Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
Os curtas-metragens de Paulo Sacramento e o debate sobre a violência no Brasil dos anos 1990
Rosane Kaminski
Rosane Kaminski
Os curtas-metragens de Paulo Sacramento e o debate sobre a violência no Brasil dos anos 1990
The Paulo Sacramento’s short films and the debate on violence in Brazil in 1990’s
Antíteses, vol. 12, núm. 23, pp. 698-727, 2019
Universidade Estadual de Londrina
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Os curtas-metragens Ave (1992) e Juvenília (1994), ambos realizados por Paulo Sacramento, são objetos de reflexão neste texto, que tem como propósito amplo discutir as relações entre imagem e violência. O exame dos filmes é feito a partir da ideia de violência, que está presente no seu âmbito semântico e também na sua linguagem, inventiva e irônica. Dois fenômenos observados na história brasileira dos anos 1980-90 se articulam à análise fílmica: 1) a exacerbação da violência social e sua visibilidade nos debates acadêmicos, culturais e políticos; e 2) o aumento na produção de curtas-metragens, incluindo um significativo grupo de filmes que discute a violência no país. Com interesse em averiguar a conexão entre filmes e conjuntura social, olha-se para esses dois curtas-metragens de Paulo Sacramento, não apenas como “representação da violência”, mas como produtos que participam do processo de“desnaturalização” e ampliação das discussões críticas sobre a violência no Brasil.

Palavras-chave:História e cinemaHistória e cinema, Cinema brasileiro Cinema brasileiro, Violência Violência, Curta-metragem Curta-metragem, Paulo Sacramento Paulo Sacramento.

Abstract: This paper analyses the Paulo Sacramentos’ short films Ave (1992) and Juvenília (1994). The main goal here is to discuss the relationship between image and violence. The idea of violence is present in both films through their semantic scope and also in their creative and ironic language. Two phenomena observed in the 1980s and 1990s Brazilian history are articulated to the film analysis: 1) the growth of social violence and its appearance in academic, cultural and political debates; and 2) the increase in short film production, which includes an important group of films about violence in the country. This paper aims to understand the connection between films and social context. In this sense, the two short films by Sacramento will be analyzed both as “representation of violence” and as artworks that criticize the trivialization of violence in Brazil.

Keywords: History and cinema, Brazilian cinema, Violence, Short film, Paulo Sacramento.

Carátula del artículo

Sociedades científicas

Os curtas-metragens de Paulo Sacramento e o debate sobre a violência no Brasil dos anos 1990

The Paulo Sacramento’s short films and the debate on violence in Brazil in 1990’s

Rosane Kaminski
Universidade Federal do Paraná , Brasil
Antíteses, vol. 12, núm. 23, pp. 698-727, 2019
Universidade Estadual de Londrina

Recepção: 17 Março 2019

Aprovação: 11 Maio 2019

Imagens, violência e crise do cinema brasileiro na entrada dos anos 1990

As imagens de sofrimento e violência tem uma longa linhagem, e as nossas relações afetivas com elas são ambíguas. Em Diante da dor dos outros, Susan Sontag (2003, p. 38) discute algumas das funções e efeitos que tais imagens acionam, pontuando as relações de prazer e desprazer que estabelecemos com elas. Marie-José Mondzain (2009), por sua vez, no livro A imagem pode matar?, reitera que as imagens, por si só, não são intrinsicamente violentas. Por mais que nos façam virar o rosto, ou espiá-las com curiosidade mórbida, elas não são mais do que realidades sensíveis que produzem discursos. Diferem, portanto, da violência, que não é um objeto, e sim uma brutalidade reconhecida por seus efeitos negativos, lesando a vida e a liberdade de cada um (MONDZAIN, 2009, p. 15-16). A autora afirma, ainda, que as imagens em si não geram danos, não ferem, não matam. O que pode gerar danos são os usos que se fazem delas. A recepção e a partilha das imagens, a educação do olhar, são eminentemente políticos e partícipes de nossos juízos e ações sobre o mundo.

Imbuído dessas questões, o presente texto tem o propósito de refletir sobre as relações complexas entre imagens e violência a partir da análise de dois curtas-metragens brasileiros produzidos no início dos anos 1990. Tratam-se de Ave (1992) e Juvenília (1994), ambos de autoria de Paulo Sacramento, na ocasião um estudante de cinema na Escola de Comunicação e Artes da USP. Esses filmes impactam pelo aspecto inventivo da linguagem associada ao desconforto que, neles, está associado principalmente à simulação de violência física.

Dois fenômenos observados na história brasileira dos anos 1980-90 se articulam à escolha desse objeto de estudo. O primeiro trata-se da exacerbação da violência social no país, bem como a sua visibilidade política, cultural e acadêmica. Diversas pesquisas realizadas naquelas décadas constatavam o aumento dos indicadores associados à violência na sociedade brasileira, como os crimes hediondos e homicídios. O assunto passou a fazer parte das preocupações governamentais no âmbito da saúde pública, mas também apareceu em várias produções culturais e no campo universitário (ZALUAR, 1999). Naquele contexto de abertura política, ao invés de reiterar o discurso chavão que associava o aumento da violência à marginalidade e pobreza, vários estudiosos passaram a denunciar a violência como ferramenta de manutenção da desigualdade social e garantia das relações de exploração. Já em 1979 Paulo Sergio Pinheiro discorria sobre a violência do estado infligida contra as classes populares, dizendo que “a tortura, os maus tratos e toda violência em relação às classes subalternas têm uma função eminentemente política” (PINHEIRO, 1979, p. 5)1, preservando a hegemonia das classes dominantes. Em 1980 Marilena Chauí desmistificava a suposta “não-violência” do homem brasileiro e afirmava que “a violência se encontra originariamente do lado da sujeição da dominação, da obediência e da sua interiorização, e não do lado da violação dos costumes e das leis” (CHAUÍ, 1980, p. 2)2. Sérgio Adorno também problematizava a “escalada da violência policial”, mencionando os constantes linchamentos ocorridos no Brasil e sua veiculação pela mídia, a existência dos grupos de extermínio e justiceiros que cresceram notadamente desde os anos 1980 e, ainda, as chacinas que se intensificaram no final da década de 1990, principalmente nas periferias de São Paulo e região metropolitana (ADORNO, 2002, p. 97-99). O autor aponta que o aumento de crimes violentos nos grandes centros foi mais acelerado a partir de 1988, atingindo índices assustadores em 19923, justamente o ano de produção do curta-metragem Ave.

O segundo acontecimento observado naquelas décadas foi uma ampliação expressiva da produção de curtas-metragens no Brasil a partir de 19864. Curiosamente, o período que vai daí até 1994, ano de produção do Juvenília, representou uma recessão no cinema de longa-metragem no Brasil. A crise financeira dos anos 1980 atingiu diretamente a produção de filmes longos, assunto bastante visível nos jornais e revistas, em matérias específicas sobre esse campo profissional, como é o caso dos textos de José Carlos Monteiro (1986) e de Marcus Valério (1987) ambos publicados na revista Cine Imaginário. Lamentava-se que “dezenas de veteranos (Joaquim Pedro de Andrade, Geraldo Sarno, Paulo César Saraceni, Miguel Borges) há muito tempo não veem uma câmera pela frente – pelo menos na realização de longa-metragem”, e que “na Embrafilme, apesar dos esforços de Carlos Calil, os cofres estão vazios” (MONTEIRO, 1986, p. 20).

No entanto, no mesmo período, houve um significativo aumento na produção de curtas-metragens, estimulada por meio de editais, a exemplo do Prêmio Estímulo da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, e também pelas premiações em dinheiro conquistadas em Festivais. Alguns, inclusive, conferiram um espaço crescente aos curtas, em detrimento dos longas-metragens. É o caso do Rio-Cine Festival que, a partir de sua IV edição em 1988, eliminou a mostra competitiva de longas, mantendo a de curtas, num contexto bastante desanimador de cortes de verbas federais para o cinema brasileiro (LEMOS, 1988, p. 1).

Outro fator que impactou nessa produção de curtas, foi o conjunto de reformulações feitas pelo Conselho Nacional de Cinema (Concine) na chamada “Lei do Curta”, um dispositivo legal que regulamentava a exibição de curtas-metragens brasileiros nas salas de cinema do país, e que começou a ser formulado em 19755. Nos anos 1980, destacaram-se duas Resoluções do Concine em favor da ampliação qualitativa e quantitativa da produção de curtas: a de nº 103 (de 6 de abril de 1984), que instituía um sistema de júris para selecionar os curtas dignos de receber um Certificado Especial que lhes conferia direito à exibição nas salas de cinema6, e a de nº 137 (de 24 de abril de 1987), que estabelecia a “volta do curta às telas”, após um período em que essa regra de exibição não estava sendo regularmente cumprida (SIMIS, 2008, p. 48).

