Primeiros Passos

Os Annales e a interdisciplinaridade: um balanço da historiografia polemista brasileira

The Annales and the interdisciplinarity: a balance of Brazilian polemicist historiography

Barthon Favatto Suzano Junior
Universidade Estadual Paulista, Brasil

Os Annales e a interdisciplinaridade: um balanço da historiografia polemista brasileira

Antíteses, vol. 12, núm. 23, pp. 773-796, 2019

Universidade Estadual de Londrina

Recepção: 17 Abril 2019

Aprovação: 22 Junho 2019

Resumo: No século XX, algumas poucas correntes ou escolas historiográficas foram tão longe e bem-sucedidas na tentativa de inscrever o diálogo com outras disciplinas como palavra de ordem das práticas e dos saberes historiográficos como a revista e a corrente inauguradas por Marc Bloch e Lucien Febvre, em 1929: os Annales. Nessas páginas, busca-se por intermédio da análise comparativa o entendimento de como a chamada historiografia polemista brasileira apresenta, compreende e aufere tratamento à relação entre os Annales das duas primeiras gerações e a interdisciplinaridade. A abordagem se concentra na releitura crítica de duas obras fundamentais e de largo alcance produzidas e publicadas no Brasil: “Escola dos Annales: a inovação em História” (Paz & Terra, 2000), de autoria de José Carlos Reis; e, “Teoria da História: a Escola dos Annales e a Nova História” (VOZES, 2012), volume V, que integra a coleção “Teoria da História”, sob assinatura do historiador José D’Assunção Barros. O artigo também busca problematizá-las pela ótica da tensão entre o caráter “federalista” da História preconizada pelos Annales e o fenômeno de “tradição-ruptura”.

Palavras-chave: Annales, Interdisciplinaridade, Historiografia polemista, Teoria, Debates historiográficos.

Abstract: The interdisciplinarity was associated with the Annales (1929-...). In the 20th century, few historiographical movements or schools went so far and successful in the attempt to inscribe the dialogue with other disciplines as a slogan of practices and historiographic knowledges such as the magazine and the segment inaugurated by Marc Bloch and Lucien Febvre. In these pages, the comparative analysis seeks to understand how the so-called Brazilian polemicist historiography presents, understands and treat the relationship between the Annales of the first two generations and the interdisciplinarity. The approach focuses on the critical re-reading of two fundamental and far-reaching works produced and published in Brazil: “Escola dos Annales: a inovação em História” (Paz & Terra, 2000), by José Carlos Reis; and “ Teoria da História: a Escola dos Annales e a Nova História” (VOZES, 2012), volume V, which integrates the collection “Teoria da História” under the signature of the historian José D’Asunción Barros. The article also seeks to problematize them from the perspective of the tension between the “federalist” character of History advocated by the Annales and the “tradition-rupture” phenomenon.

Keywords: Annales, Interdisciplinarity, Polemicist historiography, Theory, Historiographical debates.

Introdução

A interdisciplinaridade e suas variadas e sensíveis formas e manifestações – além dos inúmeros intentos em subscrevê-la(s) como norte da produção de conhecimentos – caracterizaram as Ciências e a cientificidade ao largo do último século, o XX. Esse fenômeno não somente orientou a produção de saberes acadêmico-científicos como foi objeto de estudos, definição e categorização por um sem número de autores. Entre os quais e ao lado de nomes como os de Georges Gusdorf e Edgar Morin está o filósofo brasileiro Hilton Japiassu. Para quem a interdisciplinaridade em sua definição mais ampla se caracteriza, sobretudo, pela troca de saberes e/ou integração entre especialistas e disciplinas no interior de um projeto investigativo (JAPIASSU, 1976). Abarcando nesse contexto os empréstimos, as aquisições e as adequações de conhecimentos, métodos, categorias e conceitos1.

No caso específico da História, Krzysztof Pomian (2007, p. 223) sugere que a disciplina tal qual a conhecemos e inserida no grande espectro das chamadas Ciências Humanas é menos herdeira e devedora a personalidades como Heródoto, Tucídides e aos pensadores do Século das Luzes do que aos determinados acadêmicos do XIX. Uma vez que foi na e a partir da segunda era industrial que transcorreu notável renovação da produção de conhecimentos acerca do passado, traduzindo-se numa mudança da percepção dos historiadores (POMIAN, 2007). Esse giro é resultante tanto do advento dos meios necessários à aquisição e formulação de novos conhecimentos quanto pela integração crítica entre perspectivas e saberes de diversos matizes (POMIAN, 2007). Ou seja, interdisciplinaridade.

Nesse horizonte há certo consenso e reconhecimento na literatura especializada que nenhuma outra “corrente” ou “escola” historiográfica contemporânea foi tão longe e bem-sucedida na tentativa de inscrever a interdisciplinaridade como palavra de ordem das práticas e dos saberes historiográficos quanto os Annales (1929 -...) (Cf. DOSSE, 1992; BURKE, 1997; AGUIRRE ROJAS, 2004; BARROS, 2017). De certo, porque uma vez que o movimento não apresentou desde a fundação da Revista Annales d’Histoire Économique et Sociale um paradigma historiográfico único que pudesse caracterizá-lo ou imortalizá-lo como uma verdadeira escola, ancorou-se derradeiramente na interdisciplinaridade, que de modo camaleônico se renovava e concedia dinamismo e personalidade a cada ciclo ou geração do grupo. Além de lhes garantir sobrevida e identidade2.

Logo,“se há um fio condutor que perpassa toda a sua trajetória [a dos Annales], desde o combate ao positivismo reinante até a miríade atual das ‘micro-histórias’, não há dúvida de que se trata da ‘interdisciplinaridade’” (CARDOSO JUNIOR, 2001, p. 179). Interdisciplinaridade essa que forjou a identidade própria do movimento-escola francês, aproximando-o a cada fase ou geração dos debates e embates suscitados nas e com as demais Ciências Humanas, concedendo-lhe a capacidade de renovação e o vigor necessários aos desafios impostos à disciplina pela conformação de novas conjunturas acadêmicas e históricas. Além de atualizá-la e adequá-la aos objetos e temas relevantes à cada período, permitindo-lhe igualmente a ampliação da matização e uso de fontes e de metodologias de tratamento das mesmas.

Em ritmo análogo e à medida em que transcorria em cada fase (ou, geração) a renovação desses diálogos interdisciplinares os Annales também acumulavam outros triunfos: a institucionalização e a capilaridade como grupo intelectual. Ao largo do tempo suas áreas de influência foram ampliadas para além dos limítrofes de seu berço pátrio, a França. E o grupo passou a conquistar novos e até então inexplorados territórios, instituindo para além do Velho Continente uma consistente e importante rede de sociabilidades intelectuais. Especialmente, na América Latina. E, mais especificamente, no Brasil.

