linha próxima ao trabalho desenvolvido para Rovai, no entanto com menos apelo erótico e maior ambição cinematográfica, encontra-se o longa-metragem O bom marido (1978), dirigido por Antonio Calmon. Nesse caso, cujo roteiro foi escrito por Costa em conjunto com Leopoldo Serran e com o próprio Calmon, o enredo cômico apresenta como protagonista um casal carioca, de alta classe, que presta favores sexuais a estrangeiros em troca de acordos econômicos para a manutenção de seu status quo.

Alguns dos elementos presentes nos filmes de Rovai e Calmon, sobretudo um humor de viés debochado com pitadas de erotismo, reaparecem nas obras daquele que foi outro dos principais parceiros de Costa entre os anos 1970 e 1980, justamente o cineasta Hugo Carvana. No entanto, os três longas-metragens que realizaram juntos, Vai trabalhar, vagabundo (1973), Se segura, malandro (1978) e Bar esperança (1983), apresentam uma significativa singularidade em comparação às demais obras comentadas no parágrafo anterior. Herdeiro de uma comicidade mais politizada, sob influência do Cinema Novo e da dramaturgia de Vianinha, Carvana exercitou em seu projeto fílmico uma leitura social que não deixou de incluir questões morais e comportamentais, impasses com o conservadorismo dos costumes, mas que se voltou, particularmente, ao comentário crítico em torno das estruturas de poder existentes na sociedade brasileira. As obras que o cineasta dirigiu durante a ditadura, usufruindo de um humor carnavalesco, comercial e altamente popular, filiaram-se às tradições da arte de engajamento, a partir das quais traduziam-se sentimentos de refutação às dimensões autoritárias do país. Nesse sentido, é possível afirmar que foi com Carvana, pelos caminhos de uma politização artística a distanciar-se do pragmatismo ideológico, que o roteirista Armando Costa encontrou uma linha flexível de continuidade com a escrita outrora desenvolvida ao lado de autores centrais do campo cultural de esquerda. No projeto cinematográfico de Carvana, se Vianinha tornou-se uma referência de ensino dramatúrgico, no sentido de estimular uma arte popular a expor contradições do Brasil, Costa transformou-se em parceiro criativo central para o desenvolvimento de uma comicidade muito próxima àquela que interessava aos planos do cineasta.

Por meio de múltiplas influências e filiações, que foram da chanchada ao Cinema Novo, de Vianinha a Armando Costa, o cinema de Carvana realizou-se, nos anos 1970, como manifestação de sentimentos antagônicos às opressões vividas pela sociedade brasileira no período da ditadura militar. Nos filmes dirigidos pelo cineasta naquele momento, nos quais percebe-se um humor inconformado, “popular [...] no que [...] representa de protesto da população contra as péssimas condições de vida que lhe são impostas” (COZZATTI, 1978), são recorrentes os lamentos em torno do progresso econômico que destrói a riqueza cultural dos subúrbios, as críticas à valorização social do trabalho, as insubmissões contra o poder da elite ou a defesa da solidariedade como forma de sobrevivência ao cotidiano atravessado pelo autoritarismo. Ocupando um lugar de destaque na indústria de entretenimento, a ponto da imprensa interessar-se continuamente por informações sobre sua vida privada, o ator Carvana, um dos rostos mais conhecidos da televisão na passagem das décadas de 1970 a 19806, dedicou-se a extravasar desejos de rebeldia em seu projeto como diretor de cinema. Embora não fosse figura central do campo artístico de esquerda, participando pontualmente dos debates acerca da oposição à ditadura, o cineasta conferiu aos seus filmes um espaço político de ampla circulação social. Suas obras cômicas, ao derrubar fronteiras entre a cultura popularesca e o desnudamento das contradições, atualizando elementos da chanchada e convocando musicalidades engajadas de Chico Buarque, desenvolveram-se como sensibilidade crítica inserida no centro da crescente indústria cultural brasileira7. Pensar o cinema de Carvana como mera distração por meio de um humor debochado, ou como estilo que mercantilizou as representações engajadas oriundas da arte revolucionária, seria ignorar o fato de que seus filmes efetivamente estimularam um olhar inconformado aos desmandos do Brasil. No entanto, posicioná-lo como figura atuante no campo da resistência à ditadura, como alguém politicamente ativo nos setores artísticos e partidários que encabeçaram o enfrentamento ao regime militar, seria dotá-lo, à posteriori, de um lugar histórico que nunca ocupou8. Ao realizar nos anos 1970 um cinema comercial que não abriu mão da rebeldia, que flertou com valores da esquerda sem vincular-se organicamente aos grupos de resistência, Carvana encontrou seu território político. Um projeto cuja força não se localizou apenas nas questões comentadas até aqui, mas na singularidade proveniente do diálogo com um dos imaginários sociais mais presentes na cultura brasileira: a malandragem.