Tal fenômeno de ampliação quantitativa e criativa na produção de curtas na segunda metade dos anos 1980 viria a ser nomeado pela crítica cinematográfica como “primavera do curta”. A expressão, cunhada por Amir Labaki, foi bastante usual em matérias publicadas entre 1991 e 19947. No entanto, antes mesmo da existência desse rótulo, era recorrente apontar, desde 1986, uma “renovação do cinema brasileiro” proporcionada pelos curtas, como é perceptível nesse texto de Angela José (1986, p. 36-37) referente ao Rio-Cine Festival de 1986:

A renovação do cinema brasileiro está nos curtas e médias-metragens apresentados durante o II Rio-Cine, preocupados em retratar a vida brasileira em seus vários aspectos, dando muito mais atenção ao tratamento dos temas, rompendo com a linguagem tradicional dos documentários e abrindo ao curta o espaço da ficção.

Esse período de expansão dos curtas teve continuidade na década seguinte e estava em evidência quando Paulo Sacramento realizou o filme Juvenília. Enquanto isso, a produção de longas vivia sua pior crise. No primeiro semestre de 1990, logo que assumiu a presidência, Fernando Collor de Mello transformou o Ministério da Cultura em Secretaria da Cultura e extinguiu a Lei de incentivo fiscal à cultura, conhecida como Lei Sarney, de 1986 (MARSON, 2009, p. 17)8. Dizia-se na época, que o cinema brasileiro “chegara ao fundo do poço” (MOREIRA, 1994, p. 18). Para Lucia Nagib (2002, p. 13) os dois primeiros anos daquela década “estão certamente entre os piores da história do cinema brasileiro”9.

A produção de curtas, por sua vez, já não dependia da exibição obrigatória nas salas de cinema comercial, uma vez que vinham sendo constituídos alguns espaços de exibição e consagração próprios a esse formato, como era o caso do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, mostra não-competitiva criada em 1990 pela Secretaria de Estado da Cultura e realizado no Museu da Imagem e do Som (MIS-SP), e da Mostra Curta Cinema, no Rio de Janeiro, criada em 1991. A concepção de tais eventos, que sinalizam o processo de conquista de uma relativa autonomia dos curtas, ocorria praticamente ao mesmo tempo em que a legislação referente ao formato era inviabilizada pela extinção da Concine (acabando com a obrigatoriedade de exibição de curtas nas salas comerciais), dentre outras medidas tomadas no governo Collor naquele emblemático 1990.

Os dois filmes de Paulo Sacramento escolhidos para análise neste texto integram o intricado contexto acima descrito e permitem refletir sobre a conexão entre cinema e conjuntura social. Mais do que isso, esses curtas participaram da produção e partilha das imagens de violência, exatamente no momento em que as estatísticas indicavam um ápice do fenômeno social no Brasil. A mídia diária disseminava o assunto, tanto pelos formatos tradicionais do jornalismo, quanto pelo surgimento de novos programas, a exemplo do Aqui Agora, exibido pelo canal SBT a partir de 1991. Comandado pelo jornalista policial Gil Gomes, trouxe novo estilo à abordagem de crimes escabrosos. O visual, a voz e o gestual do jornalista davam o tom ao programa diário, que permaneceu no ar até 1997, apesar de ser apontado como exploração populista da miséria e da violência. Na opinião de Ivana Bentes (1994, p. 44-46), contudo, o Aqui Agora, “herança direta da imprensa sensacionalista, do folhetim e da radionovela”, reciclava a ousadia do cinema brasileiro dos anos 1960: “câmera na mão, som direto e informação, produzindo imagens violentas de um país que não queremos ver”. No seu texto, Bentes discutia o papel crucial exercido pelos meios de comunicação num contexto de esvaziamento do Estado e das instituições, pontuando o trânsito da função-mídia entre os extremos da apatia generalizada ao estímulo da violência. Aquele aparente receio social quanto ao poder das imagens midiáticas ecoa a argumentação de Mondzain (2009, p. 13-24) sobre o excesso de responsabilidade conferido às imagens na produção da violência, e sua defesa da necessidade de estudos sistemáticos da imagem enquanto “coisa”, artefato, o que só se sustenta na dessemelhança, na distância entre o visível e o sujeito do olhar.

A produção dessa distância, sabemos, é tarefa assumida pela arte. Foi, portanto, com esse intuito que vários artistas e cineastas brasileiros adentraram na discussão sobre a violência no Brasil dos anos 1990, com obras cujo intuito é abalar, chocar o espectador, provocando distanciamento10. É o caso de Ave (1992) e Juvenília (1994). Tais filmes não tratam da violência apenas como “representação”, mas são produtos que participam do processo de “desnaturalização” e ampliação das discussões críticas sobre a violência no Brasil.

A internalização social da violência, o processo da sua naturalização (e até sedução), tem longo lastro. Antes de analisar os filmes, vale estabelecer um recuo para refletir sobre as relações ancestrais entre as imagens e a violência.

Visualidade, violência e prazer: um percurso

Susan Sontag (2003, p. 17) diz que “por longo tempo algumas pessoas acreditaram que, se o horror pudesse ser apresentado de forma bastante nítida, a maioria das pessoas finalmente apreenderia toda a indignidade e a insanidade da guerra”. Nessa perspectiva, a partir de um juízo apressado e otimista, poder-se-ia acreditar ingenuamente que as pessoas têm aversão à violência, e que sua representação favorece a educação a favor da não-violência, seja pelo medo ou pela compaixão.


Figura 1
Agesandro, Atenodoro e Polidoro Rodes. Grupo de Laocoonte. C. séc. I a.C. – I d.C.
Wikimedia Commons: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Laoco%C3%B6n_and_His_Sons.jpg


Figura 2
Lucas Cranach, o Velho. Crucificação. C. 1532-1538
Wikimedia Commons: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lucas_Cranach_the_Elder_-_The_Crucifixion_-_Google_Art_Project_(679844).jpg

Desde a antiguidade, “os sofrimentos mais comumente considerados dignos de ser representados são aqueles tidos como frutos da ira, divina ou humana” (SONTAG, 2003, p. 37). A escultura de Laocoonte e seus filhos se retorcendo de dor é um dos exemplos mais conhecidos (Figura 1). Sem datação exata, consiste num conjunto esculpido em mármore que representa o castigo impingido pelos deuses ao sacerdote troiano e seus dois filhos. Ele foram esmagados até a morte por cobras enormes, por que Laocoonte teria avisado os troianos sobre o cavalo de madeira dos gregos. O incidente foi contado por Virgílio na Eneida, mas não se sabe o que veio antes: a escultura ou o texto poético. O grupo escultórico foi objeto de interesse de Gotthold Ephraim Lessign, teórico da arte alemão do século XVIII que refletia sobre a especificidade de cada linguagem e sua adequação na representação do trágico. O que promovia maior deleite estético? Entre outras coisas, nessa escultura lhe chamava a atenção a forma de expressar a emoção nas faces distorcidas dos personagens, causando desprazer. Dizia ele:

Quero me demorar na expressão. Existem paixões e graus de paixões que se manifestam na face através das contorções mais feias e colocam o corpo em posições tão violentas que todas as belas linhas, que o contornam numa situação calma, se perdem. Quanto a essas, os artistas antigos ou se abstinham inteiramente ou as reduziam a um grau inferior no qual elas estão aptas a uma medida de beleza. Furor e desespero não profanaram nenhuma de suas obras. [...] E isso aplicado ao Laocoonte, fica evidente o motivo que eu procuro. O mestre visava à suprema beleza sob as condições aceitas da dor corporal. Esta, em toda a sua violência desfiguradora, era incompatível com aquela. Ele foi obrigado a reduzí-la; ele foi obrigado a reduzir o grito em suspiro; não porque o grito denuncia uma alma indigna, mas antes porque ele dispõe a face de um modo asqueroso (LESSING, 2011, p. 93-94).

O gesto refreado do escultor, ao trabalhar dentro dos limites impostos pelas artes visuais e “reduzir o grito em suspiro” resulta, na opinião de Lessing, numa construção “feia, repugnante, da qual desviamos com bom grado a nossa face, porque a visão da dor excita desprazer, sem que a beleza do objeto que sofre possa transformar esse desprazer no sentimento doce da compaixão” (LESSING, 2011, p. 94). Para ele, não se compara à descrição literária feita por Virgílio, de que Laocoonte “eleva um clamor horrendo até as estrelas”, e que seria sublime para o ouvido (LESSING, 2011, p. 107). Representar o horror e o sofrimento pode, no final das contas, trazer deleite.