A receptividade e a capilaridade dos Annales na América Latina – e, mormente, em terras brasileiras – não transcorreu fruto da casualidade. Mas sim, da causalidade. A presença de Fernand Braudel em nuestra América – e, no Brasil, entre os anos de 1935 e 1937; e, 1947 – deixou um indelével legado aos historiadores da região e do país, então ávidos por uma renovação paradigmática e pela desconstrução das “velhas formas dominantes da historiografia, e contra as concepções mais tradicionais das Ciências Sociais” (AGUIRRE ROJAS, 2003, p. 113). A passagem braudeliana, bem como o estrito e caloroso contato que o historiador manteve com intelectuais e acadêmicos brasileiros e latino-americanos após seu retorno à França, abriram veios não somente para a difusão e tradução nas Américas lusófona e hispanófona de obras sob chancela dos Annales como à receptividade e trocas intelectuais entre historiadores regionais e franceses. Contudo, a reverberação dessa herança fez sentir seu maior peso na historiografia brasileira a partir do processo de distensão do Regime Militar, que possibilitou a reestruturação de departamentos e dos cursos de Humanas, bem como aventou o mercado editorial especializado, favorecendo a publicação em Língua Portuguesa de obras de autores estrangeiros. Inclusive, daquelas sob chancela dos Annales.

No final da década de noventa e início dos anos dois mil essa permeabilidade não havia se esgotado e parecia tomar novo fôlego. Dessa vez, acompanhando as discussões então em voga ou emanadas da Nouvelle Histoire e do núcleo grosso – ainda que já fragmentado – da corrente historiográfica. Em inúmeras faculdades brasileiras – e, não somente de História – as recomendações e leituras de escritos produzidos pelo grupo seguiam a todo vapor. E ano após ano as editoras nacionais continuavam depositando esforços ao lançamento de traduções, ou então, de livros abordando ou inspirados nos Annales. Essa manutenção do interesse e do prestígio da escola no Brasil repercutiu no espaço de pouco mais de uma década na apresentação ao público leitor de duas obras nacionais robustas e que ainda hoje articulam como importantes aportes formativos e à pesquisa sobre a corrente historiográfica no país. Trata-se, porquanto, do livro “Escola dos Annales: a inovação em História” (Paz & Terra, 2000), do historiador e atualmente professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), José Carlos Reis; e, de “Teoria da História: a Escola dos Annales e a Nova História” (VOZES, 2012), de autoria do também historiador e professor, José D’Assunção Barros, do Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Essa última, quinto volume da coleção intitulada “Teoria da História”.

Notórias pela qualidade e fortuna de abordagens, é possível afirmar que ambas as publicações encarnam o amadurecimento próprio da historiografia brasileira sobre o movimento-escola francês. E, mais além, podem ser inseridas dentro de um segmento da historiografia nacional identificado como “polemista”. Segundo Cristiano Arrais (2014), a chamada historiografia polemista se dedica à exposição de “sínteses capazes de condensar as principais ideias, metodologias e discussões epistemológicas da historiografia contemporânea”. Contudo, sem perder de vista o viés crítico e as plausíveis e sempre presentes polêmicas que perpassam os principais debates e embates suscitados pelas, nas e entre as escolas ou correntes tematizadas. Por essa razão, não raras vezes essa vertente é confundida, mas em realidade se interpõe entre outros dois segmentos da historiografia brasileira contemporânea. O primeiro debruçado como facilitador ao acesso do público a autores e obras até então pouco conhecidos e o segundo voltado ao “aprofundamento e verticalização dos problemas epistemológicos e ético-políticos” que perpassam o campo da História (ARRAIS, 2014).

Nas páginas seguintes, buscou-se por intermédio da vereda comparativa analisar o modo como a historiografia polemista – compreendida aqui pelas supracitadas obras de Reis e Barros – apresenta e aufere tratamento acerca de um tema ainda hoje pertinente: a relação entre os Annales das duas primeiras gerações (ou, fases) e a interdisciplinaridade. Além de mensurar as possíveis e plausíveis convergências existentes entre e nessas obras referenciais, a análise propõe um balanço mormente centrado nas sutis divergências por elas e entre elas apresentadas. Destacando assim, os respectivos aspectos distintivos e contributivos. E, então, deixando em evidência os saltos analíticos e de abordagem logrados por cada uma das obras no tocante à temática. O artigo apresenta ainda essa leitura crítica direcionada à compreensão e interrelação de três interfaces: a do questionamento dos Annales como vanguarda interdisciplinar; a do entendimento da interdisciplinaridade como tessitura do caráter “federalista” da História e do fenômeno “tradição-ruptura”; e, por fim, a do concreto impacto da interdisciplinaridade no grupo – especialmente, no tocante à concepção da temporalidade multifacetada por Fernand Braudel.

Os Annales como vanguarda interdisciplinar?

Poder-se-ia considerar o movimento que expressou a “Revolução Francesa da historiografia” uma vanguarda historiográfica no tocante à interdisciplinaridade? De certo, o ponto de partida é que, antes mesmo da fundação da revista, em 1929, Marc Bloch e Lucien Febvre já se debruçavam sobre temas, conhecimentos e práticas interdisciplinares. Em 1922, recorda-nos Burke (1997, p. 25), Febvre havia publicado sob o incentivo do filósofo Henri Berr um estudo com base na teoria vidaliana que por não ter sido desenvolvido por um especialista acabou despertando a crítica dos geógrafos. Tratou-se de La terre et l’evolution humaine: introduction géographique à l’Histoire, quarto volume de uma grande empresa literária homônima coordenada pelo filósofo. Bloch por sua vez, estreou na Revue de Synthése Historique de Berr em 1912. Sete anos após o debut do companheiro e dezessete anos antes da fundação dos Annales. O título que marcou essa estreia foi o denso e emblemático L’Ile-de-France, artigo que já carregava para o interior da revista de Berr o caráter do diálogo interdisciplinar e a recusa à rigidez teórica, marcas registradas da grandeza da escrita da História de Marc Bloch (Cf. DOSSE, 1992, p. 44)3.

Anos mais tarde Fernand Braudel não deixou de creditar essa dívida. Ainda que conferindo o débito da História a uma espécie de modos operandi próprio, porquanto, natural às Ciências Humanas. Uma relação de autoridade, alteridade e trocas. Um “mercado comum” em que coabita “El deseo de afirmarse contra los otros, se encuentra por fuerza en el origen de curiosidades nuevas: negar al prójimo, es ya conocerlo […] las ciencias sociales se imponen unas a otras […] cada una usurpa lo que es de sus vecinas creyendo permanecer en su casa.” (BRAUDEL, 1991, p. 40). Ideia que, ulterior, já despontava e ampliava o leque de abrangência e significação nos escritos de Marc Bloch (2000, p. 70): “El historiador de una época en que reina la máquina, ¿deberá ignorar cómo están constituidas y cómo se han modificado las máquinas?”.