A malandragem entre o romantismo e o mal-estar: o cinema de Hugo Carvana nos anos 19709

Às vésperas de realizar seu primeiro filme como diretor, Carvana interpretou no cinema uma série de papeis relacionados à malandragem. Atuando em longas-metragens como O Anjo nasceu (1969), de Júlio Bressane, ou O capitão Bandeira contra o doutor Moura Brasil (1971), de Antônio Calmon, o ator Carvana foi aos poucos associando sua imagem aos personagens “marginais”, de tipo cômico, que lançam mão de golpes e expedientes ilícitos na tentativa de conseguir benefícios em proveito próprio. Sua rápida aparição no filme Macunaíma (1969), por exemplo, se daria no papel de um vigarista que ludibria pessoas ingênuas, enganando-as com a venda de galinhas que supostamente botariam moedas ao invés de ovos. Em outra breve atuação, dessa vez na obra Amor, carnaval e sonhos (1972), de Paulo César Saraceni, Carvana surge na narrativa qual encarnação alegórica que anuncia a abertura das festividades carnavalescas no Rio de Janeiro. Com direito a camisa listrada, chapéu branco e percussão a partir de uma caixa de fósforos, elementos típicos do malandro carioca, seu personagem emerge como uma espécie de abre-alas simbólico dos dias de fantasia que transcorrerão nas ruas e salões da grande cidade. Já em Quando o carnaval chegar, filme de 1972, ele interpretaria Lourival, um pequeno empresário artístico que busca o sucesso por meio da esperteza e dos negócios suspeitos com um poderoso bandido influente no campo cultural. Retornando continuamente a papeis parecidos, em parte devido a um physique du rôle que o associava à malandragem, o ator Carvana foi conquistando um lugar específico na cinematografia produzida entre o final dos anos 1960 e o início da década de 1970. Tal percurso, porém, não se restringiria ao campo da atuação. Tomado pelo desejo de passar à direção de cinema, ele seria estimulado pelo amigo Armando Costa a desenvolver seu próprio longa-metragem a partir das experiências adquiridas com os diversos personagens que encarnara recentemente (PASQUIM, 1974). No ano de 1973, por meio de um roteiro escrito em conjunto com o dramaturgo, nasceria, enfim, o filme Vai trabalhar, vagabundo.

Em Vai trabalhar, vagabundo, longa-metragem no qual Carvana constrói um malandro singular em comparação às obras citadas anteriormente, o protagonista da narrativa, interpretado pelo próprio cineasta, é Secundino Meireles, mais conhecido nas rodas dos trambiqueiros pela carinhosa alcunha de Dino. Personagem proveniente do subúrbio carioca, inspirado na juventude de Carvana como morador da Zona Norte do Rio de Janeiro (BÔSCOLI, 1978), Dino é uma figura dramática de extração popular, oriunda de um espaço metropolitano marcado por altos índices de pobreza e de segregação social. Portador de um olhar romântico em relação à cultura do povo, de um respeito à luta dos humildes pela difícil sobrevivência diária, o protagonista de Vai trabalhar... cresceu em um ambiente comunitário acolhedor, mas atravessado pela miséria como elemento opressor da vida cotidiana. Vinculado organicamente às raízes identitárias do subúrbio, Dino acabaria buscando, todavia, um percurso distante do destino habitualmente traçado para as camadas populares. Ao contrário do usual, dos pobres submetendo-se a empregos pouco qualificados na ilusão da fartura e do crescimento social, Dino procuraria para si um caminho de refutação à ordem das coisas, um modo de vida que lhe garantisse o sustento sem as perversidades vinculadas ao mundo destrutivo do trabalho.

Tornando-se um “sujeito desviante” às normas (DEALTRY, 2009), em recusa à domesticação derivada do controle sobre as massas, o protagonista de Vai trabalhar... encontra na vigarice, nos pequenos golpes e nos contos do vigário um instrumento de sobrevivência e de defesa particular às injustiças da sociedade brasileira. Vivendo de atos ilícitos, surrupiando dinheiro sobretudo dos detentores de poder, sua adesão à malandragem o conduz a uma rebeldia trambiqueira avessa aos desmandos hierárquicos e autoritários do mundo. Subversivo ao seu modo, distante de qualquer viés revolucionário que deseje a transformação política do país, Dino aposta na malandragem como foco pessoal de resistência, como arma oriunda da sagacidade popular em desajuste aos valores morais e sociais do universo burguês. Contra a ética do trabalho, que esmaga o povo e sustenta o bem-estar das elites, sua reação é o deboche, a ironia, a bebedeira e a aplicação de golpes. Na antítese dos proletários obedientes, rendidos a uma vida de submissão, sua essência localiza-se na criatividade popular, na astúcia dos desvalidos que reagem à ordem por meio da esperteza, da insubordinação e dos poucos recursos materiais que têm em mãos. Filiado ao imaginário brasileiro da malandragem, na linha da tradição cultural estudada pelo antropólogo Roberto DaMatta (1997, p. 263), o personagem de Carvana é “um ser deslocado das regras formais, [...] totalmente avesso ao trabalho e individualizado pelo modo de andar, falar e vestir-se”.

Celebrado como potência rebelde e galhofeira da classe popular, o malandro presente em Vai trabalhar... depara-se, no entanto, com um Brasil no qual o avanço do capitalismo coloca sua existência sob risco de desaparecimento. Nos minutos iniciais do filme realizado por Carvana, Dino experimenta um momento particular de felicidade. Após viver alguns anos trancafiado em um presídio, por conta de um golpe malsucedido, o personagem encontra-se finalmente liberto do encarceramento. Voltando ao convívio social depois de cumprir sua pena, Dino passa as primeiras horas de liberdade entregando-se ao reencontro festivo com seu vigor malandro. Por meio de uma comicidade irreverente, afiada em ironias contra a ordem, o protagonista lança-se à recuperação do tempo perdido: toma cerveja em um boteco, mexe com mulheres na rua, surrupia o dinheiro de um bandido, cai no samba e termina sua primeira noitada reavivando o prazer sexual ao lado de uma mulata. Findado o aprisionamento no cárcere, a potência e o gozo da malandragem são momentaneamente reinstaurados, sobretudo como aversão aos valores morais relacionados ao universo burguês.