As relações entre a violência, o belo e o prazer são emaranhadas. Há toda uma literatura artística que discorre sobre o prazer e o desprazer que as imagens nos despertam, e que demonstra o quanto essas relações são construídas e modificadas historicamente, ao passo em que se transformam os problemas gerais da arte.

Nos séculos seguintes à produção do Laocoonte, as inúmeras versões da Paixão de Cristo em escultura ou em pintura (como a de Lucas Cranach, o Velho, visível na Figura 2) e o inesgotável catálogo visual das diabólicas execuções dos mártires cristãos são seguramente obras destinadas a horrorizar, comover, bem como instruir e dar exemplo.


Figura 3
Lucas Cranach. Serra. Gravura feita entre 1539 e 1548
Bataille (1984)

A Figura 3, gravura feita também por Cranach, exemplifica a tortura impingida a homossexuais e mulheres que feriam a moral religiosa do século XVI. O espectador pode condoer-se ante a dor do sofredor, mas essa comoção não deixa de ser acompanhada de certo prazer na apreciação da imagem, seja pela composição visual, o virtuosismo ou os detalhes da cena. Mas, também, pelo seu conteúdo brutal e erótico. Georges Bataille, um dos principais teóricos do erótico destaca o comércio de gravuras desse tipo durante o Renascimento (sobretudo na Alemanha), dentre as quais situa “aquela serra tão comprida e cortante que separa pelo entrepernas um supliciado nu, suspenso pelos pés” que observamos na gravura de Cranach (BATAILLE, 1984, p. 36).

De fato, quando o assunto é violência, são ainda mais complexas as relações entre prazer e desprazer no âmbito visual. Sontag (2003, p. 38) menciona que a fome de imagens que mostram corpos em sofrimento é quase tão sôfrega quanto o desejo de imagens que mostram corpos nus, e que durante muitos séculos, as imagens do inferno produzidas pela arte cristã “proporcionavam essa dupla satisfação elementar”.

Didi-Huberman (2005, p. 37) diz que a nudez “rima com desejo, mas também com crueldade” e, para discorrer sobre o assunto, ele analisa as pinturas de Sandro Botticelli sobre a História de Nastagio de Onesti (1482-1483), que representam a contínua repetição do assassinato de uma jovem nua, cujas vísceras são devoradas por cães11. Sem negar a “graça e a beleza” da pintura, verbaliza o mal-estar advindo destas obras que juntam o “estilo de ourives” botticelliano com a crueldade repetitiva, sádica e insistente (DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 79-102).

Também as cenas de guerras produzidas por artistas podem ser belas, no sentido do sublime, do aterrador e do trágico implicados nesse conceito. As instruções de Leonardo da Vinci sobre como fazer bem-feita uma pintura de batalha ilustram isso: que se mostrem os mortos cobertos de poeira e que se veja o sangue, que se mostrem personagens “na agonia da morte, rilhando os dentes, de olhos revirados” (SONTAG, 2003, p. 64-65).

Quando se trata de imagem fotográfica, tais relações se intensificam. A produção de imagens de registro de guerras, da tortura, da miséria, das chacinas, é um fenômeno do século XX. Como reagir diante delas? É aceitável sentir prazer diante de um horror real? Se, a princípio, esse prazer parece inapropriado, nos acostumamos com elas. Como diz Sontag (2003, p. 84), “uma constante dieta de imagens de violência” difundidas pela televisão e outros meios de comunicação tornou as pessoas indiferentes – e isso aparecia na discussão levantada por Bentes (1994) no texto antes mencionado. O risco é a brutalidade física tornar-se antes um entretenimento do que um choque. Há uma curva ascendente da violência e do sadismo aceitáveis na cultura de massa, seja na forma de filmes, de programas de tevê, de quadrinhos ou jogos digitais. “Uma imagística que teria feito o público encolher-se e virar a cara de nojo quarenta anos atrás é vista sem sequer um piscar de olhos por qualquer adolescente nos cinemas” (SONTAG, 2003, p. 84).

Essa banalidade da violência no universo midiático impacta, sem dúvida, na forma como recebemos as fotografias que recordam graves crimes e crueldades. Apesar disso, observa-se uma contradição entre ética e estética, no que diz respeito à aceitação de imagens de atrocidades. “As pessoas querem o peso do testemunho sem a nódoa do talento artístico, tido como equivalente à insinceridade ou à mera trapaça”, uma vez que as fotos menos elaboradas costumam ser recebidas “como portadoras de algum tipo de especial de autenticidade” (SONTAG, 2003, p. 26-27).

No entanto, como diz Mondzain (2009, p. 24), as imagens não são em si violentas, então é no relacionamento com elas que precisamos aprimorar nosso senso crítico, dissociar-nos da imagem, distanciar-nos e dirigir o nosso olhar para elas enquanto “coisas”.

Deveríamos, enfim, ser capazes de refletir sobre o que significa olhar tais esculturas, pinturas e fotografias, sobre a capacidade de assimilar efetivamente aquilo que elas mostram. Mas nem todas as nossas reações “estão sob a supervisão da razão e da consciência”, lembra Sontag (2003, p. 80), pois a maioria das imagens de corpos torturados e mutilados suscita um interesse lascivo. Nesse sentido, o preciosismo ético que tende a negar a beleza em fotografias de atrocidades, não deixa de ser hipócrita, principalmente se concordarmos com a premissa de que todas as imagens que exibem a violação de um corpo são, em certa medida, pornográficas, e que mesmo as imagens do repugnante podem seduzir12.

Desde o início da modernidade, alguns autores supõem que existe, sim, uma tendência inata orientada para o horrível. Sontag recorda que justamente Georges Bataille “tinha sobre sua escrivaninha, onde a podia olhar todos os dias, uma foto tirada na China, em 1910, de um prisioneiro no momento em que padecia ‘a morte de cem cortes’” (SONTAG, 2003, p. 82). Tratava-se de um método utilizado na execução de prisioneiros, no qual a vítima era anestesiada com ópio para se manter vivo por mais tempo durante a trucidação gradativa do seu corpo (Figura 4)13.


Figura 4
Fotografia de Tchou-Li. Ling chi (morte de mil cortes) Pequim, em 10 de abril de 1905.
Pinterest: https://br.pinterest.com/nicbucurenciu/historia/


Figura 5
Fotografia de Gildersleeve Fred, que apareceu em jornais e foi transformada em cartão postal, amplamente distribuída. Mostra o corpo de Jesse Washington carbonizado, vítima de linchamento, em Robinson, Texas, em maio de 1916.
Build Nation: https://buildnationblog.wordpress.com/2015/11/13/lynching-of-young-jesse-washington/

A prática era muito antiga, mas a possibilidade de fotografar o rito sacrificial e eternizá-lo em forma de uma imagem capturada no calor da hora trouxe novas significações a ela. Se antes só era possível testemunhar os procedimentos de tortura e punição nos locais públicos enquanto eles aconteciam, participando do aglomerado da multidão, ou por meio de imagens ficcionais produzidas por artistas, daí em diante, com a proliferação das câmeras portáteis, a imagem do horror poderia ser capturada, reproduzida, colecionada, transformada em fetiche.

Na mesma época em que foi feita essa imagem guardada por Bataille, também foram produzidos diversos cartões postais com fotografias de vítimas de linchamento em cidades pequenas dos Estados Unidos, entre 1890-1930, como a que pode ser vista na Figura 5. Nessas fotos de linchamentos, as vítimas são sempre pessoas negras. Elas nos falam da crueldade humana, da extensão do mal desencadeado pelo racismo, e foram tiradas como provas do ocorrido, transformadas em souvenires, comercializadas secretamente e colecionadas como cartões-postais. Décadas depois, foram expostas numa galeria em Nova York, em 2000, e vistas por milhares de curiosos (SONTAG, 2003, p. 77). O que pensar sobre isso? O que sentimos diante de tais fotografias? A estupefação do “ver ao vivo” se prolonga e se transfere para o prazer de possuir tais imagens.

Em seus escritos, Bataille insiste sobre a intimidade que há entre erotismo e violência, buscando acessar os recônditos mais profundos que separam o humano do animal. “O erotismo difere do impulso sexual dos animais por ser, em princípio e como o trabalho, a procura consciente de um objetivo que é a volúpia” (BATAILLE, 1984, p. 15). No entanto, nos nossos dias, diz ele (em contraposição aos povos primitivos), muitas vezes não se compreende a busca do prazer como um fim em si mesmo, e a interdição acende ainda mais o desejo.