Em linha análoga, a escrita brasileira sobre os Annales não deixa de se atentar para dois fatos. O de que, a curto, médio e longo prazos, o sucesso dos Annales foi em larga medida “resultado de uma estratégia de captação dos procedimentos, das linguagens das ciências sociais vizinhas, de uma capacidade notável de apoderar-se das roupagens dos outros [...]” (DOSSE, 1992, p. 15). E o de que “Toda história é história contemporânea” – para retomar célebre frase de Benedetto Croce (apud DOSSE, 1992, p. 21). Nesse passo, tanto a referida obra de José D’Assunção Barros (2012) quanto a de José Carlos Reis (2000) são enfáticas ao abordarem o caráter interdisciplinar do movimento historiográfico francês em seus anos iniciais menos como um produto exclusivo – ainda que por ele operacionalizado sem precedentes no campo da historiografia europeia de então – e mais, sobretudo, como resultado das tendências acadêmicas, científicas, materiais e geopolíticas de seu tempo.

Assim, as modalidades de História levadas a cabo pelos chamados pais fundadores antecedem o próprio surgimento da revista e se encontravam alinhavadas com o contexto de uma época. Em que, por um lado, anunciou-se com o término da Grande Guerra Mundial o fim da Belle Époque na Europa Ocidental e o enfraquecimento do discurso eurocêntrico. E que, por outro, acompanhou o surgimento de novas ciências, além de correntes de conhecimento, e dos debates e embates por elas suscitados (Cf. DOSSE, 1992, p. 22-26). No caso das chamadas Ciências Humanas, esse fenômeno fora profundamente balizado pelo advento da sociologia durkheimiana, que demonstrou desde cedo “explicitamente a ambição de realizar a unificação, sob o seu comando, do conjunto das ciências humanas, por trás do conceito de causalidade social” (DOSSE, 1992, p. 26).

Nas referidas e respectivas obras da historiografia polemista brasileira sobre os Annales, os autores – cada qual a seu modo – não deixam de enfatizar o peso dessa conjuntura histórica na forja do ímpeto dos Annales pela busca da interdisciplinaridade. Para Reis (2000, p. 37), por exemplo, o impulso conjuntural que levou Bloch e Febvre à caça e domesticação à História de conceitos e conhecimentos emanados das Ciências Sociais foi sem dúvida a sensível percepção da própria “crise do sujeito” histórico. Crise essa que perpassada pelas Guerras Mundiais e pela Grande Depressão carregava a urgência de uma nova percepção sobre o homem e o tempo. De uma Nouvelle Histoire capaz não somente de incorporar os avanços conceituais e teóricos então apresentados pelas Ciências Sociais e sintonizá-los às análises das rápidas, bruscas e constantes mudanças e desafios descortinados no e pelo período, como traduzi-los para o discurso histórico, concebendo “o novo objeto-homem” (REIS, 2000, p. 37): que passou a ser “empírico, observável, repetitivo, quantificável, regular, submetido às condições objetivas, limitadoras de sua vontade e independentes de sua intencionalidade” (REIS, 2000, p. 41).

Por seu turno, Barros (2012, p. 64) reitera que a interdisciplinaridade como métier da História não se configurou como um monopólio ou uma particularidade dos Annales nas duas primeiras fases. Antes do movimento historiográfico francês, o próprio historicismo então criticado pelos Annales e encarnado na escola histórica alemã de Leopold von Ranke já demonstrava algum empenho nesse sentido. Afinal, “o universo teórico-metodológico suscitado por esse paradigma [o historicista] veio a abrigar tendências relativamente diversificadas, apensar de uma unidade estabelecida a partir de uma oposição mais geral contra o Positivismo” (BARROS, 2012, p. 64, grifo nosso), reitera o autor. Na mesma direção, em França, ulterior à fundação da revista dos Annales, a já mencionada Revue de Synthèse Historique, de Henri Berr, e em circulação desde o ano de 1900, trabalhava com a ideia de colaboração interdisciplinar e no sentido de estabelecer bases para uma nova compreensão de História, de uma Nova História (Cf. BARROS, 2012, p. 83). O autor confirma ainda que no campo das chamadas Ciências Humanas outras Ciências Sociais – tal como a Geografia – se empenhavam no esforço de desconstrução de muros disciplinares. Eternos rivais acadêmicos – e fundadores, respectivamente, da escola determinista e da escola possibilista – os geógrafos Friederich Ratzel e Paul Vidal de la Blache encarnavam esse espírito interdisciplinar. O primeiro pela larga utilização de modelos biológicos. E o segundo pela inscrição e contribuição em seu Annales de Geographie de autores e conhecimentos advindos das demais Ciências Humanas (Cf. BARROS, 2012, p. 86).

No entendimento da historiografia polemista brasileira, portanto, há enfático consenso entre ambos os autores de que ainda que no campo da escrita da História – ou, das escritas da História, como bem nos recordou Braudel (1991) – os Annales tenham levado a interdisciplinaridade a um grau último, sem precedentes na História da Historiografia. Contudo, o movimento historiográfico francês tampouco poder-se-ia elevar ou reivindicar o estatuto de precursor ou vanguarda do discurso interdisciplinar. Tratando-se apenas de uma espécie de herdeiro de uma movimentação de época. Anteriormente acionada no seio da própria disciplina História e, mais além, das Ciências Sociais. Narciso que pensando contemplar-se no espelho d’água não vê mais do que uma imagem distorcida de si mesmo.

Outro ponto comum e que endossa a perspectiva diz respeito a importância do legado da Universidade de Estrasburgo no tocante à forja do espírito interdisciplinar presente em Bloch e Febvre4. Nas obras analisadas essa inflexão aparece de maneira enfática. José Carlos Reis (2000, p. 67) assevera que “Ocupando uma posição estratégica de extrema importância, essa universidade se tornou um meio intelectual dos mais fecundos” e que “além da qualidade individual de seus professores e pesquisadores, ela desenvolveu um novo espírito universitário: o da interdisciplinaridade”. Nesse sentido, incrustrada no coração da Alsácia-Lorena – região historicamente em disputa entre Alemanha e França – e, então recém conquistada por essa última nação, a Universidade de Estrasburgo engendrou um ambiente acadêmico único. Tratava-se do epicentro de cruzamento e embate não somente entre dois países e duas nações diferentes, mas de culturas e concepções de mundo bem distintas: um mundo católico frente a um mundo majoritariamente protestante; francófonos frente germanófonos; orientação religiosa versus orientação científica; autonomistas disputando espaço com nacionalistas francófilos e germanófilos; republicanos versus liberais versus socialistas (CARBONELL; LIVET, 1983; FERRO, 1985 apud REIS, 2000, p. 68).

O ambiente hostil ainda que plural de Estrasburgo possibilitou que os corredores da universidade atuassem como “um ambiente favorável à inovação intelectual”, favorecendo “o intercâmbio de ideias através das fronteiras disciplinares” (BURKE, 1997, p. 27). Os famosos encontros aos sábados entre professores de distintas áreas permitiram o diálogo regular, dentro do espírito institucional, entre diferentes conhecimentos compilados em torno de uma tríade temática: filosofia e orientalismo; história das religiões; e, história social (Cf. DOSSE, 1992, p. 47). Nessa linha, Barros igualmente destaca a importância do ambiente interdisciplinar da universidade no período. Em Estrasburgo, Bloch e Febvre encontraram “um clima intelectual renovado e particularmente interdisciplinar que se tornara possível [...] em virtude da concentração de diversos” profissionais do meio acadêmico (BARROS, 2012, p. 221). Mas, de antemão recorda que “antes mesmo de seu encontro na Universidade de Estrasburgo”, tanto Bloch quanto Febvre “já estavam sintonizados” com a concepção de interdisciplinaridade (BARROS, 2012, p. 104).

Nesse interim, é possível afirmar que – em maior ou menor grau – os autores concordam com o fato de que os Annales, pelo menos no horizonte das chamadas Ciências Humanas, não constituíram uma vanguarda interdisciplinar porque herdeiros de uma tradição anteriormente estabelecida nas Ciências Sociais e porque legatários de uma conjuntura histórica e de um locus propícios. Enfoque que corrobora análises emanadas de leituras até então já consagradas, tais como as auferidas por Dosse (1992), Burke (1997) e pelo próprio Braudel (1991). Contudo, vale ressaltar que se as referidas obras de Reis e Barros encontram esse denominador comum – e que se refere ao peso das conjunturas política, social e acadêmica da Europa e estrasburguiana da época na conformação do caráter interdisciplinar dos primeiros annalistas – o mesmo não se pode atribuir a outros tópicos igualmente relevantes. Resta-nos saber como a confluência desses ambientes (político, social e acadêmico) se manifestou no seio da fundação e no âmago das duas primeiras gerações (fases) dos Annales. O que implica na retomada da discussão sobre o ímpeto da História como “ciência federalista” e a escola-movimento francês como palco de “tradição-ruptura”.

A História como “Ciência federalista” e os Annales como “tradição-ruptura”

O historiador François Dosse (1992, p. 91) enfatizou que os Annales encarnaram “uma luta em duas frentes: contra um adversário a ser desmoralizado [...] e contra um adversário a ser respeitado, mas submetido.” Tal “adversário” era ninguém mais que as Ciências Sociais. Na primeira geração do movimento historiográfico francês impulsionada pelo pensamento sociológico de Émile Durkheim (1858-1917). Na segunda, orientada pelo colossal confronto com a renovação epistemológica da antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Em ambos os casos, respectivamente Lucien Febvre e Fernand Braudel lançaram mão de semelhantes estratégias, ainda que com sutis diferenças, a fim de submeter o campo rival. Para Dosse (1992, p. 111), essas lideranças dos Annales se valeram da interdisciplinaridade, apoderando-se dos programas, metodologias e conceitos dessas disciplinas a fim de subjugá-las à História, à mãe e ciência federalista de todas as Ciências Humanas. Divide et Impera! No entanto, em parte dissonante em relação ao analista francês, Hélio Rebello Cardoso Junior (2001, p. 180-184) ressaltou que, ao contrário da geração anterior, a do pós-1945 conservou o estatuto da História como principal intermediadora do diálogo interdisciplinar entre as Ciências Sociais, sem no entanto poder se dar ao luxo de “arrogar-se condutora da síntese”.

“Ciência federalista” em ambas circunstâncias, ou, apenas ciência “intermediadora” no período Braudel, ocorre que a batalha pela História conduzida pelos Annales foi ao mesmo tempo uma luta em “duas frentes” – de assimilação e combate às Ciências Sociais, tal como enunciado por Dosse – e de impulso dialético, demarcado pelo movimento de tradição-ruptura, como bem sublinhado por Cardoso Junior (2001, p. 178-179), que enfatizou que a cada ciclo, a cada geração, os Annales mobilizou a manutenção de tradições à medida que instaurou rupturas com as contribuições interdisciplinares anteriores.

Embora haja certo consenso os autores e nas comunidades historiográficas – brasileira e internacional – que os Annales são em grande medida devedores às Ciências Sociais, a tensão entre o caráter da História concebida pelos Annales como “Ciência Federalista” e o próprio Annales como “movimento de tradição-ruptura” igualmente perpassam as análises realizadas por Reis e Barros, em suas respectivas obras. Para Reis (2000, p. 80), por exemplo, a proposta interdisciplinar com as Ciências Sociais sustentada por Lucien Febvre diferia de outras em voga na época por encarar a História como uma ciência social própria, autônoma, e por entender a interdisciplinaridade como uma “troca de serviço”.

Nessa perspectiva, o que para Febvre e a primeira geração (1929-1945) cimentaria “a união da história e das ciências sociais estava além do método, era o ‘objeto comum’: o homem social.” (REIS, 2000). O que demandaria mais do que a incorporação de áreas um intercâmbio de “serviços”: “de conceitos, técnicas, dados, problemas, hipóteses.” (REIS, 2000, p. 81) Ou seja, mais do que o princípio de constituição de uma “ciência federalista”, o estabelecimento de uma “tradição” que visava menos a dominação de um campo por outro do que a concepção de uma história que, “sem abandonar alguns preceitos do tradicional”, baseava-se e concentrava forças no combate e superação da História Tradicional (Cf. REIS, 2000, p. 81).

Sem esgotar o tema e suas variáveis, Reis (2000, p. 102) aponta ainda que já na segunda geração da Escola (1946-1968) a interdisciplinaridade não esmorece, fortalecendo-se dado o contexto histórico e disciplinar do pós-Segunda Guerra Mundial. Nessa fase, demarcada pela institucionalização intelectual e acadêmica dos Annales no meio historiográfico francês é possível afirmar que a Escola sob a liderança de “Braudel reafirmou os princípios dos fundadores: a aproximação da história das ciências sociais, defendendo a posição ‘federadora’” (REIS, 2000, p. 107) da primeira em relação à essa última, pois, a História ainda vista como “fundadora de qualquer outro saber sobre o homem; recusou ainda enfaticamente a história política e ‘acontecimental’ e reafirmou [...] a história-problema e a história global.” (REIS, 2000, p. 107).

Logo, em Reis, transparecem mais atenuadas as tensões entre o caráter da História como “Ciência federalista” e o par dialético “tradição-ruptura”. A leitura da obra parece indicar que entre as duas primeiras gerações não altera entre os dirigentes dos Annales o horizonte e a percepção de uma História federativa: capaz porque maior do que qualquer outra ciência humana de coser e auferir sentido aos conhecimentos advindos de áreas afins. Tampouco, estabelece-se uma abrupta ruptura com a tradição, mantendo a recusa à história política e o foco nas concepções de uma história-problema. Nesse passo, a ruptura mais enfática localizada em Reis na análise dessa transição se encontra não no seio da própria escola, mas em seu entorno. Muda-se não os ímpetos federalista e interdisciplinar dos Annales, mas as próprias Ciências Sociais com o surgimento e o fortalecimento de novos campos do saber após a Segunda Guerra Mundial. Campos mais atrativos aos Estados-nacionais, que à época condicionados às políticas de controle e fomento desenvolvimentista operados pela ideia de bem-estar social: a economia, a antropologia, a psicologia, etc (Cf. REIS, 2000, p. 103). O movimento de translação da Escola manteve assim sua rota interdisciplinar outrora desenhada desde os pais fundadores, mas, por abruptas rupturas externas, passou a cumprir outro itinerário. A ênfase na sociologia estrutural logo é substituída pela polemização com a antropologia estrutural. A Economia e os estudos estatísticos passam a cumprir importantes papéis. E entre as três grandes áreas de diálogo e de interesse interdisciplinar na abordagem dos Annales – a saber: a sociologia, a antropologia e a geografia –, apenas a última se mantém relativamente invariável.

No livro as tensões entre “Ciência federalista” e “tradição-ruptura” aparecem com maior ênfase na análise da chamada terceira geração (1968-1988). Nessa fase dos Annales, justifica: “Alguns aspectos do programa dos fundadores foram radicalizados: a história como uma relação entre presente e passado chega ao extremo de se tornar história imediata, ‘história do presente.’” (REIS, 2000, p. 113) E a abertura da História a um grande leque associativo com novas disciplinas (literatura, paleobotânica, climatologia, etc.) e tecnologias (carbono 14, computadores, dendrocronologia, entre outras) levou esse quadro ao ápice. Assim, essa grande abertura interdisciplinar somada a uma irregular falta de critérios e ao quase abandono da História Total (Global) levou no final do período, nos anos 1980, a uma extrema diversificação de temáticas de pesquisa, apoiadas em um sem número de disciplinas e novas técnicas, resultando na produção massiva de uma história fragmentada (uma “História em Migalhas”, tal como afirmou François Dosse), que não mais condizia com o intento fundacional, tampouco com o legado da geração braudeliana. A não ser em um ponto específico e que manteve o cordão umbilical com o projeto fundador: o ensejo de que tudo é História, portanto, passível do historiar (Cf. REIS, 2000, p. 114-115).

Em “Teoria da História: a Escola dos Annales e a Nova História” (2012), de José D’Assunção Barros, as tensões entre o caráter da História como “Ciência federalista” e o par dialético “tradição-ruptura” apresentam-se mais delineadas. Sobre o caráter do sentido federalista da História produzida pelos Annales, Barros (2012, p. 91) considera que no horizonte das inovações e da revitalização postulada e emanada pelas Ciências Sociais já se descortinava a necessidade para a História de assimilar e adaptar aos seus objetivos algumas ideias emanadas daquele campo. Tratando-se, portanto, de um movimento de assimilação, adaptação, incorporação e dominação, aproveitando “em seu próprio favor toda uma série de novidades e novos olhares sobre o mundo humano que estavam desabrochando no âmbito de disciplinas como a sociologia, a antropologia, a linguística, a geografia humana” (BARROS, 2012, p. 98).

O mister último desse ensejo “federalista” da História almejada pelos Annales carregava assim na avaliação do autor mais do que o simples caráter de uma congregação de saberes sobre a onipotente liderança de Clio. Revelando-se, sobretudo, como “uma estratégia de projeção da escola no meio acadêmico” (BARROS, 2012, p. 104) na geração Bloch e Febvre. E, mais incisivamente, como uma “antiga obsessão de Braudel em concretizar um projeto imperialista para a História, no qual esta poderia absorver as demais ciências sociais ou, ao menos, oferecer-se a elas como uma interciência capaz de unificá-las.” (BARROS, 2012, p. 268). O caráter de uma “Ciência federalista” resgata assim na obra do autor o sentido mais estrito outrora atribuído por Dosse (1992, p. 91), a das Ciências Sociais como “um adversário a ser respeitado, mas submetido.” Enfim, um estatuto imperialista.

No que diz respeito ao movimento de “tradição-ruptura” a tensão dialética inerente e imanente ao fenômeno adquire igualmente realces quando o objeto é a interdisciplinaridade sob a égide da segunda geração. Enquanto em Reis (2000) essa tensão parece repousar na órbita de adequação interna dos Annales às mudanças externas, àquelas provenientes da acomodação dos astros (ou seja, das áreas) disciplinares das Ciências Sociais, em Barros (2012) esse fator não é suprimido, embora valorize e enfatize uma movimentação oposta – e, até aparentemente contraditória: a de conservação interna da tradição interdisciplinar (inclusive, respeitando-se rupturas próprias) como um fator imprescindível de manutenção de uma identidade frente às mudanças estruturais externas. Assim, para Barros (Cf. 2012, p. 261-264), Fernand Braudel não somente recebeu influências disciplinares e teóricas diversas como reavivou o debate crítico interdisciplinar. Ele não apenas vivenciou e operacionalizou a mudança de um debate mais agudo da História com a Sociologia estrutural para a Antropologia estrutural como reascendeu o antigo debate (e a crítica) às Ciências Sociais (Cf. BARROS, 2012, p. 262). Por fim, ele não apenas se apoiou na interdisciplinaridade a fim de combater Lévi-Strauss – em movimento análogo anteriormente operado em relação aos durkheimianos por Bloch e Febvre – como se notabilizou por conceder contornos próprios aos conceitos e saberes tomados de empréstimo de outros campos disciplinares. Num movimento de “braudelização” de influências (Cf. AGUIRRE ROJAS apud BARROS, 2012, p. 262).

O impacto da interdisciplinaridade nos Annales

Tema sempre recorrente no campo de investigação sobre os Annales diz respeito ao impacto da interdisciplinaridade na constituição de um possível paradigma pelo movimento historiográfico francês. Fruto dessa formulação, ainda hoje resiste acirrada disputa entre aqueles que creditam aos Annales o status de uma verdadeira escola historiográfica, porque formuladora de um então novo paradigma historiográfico, e, os contestadores dessa ideia. Entre os últimos, destacadas personalidades do grupo, tais como Febvre, Braudel, Marc Ferro e Jacques Le Goff (Cf. AGUIRRE ROJAS, 2004). Outros, fiéis depositários da crítica à lenda dos pais fundadores e do possível vanguardismo dos Annales quanto à contribuição para historiografia do século XX de um paradigma próprio, inovador. Querela de di-visão longe de dada como esgotada no campo da historiografia e que continua a projetar em lados opostos os defensores dos Annales como escola e seus críticos5.

Ainda assim, é consensual entre esses dois grupos que independente do caráter vanguardista ou não da corrente historiográfica a interdisciplinaridade cumpriu importantes papéis na produção de seus agentes em cada geração (ou, fase) da revista, bem como constituiu uma espécie de marca registrada dos Annales. A capacidade de interlocução interdisciplinar de historiadores do gabarito de Lucien Febvre, Fernand Braudel, Phillippe Ariès, Georges Duby e Emmanuel Le Roy Ladurie, entre outros, é indiscutível. E, ainda que como visto, a interdisciplinaridade não tenha sido – entre outras – uma inovação mesma dos Annales, foi no grupo e com certa regularidade que ela se manifestou de maneira mais enfática dentro do campo da História, constituindo nesse quesito uma identidade interdisciplinar na historiografia do século XX.

As obras de José D’ Assunção Barros e de José Carlos Reis não fogem a esse viés. A interdisciplinaridade é compreendida como espinha dorsal não somente para o entendimento do métier das modalidades de História produzidas pelos Annales, mas também como fio condutor das discussões sobre o caráter paradigmático (ou não) do movimento historiográfico originado em Estrasburgo, em 1929. Nesse ponto é possível auferir que os autores convergem em inúmeros tópicos, apresentando assim algumas sutis ainda que sensíveis discordâncias entre si. A mais enfática delas, de certo, diz respeito ao poder de nominação. Enquanto Reis (2000) apresenta desde as primeiras páginas de sua obra o movimento historiográfico francês como uma verdadeira Escola, porque precursor de novos parâmetros e modalidades de compreensão do Tempo, Barros (2012) sugere certa inclinação à resistência do uso do termo. Fazendo-o somente quando justificada sua adoção, que não difere muito daquela defendida por Reis. Mas, tendendo em grande parte do livro a denominá-lo apenas de movimento historiográfico. Aspecto que voltaremos a tratar a seguir.

No âmbito de entendimento de José Carlos Reis, ainda que a interdisciplinaridade tenha sido um traço marcante da produção dos Annales, e, certamente, o mais reconhecido deles, o merecedor estatuto de escola por parte dos historiadores franceses vinculados à revista deve-se menos à busca do diálogo com outras disciplinas e outros campos de conhecimento, tampouco à durabilidade do próprio movimento, que superou em muito as fronteiras temporais do século XX. A conformação de uma verdadeira escola a partir da fundação da revista e da institucionalização dos Annales nos meios acadêmico e intelectual em França (e fora dela) estaria assim vinculada para o autor na capacidade dos Annales em apresentar ao horizonte teórico da historiografia do breve século uma nova “e original representação do tempo histórico” (REIS, 2000, p. 10). Abarcada pela introdução e concretude da ideia de temporalidade multifacetada expressa pela “dialética das durações” (longa, média e curta duração) e pelo fomento de um novo paradigma analítico: a História-problema – em que o historiador organiza, interpreta e concede sentido às suas fontes e objetos de pesquisa a partir das perguntas a ele pertinentes e por ele formuladas. Particularidades essas que possibilitaram a compreensão do tempo e das temporalidades como “estruturais”, em que “os eventos são inseridos em uma ordem não sucessiva, simultânea” e a representação do tempo histórico de linear é substituída pelas ideias de simultaneidade, regularidade e desaceleração (Cf. REIS, 2000, p. 18-20).

Essas inovações perpetradas pelos e a partir dos Annales – ainda segundo Reis (2000) – somente foram possíveis graças a um movimento anterior e que se manteve ulteriormente. Trata-se do movimento interdisciplinar com as Ciências Sociais, manifesto por Bloch e Febvre antes mesmo dos primórdios da revista e renovado a cada geração da escola. Assim, ao praticarem a interdisciplinaridade com as Ciências Sociais, os Annales se apropriaram das ideias/conceitos de “estrutura social” e “estrutura temporal”, adequando-as à História, ao trabalho, aos objetivos e objetos dos historiadores, promovendo uma então inovadora compreensão do Tempo Histórico (Cf. REIS, 2000, p. 18): não linear, não matizada na compreensão de processos sucessivos, enfim, não teleológica. Compreensão essa do Tempo Histórico que, segundo o autor, já então conhecida dos sociólogos e geógrafos, pois, comparável “aos movimentos naturais e incorporam as qualidades desses: homogeneidade, regularidade, medida.” (BRAUDEL, 1969; VOUVELLE, 1982; POMIAN, 1988 apud REIS, 2000, p. 18).

No entanto, se para Reis essa movimentação interdisciplinar com as Ciências Sociais é acompanhada pela separação entre a Filosofia e as Ciências Humanas e, no caso da História produzida pelos Annales, reconhece-se e defende que os créditos dessa renovação interdisciplinar com as Ciências Sociais se deveu muito mais a Lucien Febvre do que a Marc Bloch, para Barros (2012) todo esse postulado conceitual e teórico se concretizou na geração seguinte com Braudel. Logo, se para o primeiro Braudel apresentou-se mormente como um renovador, para esse último autor a figura do historiador-geógrafo emerge das escumas do tempo-espaço não somente como um ícone de síntese, mas como o formulador próprio da identidade interdisciplinar que apresentar-se-ia característica maior dos Annales, uma vez que por intermédio dela concebe corpo e propósitos definidos à ideia de multiplicidade temporal.

Assim, ao tratar e equacionar a problemática da mudança de perspectiva do tempo histórico nos e pelos Annales, tema-chave nas discussões sobre o caráter contributivo do movimento historiográfico francês, Barros (2012, p. 151) não deixa de concordar com Reis que “Talvez algumas das contribuições mais criativas dos Annales tenham sido as experimentações em torno das novas formas de lidar com o tempo [...]”. E que o mestre nesse intento foi ninguém mais, ninguém menos do que Fernand Braudel (Cf. BARROS, 2012, p. 151). Contudo, se as ideias de longa duração e de multiplicidade de tempos históricos tornar-se-iam elementos inquestionavelmente “revolucionários” dos Annales (Cf. BARROS, 2012, p. 152), as condições históricas – portanto, também interdisciplinares – que permitiram “o projeto conceitual por detrás da ideia de longa duração” (BARROS, 2012, p. 153) ainda não estavam totalmente dadas antes de Braudel. Trata-se, portanto, dos movimentos acionais de “estruturar o evento” e “mobilizar a estrutura” (BARROS, 2012, p. 153). Elementos que somente foram possíveis graças ao desenvolvimento das chamadas Ciências Sociais. Especialmente, com o surgimento da Antropologia Estrutural de Lévi-Strauss. Logo, enfatiza o autor, que para os Annales – e, em especial em Braudel – a estrutura das Ciências Sociais foi adaptada à História na simplificação entre estruturas permanentes e estruturas mutáveis, e, que, ainda que não exista uma estrutura imutável, a estrutura permanente caracteriza-se como uma estrutura mutável somente na longa duração (Cf. BARROS, 2012, p. 157).

A historiografia braudeliana é assim tomada na perspectiva de Barros para além de uma mera expressão de síntese de ideias anteriormente levantadas e levadas a cabo pelos formuladores da primeira geração do movimento historiográfico francês, mas como instrumental que possibilitou mais do que uma simples renovação, a própria concretude do postulado teórico-conceitual que por anos a fio caracterizou e consolidou os Annales. Ao líder da chamada segunda geração coube não somente o incremento de novas relações e diálogos com as Ciências Sociais – num horizonte em que os Annales sequer poderiam ser considerados pioneiros na lide com a interdisciplinaridade no âmbito da historiografia europeia –, como o aprofundamento no tratamento da História-Problema, e, mais além, a partir da incrementação e atualização desses instrumentos, da tessitura de uma instrumentalização muito particular e bem arquitetada em relação ao caráter multifacetado do tempo histórico, através de sua dialética das durações. O que permitiu aos historiadores, entre outros propósitos, a reflexão em torno de novos problemas e a imersão em novos objetos (Cf. BARROS, 2012, p. 153).

Considerações Finais

Nas duas últimas décadas a historiografia brasileira tem desenvolvido e publicado um sem número de obras sobre os mais variados temas de estudos e sobre as mais diversas correntes historiográficas. Nesse horizonte, a chamada historiografia polemista vem cumprindo importante papel na exposição ao público acadêmico de obras que sintetizam as ideias, metodologias e discussões epistemológicas pertinentes à historiografia contemporânea. Corroborando uma perspectiva de síntese não menos teórica e densa, ainda que, principalmente, mas não só voltada para a formação de graduandos e de pós-graduandos em História e áreas afins.

No tocante à corrente historiográfica francesa dos Annales a historiografia polemista brasileira concebeu duas importantes obras que têm se destacado das demais tanto por suas densidades temáticas e de abordagem quanto por escritas claras e objetivas. Configurando ao longo dos últimos anos em importantes e contributivos aportes à formação de futuros pesquisadores e professores dentro e fora da área. Fenômeno cada vez mais realçado pela crescente adoção e citação de tais referenciais em ementas curriculares, artigos, trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses. Trata-se do livro “Escola dos Annales: a inovação em História” (Paz & Terra, 2000), de José Carlos Reis; e, “Teoria da História: a Escola dos Annales e a Nova História” (Vozes, 2012), de autoria do também historiador e professor, José D’Assunção Barros.

Característica marcante dos Annales – principalmente, nas duas primeiras gerações (ou, fases) –, a interdisciplinaridade é vista e apresentada nas respectivas obras sem gritantes divergências de abordagem. Em parte legatários e amparados na leitura de uma vasta tradição bibliográfica sobre o assunto – condensada em autores diversos, como por exemplo, François Dosse, Jacques Le Goff, Peter Burke, entre outros – os textos acabam não somente por reproduzir algumas concepções e análises anteriores, como mesmo, a partir delas, concebendo e imprimindo as próprias reflexões e inflexões. Por essa razão, a aparente inexistência de latentes divergências de abordagem em relação a outros autores não assinala ausência de originalidade analítica e inexistência de pontos destoantes. Aliás, a contribuição das obras para o tema em destaque justifica-se mesmo nas divergentes sutilezas. Corroborando, por um lado, o reconhecimento de uma tradição. E, de outro, um expressivo avanço e autonomia da historiografia nacional.

No âmbito do debate sobre a interdisciplinaridade e os Annales das gerações progenitoras, a historiografia polemista brasileira reforça e apresenta consenso em destacar que, ainda que uma marca característica da corrente historiográfica francesa, a busca por conhecimentos e conceitos emanados de outras Ciências – especificamente, das Ciências Sociais – não foi uma expressão exclusiva, tampouco uma invenção e um monopólio da historiografia produzida por aquele movimento-escola em seus estágios formativos. Apoiando-se em perspectiva outrora defendida por autores como Dosse e Burke, conformam assim a importância do caráter interdisciplinar do grupo reconhecendo o débito dos Annales fundadores (e, refundador, no caso de Fernand Braudel) a matizes historiográficos anteriores – como o historicismo, no tocante a Bloch e Febvre – e ao processo próprio de amadurecimento das Ciências Sociais, no geral. Em que disciplinas como a Geografia e a Sociologia já articulavam como protagonistas do diálogo com outras áreas e campos do conhecimento.

Não obstante, os autores e suas respectivas obras igualmente entendem que o salto interdisciplinar foi sobretudo um fenômeno resultante de uma auspiciosa conjuntura de época. E que canalizou no berço acadêmico de Marc Bloch e Lucien Febvre sua máxima expressão. Estrasburgo converteu-se assim, mais enfaticamente na obra de Reis do que na de Barros, o locus não somente de fundação, mas de modelagem interdisciplinar dos Annales. O lugar que, ocupando então importante e disputada posição estratégica, permitiu o alcance de um espírito universitário interdisciplinar, tratando-se do epicentro de embate não somente entre duas nações distintas e então divergentes, mas de concepções e visões de mundo destoantes. Essa atmosfera repercutiu nas entranhas da instituição universitária homônima e entre seus docentes. A alocação marginal compensada pelo alto investimento do governo francês na universidade fronteiriça possibilitou tanto o ingresso e remanejamento de então jovens, mas promissores professores, como o livre e franco diálogo regular entre departamentos e entre seus respectivos quadros docentes, favorecendo a inovação intelectual e a incursão para além de fronteiras disciplinares alhures.

As obras também convergem no reconhecimento de que por intermédio da prática interdisciplinar foram possibilitadas aos Annales a arquitetura e edificação de um dos seus principais caracteres distintivos e contributivos à historiografia do século XX: a incorporação de um novo entendimento sobre o tempo histórico, realçado pela concepção dialética das durações. Porquanto, de multiplicidade dos tempos históricos. Essa inovação traduziu-se em novas possibilidades de experimentações e em outras e distintivas formas de lidar com o tempo: a simultaneidade, a desaceleração e a regularidade. Além, é claro, da ampliação de objetos de investigação e do alargamento da ideia de fontes e seus usos.

Coabita, contudo, nesse debate uma orientação díspar. Em Reis essa inovação debitada à corrente inaugurada por Febvre e Bloch transparece e pode ser interpretada como expressão maior da manutenção de uma “tradição-ruptura” que, fundamentada ainda à época – e como herança – dos pais fundadores, respaldou-se na interdisciplinaridade – entre outros motivos – como tradução de uma estratégia de ímpeto federalista em relação às demais Ciências Sociais. Ou seja, a História como “Ciência federalista” das demais Ciências Humanas. Em Barros, no entanto, a suposta linearidade que envolve a compreensão da ideia de “tradição-ruptura” apresenta-se diluída, destacando o caráter disruptivo presente no processo-movimento de consolidação de uma nova perspectiva sobre o tempo histórico e a dialética das durações. A ideia de quebra braudeliana apresenta-se assim ainda mais evidente, mais realçada, destacada, fremente. Braudel emerge das escumas elucidativas aparentemente não apenas como o herdeiro e continuador de uma tradição, e, como o notável renovador e organizador de um Automatic Binding Bricks teórico legado por seus antecessores, mas como o próprio refundador da tradição. Ele protagonizando a concretude do postulado teórico-conceitual que pelas gerações seguintes imprimiria emblema aos Annales, ainda que reforçando o ímpeto imperialista da História.

O salto braudeliano sublinhado por Barros, para além do enfoque na interdisciplinaridade como promotora de uma mudança de perspectiva de tempo que realça a temporalidade dialético-estrutural, anteriormente já problematizada e proeminente na obra de Reis, sugere um enfoque na interdisciplinaridade como um movimento em contínuo no itinerário dos annalistas e como propulsora de novas modalidades de produção historiográfica: a Geo-História; a História Quantitativa; a História Econômica; e, mais tarde, a própria História das Mentalidades e a História Imóvel. Desdobramento que assinala um sobrepasso contributivo e traduz a ideia de “tradição-ruptura” menos como um movimento simplesmente conectivo e mais por seu caráter disjuntivo.

Ainda que posicionamentos sutilmente distintivos e que sugerem um tensionamento de caráter analítico entre as ideias de “tradição-ruptura” e de História como “Ciência federalista”, a interdisciplinaridade levada a cabo pelos Annales nas duas primeiras gerações não deixa de ser entendida pelos autores a partir, entre outros, de um aprofundado olhar dossiano. Por um lado, servindo como imprescindível instrumento de revitalização teórico-conceitual traduzida nas modalidades de História produzidas pelo movimento-escola historiográfico francês. Mas também como poderoso estratagema de luta, incorporação, dominação, ou, pelo menos, manutenção do status quo da História. Cerne de tensão e celeuma que repousa na órbita dessa notável faceta. E que, ainda hoje, articula como um dos principais focos dos alaridos internacionalmente produzidos pela historiografia dedicada aos estudos dos Annales. Caracterizando a atualidade e o vigor intelectual dessa historiografia nacional debruçada sobre o assunto.

Referências

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Notas

1 A interdisciplinaridade e suas múltiplas definições, variações e manifestações são objetos de controvérsias no campo acadêmico. Nas diversas Ciências coabita um hiato consensual, seja no âmbito de esforço de conceituação quanto de questionamento epistemológico sobre a validade, a vitalidade, o projeto ideológico, ou mesmo, em relação ao caráter científico da chamada interdisciplinaridade e suas variantes. Autores como Peter Watson (2018) procuram compreendê-la num sentido mais abrangente, o de “convergências” entre saberes e práticas, enquanto pensadores como Immanuel Wallerstein (1996) lançam questionamentos sobre a vitalidade e validade do projeto interdisciplinar num universo acadêmico engessado por barreiras departamentais e disciplinares. Na linha de Wallerstein, o historiador mexicano Carlos Antonio Aguirre Rojas (2010) assevera que nas últimas décadas os intentos de promoção e defesa das ideias de “multi, pluri, trans o interdisciplinaridad” estranhamente deixaram intocado o fundamento estrutural das Ciências na modernidade, que diz respeito à rígida divisão em áreas de conhecimento e em disciplinas. Dada a amplitude e a profundidade de tal discussão, incoerentes com a brevidade dessas páginas, procurou-se manter no presente artigo a acepção “interdisciplinaridade”, pois, já largamente reconhecida e difundida, porquanto, consagrada na literatura sobre os Annales.
2 O uso do termo “escola” para definir e se referir aos Annales não é consensual entre os historiadores. Embora autores – entre outros – como Peter Burke (1997), Reis (2000) e Barros (2012, 2017) façam amplo uso do termo, reconhecendo que o movimento francês constituiu uma verdadeira escola historiográfica, Aguirre Rojas (2004, p. 10-11) recorda que, de Lucien Febvre a Jacques Le Goff, proeminentes annalistas evidenciaram críticas em relação ao título. E que seu uso é extemporâneo por não dar conta de uma realidade “múltipla e complexa, de sucessivo e às vezes muito diferentes projetos intelectuais” que coexistiram dentro dos Annales (AGUIRRE ROJAS, 2004, p. 10-11). Assim, o autor opta pela adoção da terminologia “corrente”. No entanto, e ainda que considere igualmente inadequada a acepção interdisciplinaridade, Aguirre Rojas (2004, p. 24) – tal como os pares supracitados – considera que o diálogo permanente dos Annales com as demais Ciências Sociais é “tão forte dentro de sua trajetória que toda a História dessa corrente historiográfica pode ser explicada como o jogo de sucessivas aproximações, vinculações, alianças e até tentativas de fusão com essas diferentes disciplinas [...].” No texto, tal como no caso da “interdisciplinaridade”, privilegia-se a terminologia difundida nas obras pelo artigo analisadas.
3 Peter Burke (1997, p. 26) sugere que assim como Febvre, Marc Bloch igualmente se interessava pela geografia histórica, emblema marcante em Île-de-France. Nesse sentido, além de já pensar o tema sobre a perspectiva de uma história-problema, Bloch transfere essa preocupação do pensar geograficamente o trabalho, colocando em relevo a própria noção de região, objeto à época central da Geografia. Para o autor, a definição mesma de região dependia muito menos dos protocolos políticos, administrativos e naturais adotados pelos geógrafos para definirem uma região em detrimento de outra do que, propriamente, do problema (ou, problematização) levado a cabo pelo trabalho do pesquisador.
4 Marc Bloch e Lucien Febvre lecionaram e conviveram em Estrasburgo entre os anos 1920 a 1933.
5 Por “di-visão” compreende-se a ideia de dupla visão; escopos, sentidos e consensos antagônicos e conflitantes estabelecidos nas lutas e visões intelectuais pelo poder. Ver: Bourdieu (1989, p. 108-113).
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