A questão, porém, é que a euforia inicial vivida por Dino, seu novo despertar à vigarice, entrará em tensão com as transformações enfrentadas pela sociedade brasileira no contexto dos anos 1970. Aos poucos, conforme se desenrola o enredo de Vai trabalhar..., ele compreenderá que o período na prisão, intervalo no qual esteve distante do espaço público, foi um tempo marcado pelo avanço perverso da modernização conservadora na cidade do Rio de Janeiro. O Brasil do regime militar, por meio da soma entre autoritarismo político e progresso econômico excludente, surge no filme de Carvana como antítese aos valores que Dino mais admira, seja a vida comunitária no subúrbio ou a malandragem como instrumento de resistência da classe popular. Lançado de volta à sociedade, o personagem encara um mundo avesso à sua identidade cultural. Os conselhos que o funcionário da prisão oferece à Dino no início do longa-metragem, em defesa de um patriotismo atrelado à edificação moral pelo trabalho, ressurgem continuamente durante toda a narrativa como voz condicionante do novo contexto histórico: “hoje em dia, para trabalhar, qualquer um tem oportunidades. Somos um país jovem, com os olhos no futuro [...]. Cresça com o país!”. A fala do agente de Estado, ao reverberar discursos propagados à época pelo regime militar10, evoca uma contemporaneidade na qual a malandragem tornou-se foco de perseguição, inimiga de um viés ideológico diretamente vinculado ao progresso capitalista. Em Vai trabalhar..., tal conservadorismo, espalhado socialmente, sufoca a vagabundagem como cultura popular subversiva. Nesse universo enredado na sanha produtivista, no qual o trabalho e o dinheiro são celebrados como valores necessários para a obtenção de cidadania e de “vitória na vida”, Dino logo percebe sua inadequação. Em conversa com um antigo camarada, dono de bar, ele descobre a condição opressiva do tempo presente. Por um lado, obtém a informação de que o subúrbio onde cresceu, representado de modo idealizado no filme, será destruído em decorrência da construção de uma rodovia perimetral. A comunidade pobre, espaço identitário do povo, não pode atrapalhar os planos para o aumento da circulação econômica do Capital. Por outro lado, o personagem também recebe notícias sobre os velhos companheiros. Os malandros de outrora, da “época de ouro” da algazarra, encontram-se, agora, marginalizados ou “sequestrados” pela vida burguesa.

A despeito da comicidade presente em Vai trabalhar..., de todo seu humor debochado, advém no filme uma melancolia relacionada à representação da contemporaneidade como um trator que vem soterrar a cultura do povo em nome da edificação do progresso. Na obra de Carvana, se o passado é heroicizado, com direito a um flashback que endeusa a suposta belle époque dos malandros, o presente aparece como lugar em que se multiplicam as contradições sociais em decorrência da ganância produtivista. Em contrapelo ao retrato dos tempos idos, um romantismo nostálgico acerca do pretérito, o cenário histórico dos anos 1970 é visto como sufocante para a “boa” malandragem. No entanto, nesse contexto de culto ao trabalho, no qual cresce o domínio capitalista no Brasil, ao invés de abater-se diante da possível morte do malandro, de chorar o desaparecimento do subúrbio, Dino resolve lançar-se a uma espécie de cartada final, a um grande golpe cujo objetivo é surrupiar uma alta soma de dinheiro. Embora consciente do risco de extinção da sua identidade cultural, o personagem propõe-se a um ato de desforra a partir do qual pretende não apenas saquear mais uma vez os poderosos, mas também celebrar a memória dos tempos áureos por meio de uma reativação momentânea da velha malandragem. Mesmo que Dino compreenda a situação histórica, perceba o autoritarismo que age contra a resistência popular trambiqueira, sua reação é convocar os amigos adormecidos, reuni-los em torno de um novo golpe que funcione como rememoração nostálgica do passado heroico da vigarice. Orquestrador do desvio, de um revival da malandragem romântica, o protagonista decide acordar os antigos companheiros da letargia que lhes foi imposta pelo mundo do progresso. Do mesmo modo que deixou para trás o presídio, livrando-se do encarceramento, ele convence Babalu a retomar sua vida boêmia, libertando-o de uma existência pequeno burguesa na qual desgasta-se como vendedor de doces. Tal soltura das amarras, dessa vez estimulada pela cachaça, também resulta no despertar de Russo, cujo alcoolismo provocou seu aprisionamento em um instituto manicomial. Aos gritos de “vai trabalhar, vagabundo”, ironizando a ordem, Dino reativa, ainda que pontualmente, a antiga glória da malandragem. Os dois companheiros, exímios jogadores de bilhar, aceitam confrontar-se novamente na mesa de sinuca, integrando-se ao grande plano organizado pelo protagonista.