Figura 6
Baldung Grien. A morte e a mulher. 1518-1520. [detalhe]
Wikimedia Commons: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Oberhausen_-_Gasometer_-_Der_schöne_Schein_-_Death_and_the_Maiden_(Baldung)_01_ies.jpg

O fundamento do erotismo é a atividade sexual, que historicamente caiu sob a égide de uma proibição. No entanto, proibir confere um valor maior às coisas. Arrasta à transgressão que, por sua vez, produz uma espécie de “clarão religioso”, uma experiência mística. Um clarão desse mesmo tipo, diz Battaile (1984, p. 29), “existe na vida religiosa sempre que entra em ação a violência plena, essa que intervém no próprio instante em que a morte corta a garganta – e acaba com a vala – da vítima”.

Considerando os incontáveis aspectos contraditórios do erotismo, Bataille retoma os seus vínculos com a religiosidade e com a violência, a partir das ideias de sofrimento, sacrifício e exaltação. Reitera a relação entre erotismo e brutalidade em obras renascentistas como as gravuras de Cranach (Figura 3) e de Baldung Grien (Figura 6), que associam a sedução erótica à podridão da morte.

Sobre a fotografia do suplício chinês que conservou na sua escrivaninha por tantos anos, Bataille expressou sua perturbação dizendo que era “o mais angustiante entre os acessíveis por imagens que a luz fixou” (BATAILLE, 1984, p. 46). Atentou para o “ar extático” das feições da vítima, no qual viu um “inegável ar de êxtase”. Disse que podia imaginar o sofrimento extremo daquela vítima como uma espécie de transfiguração. O seu propósito, disse é ilustrar “um elo fundamental entre o êxtase religioso e o erotismo – em especial o sadismo” (BATAILLE, 1984, p. 46).

Dos escritos do Marques de Sade, enfim, há um aspecto que não se pode ver nessas imagens fotográficas tão cruas. Enquanto trabalho ficcional, Sade foi capaz de lançar mão da ironia, uma vez que a alusão erótica carrega também uma potência irônica. Certamente, como diz Sontag (2003, p. 84), “nem toda violência é vista com igual distanciamento. Algumas desgraças são mais passíveis de ironia do que outras”.

Contudo, foi pela carga irônica, em certa medida, que foram escolhidos os dois curtas-metragens de Paulo Sacramento para trazer essas reflexões a um contexto mais próximo de nós. Ave (1992) e Juvenília (1994) são produtos ficcionais feitos por um jovem brasileiro, não documentam chacinas, martírios e atrocidades reais. Eles chocam pelo aspecto de “invenção” da linguagem associada ao desconforto das cenas violentas.

Metaforicamente, eles falam da violência em nós, em articulação com o erótico e com o sagrado. Falam, ao mesmo tempo, da gratuidade da violência cotidiana, em dois casos de atos praticados deliberadamente e supostamente “longe dos olhos” judicativos da sociedade. Não são, portanto, atos de violência como castigo, com fins de exemplaridade moral e social. Pode-se dizer, até, que esses curtas soam heréticos em relação à violência pensada como problema social. São “aberrações”.

Da degola ao delírio

O filme Ave foi realizado em 1992, em película colorida de 16mm e tem 5 minutos e meio de duração. Naquele mesmo ano, foi selecionado para a Mostra Competitiva 16 mm do XXV Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (BAHIA, 1998, p. 310) e da mostra Panorama Brasil 1991-92 no III Festival Internacional de Curtas de São Paulo (1992). Um bom começo para um estudante de cinema num momento em que o cinema do país estava “à deriva, agarrando-se em leis fantasmas, pondo esperança em leis novas, resistindo até mesmo ao fim da Embrafilme” (BAHIA, 1998, p. 318).

Num contexto tão desanimador, para realizar um curta no Brasil, o cineasta era “obrigado a recorrer à ajuda generosa de técnicos, atores, laboratórios, locadoras de equipamentos e fornecedores cinematográficos” (CESAR FILHO, 1992). Assim Francisco Cesar Filho, curador da mostra Panorama Brasil 1991-92 celebrava a presença farta de 77 curtas naquela mostra, testemunhando a determinação de se fazer cinema em meio às dificuldades do período.

O diretor de Ave, Paulo Sacramento, havia ingressado no curso de Cinema da Escola de Comunicação e Artes da USP em 1989, na mesma turma que Débora Waldman e Marcelo Toledo, com os quais, alguns anos depois, inaugurou a Produtora Paraísos Artificiais, da qual saíram onze filmes de curta-metragem nas bitolas 16 mm e 35 mm, quase todos de alunos da ECA. Desses onze, dois foram justamente Ave e Juvenília.

No quadro descrito por Cesar Filho, esses filmes foram feitos com economia de recursos e num regime de colaboração, sem finalidade de lucro. “As produções do grupo, mesmo que contassem com algum tipo de apoio como o recebido da ECA, eram financiadas pelos próprios integrantes da produtora e não davam nenhum tipo de retorno financeiro direto” (GHIDETTI, 2009, p. 102). As suas referências principais eram o cinema marginal e a entrevista feita com Jairo Ferreira em 1991 sobre o livro Cinema de Invenção, que havia sido lançado pela primeira vez em 1986 e estava prestes a ser publicado novamente. A entrevista, conduzida por Paulo Sacramento e Arthur Autran, foi publicada na única edição da revista Paupéria em 199114. Com um título significativo diante das condições de trabalho dos jovens cineastas, Paupéria foi uma revista de crítica cinematográfica que Paulo Sacramento editou juntamente com Arthur Autran e Vitor Ângelo, e que funcionou como “uma espécie de catálogo para a Mostra de Cinema Marginal que estava ajudando a organizar na ECA” (GHIDETTI, 2009, p. 99). Sacramento referia-se ao cinema marginal como “não-movimento” e valorizava suas propostas, “seus modos de produção, seus resultados”. Dizia: “É preciso vê-los” (SACRAMENTO, 1991, p. 5)15.

Dessas referências e parcerias, viria a experiência na direção com o Ave, em 1992, ano em que a turma de Paulo, Marcelo e Débora fazia exercícios curriculares em 16 mm. O filme foi dedicado à Jairo Ferreira.

A sinopse de Ave é simples: um jovem entra num porão, mata uma galinha que tira de uma bolsa, escorre o seu sangue e o injeta nas próprias veias. As imagens e a montagem, no entanto, provocam tal incômodo que às vezes é preferível desviar o olhar do que encarar a crueza da degola e da agulha que entra na veia inchada do ator (Carlos Sacramento).

Não há diálogos. Os dois personagens são o rapaz e a galinha. O filme inicia no escuro, apenas com sons de passos. Após um rangido de porta se abrindo, a luz acende e vemos o rapaz num porão, segurando uma sacola de viagem. Ele avalia os cômodos escuros, como se procurasse algo. Se assusta ao ouvir passos no andar superior e deixa cair a sacola, momento em que ouvimos cacarejos.


Figura 7
Detalhes de Ave
Fotogramas de Ave (1992), de Paulo Sacramento







O rapaz entra num pequeno depósito de esculturas feitas de cerâmica. Ali também há alguns objetos rústicos de metal. Senta-se no chão, prepara um funil de degola de frango e coloca um prato embaixo para receber o sangue. Ele retira a galinha da sacola e a acaricia por uns instantes, antes de colocá-la de cabeça para baixo no funil. A cena seguinte é grotesca, pois a câmera enquadra num close o momento da degola, com a navalha cortando o pescoço da ave, que não morre imediatamente. Acompanhamos o corpo da ave se debatendo enquanto o sangue escorre. Um close nos pés amarrados lembra situações de sacrifício e de tortura. No entanto, a aparente afeição do executor com o objeto de sacrifício faz lembrar as aproximações entre erotismo, religiosidade e violência. O ambiente extremamente cru, os objetos simples de metal e cerâmica remetem a tempos remotos, quando “a destituição (ou a destruição) que funda o erotismo era bastante sensível para justificar uma aproximação do ato de amor e do sacrifício” (BATAILLE, 1987, p. 14).


Figura 8
Detalhes de Ave
Fotogramas de Ave (1992), de Paulo Sacramento







No sacrifício, há imolação da vítima. Enquanto a vítima morre, “os assistentes participam de um elemento que revela sua morte. Este elemento é o que se pode chamar, com os historiadores das religiões, de sagrado”. O sagrado, diz Bataille (1987, p. 16, 55), é justamente “a continuidade do ser revelada àqueles que fixam sua atenção, num rito solene, na morte de um ser descontínuo”.

Mas há um elemento a mais: o deleite. Junta-se imolação e hedonismo no curta Ave pois, em seguida à degola, o jovem carrasco recolhe o sangue numa seringa e o injeta na veia do próprio braço, insinuando o ato de auto injetar-se drogas químicas para obtenção de prazer. Repete a dose. O close é exagerado e incômodo, vemos a movimentação da agulha dentro da veia do ator. Em seguida, como num êxtase, com a câmera enquadrando sua face, o personagem passa a rir de forma insana, descontrolada, mas o som que ouvimos não é riso, é cacarejo. Apenas nesse momento de êxtase e delírio, aos 4’ e 15’’ entra a música, uma espécie de batuque, que lembra rituais afros, de teor místico e festivo simultaneamente16.


Figura 9
Detalhes de Ave
Fotogramas de Ave (1992), de Paulo Sacramento







Ave é um título ambíguo. Num sentido literal, remete ao animal que é morto, sacrificado em segredo em favor do prazer individual do personagem que se entorpece num porão escuro, sozinho, e ao final da cena expressa um prazer doentio. Na sua etimologia latina, avis (ou “salve”) era uma saudação comum. Num sentido litúrgico, disseminado pelo catolicismo, a palavra remete também à saudação a uma santidade. Se há um grau de religiosidade implícita na palavra “ave” ela é intensificada pelo caráter de ritual sagrado na ação praticada no filme. Ainda que escondida, sem a presença de outros personagens ou de uma coletividade que partilhasse da “ruptura da continuidade de um ser” (BATAILLE, 1987, p. 16), a violência mais banal (degolar um frango) associa-se metaforicamente a um ritual de sacrifício religioso e à ideia de transfiguração. O prazer expresso pelo personagem, com o olhar perdido e a gargalhada-cacarejo, juntam a ideia de sacrifício religioso a um prazer que é, também, erótico e individualista. A nossa posição de espectadores de um ato assim íntimo torna-se, enfim, algo obscena.

Quanto à ironia, se a bizarrice da situação já não fosse o suficiente para entrevê-la, e o riso-cacarejo para coroá-la, ainda, no final do curta, aparece um letreiro explicando que as galinhas utilizadas no filme eram originárias de um aviário que as criava com fins de abate. Com sarcasmo, informa-se que a equipe do filme utilizou-as para a própria alimentação, “exceção feita ao fotógrafo que, vegetariano convicto, não degustou as supraditas penosas”. Com esse arremate em forma de chiste, toda a encenação de imolação retorna à banalidade diária dos abatedouros e frigoríficos.

Num texto publicado na revista Imagens, ao refletir sobre as características do cinema brasileiro feito no início dos anos 1990, Jean-Claude Bernardet (1994, p. 41) declara a sua simpatia pelo filme Noite Final Menos Cinco Minutos (1993) dirigido por Débora Waldman e produzido por Paulo Sacramento, na Paraísos Artificiais. Segundo ele, não era a violência em si, presente no filme de Waldman, que o interessava, mas a mistura de crueldade com a ironia. A partir dessa colocação, Bernardet observou existir uma recorrência a essa combinação em vários curtas realizados em anos recentes e referiu-se ao fenômeno como “crueldade irônica”. Nesse quadro, ele situava desde o Circuito do Olhar (Fernando Bonassi, 1984), no qual uma detalhada autópsia era matizada pelo erotismo, passando pelo Ressurreição (Arthur Omar, 1988), que faz uma montagem herética com fotografias de cadáveres, músicas religiosas e aplausos, até chegar ao Ave, de Sacramento, que provocara no público reações tão contraditórias como asco e fascinação (BERNARDET, 1994, p. 42).

Essa característica que Bernardet nomeou como “crueldade irônica” estaria presente também no segundo curta de Sacramento, o Juvenília, feito justamente naquele ano de 1994 como Trabalho de Conclusão de Curso na ECA.

Uma brincadeira macabra

Juvenília foi realizado em película P/B de 35 mm e tem 7 minutos de duração. Com roteiro, direção, e montagem de Paulo Sacramento, o curta foi produzido pela ECA-USP em parceria com a Paraísos Artificiais. Trata-se de um fotofilme, no qual a narrativa é construída a partir da montagem com 60 fotografias em preto e branco. As fotos são de Marlene Bergamo, uma fotojornalista que iniciara sua carreira em 1990 trabalhando no jornal Notícias Populares, na cobertura de crimes na madrugada17.

No mesmo ano de sua realização, o curta foi exibido no Panorama Brasil 1993-94 do Festival Internacional de Curtas de São Paulo (LABAKI, 1994a), e também na Mostra Curta Cinema 4 feita no CCBB do Rio de Janeiro18. A curadoria foi de João Luiz Vieira (1994), que destacou a herança inventiva do cinema marginal na nova leva de curtas-metragens. Nos anos seguintes, Juvenília participou de vários festivais de cinema internacionais, recebendo o prêmio de Melhor Filme no Festival Henri Langlois na França, e o de Melhor Curta no Rimini Cinema na Itália, ambos em 1996. Vale mencionar que a curadoria do Rimini Cinema naquele ano propunha um percurso histórico do canibalismo na Itália e no mundo, e colocava em discussão uma certa “pornografia da violência” no cinema e nas histórias em quadrinhos desde os anos 1980 (ANTONELLO, 1999).

Em Juvenília não há diálogos nem legendas. A faixa sonora consiste em uma única música longa e lenta, uma versão ao vivo de A Saucerful of Secrets, do disco Ummagumma, do Pink Floyd. A música inicia, enquanto vemos imagens de um bairro residencial tranquilo de São Paulo. Quase todo o tempo essa música é só instrumental, uma vocalização inicia aos 4 minutos e 20 segundos, ou seja, depois de passados dois terços do filme. O ritmo é muito lento, pois o tempo longo de exibição das imagens acompanha o estilo da música, o que contradiz o gosto mais assentado pelo ritmo rápido do videoclipe, que vinha sendo difundido pela televisão desde os anos 1980, principalmente após o surgimento da MTV.


Figura 10
Detalhes de Juvenília
Fotogramas de Juvenília (1994), de Paulo Sacramento







Quase na metade do filme (se considerarmos os créditos iniciais), identificamos nas fotos a primeira aparição humana: um rapaz de longos cabelos loiros, que parece sair de uma casa. Nas imagens seguintes, o mesmo rapaz é visto andando de costas por uma rua arborizada com um saco jogado sobre os ombros, até encontrar-se com um grupo de jovens bonitos e sorridentes. Ele “esvazia” o saco no chão, e todos parecem divertir-se com o que veem – e que o espectador ainda não vê.


Figura 11
Detalhes de Juvenília
Fotogramas de Juvenília (1994), de Paulo Sacramento







Daí para a frente, na segunda metade do filme, as fotografias mostram os jovens buscando paus, pedras e ferramentas com os quais agridem o corpo de um cachorro morto, que descobrimos ser aquilo que estava dentro do saco trazido pelo rapaz. Trata-se de uma brincadeira macabra e, a partir de então, assistimos perplexos a uma simulação de linchamento com o corpo já desfalecido do animal.


Figura 12
Detalhes de Juvenília
Fotogramas de Juvenília (1994), de Paulo Sacramento







No final do curta, quando a música acaba, é seguida de aplausos e assovios por cerca de 20 segundos, tempo em que a câmera se ocupa da expressão facial de um cão que observava a cena, e que agora, ao encarar a câmera, também “nos encara”. Os 30 segundos finais são de silêncio absoluto, apenas a imagem fixa do rosto do cão nos inquirindo com os olhos.

Ao longo do filme, o tempo de exibição de cada fotografia varia de 3 a 12 segundos, o que é bastante moroso. A lentidão é maior na parte inicial, quando vemos apenas as casas e ruas do bairro, com 8 a 12 segundos em cada imagem. Na segunda parte, quando os jovens agridem o corpo do cão morto, o tempo reduz para 3 a 5 segundos em cada foto. Há uma diferença de tempo significativa nessa exposição, pois o dinamismo da segunda parte, acrescido da entoação vocal que se intensifica na banda sonora, ajuda a ampliar a tensão do horror que vemos acontecer nas imagens.

Há um contraste gritante entre os sorrisos e a jovialidade dos personagens e a agressividade de seus gestos. Eles divertem-se com o que fazem. Aquele ambiente enfatizado na primeira parte do filme era o de um bairro residencial, reservado a famílias de boas condições econômicas, às quais os jovens bem-vestidos e bonitos pareciam pertencer. Há uma aparente contradição entre essa sua situação social, o cenário, e a prática de uma violência tão cruel. É perturbador ver uma bela jovem buscar uma picareta num carrinho de mão nas proximidades da cena, e assistir seu amigo enterrar a ferramenta no corpo do cachorro, sugerindo um assassinato violento. O incômodo se intensifica quando vemos outro jovem usar um alicate para arrancar dentes do cadáver, evocando sessões de tortura, ou, ainda, quando o cadáver é rasgado e destripado de forma grotesca, culminando numa imagem do corpo do cão em forma de cruz.