No ápice dramático de Vai trabalhar..., o passado glorioso da malandragem, representação idealizada que Carvana constrói como polo de tensão ao tempo presente, é momentaneamente reerguido para a celebração da vigarice. Em grande estilo, Babalu e Russo recompõem suas vestimentas e trejeitos malandros, entregando-se ao desafio de uma nova e definitiva partida de bilhar. Em torno da mesa de sinuca, espaço simbólico da trambicagem, local em que anos antes disputaram o amor da bela Vitória, os dois tornam-se expressão do desajuste histórico evocado por Carvana em seu primeiro longa-metragem. Ao mesmo tempo em que ambos retratam o prestígio da malandragem, a potência dos marginalizados, tal força é reerguida, paradoxalmente, no interior de um bar que está prestes a fechar suas portas. Paira como provável, no ilustre espetáculo dos desvalidos, a morte da vigarice heróica. Orquestrador dessa mise en scéne nostálgica, Dino aproveita-se do show para aplicar seu golpe. Utilizando o dinheiro surrupiado de um sujeito de classe alta, conto do vigário anteriormente mostrado pelo filme, o protagonista aposta uma alta soma financeira na derrota de Babalu, certo de que este cumprirá o acordo ilícito de perder propositalmente para Russo. A trama dos acontecimentos, no entanto, sai de seu controle. A partir de uma série de quiproquós, o jogo termina com um tiroteio entre bandidos, relembrando as sequências rocambolescas que Watson Macedo apreciava compor em suas chanchadas dos anos 1950. A despeito da confusão, os malandros se dão bem. No final, o dinheiro derivado das apostas acaba nas mãos de Babalu, Russo e Dino. A consagração da malandragem, todavia, talvez seja um último ato antes de seu desaparecimento como cultura desviante. Na dramaturgia de Vai trabalhar..., a vitória do golpe na sinuca ocorre em meio ao incremento da ditadura militar e da lógica do progresso. A canção composta por Chico Buarque para o filme, também intitulada “Vai trabalhar, vagabundo”, ressalta justamente a condição de apagamento da resistência trambiqueira. Nela, um eu-lírico popular, sufocado pelo trabalho precário e pela vida burocrática, vê-se obrigado a “esquecer a mulata, [...] esquecer o bilhar, [...] apertar a gravata [...] [e se] enforcar”. Na cena final do enredo, sem a presença dos companheiros de boemia, Dino ressurge travestido de padre, aplicando novo golpe com a finalidade de roubar donativos à caridade. Apesar de tudo, da estrutura social que o condena, o protagonista tentará manter ativo seu desajuste. Face à voz autoritária que ecoa pela última vez no longa-metragem, aconselhando-nos a “tirar da vida o que ela tem de bom e construtivo, [...] [pelas vias do] trabalho e [da] perseverança”, Dino encara diretamente a câmera, ironiza e dá de ombros. Em sua ambiguidade, dado o avanço do progresso burguês, a sequência parece evocar um desejo romântico de continuidade da “boa” malandragem, ainda que solitária e posta à margem.

O desejo de que o mundo fosse outro, distante das opressões conservadoras, emerge de modo mais acentuado no ato performático que encerra definitivamente o filme de Carvana. Em Vai trabalhar..., a sensação de melancolia histórica encontra-se muito associada às inúmeras filmagens realizadas pelo cineasta no espaço público. Os registros documentários do Rio de Janeiro, da praia ao subúrbio, dos transeuntes na rua aos botecos da cidade, entram em tensão, durante o longa-metragem, com os interesses do capital econômico em privatizar os ambientes de convivência. No cenário ditatorial, o autoritarismo não se manifesta apenas pela supressão da liberdade política, mas também pela deterioração do espaço público como lócus democrático de convívio entre as diferentes classes brasileiras. A percepção de tal problema, também evocado no último roteiro televiso de Vianinha, Turma, doce turma (1974), leva Carvana, todavia, a terminar seu filme com uma espécie de contra-ofensiva utópica. A despeito de toda a crise democrática, o cineasta opta, como epílogo à narrativa de Dino, pela construção de uma performance simbólica na qual expressa seus desejos acerca do que poderia ser o mundo caso não estivesse submetido à dominação do poder. Ao som da música “Flor da idade”, de Chico Buarque, os personagens de Vai trabalhar... unem-se, nas cenas finais, para a formação de um bloco dançante que atravessa as ruas cariocas. Deixando para trás a hierarquia do cotidiano e os valores sociais excludentes, numa espécie de festividade carnavalesca na qual as várias classes apagam suas diferenças para comungar momentaneamente a felicidade do viver (DAMATTA, 1997), eles se juntam em um cortejo alegre de ocupação livre do espaço público. Antes adversários no enredo fílmico, os malandros, bandidos e capitalistas reencontram-se, agora, em pé de igualdade na fantasia utópica proposta por Carvana. A sequência, no fundo, reacende o tom predominante no longa-metragem: estamos perdendo nossa substância democrática, assistindo ao apagamento cultural do povo, mas não custa rir das desgraças, debochar dos “otários” e expressar o sonho de um outro país.