Figura 13
Detalhes de Juvenília
Fotogramas de Juvenília (1994), de Paulo Sacramento







Não à toa, em 1999, o jornalista Ivan Finotti, do jornal A Folha de São Paulo, disse que Juvenília era “provavelmente o filme mais violento feito no Brasil nos anos 90”. Ele também explicou que

a filmagem - ou sessão de fotos - foi feita numa única manhã, no largo Senador Raul Cardoso, na Vila Clementino (zona sul), onde hoje fica a Cinemateca. Sacramento chegou lá às 10h com os atores -todos aspirantes à cineastas, [...]. Às 12h30, o diretor estava na delegacia, após denúncia de um morador do largo. “Juvenília” foi exibido no mundo todo e venceu como melhor filme no prestigiado Festival de Rimini, na Itália. Hoje, Sacramento é montador de cinema (FINOTTI, 1999).

A impressão que o curta nos causa é a de que, por baixo das boas aparências e da suposta tranquilidade desses pacatos cidadãos (paulistas ou de qualquer outra grande cidade), está latente aquela fúria, aquela agressividade que leva ao prazer da violência, ainda que em forma de jogo macabro, ainda que o cão não mais sentisse dor e já não pudesse morrer.

A sequência das atrocidades encenadas, que culmina no corpo em forma de cruz, metaforiza a prática do linchamento, essa forma de justiçamento popular hoje predominantemente urbana, baseada no sentimento de vingança. De acordo com o sociólogo José de Souza Martins (2015), o Brasil é um dos países que mais lincham no mundo. Ainda que a justiça formal e oficial tenha abolido por lei, ainda no Império, a pena de morte, o povo continuou a adotá-la em sua mesma forma antiga através dos linchamentos, caracterizados por atos extremamente cruéis, com espancamentos e extirpação de partes do corpo, antes da execução final19.

Martins (2015) aborda o linchamento sob a ótica da violência coletiva, analisando o emaranhado social que preserva essa prática originária de tempos arcaicos, quando a inflição da dor no corpo do “ser punido” era feita da forma mais pública possível. Nisso, a brincadeira encenada pelos jovens no filme difere das práticas de linchamentos reais, pois não há público, não há adultos, eles se divertem sozinhos. Nos seus rostos, ao invés da expressão da ira, estão estampados sorrisos, como nos rostos que povoam as imagens publicitárias do consumo. Ironicamente, o curta nos conta que a sociedade atual, embora moderna, globalizada e hedonista, deixa entrever o tempo todo a intolerância e a obsessão pela punição, pautada na utilização da violência.

O linchamento funde os sentimentos de justiça e de crueldade, pois pretende “impor ao criminoso expiação e suplícios reais ou, no caso do que já está morto, expiação e suplício simbólicos, como é próprio dos ritos de vingança e sacrifício” (MARTINS, 2015, p. 81). Além disso, visa eliminar simbolicamente a vítima enquanto pessoa.

Em Juvenília, o linchamento é ensaiado fotograficamente e ironizado. O prazer do jogo macabro está expresso nas faces frescas. A ironia também está no título, que remete ao conjunto de obras da mocidade de um autor. O “autor”, no caso, é tanto o próprio cineasta, quanto os autores do linchamento, todos jovens, ensaiando sua atuação social.

Que adultos são hoje aqueles jovens de 1994, representados no curta-metragem? Considerando o que vem acontecendo na nossa sociedade brasileira nestes últimos anos, é até fácil identificar pessoas que podem estar metaforizados nos gestos brutais daqueles personagens. Aliás, a associação entre prazer e violência gratuita, abordada por autores como Marques de Sade na virada do século XVIII para o XIX e Georges Bataille no século XX, é extremamente atual. Era atual no Brasil de 1994, quando Sacramento expôs essa associação num fotofilme emblemático, agressivo, que provocou repulsa e incômodo, e é atual no Brasil de hoje, um quarto de século depois de sua produção.

Por volta de 1994, a pouca autoestima do brasileiro era bem evidente, a instabilidade econômica, a inflação exorbitante (que foi estancada com o plano real, justo naquele ano) os escândalos de corrupção constantes, denotam um Brasil parecido com esse que conhecemos. Na visão de Teixeira Coelho (1993), por trás da carência de auto-estima e da corrosão de consensos que marcava o Brasil de então, percebia-se, latente, a questão da identidade. Chegava-se, segundo ele, “ao ponto mais baixo do processo de figuração da identidade, aquele no qual a identidade é (virtualmente) obtida pela materialização de tudo que nela é negativo, os seus desejos, seus cantos escuros” (COELHO, 1993, p. 10). Esse o Brasil soturno insinuado nos filmes de Sacramento.

Também hoje a identidade do brasileiro está lacerada, e o nosso presente embaralhado impede o surgimento de novos acordos. Vemos rugir a fúria e a insatisfação constantes nos comentários publicados em redes sociais. Talvez possamos dizer que o país não piorou nem melhorou, apenas temos agora essas redes virtuais que possibilitam a balbúrdia, a gritaria, o excesso de comunicação que faz parte daquilo que Han (2017, p. 64-67) nomeia “positividade da violência” na nossa sociedade do desempenho: a supercomunicação, a superinformação, a spanização, a hiperatividade. Nesse contexto, a lentidão e a crueza de Juvenília soam ainda mais incômodas.

Por fim, temos a imagem do cão que observa tudo, no minuto final do filme (Figura 14). O recuo da câmera até ele é importante para tirar o espectador da cena dos horrores. E também para humanizar o cão. Nesse momento, a tendência é a de nos identificarmos com ele, enquanto espectadores (do filme e da violência social): aquele que vê, que se sente indignado mas impotente e que também deve sentir medo de ser uma possível próxima vítima. No entanto, nesse mesmo trecho do filme, os aplausos e assovios criam o estranhamento – recurso já utilizado por Arthur Omar no filme Ressurreição, de 198820. Quem aplaude e o que aplaude? O aplauso pode significar o “passar a mão” na cabeça desses jovens capazes de queimar mendigos de rua e de espancar gratuitamente transexuais e prostitutas. Ou podem ser aplausos irônicos para nossa imobilidade, para nossa hipocrisia ao acreditarmos que não participamos disso.


Figura 14
Cena final de Juvenília
Fotograma de Juvenília (1994), de Paulo Sacramento

O cachorro morto, linchado e associado ao martírio cristão (pela posição final em cruz) pode significar, no nosso quadro social, uma parcela já morta (sacrificada em termos econômicos e humanitários) e indesejada. Vidas nuas que merecem ser trucidadas pelos que se sentem com “direito”.

Não há certeza alguma nessas interpretações semânticas, elas apenas são levantadas para indicar que cada filme com figurações de violência pode ser interpretado a partir de várias chaves, pois eles possuem níveis de significados mais estritos e literais, próprios à narrativa diegética, e níveis mais amplos, que os aproximam das discussões teóricas sobre a violência, que nos incitam a pensar no que é estrutural, no que é simbólico, e no quanto há de aproximação entre violência e prazer. Essa é sua contribuição aos debates teórico-culturais sobre um assunto ainda tabu.

Distâncias da arte

Toda arte transgressora exige do seu público que desafie suas convicções políticas, éticas e morais. Ao assistir os curtas de Paulo Sacramento, e mesmo ao observar a violência pornográfica nos cartões-postais colecionáveis com as fotografias de linchamentos, pode-se indagar se essas imagens nos são atraentes porque fascinam pelo horror, pela transfiguração, ou por um prazer mórbido que todos temos, em maior ou menor grau. Se as evitamos, é por medo, repulsa ou respeito?

Sem dúvida, imagens desse tipo revelam contradições em nós mesmos, desestabilizam certezas, nos fazem questionar se somos testemunhas mudas ou partícipes dessa violência social, segregadora e, ao mesmo tempo, hedonista. Também nos fazem pensar que, se “não queremos ver”, estamos nos isentando, lavando nossas mãos frente às crueldades do mundo.

A diferença entre as fotografias de linchamentos e as encenações propostas em Ave e Juvenília está, justamente, no grau de distanciamento que o artista estabelece com a prática do sacrifício em si. Essa distância, no caso dos dois curtas, se dá pela gratuidade irônica e debochada com que abordam temas tão pesados. Não há tragédia, sequer drama em suas narrativas. Não há diálogos, nem legendas. Há a exibição visual da violência em corpos de animais, invocando práticas sacrificiais ou metaforizando linchamentos. E só. Há a gargalhada insana num, há o sorriso publicitário no outro.

Diante de uma sociedade cuja constante dieta de imagens de violência tornou as pessoas “indiferentes”, como disse Sontag, os curtas de Sacramento nos avisam, assim como avisara Helio Oiticica (2011, p. 14) quase trinta anos antes, que “a sociedade mesmo, baseada em preconceitos, numa legislação caduca, minada em todos os sentidos pela máquina capitalista, consumitiva, cria os seus ídolos anti-heróis como o animal a ser sacrificado”21.