Por meio desse vai e vem constante entre mal-estar e romantismo, entre deterioração e persistência dos desejos, Vai trabalhar... compõe, em sua irreverência, um painel crítico acerca de algumas contradições sociais encontradas na década de 1970. A “chanchada política” de Carvana, por assim dizer, localiza no humor popular um veio para tratar das aporias sem deixar de lado a celebração da malandragem. Em sua primeira obra, compondo uma recusa ao período ditatorial, o cineasta estabelece diálogos específicos com certo imaginário cultural brasileiro. Distante daquele malandro violento entregue ao banditismo, encontrado no filme A rainha diaba (1974), de Antonio Carlos da Fontoura, o protagonista de Vai trabalhar... é alçado à “anti-herói das classes populares que, com seus ‘inocentes comportamentos’, reage à opressão das classes dominantes e ao crescente controle do Estado” (DEALTRY, 2009, p. 48). Eliminados os elementos “sujos” e “perigosos”, despido “da navalhada mortal, do golpe no otário inocente, da violência contra a mulher que o sustenta”, Dino vincula-se à heroicidade do “sujeito marginal que consegue escapar aos moldes opressivos da sociedade capitalista pelo caminho [...] da esperteza, via os expedientes ‘mais ou menos’ ilícitos, como o jogo e a cafetinagem” (DEALTRY, 2009, p. 48). Fruto de uma seleção romântica em torno do imaginário da malandragem, Dino é um personagem que nasce do encontro criativo entre as heranças da chanchada e do Cinema Novo: seu lado escrachado e carnavalesco, com direito a paródias e inversões de papéis para enganar os poderosos, convive com sua brasilidade suburbana em resistência ao aburguesamento do mundo. Da mesma forma que o samba, o “bom” malandro agoniza, mas não morre... ainda!

A construção de críticas ao período ditatorial, algo presente em Vai trabalhar..., também se torna perceptível no outro longa-metragem que Carvana realizou nos anos 1970, intitulado Se segura, malandro (1978). Contando com uma narrativa mais fragmentada em comparação à obra anterior, preenchida por diversas esquetes cômicas de curta duração, o segundo filme dirigido pelo cineasta, a despeito do título, não se volta para um retrato do universo cultural diretamente associado à velha malandragem brasileira. Em Se segura..., abrindo mão de atuar como protagonista do enredo, Carvana interpreta o locutor Paulo Otávio, sujeito amalucado que dirige uma emissora radiofônica clandestina localizada no alto de um morro carioca. No interior de um barracão bagunçado, onde observa os desconcertos da megalópole, o personagem atravessa os dias no comando do programa “Se segura, malandro”, um diário jornalístico de variedades em que informa os acontecimentos acerca da loucura cotidiana vivida na cidade do Rio de Janeiro. Enquanto se ocupa de afazeres como regar plantas ou cozinhar ovos, misturando doidice pessoal com a função de locutor, Paulo conduz seu programa de linha popular, feito “para todos aqueles com a corda no pescoço”, no qual anuncia, com deboche e ironia, os crescentes desvarios de uma sociedade marcada pelo domínio da modernização capitalista. Rindo das desgraças do mundo, o personagem interpretado por Carvana, espelho de seu projeto artístico como cineasta, expõe criticamente um painel satírico acerca das nossas contradições sociais e conflitos de classe. Ao lado da parceira Calói Volante, figura exuberante que sai à caça de notícias com sua bicicleta e seu guarda-chuva transparente, o locutor torna-se uma espécie de cronista dos absurdos contemporâneos. Quando a notícia se avizinha, e o filme desloca-se para o espaço público com o objetivo de encenar aquilo que está sendo anunciado, Paulo fala, dentre outros assuntos, sobre as desventuras de um defunto pela cidade ou sobre um bandido que finge ser maratonista para assaltar as pessoas. Quando sua sandice toma conta do microfone, algo recorrente, ele inventa falsas informações, incitando atos subversivos que desestruturam a hierarquia e a ordem social da vida corriqueira. É o caso, por exemplo, da sequência em que estimula os pobres a tomarem conta da rua em frente ao Copacabana Palace, pois o luxuoso hotel supostamente daria alimento a quem gritasse a senha “borboletas imperiais”. Anárquico, desordenador da mediocridade institucional, ele é um personagem erradio a irradiar loucuras. Conforme escreveu Armando Costa, um dos roteiristas de Se segura..., a obra buscou retratar o

[...] monstruoso erro [...] [de uma] cidade que [...] nós mesmos construímos [...], exercendo au grand complet nossa inexaurível capacidade de fazer besteiras. O filme deseja que as pessoas se escangalhem de rir diante da visão de si próprios, [...] os desajeitados moradores desta Babel racional-irracional (COSTA, 1978).

Composto a partir de uma montagem que vai alternando as múltiplas crônicas anunciadas pelo locutor Paulo Otávio, Se segura... apresenta, no decorrer de sua narrativa fragmentada, três enredos que são construídos com maior apuro dramático e ocupam grande parte do tempo fílmico. É por meio dessa tríade de histórias satíricas, todas evocando tensões entre diferentes classes sociais, que Carvana melhor manifesta aquele tratamento dialético antes encontrado em Vai trabalhar..., a alternância do romantismo e do mal-estar como representação crítica acerca do contexto brasileiro da década de 1970. Em pelo menos dois dos enredos centrais presentes em seu segundo longa-metragem, ainda que não retorne à figura típica do malandro carioca, o cineasta buscou uma nova celebração à criatividade popular capaz de erguer resistências trambiqueiras em oposição ao progresso burguês e ao mundo do trabalho. Embora não tenham as vestes e os trejeitos consagrados pelo imaginário cultural da malandragem, os personagens destas históricas são herdeiros do espírito rebelde outrora manifestado em Dino, concentrando em si a capacidade do povo em encontrar recursos engenhosos para um escape aos ditames capitalistas. Laurinha e Romão, casal protagonista de uma das crônicas, são reencarnações da malandragem tão apreciada no projeto cinematográfico de Carvana. Recém-chegados ao Rio de Janeiro, vindos do nordeste do país, os dois migrantes encontram-se submetidos, em boa parte do filme, à sandice crescente da megalópole. Por meio de golpes fracassados, sobretudo aquele no qual falha em roubar maletas de empresários, Romão nada triunfa na ascensão econômica prometida em terras cariocas. Entregue a “bicos” pontuais, seja trabalhando como modelo de vitrine ou cuidadora de idosos, Laurinha tampouco consegue romper com a roda-viva da precariedade social. No entanto, graças à ajuda do destino, de um acaso que não perdem a chance de aproveitar, eles encontrarão o golpe perfeito. Roubando cachorros pertencentes a ricaços, acumulando o dinheiro oferecido como recompensa pela devolução dos animais, o casal faz da vigarice um trunfo criativo do povo. Lubridiando os poderosos a partir do “jeitinho” malandro, eles se darão bem ao término do longa-metragem.

Já o segundo enredo de viés positivo, no qual reaparece a potência da “boa” malandragem, é aquele que transcorre no interior de um morro carioca. A partir de um argumento sugerido pelo dramaturgo Paulo Pontes (BÔSCOLI, 1978), o episódio retrata a solidariedade presente em uma favela na qual os pobres se unem em confronto aos interesses mesquinhos da especulação imobiliária. Retornando ao problema antes apresentado em Vai trabalhar..., o progresso capitalista como destruição do espaço comunitário do povo, Carvana constrói uma história de resistência na qual os moradores do morro, por meio da malandragem, obtêm uma vitória significativa na luta contra seus oponentes. Durante o desenvolvimento do episódio, frente a bandidos que agem com o intuito de expulsar os habitantes da região, esvaziando-a para que seu terreno seja explorado comercialmente, a vizinhança popular elabora um plano de insurgência onde procura afirmar sua combatividade e seu desejo de permanecer no local. Usufruindo da malandragem para desviar a atenção de um dos capangas, enganado pela falsa sedução de uma bela mulher, os moradores organizam um mutirão secreto a partir do qual constroem um banheiro coletivo, efetivando a ocupação simbólica e material do espaço tão cobiçado pelo meio empresarial. O ato de resistência, em contracorrente à transformação da favela em mercadoria imobiliária, surge em Se segura... como exemplar do romantismo que Carvana atribui à criatividade vigarista da classe popular.

O inusitado deste episódio, no entanto, reside na presença alienígena do personagem Candinho, jovem de alta classe social obrigado por seu pai a viver entre os pobres durante o período de um ano. Forçado a essa situação de estranhamento, a lidar com a miséria para aprender com as dificuldades da vida e herdar a riquíssima empresa familiar, Candinho passará por um processo de conscientização ao aproximar-se da vizinhança popular. Se de início ele é a expressão do conhecimento livresco, economista diplomado que acredita na meritocracia e no planejamento como formas de ascensão social, aos poucos compreenderá a existência de uma precariedade concreta e estrutural que sufoca as possibilidades de crescimento da classe popular. Influenciado pela vitalidade da favela, pela rebeldia que lá encontra, Candinho adere calorosamente à construção do banheiro coletivo. Seu entusiasmo, porém, é passageiro. Diante da chance de regressar à boa vida, face ao pai que vai buscá-lo no morro, o personagem deixa para trás a comunidade, largando os companheiros em meio aos esforços do mutirão. Se até esse momento o enredo parecia apontar para a transformação política do jovem de elite, quase reavivando a antiga crença revolucionária da esquerda na união do povo com a burguesia nacionalista, o término do episódio faz sucumbir tal idealização, reposicionando Candinho em sua classe de origem. Em tom farsesco, com irreverência e erotismo, a história parece uma paródia de peças realizadas pelo Centro Popular de Cultura nos anos 1960, sobretudo A vez da recusa (1963), de Carlos Estevam Martins, na qual encenava-se, com seriedade, o desejo de um projeto político a unificar diferentes classes em prol da transformação do mundo. Se restou romantismo e solidariedade, parece dizer Carvana, tais sentimentos pertencem ao popular. Para o cineasta, como visto em Vai trabalhar..., é nos desvalidos que resiste uma criatividade oposta ao aburguesamento da sociedade. Candinho talvez tenha aprendido algo, mas optou, por fim, pelo regresso ao caviar e à mansão com piscina.