Resta insistir quanto à urgência das colocações feitas por Mondzain (2009, p. 24) sobre a necessária distância (ou dessemelhança) que precisamos desenvolver em nossa relação com a imagem. Como ter senso crítico diante do mundo e diante da aceleração do consumo da imagem, se não for pelo “passo atrás”, pelo afastamento necessário diante do que parecem afirmar as imagens, pela desconfiança frente ao discurso hegemônico? Essa função principal das imagens de arte, de criar estranhamentos, é o que pretendeu-se enfatizar nos dois curtas-metragens que compõem “as obras da juventude” de Paulo Sacramento.

Material suplementar
Referências
ADORNO, Sérgio. Exclusão sócio-econômica e violência urbana. Sociologias, Porto Alegre, n. 8, jul./dez. 2002.
ANTONELLO, Pierpaolo. Storie del ventre: il cannibale a tavola. Nuevo Texto Crítico, Baltimore, v. 12, n. 23/24, p. 297-315, 1999. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/494501/pdf. Acesso em: 10 mar. 2019.
BAHIA, Berê (org.). 30 anos de cinema e festival: a história do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Brasília: Fundação Cultural do Distrito Federal, 1998.
BATAILLE, Georges. As lágrimas de Eros. Lisboa: Publicações Culturais Engrenagem, 1984.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM Editores, 1987.
BENTES, Ivana. Aqui agora: o cinema do submundo ou o tele-show da realidade. Imagens, Campinas, n. 2, p. 44-49, ago. 1994.
BERNARDET, Jean-Claude. A crueldade irônica: a nova fórmula da violência no cinema dos anos 90. Imagens, Campinas, n. 2, p. 41-43, ago. 1994.
CARVALHOSA, Zita. II Festival internacional de curtas-metragens de São Paulo. São Paulo: MIS, 1991.
CESAR FILHO, Francisco. III Festival internacional de curtas-metragens de São Paulo. São Paulo: MIS, 1992.
CHAUÍ, Marilena. A não violência do brasileiro: um mito interessantíssimo. Almanaque: Revista de Literatura e Ensaios, São Paulo, n. 11, 1980.
CHAUÍ, Marilena. O mito da não violência brasileira. In: CHAUÍ, Marilena. Sobre a violência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
COELHO, Teixeira. Para não ser alternativo no próprio país. Revista USP, São Paulo, n. 19, set./nov. 1993.
CURTA-METRAGEM. Filme Cultura, Rio de Janeiro, v. 16, n. 41/42, maio 1983.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Desnudez cruel: la muerte misma estaba invitada. In: DIDI-HUBERMAN, Georges. Venus rajada. Madrid: Losada, 2005.
FERREIRA, Jairo. Cinema de Invenção. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2016.
FINOTTI, Ivan. Para quem quiser um soco no estômago. Folha de São Paulo, São Paulo, 23 ago. 1999.
GHIDETTI, Carolina. Paraísos artificiais: novos rumos em tempos de crise. Aurora: Revista de Arte, Mídia e Política, São Paulo, n. 5, maio 2009.
HAN, Byung-Chul. Topologia da violência. Petrópolis: Vozes, 2017.
JOSÉ, Angela. Os anos dourados do cinema brasileiro: iI Rio Cine. Cinemin, [S. l.], n. 26, 1986.
KAMINSKI, Rosane. As mil faces do inspetor. In: KAMINSKI, Rosane; FREITAS, Artur; GRUNER, Clovis; HONESKO, Vinicíus; REIS, Paulo. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016.
KAMINSKI, Rosane. O curta-metragem brasileiro e as figurações da violência (1986-1994). Relatório de Pós-doutorado em Meios e Processos Audiovisuais, ECA-USP, 2017. Não publicado.
KAMINSKI, Rosane. Emoção e violência em Ressurreição (Arthur Omar, 1988). In: MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos (org.). O cinema e as ditaduras militares: contextos, memórias e representações audiovisuais. São Paulo: Intermeios: Fapesp; Porto Alegre: Famecos, 2018.
LABAKI, Amir. V Festival Internacional de curtas-metragens de São Paulo. São Paulo: MIS, 1994a.
LABAKI, Amir. 1994 revela segunda geração da primavera do curta. Rio de Janeiro: [s. n.], 1994b. Mostra Curta Cinema 4. Catálogo.
LABAKI, Amir. [Entrevista concedida à] Rosane Kaminski. 20 ago. 2017.
LEMOS, Fernando. Rio Cine tenta outra vez. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 1, 19 ago. 1988.
LESSING, Gotthold Ephraim. Laocoonte, ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia. São Paulo: Iluminuras, 2011.
MARSON, Melina I. Cinema e políticas de estado: da Embrafilme à Ancine. São Paulo: Escrituras, 2009.
MARTINS, José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.
MONDZAIN, Marie-José. A imagem pode matar? Lisboa: Nova Vega, 2009.
MONTEIRO, José Carlos. Verdades e mentiras no “novo” boom do cinema brasileiro. Cine Imaginário, [S. l.], v. 1. n. 12, p. 20, nov. 1986.
MOREIRA, Roberto. Cinema hoje: impasses e desafios. Imagens, São Paulo, n. 1, abr. 1994.
NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Ed. 34, 2002.
OITICICA, Hélio. O herói anti-herói e o anti-herói anônimo. Sopro, Florianópolis, n. 45, fev. 2011.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Violência do estado e classes populares. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 22, n. 3, 1979.
PINHEIRO, Paulo Sergio. Violência e cultura. In: LAMOUNIER, Bolivar; WEFFORT, Francisco C.; BENEVIDES, Maria Victoria (org.). Direito, cidadania e participação. São Paulo: Queiroz, 1981.
SACRAMENTO, Paulo. Na crise. Paupéria: Revista de Cinema, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 5, 1991.
SALEM, Helena (org.). Cinema brasileiro: um balanço dos 5 anos da retomada do cinema nacional: 1995-1999. Brasília: Ministério da Cultura, 1999.
SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Cena do crime: violência e realismo no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
SIMIS, Anita. Concine: 1976 a 1990. Políticas Culturais em Revista, Salvador, v. 1, n. 1, p. 36-55, 2008.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2003.
VALÉRIO, Marcus. Apesar de vocês... Cine Imaginário, [S. l.], v. 2, n. 22, p. 14, set. 1987.
VIEIRA, João Luiz. A reflexividade na tela. Rio de Janeiro: [s. n.], 1994. Mostra Curta Cinema, 4. Catálogo.
ZALUAR, Alba. Um debate disperso: violência e crime no Brasil da redemocratização. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 13, n. 3, 1999.
Notas
Notas
1 A mesma afirmação foi posteriormente publicada em Pinheiro (1981, p. 31). Vale lembrar que Paulo Sergio Pinheiro viria a ser um dos fundadores do Núcleo de Estudos da Violência da USP, em 1987, ao lado de Sérgio Adorno.
2 Nesse texto, Chauí sustenta que a noção de excepcionalidade da violência, ou violência como “acidente” trata-se de mecanismo ideológico na construção do mito da “não-violência” do homem brasileiro. Em 2013, ela ampliou a discussão numa conferência proferida junto à Academia de Polícia Militar do Rio de Janeiro, apontando que o mito se perpetua, pois há uma tendência histórica em afirmar a cordialidade do povo brasileiro, num discurso oficioso que insiste em ocultar as revoltas e rebeliões que marcaram a história política nacional, e em encarar a violência não como estrutural, mas como acidental, circunstancial (CHAUÍ, 2017, p. 37-42).
3 Adorno apresenta estudos estatísticos através de gráficos. Diz que os crimes violentos “saltaram de uma taxa de 945,1 por 100.000 habitantes, em 1988, para 1.119,2 por 100.000 habitantes em 1993”. Destaca o elevado número de mortes causadas por policiais, e diz que em São Paulo, em 1992 “a Polícia Militar atingiu seu ápice, abatendo 1.470 pessoas” (ADORNO, 2002, p. 94-96).
4 Isso pode ser constatado em relação à produção de curtas nos anos anteriores a 1986. Em 1984, foram 6 curtas-metragens em 35mm e 7 curtas em 16mm (total de 13 no ano). Em 1985, foram somente 5 curtas-metragens em 35mm e 4 curtas em 16mm (total de 9 no ano). Esses números contrastam com o significativo número de produções encontradas em 1986: 34 curtas-metragens em 35mm e 32 em 16mm (total de 66 no ano). Daí para frente, a produção se manteve acima de 40 filmes ao ano (KAMINSKI, 2017, p. 52-59).
5 O ponto inicial da “Lei do Curta” corresponde ao artigo 13 da lei 6281, de 09/12/1975, (que originalmente não falava em “obrigatoriedade” de exibição dos curtas, apesar de sugerir a inclusão dos mesmos antes dos filmes estrangeiros de longa-metragem), acrescido das sucessivas regulamentações efetuadas pelo Conselho Nacional do Cinema (Concine) até a sua extinção pelo governo Collor, em 1990 (SIMIS, 2008, p. 43). Apenas com a Resolução 18, de 24 de agosto de 1977, foi regulamentada a exibição compulsória do curta-metragem, além de definir-se o que é curta, e de criar o “Certificado de Produto Brasileiro de Filme de Curta-Metragem” (CPBFC), especificando-se a forma como esse certificado seria concedido (SIMIS, 2008, p. 44). Ao menos desde 1983 já se utilizada livremente a expressão “Lei do Curta” para se referir a esse conjunto de regulamentações, como pode ser aferido em matéria da revista Filme Cultura (CURTA-METRAGEM, 1983, p. 37).
6 O júri instituído pela Resolução 103 era composto por 13 pessoas de “reconhecida capacidade na área cinematográfica”, convocado pelo Concine a cada 3 meses: “Com essa resolução deixam de ser expedidos os CPBFC que são substituídos por Certificados de Reserva de Mercado ou Certificado Especial de Reserva de Mercado, concedidos trimestralmente por júri especialmente constituído, e seus realizadores ou produtores passaram a receber um prêmio em dinheiro pago pelo fundo, como adiantamento pelos direitos de exibição, por no máximo 2 curtas/ano” (SIMIS, 2008, p. 47).
7 Em entrevista, Amir Labaki afirmou ter sido ele a criar a expressão “primavera do curta”, em fins da década de 1980, quando escrevia críticas sobre curtas-metragens para o jornal Folha de São Paulo, ainda que não tenha certeza de quando a publicou pela primeira vez (LABAKI, 2017). A aparição mais antiga do termo em material impresso, parece ser o texto de apresentação do catálogo do II Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, que ocorreu entre 20 e 31 de agosto de 1991, num texto assinado por Zita Carvalhosa (1991, p. 9). Também aparece em vários textos publicados por Amir Labaki no início daquela década, como: Labaki (1994a, 1994b). Depois tornou-se recorrente.
8 A Lei Sarney (Lei 7.505, de 2 e julho de 1986) foi criada na gestão do Ministro da Cultura Celso Furtado e concedia benefícios fiscais na área do imposto de renda para operações de caráter artístico-cultural.
9 O número de longas-metragens nacionais lançados nos cinemas foi de 8 filmes em 1991; 3 filmes em 1992; 4 filmes em 1993 e 7 filmes em 1994 (SALEM, 1999, p. 255).
10 Por exemplo, Atentado ao Poder (1992) e Candelária (1993) de Rosangela Rennó e 111 (1992) de Nuno Ramos. No âmbito dos curtas-metragens, já nos anos 1980 a temática da violência era problematizada nas obras de Arthur Omar, como Inspetor (1987) e Ressurreição (1988), entre outros. Tais obras se inserem numa linhagem iniciada nos anos 1960 com os trabalhos de Hélio Oiticica, Antônio Manuel, Cildo Meirelles, bem como filmes do cinema novo e do cinema marginal (SCHOLLHAMMER, 2013, p. 44-67; KAMINSKI, 2016, 2018).
11 Trata-se de um conjunto de quatro painéis feitos por Sandro Botticeli entre 1482 e 1483, inspirado no Decamerão (1348-1353) de Giovanni Boccaccio, cujos contos de amor vão do erótico ao trágico.
12 A discussão sobre esse “apetite” pelo mórbido é bastante antiga. Platão já o comentava no livro IV de A República, quando narra a história de Leôncio, filho de Aglaion, sobre o dia em que andava fora da cidade e avistou ao longe alguns cadáveres aos pés do carrasco. Desejou ir vê-los de perto mas, ao mesmo tempo, sentiu repulsa. Resistiu um pouco até que, vencido pelo desejo, foi até os cadáveres dizendo aos próprios olhos: “Olhai, desgraçados, e locupletai-vos com o belo espetáculo” (PLATÃO, 2006, p. 208).
13 A fotografia que pertencia a Bataille foi reproduzida no seu último livro publicado em vida, em 1961, As lágrimas de Eros.
14 Paupéria: Revista de Cinema, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 12, 1991. A entrevista foi novamente publicada em: Ferreira (2016, p. 315-325).
15 Após a afirmação de que era preciso ver os filmes do Cinema Marginal, Sacramento anunciava a mostra a ser realizada nos dias 23 a 27 de setembro daquele ano.
16 Trata-se de um samba extraído da peça “Carmem com filtro 2”, de Gerald Thomas, cuja estreia aconteceu no Rio de Janeiro em 1989.
17 Desde então, Bergamo participou de diversas exposições fotográficas, e trabalhou para vários filmes, incluindo Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodanzky, 2000) e Carandiru (Héctor Babenco, 2003).
18 Além das duas mostras mencionadas, Juvenília foi selecionado para os seguintes festivais entre 1994-95: XVIII Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, 1994; Mostra Cinema Cultural Paulista de 1994; XXIII Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, RS, 1995.
19 A pesquisa de Martins é baseada em 2.028 casos de linchamento ocorridos no Brasil nas últimas seis décadas, como ele explica na introdução do seu livro. Dentre esses casos, 44,6% das pessoas ameaçadas de linchamento foram salvas pela polícia. As outras 47,3% foram capturadas pela turba e feridas ou mortas: “espancadas, atacadas a pauladas, pedradas, pontapés e socos [...] até os casos extremos de extração de olhos, castração, extirpação das orelhas e cremação da vítima ainda viva” (MARTINS, 2015, p. 8-15).
20 Em Ressurreição (1988) Omar faz uma junção de fotografias de assassinatos violentos ocorridos no Rio de Janeiro com duas músicas do cancioneiro católico, entoadas por Carmem Costa e Agnaldo Timóteo. Tanto no início quanto no final do curta, as expressões de delírio de seu público, entre assovios e aplausos, contrastam com as imagens horrendas. Para uma análise minuciosa do curta, ver: Kaminski (2018).
21 A publicação original é de 1968, quando Oiticica participou do evento “O Artista Brasileiro e a Iconografia de Massa”. No texto, Oiticica expressou verbalmente a indignação que já havia sido corporificada em algumas de suas obras (em especial os Bólides-caixa nº 18 e nº 21, que incorporam fotografias de marginais que foram violentamente assassinados pela polícia), inclusive denunciando o “gozo social” envolto na violência constantemente direcionada ao delinquente.