Enquanto os dois episódios comentados anteriormente apontam para a idealização da malandragem, tornando-a elemento de observação crítica sobre o Brasil, a terceira história central presente em Se segura... volta-se para uma representação melancólica acerca do mundo do trabalho. Naquele que é o enredo mais politizado da produção fílmica de Carvana, no qual verificam-se discursos explicitamente ideológicos, o protagonista é Alcebíades, um homem de meia-idade considerado por todos modelo exemplar de trabalhador. Sempre pontual, produtivo e submisso aos patrões, Alcebíades é funcionário da H. J. irmãos, empresa para a qual se dedica de corpo e alma. No exato dia em que completa trinta anos na corporação, quando uma festa é preparada em sua homenagem, com direito a discurso exultante da chefia, o personagem, no entanto, enlouquece. Somando-se às tantas sandices que o locutor Paulo Otávio anuncia em sua rádio, Alcebíades explode após décadas de exploração e de silêncio. Em um ato de desespero, no qual rebenta sua raiva contra o universo do trabalho, ele resolve sequestrar o elevador da empresa, mantendo refém um grupo de pessoas que ali se encontrava. Com sangue nos olhos e faca na mão, decidido a transformar o elevador em um bunker de resistência, o personagem anuncia sua decisão de morar para sempre dentro daquele espaço, tornando-o um microcosmo de felicidade em meio ao domínio das forças capitalistas.

De início, o ato impetuoso desordena a hierarquia. Como se rompesse um cotidiano modorrento, a revolta se expande para todo o escritório, contaminando os funcionários e desestabilizando o poder patronal. Diante dos esforços da chefia em convencê-lo a desistir, Alcebíades explicita em suas falas o jogo opressivo ao qual esteve rendido por décadas. Forçado a ajustar-se à lógica do trabalho, a padronizar sua vida de acordo com os interesses patrimoniais da corporação, o personagem detém consciência do próprio lamaçal, do quanto aderiu à perversidade competitiva e tornou-se, ele mesmo, mera engrenagem a ser futuramente substituída. Tal desmonte da ética burguesa, todavia, durará pouco tempo. Conforme passam as horas, o elevador começa a atrair um número cada vez maior de desajustados sociais, de fugitivos da megalópole que invadem o espaço em busca de refúgio. Aos poucos, o paraíso de Alcebíades superlota-se de seres tão desesperados quanto ele. A chegada de um representante da Federação Brasileira de Neuróticos, sujeito que vem institucionalizar a loucura, faz com que o personagem perceba a inoperância de sua utopia. Ao sair do elevador, com semblante devastado, ele retorna ao mundo do trabalho, reajustando-se ao sistema opressivo do qual buscou sair. Claramente satisfeito com o desfecho da situação, seu chefe não o demite, antes anunciando sua permanência na empresa e a punição por meio de descontos salariais em decorrência dos tumultos. Ao protagonista resta render-se, utilizar o relógio de ouro que ganhou pelos anos dedicados à empresa, como se aquele objeto conferisse um status irônico ao esmagamento sofrido durante toda a vida. Neste que é o enredo mais melancólico da produção de Carvana, cuja irreverência descamba para o mal-estar, a esperteza não surge como atributo criativo do povo, mas sim como instrumento malicioso de uma elite econômica que explora os outros em benefício próprio. Na soma entre Vai trabalhar... e Se segura..., trata-se de um raro momento no qual o desfecho dramático não consagra o trambique popular, permitindo ver a força de outra forma de malandragem, perversa, cuja manifestação ocorre no interior da classe patronal. Embora o chefe tenha sofrido humilhações, tornando-se motivo de zombaria, no fim é ele quem sai vitorioso do embate. Aquilo que Chico Buarque traduziria de modo mais acentuado na peça Ópera do malandro (1978), um desnudamento da malandragem malfazeja, condicionante de nossas contradições sociais, Carvana introduz pontualmente no episódio de Alcebíades.

A partir, portanto, de uma dialética entre romantismo e mal-estar, da oscilação entre a malandragem popular e as perversidades capitalistas, Carvana realizou um projeto cinematográfico a observar criticamente o cenário brasileiro da ditadura militar. Como fizera em 1973 no longa-metragem Vai trabalhar..., o cineasta também termina Se segura... com uma performance de ocupação carnavalesca do espaço público. Na sequência que encerra sua obra de 1978, por meio de uma situação claramente alegórica, a ambulância de um manicômio e uma viatura policial chocam-se no meio da rodovia, colocando em confronto os representantes de duas instituições correcionais vinculadas ao Estado. Enquanto os motoristas e agentes públicos batem boca, acusando-se pelo acidente, os personagens e a equipe técnica de Se segura... escapam silenciosamente dos automóveis, fugindo às autoridades que pretendem encarcerá-los em prisões e sanatórios. Ao som do samba “Plataforma”, composto por João Bosco e Aldir Blanc, os neuróticos, trabalhadores e malandros, esse conjunto de seres desajustados, lançam-se ao espaço público espalhando loucuras rumo à megalópole. Estimulados pela canção, cuja letra pede para não dar “ordem ao pessoal, não [trazer] lema nem divisa, [porque a] gente não precisa que organizem nosso carnaval”, os personagens montam uma espécie de bloco da sandice, instaurando o gesto utópico de alastrar o desvairo em um mundo cada vez mais institucionalizado pelo ideário burguês. Novamente, o cineasta encerra um filme expressando desejos de felicidade a despeito das aporias do capitalismo.

Por meio de uma filmografia popular, na qual a comicidade convive com a reflexão e a chanchada encontra as heranças do Cinema Novo, Carvana construiu um estilo artístico a evocar a importância do humor e da “boa” malandragem em um contexto histórico de supressão democrática. Ao zombar dos poderes instituídos, celebrando a criatividade do povo na lida com o autoritarismo, o cineasta desenvolveu em sua obra um estilo singular, demarcando um território político potente no decorrer dos anos 1970. Seu tom galhofeiro, a “desopilar o fígado” na época da ditadura, permanece até hoje, em 2019, como saída irreverente para confrontar as forças de dominação ainda presentes na sociedade brasileira. A despeito das décadas que se passaram, seu cinema se mantém atual como exemplar de uma comicidade cujo vigor reside em debochar dos poderosos, fazendo do riso um instrumento contrário às hierarquias sociais e às ordenações excludentes do mundo. Se fosse possível sintetizar a filmografia de Carvana a partir de uma única frase, como testemunho de seu espírito rebelde e satírico, sem dúvida a escolha recairia na sentença proclamada pelo personagem que interpretou em Se segura...: é “sorrindo”, ironiza o locutor radiofônico Paulo Otávio, que “se chega mais fácil ao meio do inferno!”.

Referências

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Notas

1 Apesar dos esforços, não localizei trabalhos acadêmicos específicos sobre o cinema de Hugo Carvana. Para compor o texto que segue, no qual apresento o projeto do artista nos anos 1970, investi, sobretudo, na pesquisa de fontes documentais publicadas naquela década. A escrita do artigo foi possível graças ao apoio da família do cineasta, que me concedeu acesso aos arquivos por ele colecionados durante sua vida. Como agradecimento, dedico o texto a Rita Carvana e Martha Alencar.
2 Tais informações encontram-se no documentário Carvana, como se faz um malandro (2018), dirigido por Lulu Corrêa.
3 No corpo do texto, minha intenção não foi discorrer sobre as complexidades e contradições que marcaram as experiências da chanchada e do Cinema Novo, mas sim mapear as leituras que Carvana promoveu acerca de tais heranças como base para a consolidação de sua própria filmografia. Na década de 1970, no entorno da realização de Vai trabalhar, vagabundo, o ator e diretor possuía a opinião de que as comédias carnavalescas, a despeito de sua popularidade, se ausentavam de comentários políticos encontrados na tradição engajada do Cinema Novo. Sobre isso, vale ressaltar que inúmeros pesquisadores acadêmicos já problematizaram tal assertiva, refutando a leitura de que a chanchada seria sinônimo de alienação acerca da condição brasileira. Em relação a esse debate, analisando o gênero em suas complexidades identitárias e dimensões políticas, valeria a pena ler as publicações de Monica Rugai Bastos (2001), Luís Alberto Rocha Melo (2006) e João Luiz Vieira (2018, p. 344-391). O próprio Cinema Novo, cuja produção entre 1959 e 1964 foi muito além do pragmatismo ideológico identificado por Carvana, revela-se em sua pluralidade estética nas pesquisas desenvolvidas por Ismail Xavier (2001), Reinaldo Cardenuto (2014) e Marcos Napolitano (2017). Ainda que tal bibliografia permita ampliar o conhecimento sobre as tradições fílmicas aqui anunciadas, não foi minha opção tensioná-la com o ponto de vista presente nas falas do cineasta. Sem ignorar o contexto histórico, trata-se, sobretudo, de trazer à tona a reflexão de um cineasta até hoje marginalizado nos estudos acadêmicos, o discurso de um artista às voltas com seu processo pessoal e subjetivo de criação.
4 As informações sobre Vianinha, presentes no corpo do texto, originam-se de Reinaldo Cardenuto (2013).
5 A despeito de não terem sido localizados trabalhos acadêmicos sobre Armando Costa, o que gerou o caráter hipotético de algumas frases presentes no corpo do texto, consegui reunir informações em torno do dramaturgo a partir das seguintes fontes documentais: depoimentos de Carvana (CASTRO, 1973; PASQUIM, 1974), escritos de Costa (1978), áudios contendo conversas entre eles durante a preparação do filme Bar esperança (1981) e a entrevista concedida a mim por Martha Alencar (fevereiro de 2019).
6 Entre 1979 e 1982, Carvana protagonizou uma série televisiva de grande popularidade, intitulada Plantão de polícia (Rede Globo).
7 Sobre os vínculos entre artistas de esquerda e a indústria cultural nos anos 1970, consultar Miriam Hermeto (2010).
8 Para chegar a tal conclusão, inspirei-me no livro de Marcos Napolitano (2017), em que se evidencia a multiplicidade das resistências culturais durante a ditadura militar.
9 O recorte selecionado para este artigo volta-se para o cinema que Hugo Carvana realizou, como cineasta, no período da ditadura militar. Uma vez que meu interesse, na segunda parte do texto, reside nos filmes em que aparecem personificações explícitas de personagens malandros, dentro de um imaginário cultural tipicamente brasileiro, optei por analisar os longas-metragens Vai trabalhar, vagabundo (1973) e Se segura, malandro (1978), deixando para outra ocasião a obra Bar esperança (1983). De certo modo, variações em torno da malandragem surgem na cinematografia integral de Carvana, mas é no contexto da ditadura, como veremos a seguir, que o cineasta intensificou o uso de tal elemento como tensionamento cômico à condição autoritária vivida pelo país.
10 Para uma análise sobre como a ditadura, nos anos 1970, propagou nos meios de comunicação um discurso associando o patriotismo à ética do trabalho, consultar Carlos Fico (1997).
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