Figura 1
Agesandro, Atenodoro e Polidoro Rodes. Grupo de Laocoonte. C. séc. I a.C. – I d.C.
Wikimedia Commons: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Laoco%C3%B6n_and_His_Sons.jpg

Figura 2
Lucas Cranach, o Velho. Crucificação. C. 1532-1538
Wikimedia Commons: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lucas_Cranach_the_Elder_-_The_Crucifixion_-_Google_Art_Project_(679844).jpg

Figura 3
Lucas Cranach. Serra. Gravura feita entre 1539 e 1548
Bataille (1984)

Figura 4
Fotografia de Tchou-Li. Ling chi (morte de mil cortes) Pequim, em 10 de abril de 1905.
Pinterest: https://br.pinterest.com/nicbucurenciu/historia/

Figura 5
Fotografia de Gildersleeve Fred, que apareceu em jornais e foi transformada em cartão postal, amplamente distribuída. Mostra o corpo de Jesse Washington carbonizado, vítima de linchamento, em Robinson, Texas, em maio de 1916.
Build Nation: https://buildnationblog.wordpress.com/2015/11/13/lynching-of-young-jesse-washington/

Figura 6
Baldung Grien. A morte e a mulher. 1518-1520. [detalhe]
Wikimedia Commons: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Oberhausen_-_Gasometer_-_Der_schöne_Schein_-_Death_and_the_Maiden_(Baldung)_01_ies.jpg

Figura 7
Detalhes de Ave
Fotogramas de Ave (1992), de Paulo Sacramento







Figura 8
Detalhes de Ave
Fotogramas de Ave (1992), de Paulo Sacramento







Figura 9
Detalhes de Ave
Fotogramas de Ave (1992), de Paulo Sacramento







Figura 10
Detalhes de Juvenília
Fotogramas de Juvenília (1994), de Paulo Sacramento







Figura 11
Detalhes de Juvenília
Fotogramas de Juvenília (1994), de Paulo Sacramento







Figura 12
Detalhes de Juvenília
Fotogramas de Juvenília (1994), de Paulo Sacramento







Figura 13
Detalhes de Juvenília
Fotogramas de Juvenília (1994), de Paulo Sacramento







Figura 14
Cena final de Juvenília
Fotograma de Juvenília (1994), de Paulo Sacramento
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc