Entrevistas

Recepção: 01 Agosto 2018
Aprovação: 29 Maio 2019
DOI: https://doi.org/10.5433/1984-3356.2019v12n23p820-818
Resumo: Miridan Bugyja Britto Falci foi professora do Departamento de História UFRJ de 1970 a 1999. Concluiu o seu doutorado em História Social na USP em 1992 e fez o seu estágio pós-doutoral na École des Hautes Études (EHESS) em Paris, no ano de 1995. Os seus principais interesses de pesquisa são a escravidão e a demografia. A professora Miridan é o único integrante vivo da Comissão que elaborou o Atlas Histórico Escolar entre 1958 e 1959. Publicado pelo Ministério da Educação e Cultura, o Atlas teve oito edições em vinte e quatro anos, tendo sido vendidos mais de um milhão de exemplares e, até hoje, é o único atlas histórico produzido e publicado no Brasil.
Abstract: Miridan Bugyja Britto Falci was Professor in the Department of History at UFRJ, Brazil, between 1970 and 1995. She received her Ph.D. in History from the USP, São Paulo, Brazil, in 1992 and her research interests spanned both Brazilian slavery and demography. Professor Falci is the only living member of the team that produced the School Historical Atlas between 1958 and 1959. Published by Ministério da Educação e Cultura, the Atlas had eight issues in twenty-four years with more than one million copies sold, and is the only Brazilian historical atlas published to date.
Entrevista realizada em 7 de outubro de 2014
O Atlas Histórico Escolar começou a ser produzido em 1958 e foi lançado pelo Ministério da Educação e Cultura em 1959, continuando a ser, ainda hoje, o único atlas de seu gênero produzido e editado por brasileiros. Idealizado durante o governo Juscelino Kubistchek para a Campanha Nacional de Material de Ensino do Ministério da Educação e Cultura, foi integrado aos esforços da Fundação Nacional de Material Escolar em 1967, durante a Ditadura Civil-Militar. Até 1983, ou seja, durante 24 anos, recebeu oito edições e numerosas reimpressões, as quais somaram mais de um milhão de exemplares. Nenhum artigo ou entrevista sobre esta importante obra didática foi escrito até hoje, e Miridan Britto Falci é o único membro vivo da equipe que produziu o Atlas, o que torna este texto ainda mais importante. Miridan foi professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de 1970 a 1999, e está associada ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) desde 1996, tendo sido editora da Revista desse Instituto. Possui doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1992) e fez o seu pós-doutorado na École des Hautes Études (EHESS), em Paris, em 1995. Suas publicações sobre escravidão, gênero e história regional somam mais de 90 títulos, entre livros, artigos e capítulos. Contudo, sua participação na produção do Atlas Histórico Escolar se deu quando apenas havia concluído sua graduação em Geografia e História na Faculdade Nacional de Filosofia da UFRJ, assinando ainda com o nome de Miridan Britto Knox. À época, auxiliou Arthur Cezar Ferreira Reis1 a elaborar a seção de História da América para o Atlas, participando assim das reuniões gerais que eram comandadas pelo professor Manoel Maurício de Albuquerque2.
A entrevista aqui transcrita foi realizada na cidade de Natal, no final de 2014, quando preparava meu projeto de pesquisa “As fabricações de Jaime Cortesão”. Pude avaliar, naquele momento, que os conteúdos do Atlas e a sua própria elaboração resultavam das atividades docentes e de pesquisa realizadas por Jaime Cortesão3, no Instituto Rio Branco, nas décadas de 1940 e 1950.
1) Profª Miridan, fiz um levantamento rápido acerca da elaboração do Atlas Histórico Escolar para introduzir a nossa entrevista: o primeiro estudo que lhe serviu de base foi feito por João Alfredo Libânio Guedes. Em março de 1958, é feito o convite da Campanha Nacional do Material de Ensino a três professores: Delgado de Carvalho, da Universidade do Brasil; Américo Jacobina Lacombe4, membro do IHGB, professor do Instituto Rio Branco e da PUC-RJ; e Arthur Cezar Ferreira Reis também da PUC-RJ, para comporem a Comissão de Redação do Atlas Histórico Escolar. A primeira coisa que eu gostaria de perguntar, dada a sua inserção no IHGB é: o Instituto teve algum papel na elaboração do Atlas?
Não, que eu saiba não, mas também não posso dizer já que naquele momento eu ainda não participava do IHGB, mas eu desconheço qualquer ligação do Instituto com essa proposta, mesmo porque, como você falou, isto partiu do MEC. Era um material de ensino que eles queriam produzir para que fosse acessível ao aluno, uma vez que chegaram à conclusão que este não tinha um Atlas. Nós tínhamos atlas estrangeiros, em inglês ou em espanhol, e não existia ainda um atlas em português. O IHGB não teve participação, que eu saiba, até agora. Eu posso voltar a pesquisar, mas acho que não, porque pessoas como o Delgado nunca foram para o IHGB – Jacobina Lacombe sim, mas ele não entrou na confecção do mapa. Quem entrou foi Manoel Maurício de Albuquerque, porém eu não sei quem o levou.
2) Sabemos que a Comissão de Redação do Atlas Histórico Escolar era composta por Jacobina Lacombe, Arthur Cezar Ferreira Reis e Delgado de Carvalho, mas na elaboração do Atlas não se observa mais a presença de Américo Jacobina Lacombe e o Manoel Maurício tornou-se responsável pela seção de História do Brasil. Eu estou correto em supor que, por conta dessa divisão, originalmente seria Américo Jacobina Lacombe quem elaboraria a seção de História do Brasil?
É, eu tenho uma hipótese, que o Lacombe seria responsável por isto, mas você pode confirmar que ele já estaria com muito trabalho e cansado, porque já não era muito novo, então, poderia, ou pode ter passado essa tarefa para o Hélio Viana e, como ele também estava cansado, cansado não, com muitas atribuições, passou para Manoel Maurício. E eu também, o que posso me lembrar é que, de repente, eu vi Manoel Maurício na segunda reunião, e não entendi o porquê, mas não me competia discutir por que ele estava ali ou não [... ]. Também não entendi por que não seria o Hélio Viana5, mas não me falaram nada e eu fiquei sem saber.
3) Américo Jacobino Lacombe estava presente na primeira reunião da Comissão do Atlas Histórico Escolar?
Estava. As propostas eram muitas, esse Atlas deu muito trabalho, muito cansaço, pois era muito o que se pedia em cada reunião, o que se falava, o que se sugeria. Era a tarde toda em reunião, e o Manoel Maurício, dá para você perceber, começou a liderar: ele dava mais ideias, mais ideias e mais ideias, então ele tinha a capacidade de liderar, por ser mais novo, e o Delgado de Carvalho6 acabou passando metade de suas atribuições para a Therezinha de Castro7, que também era jovem. O Arthur Cezar tinha a proposta de fazer 15 mapas para a seção de História da América e ficou acabado nesses 15 mapas, ainda que eu dissesse: “Professor, o senhor não quer elaborar mais alguns mapas?” Então ele disse: “Não, não.” Esse é o programa inicial, ou então pode ser que não seja apenas uma suposição, o Jacobina talvez já estivesse com muitas atribuições, já estava mais velho, e o entregou a quem? Talvez a Hélio Viana. E Hélio Viana entregou a quem? Talvez a Manoel Maurício. Talvez eles não soubessem, no início, que era tão trabalhoso. É muito trabalhoso você querer fazer um atlas com a documentação cartográfica. Por quê? Eu vou ver se te respondo a segunda pergunta.
4) A sra. falou em 15 mapas para a seção de História da América, a seção de História do Brasil também elaborou 15 mapas, mas a seção de História Geral possui 41 mapas. Como é que se chegou a essa divisão?
A cada reunião, eu sentia que o trabalho ia aumentando, eram tantas ideias que parecia que as pessoas estavam perdidas. Existia um atlas histórico europeu, não existia um atlas histórico brasileiro da formação da nossa unidade política e territorial. Portanto, eram ideias, eram reflexões, eram propostas, que a gente sentia que o outro ficava: “Como é que eu vou fazer isso? Eu não sei por onde começar [...]”.
5) Mas os srs. consultavam atlas europeus, estadunidenses? Algum em especial?
Tinha um que eu até havia feito a tradução com Arthur Cezar, que se chama... é da Editora Espasa-Calpe – Atlas de História Geral –, e teve várias publicações, umas dez ou treze publicações. Bom, o que é que a gente consultava? O que é que eu consultava e o que o Arthur Cezar indicava? Eram os atlas da Enciclopédia Britânica, do Larousse, ou seja, eram mapas que diziam respeito à formação da Europa, à formação do Oriente, do Oriente Médio, um pouco da África. Mas nós já estávamos depois de 1950, a África havia mudado muito. Por sua vez, do Brasil não havia mapas históricos, então você tinha que imaginar, imaginar não, refletir onde é que está o mapa básico da penetração das entradas e fronteiras? Aí alguém dizia, “Ah! O Taunay: vamos consultar o Bandeiras Paulistas”. Então o outro dizia: “Mas, além do Taunay tem o fulano de tal, não, mas eu acho que para botar fronteiras e penetrações tem que botar todos os rios, porque as bandeiras acompanhavam os rios, eram as Missões. Tem que ver os trabalhos sobre as Missões. De quem eram os trabalhos principais sobre as Missões? [Mapa Bandeiras do Século XVII e XVIII, p. 18]8.
Era assim, tudo foi uma criação a partir das propostas, e quem liderava muito eram o Delgado de Carvalho e o Manoel Maurício: eles tinham ideias, por exemplo, o mapa econômico: “Quem têm mapa econômico do Brasil, você vai seguir quem? O livro Formação Econômica do Brasil, de Roberto Simonsen, Formação Econômica do Brasil de Caio Prado Junior? Quem é que você vai seguir?” Então, aquelas propostas “Eu acho que basicamente, fulano, fulano e fulano e, está bom”. Quando se chegava na outra reunião diziam: “Não, mas ele não me deu subsídio” [Mapa Econômico do Brasil, p. 20].
O outro que estava fazendo o mapa, o Manoel Maurício “Eu achei que não está claro, acho que tem que pesquisar mais”. Em cada reunião, e havia duas ou três reuniões por semana, se acrescentavam novas coisas e parecia que a gente não ia terminar nunca esse Atlas, porque a cada mapa econômico do Brasil o Manoel Maurício dizia: “não, mas ao lado do mapa econômico eu tenho que ver isso daqui de Olinda, tenho que ver não sei o quê, tenho que ver sei o que lá, tem o engenho, o engenho de Megaípe [...] Ora, onde eu vou encontrar essa gravura?” Então ele tinha que ir a Biblioteca Nacional [Mapa Econômico do Brasil, p. 21].
Por isso, a cada reunião a gente saía com mais trabalho, eu só não parei porque eu gostava muito do Arthur Cezar Ferreira Reis, pois era muito trabalho. Nesse mapa aqui, o Mapa econômico do Brasil, você pensa que pode ser assim: Ciclo da Cana-de-açúcar, Ciclo da Mineração e está acabado. Não, outros vários conhecimentos acabaram sendo colocados nesse mapa.
6) A sua Comissão, a de História da América, participava de tudo?
Sim, ela participava. A Comissão era geral. Todo mundo participava e dava palpite um no trabalho do outro.
7) E Manoel Maurício e Delgado de Carvalho também participavam das discussões da Comissão de História da América?
Às vezes, até elogiavam. Por exemplo: Arthur Cezar Ferreira Reis teve a ideia de incluir o formato de remos num mapa, e me lembro que Manoel Maurício achou isso brilhante, “Que coisa interessante, como é que você vai caracterizar as áreas culturais se eles praticamente não tinham muita coisa, a não ser os Maias, os Astecas e os Incas? Formas de casas não é possível, mas formas de remo [...] Hum, que interessante! Miridan, onde é que você pesquisou?” Aí eu disse: “O Dr. Reis me emprestou o livro do Nordenskïold!” É que eu saía da casa dele [de Arthur Cezar Ferreira Reis] com quatro, cinco, seis livros, ficava debruçada nos livros copiando, pois não havia xerox, não havia fotografia, copiando a mão. Para você ver, isso aqui foi do Nordenskïold, a distribuição dos remos na América [Mapa América Pré-Colombiana, p. 38-39].
Foi muito trabalho para depois apresentar este outro mapa que o Arthur Cezar pediu para ser feito em separado, dizendo: “Olha eu quero um pequeno mapa com isso aqui, a metalurgia no Império dos Incas”, e alguém reclamou: “Por que se iria colocar a metalurgia se isto não foi importante na América naquele momento? Isso não se chocava com as áreas culturais e os grandes impérios?” O Arthur Cezar se defendeu: “Não, porque a metalurgia é justamente o outro marco, em relação aos grandes impérios, que tinham metalurgia”. “Ah, então, por que não colocou um mapa grande?”
Até o tamanho [...] Eu levava umas folhas grandes desenhadas à mão, de papel vegetal ou então papel canson e todo mundo dava palpite no mapa da gente: “Ah, eu não gostei disso aqui”. O Manoel Maurício também achou brilhante este outro pequeno mapa: “Puxa, mas isso aqui está diferente, áreas culturais, ao invés de mostrar somente astecas. Olha só que diferente!”. O Darcy Ribeiro9 chamou atenção que isso aqui estava interessantíssimo [Mapa América Pré-Colombiana, p. 39].
8) Darcy Ribeiro participou da elaboração do Atlas Histórico Escolar?
Não, mas ele me pediu para fazer uma pesquisa sobre indígenas na América a partir de cartografia. Eu ia até a Biblioteca Nacional para ver a seção cartográfica, ao IHGB e ao Serviço Geográfico do Exército, lá no alto do Morro da Conceição e começava a pedir: “Me dê um mapa do século XVI”. “Para que a senhora quer o mapa?” “Me traz um mapa.” Os mapas eram em pergaminho, ocupavam duas mesas e eu tinha que copiar à mão, porque não podia tirar fotografia daquilo, nem tinha jeito na época. Quando chegava em casa, pensava: Como é que eu vou passar isso que eu copiei para o mapa? Qual é o tamanho que eu tenho de mapa? Hoje em dia você entra no Google que tem. Eu ia na papelaria e comprava o mapa da América. Para conseguir juntar as Américas, eu vou te dizer uma coisa, com respeito ao trabalho cartográfico: a América do Sul, ela está para cá e a do Norte para lá, não dá numa folha, se você pegar o globo isso está para cá e aquilo está para lá, tive que fazer igual ao Tratado de Madrid – na marreta.
Falei para o Arthur Cezar: “Olha, geograficamente isso está errado, eu tive que juntar os dois continentes e um está mais para cá, o outro para lá, porque em um só mapa a folha não dava. “Miridan, não tem importância não [...]”. Aí se chegou à conclusão que isso era melhor... Não, mas na Comissão não se falou a partir do quê. Isso hoje em dia pode ser considerado um erro, a partir dessa base aqui dos mapas. Você conhece cartografia? Num planisfério isso aqui é enorme, porque as áreas perto do pólo são enormes, então quando você quer juntar isto com aquilo, isto é desse tamanho, o outro tem que deformar, cartograficamente tem que deformar para se juntar os dois, dá um trabalho.
9) Na “História do Brasil nos velhos mapas”, obra de Jaime Cortesão, não se faz também a avaliação da formação territorial do Brasil a partir de Nordenskïold?
Esse não me lembrava. É, houve a participação de todos. Todos davam ideias, Faziam reflexões, elogiavam, criticavam ou davam uma posição de que algo não estava bom. Eu como geógrafa, meu papel aqui não era tanto como historiadora, eu fui chamada para fazer parte da Comissão. Você me fez essa pergunta: como é que eu ingressei na Comissão.
Eu me formei em dezembro de 1957 na antiga Universidade do Brasil em História e Geografia e fui levada pelo Professor Francis Ruellan, que era francês, para o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia. Ele era auxiliar de pesquisa, então o que eu fazia nesse Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia? Um trabalho pequeno de geografia, era um pequeno mapa, nós fazíamos levantamentos. Eu fiz duas excursões a Roraima com Ruellan, e nesse trabalho que agora está publicado pela prof.ª Marieta de Moraes Ferreira10, você pode ver lá o meu depoimento: nós íamos para Roraima em lombo de burro, como dizia o Ruellan [Trata-se do livro A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar].
O Ruellan ditava meio em francês, meio em português, então chegava lá e tinha que desenhar, redesenhar todos os caminhos. Nós trazíamos amostras de pedra dentro dos saquinhos que eram levados para o Departamento Nacional de Produção Mineral para identificar qual rocha era, porque a gente não tinha gabarito para identificar. O meu trabalho era de geógrafa, eu estava no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia, com o Ruellan, que era professor contratado da Universidade do Brasil e do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia para fazer os levantamentos, e eu estava com um livro do Salvador Canals Frau sobre a América. Certa vez, Arthur Cezar, que era então o presidente do Instituto, passou por mim e disse: “Que curso você está fazendo?”
Ele sabia que eu era uma funcionária nova, uma jovem, “O que você está fazendo?” “História e Geografia aqui na Universidade do Brasil” respondi. E ele falou: “Ah, então você vai fazer uma pesquisa para mim”. Foi assim que começou. Então eu estava terminando a formação, me formei em 1957, e em 1958 já estava trabalhando com ele, mas eu estava grávida de meu segundo filho, e, por isso, quando ele me convidou, eu me senti honrada. Logo depois todo mundo me deu os parabéns: “Ao lado do Arthur Cezar Ferreira Reis!”. Mas eu, se fosse uma pessoa que ele não valorizasse, poderia tirar meu nome, eu era apenas auxiliar, fazia o trabalho que ele determinava, não tinha conhecimento para fazer isso. Eu, recém-formada, nem tinha livros, o suficiente, nem da América, nem do Brasil, nem de nada. Ele me emprestava todos os livros para eu copiar; eu também marcava, ele era muito sistemático: “Amanhã você vem aqui”. Eu entrava pela noite, com uma criança pequenininha, para no dia seguinte fazer os mapas em papel canson.
10) A sra. lembra de quanto tempo durou essa parte de elaboração dos mapas do Atlas Histórico Escolar?
Eu acho que levou o ano de 1958 inteiro. Não me lembro se eu ganhei bem, mas se ganhei, foi depois. O MEC só pagou depois de ter confeccionado o Atlas, eu acho que eu ganhei um dinheiro como se fosse hoje uns 10 mil, 15 mil reais, mas não era muito para o ano todo, não. Eles não davam o material, e comprar papel canson era caríssimo, e ainda tinha a tinta, o estilete.
11) Como se chegou à quantidade de mapas a serem incluídos em cada seção do Atlas?
Eu não sei, eu já cheguei com essa informação de que eram 15 mapas para a seção de História da América. Eu sei que o Delgado de Carvalho ampliou o escopo de sua seção para 42 mapas, porque disse que não era possível fazer toda a evolução, principalmente do Oriente Médio. A Unificação Alemã, por exemplo, ele fez com os mapas todos condensados. Manoel Maurício propôs nova ampliação do número de mapas, mas Delgado achou suficiente. Eu acho que a seção de História da América deveria ter mais mapas também, pelo menos uns vinte, penso que ficou tudo muito contido, principalmente os detalhes que são importantes e deveriam estar expandidos noutro mapa. Esse mapa de colonização espanhola, na pág. 40, é uma verdadeira aula de História da América, se você observar o que ele tem de informação: primeiros núcleos de povoamento, todas as missões colocadas [...].
O Arthur Cezar falava assim: “Olha, faz um mapa, e você vai colocar as Missões, os núcleos de povoamento, as comunicações”. Ele pedia “n” detalhes em um mapa, então eu tinha que procurar. Ele me dava alguns livros e nesses livros havia pequenos mapas e detalhes para juntar a esse mesmo problema. Como é que eu iria colocar em um mapa grande tanta coisa detalhada? Então, eu acho que ficou falho, pouco expressivo, tem muita informação factual aqui, e uma pessoa se perde se quiser estudar História da América por ele, pois contém: todas as cidades, Andalucía, La Nueva, as Capitanias Gerais, divisões administrativas, povoamentos, ocupação, tudo em um mapa só, em que deveria haver dois ou três. Tinha colonização espanhola e como é que pode em uma página trabalhar a colonização espanhola toda? Não é possível.
Já o mapa Colonização Portuguesa [p. 40], tudo bem que estava em um mapa do Manoel Maurício, aqui no mapa Colonização espanhola no século XIX [p. 41] que são os grandes Vice-reinados, com muita informação de comunicação, de cidades, do povoamento, de aldeias, às vezes até tinha localização de índios, eu acho também que poderiam ser dois mapas.
Colonização Francesa [p. 44-45] foi o que mapa eu achei melhor, porque a colonização francesa não ocupou uma área muito grande, então dá para você perceber os detalhes. Outro que eu acho que é um mundo de informação é Formação dos Estados Unidos [Mapa Colonização Inglesa, p. 46-47]. Este aqui, Expansão Territorial dos Estados Unidos [p. 54], um mapinha deste tamanho, tem as antigas partes que fizeram os Estados Unidos, que eram a colonização espanhola, a colonização francesa, o que os Estados Unidos compraram e a expansão. Tem todos os caminhos de terra, tem todas as cidades, se eu não me engano tem até a localização das tribos. Um mapinha desse você começa a ver, tem informação que deveria estar em dois ou três mapas, mas ele disse que não queria. Tem a formação de todos os estados, com a data de quando cada uma foi feita, tem os fortes antigos, tinha todas as comunicações; é tanto detalhe nesse mapa que isso daqui dava uma história dos Estados Unidos, que é uma disciplina que hoje você leva três meses trabalhando, então não podia ser um mapa só, podiam ser dois ou três e ainda depois com as conquistas dos Estados Unidos: o Alasca, a Zona do Canal. Mas o que o professor Reis me mandava fazer e, outra coisa, era ele quem fazia o texto, que também achei um pouco restrito, ele fazia uma síntese da síntese da formação dos Estados Unidos. Isto aqui é um curso da História dos Estados Unidos hoje em dia na universidade.
12) No caso desse mapa, por exemplo, as informações eram retiradas de livros ou de outros atlas?
De livros. O melhor livro de formação dos Estados Unidos era o de Morrison e havia também muitos outros livros pequenos que não se completavam. Mas esses básicos, é impressionante, ele me emprestava para eu tirar as informações de lá. São três volumes, Formação dos Estados Unidos, ele transformava em uma página e isso mata o Atlas, é que eu achei, quer dizer eu acho que esse Atlas poderia ter sido mais valorizado, mas não foi, porque poderia ter sido maior.
13) Qual foi o papel de Manoel Maurício de Albuquerque na feitura do Atlas?
Isso, em certo sentido, eu já falei, pela capacidade e pelo conhecimento dele. Manoel Maurício, subjetiva e automaticamente, sem querer, foi tomando a liderança, e os outros passavam a ouvir o que ele tinha para falar, porque ele tinha um conhecimento muito grande de documentação. Para fazer um atlas desse não é só conhecimento da História, tinha que saber onde estava isso e ele sabia, porque ele trabalhava no Itamarati, então ele dizia: “O melhor livro sobre História dos Estados Unidos é o Morrison, mas o livro do Fulano de tal tem boas informações, pega aí Miridan”. Ele foi um líder pelo seu conhecimento, pela sua capacidade de trabalho, e os outros aceitaram porque o Delgado de Carvalho ou estava com muita coisa, ou já cansado, e o Arthur Cezar Ferreira Reis dava aula dois dias na semana em Petrópolis e ainda na PUC e, se eu não me engano, nesse momento ele começou na Fluminense também, e tinha muito trabalho. Então, Manoel Maurício liderou pelo seu conhecimento, pela sua capacidade de perceber as coisas, mas ele não era chamado de chefe, ele era ouvido, ele dava palpite e as pessoas aceitavam.
14) Por que a seção sob a responsabilidade direta de Manoel Maurício se distinguiu das demais?
Isso é uma questão dele, pessoal, da inteligência dele, da capacidade dele de criar. Ele se distanciou dos outros, porque ele criou, inovou; ele acrescentou no mapa, não a informação cartográfica, geográfica, ele acrescentou outros conhecimentos. Por exemplo, vai falar do mapa econômico do Brasil: em vez de colocar o livro do Simonsen, História Econômica do Brasil – que tem regiões econômicas, área da cana de açúcar, área do café –, Manoel Maurício mostra um desenho, a gravura do Engenho de [Maragaípe]. Agora, isso dava um trabalho louco! Hoje não, você entra na internet, mas naquele tempo tinha que ir à Biblioteca Nacional, mandar tirar uma cópia, e se pagava caro. O Engenho de Maragaípe colocado aqui: “eu não sei se colocava o engenho dos Holandeses, aquela gravura que é muito conhecida, ou a do Maragaípe”. “Não, aquela gravura é muito conhecida e todo mundo já sabe”. Discutia se iria se colocar uma gravura ou outra. Então, os mapas dele se diferenciavam daqueles de História da América e de História Geral.
Na [seção de] História Geral é só o mapa. Por que não tem na França da Idade Média, a figura de um cavaleiro, de uma dama, a Igreja, um padre, um sacerdote? Não tem, é só o mapa.
Deixa eu te contar uma coisa que foi muita discussão: “Como colocar os nomes, os nomes antigos?” Deixa eu ver se tem um exemplo, aqui, um mapa do século XVII: Ratisbona, hoje pode ser esse nome, mas no século XVII era Ratisbone – a grande discussão era, bota o nome de hoje ou não? E isso ficou muito tempo. Bordeaux, aqui está Bordéus – coloca Bordeaux ou Bordéus? [Mapa Europa no Século XVII, p. 90-91].
Isso levou a muita discussão, e eu acho que houve uma certa incongruência, que alguma coisa andou para trás, houve um desencontro e não ficou homogeneizado. Outro aqui, a Pérsia, dinastia Sefévida. Azerbaijão, no mundo antigo, quando eu estudei é Azerbaidjão, tem um D antes do J, “não, não, português tem que cortar o D”, então colocaram assim [Mapa Ásia muçulmana nos séculos XV, XVI e XVII, p. 84-85].
Houve muita discussão sobre a nomenclatura: num mapa do século XV, XVI, XVII, se colocava o topônimo do século XVI, XVII ou o atual? E qual é o topônimo atual? “França é França”. “Mas não era França era France, coloca France.” Foi muita discussão e eu acho que a parte da toponímia não ficou perfeita.
15) As ilustrações da seção do Atlas sob a responsabilidade direta de Manoel Maurício são de autoria de Ivan Wasth Rodrigues? Ele participava das reuniões?
Não, ele não participava, Manoel Maurício levava a prancha. Aqui está a gravura do Engenho que eu falei, de Frans Post [p. 21]. Manoel então me mostrou esse e o do Megaípe, e eu nem me lembrava mais. Era tanta informação bibliográfica catada, pinçada de várias coisas que não existiria possibilidade de colocar em uma só página. Uma crítica que eu faria a isso é que deveria juntar uma informação bibliográfica básica às gravuras. Não sei. Hoje não se faria isso, a gente teria uma página ao final para mostrar as referências básicas.
16) Uma pergunta especifica – uma discussão que se tem em torno da atuação de Manoel Maurício. Algumas pessoas dizem que já na época da confecção do Atlas Manoel era marxista, enquanto que outros dizem que não, que ele ainda era um humanista católico, que a religião tinha grande influência sobre ele e que somente na década de 1970 é que ele viria a se tornar marxista. A sra. teria alguma coisa a acrescentar a esse respeito?
Eu não percebia que naquele momento ele já fosse marxista, poderia ser um pensador social neoliberal, não sei como você chamaria uma pessoa que pensasse o social, uma vez que se observa que nos mapas de que ficou diretamente encarregado, ele está preocupado com o social, apresenta os personagens que viviam naquele momento, tanto o rico quanto o pobre, apresenta o índio, o guarda, a escrava, a negra. Então, ele poderia ter uma percepção que a História não é só História Administrativa, não é História dos Reis, da Igreja, mas ele não fazia disso um alarde, quer dizer, vamos combater a História Factual Positivista. Eu nunca escutei isso dele, até porque a França passou em 1950 por uma renovação nos estudos históricos, no Brasil, porém, isto só chega em começo dos anos sessenta: demorou dez anos para as coisas da França chegarem aqui, porque as traduções demoravam muito a acontecer. Então não se podia continuar mais História dos Reis, dos Príncipes, dos Impérios, tinha que se ver o povo. O Manoel Maurício, muito seguidor dessa visão da história, dessa nova maneira de ver a História, pela atuação de alguns professores na Universidade do Brasil – quem seriam esses professores com uma visão mais de... Eu não diria de esquerda, não se pode dizer de esquerda, mais social, social no sentido da classe média, urbana, pobre? Quem seria? Yedda Linhares, Delgado de Carvalho. O próprio Arthur Cezar Ferreira Reis, que era da extrema direita, disse que não se poderia perceber a História do Brasil sem a Balaiada. Foi ele quem me incentivou a estudar a Balaiada. Tinha que se estudar a participação do povo, dos escravos, foi ele quem falou. Isso foi uma linha que veio da França na década de 1950, mas o que acontece é que na década de 1960 para 1970 isto se transformou numa perseguição, numa dicotomia. Eu já estava formada, mas percebi isso: quem era de esquerda era porque era contra a religião e a Igreja, quem era de direita era lindo de morrer e sabia das coisas, então ficou uma dicotomia – o que era errado.
Se você quer fazer História do rei, então faça, tem que ter um espaço, se você quer saber quem é Luís XVI, estuda isso a vida toda, mas se você quer estudar o sexo como o Philippe Ariès, então estude. Existiam assuntos condenados na época: em 1940 não se estudava o povo, o sexo, o amor, a mulher, os pobres, os famintos, não se estudava isso. Era só história dos reis. Então essa foi uma transformação que não aconteceu só no Brasil, foi na França e eu acho que Manoel Maurício foi uma pessoa que captou isso e se engajou nisso, porque não era todo professor que queria se engajar, pois dava muito trabalho, e era uma coisa nova, você vai procurar onde? Saber quem eram os pobres de 1600 que viveram na França significa outra pesquisa, então a História foi crescendo na maneira de se ver o que mudou, e Manoel Maurício foi um artífice desse momento. Pena que ele não continuou na faculdade e você pode me pergunta por quê. Eu não sei por que ele não continuou, ele deu umas aulas, e eu as assisti, mas ele não continuou. Eu não sei, aqui entre nós, dizem que ele teve uma cassação branca, não declaradamente. Não davam turma para ele. Falaram isso: “Por que o prof. Manoel Maurício não dá aula para a gente, uma aula tão boa”? Cassação branca, ele foi expurgado.
17) Consta na informação preliminar do Atlas que a cartografia ficou a cargo de Martinho Campos Corrêa e Castro e Nemésio Bonates. Como se dava e integração desses cartógrafos com o pessoal que trabalhava no Atlas? Houve dificuldade para a integração da equipe com os cartógrafos?
Parecia uma conversa de doidos, porque enquanto cartógrafos eles diziam que nossos mapas não eram mapas, mas apenas desenhos, por conta das escalas: “Esse mapa que escala tem? Não tem? Então é um desenho. Todo trabalho cartográfico tem que ter escala.” “Onde que é o Norte? Não tem nem assinalado norte, sul, leste, oeste? Não tem? Então é um desenho”. Assim eles criticavam a confecção dos mapas. Na verdade, todos os nossos mapas, do ponto de vista cartográfico, não eram mapas, mas desenhos.
“Isto foi baseado em um mapa, mas que mapa? Qual é a escala que o Manoel Maurício tirou esse mapa daqui? De onde? Em que livro? Ele reduziu ou não reduziu?” “Olha, esse aqui está muito largo, pelo o que eu sei geograficamente isso aqui teria que ser mais estreito, isso aqui é mais para cá.”
Nós fizemos deformações cartográficas, parece até a ideia do Jaime Cortesão, acerca do tratado de Tordesilhas, daquele que apresentou o Tratado de Madrid, não lembra? Alexandre de Gusmão, ele deformou o mapa, não foi? Para mostrar que a Espanha estaria com um grande Império, aí a Espanha aceitou o acordo com Portugal.
18) O desenho do mapa era do Manoel Maurício?
Todos os que auxiliavam faziam o desenho dos mapas, a Therezinha e eu, mais o Manoel Maurício.
19) Sim, mas essa base dos mapas, o desenho original foi do Manoel Maurício?
Não, ele certamente copiou essa base cartográfica do Roberto Simonsen, da História Econômica do Brasil. Manoel Maurício tirou aquela base e ali montava as informações. Como você descobriu, é a mesma base, mas aqui ele já a ampliou. Mas como ele a ampliou? Qual é a escala que ele fez? Sob o ponto de vista cartográfico isso está errado, então você amplia como você quer? Isso era o que os cartógrafos falavam [...].
20) Era Manoel Maurício quem fazia essas adaptações?
Era sim. Era ele na seção de História do Brasil, eu na de História da América e a Therezinha [de Castro] na de História Geral. Utilizávamos a mesma base, aumentávamos, diminuíamos, e colocávamos na mesma folha. Isto é errado do ponto de vista cartográfico.
21) Como os srs. faziam essas expansões ou diminuições do mapa?
Se você fizer um desenho, no caso um trabalho geográfico, o mapa do Brasil, e se quiser aumentá-lo, faça linhas paralelas, digamos, de um centímetro, e a cada linha você aumenta ao lado uns 5 ou 6 cm, e assim o traço resultante será maior, mas deformado. Acaba sumindo uma entrada aqui, uma baía ali... Um exemplo para mim, da seção de História da América: acho muito interessante o trabalho feito neste mapa da América do Sul, onde não tive que deformar nada, o Brasil está bem situado dentro da América, mas têm outros [...] [Mapa Conquista Espanhola, p. 40].
22) Mas por que os cartógrafos não fizeram esse trabalho?
Pois é, eles não quiseram fazê-lo. Deixe eu mostrar outro exemplo, o das navegações, onde tinha até uns navios de Colombo chegando, Primeira Viagem, Segunda Viagem. Queriam saber exatamente aonde Colombo chegara nesse mapa [...]. Olha esses símbolos aqui, Caracas e a igreja do lado. O cartógrafo disse assim: “Como é que a senhora tem certeza que chegou aqui, exatamente?” Aí eu digo “Eu não tenho certeza!”, “Então como é que a senhora os mostra aqui?” “Eu os mostro porque Colombo disse que chegou na costa que era a Nova Granada, o Vice-Reinado da Nova Granada, mas pode ser mais para cá ou mais para lá”. “Mas isso está errado!”. Eu lhe disse: “Acho que está errado, mas eu não tenho outro mapa que mostre onde, exatamente, ele chegou.”
Já este outro mapa aqui, o dos Estados Unidos, estava bem feito: quando nós tínhamos a base, quando a gente encontrava uma base nos textos deles, nos livros de história deles, era fácil. Mas no caso da colonização espanhola, foi muito difícil, a gente teve que construir todo o mapa.
No caso da Primeira Viagem, o cartógrafo estava preocupado com detalhes que, na verdade, não correspondiam à nossa preocupação, porque isso aqui é um desenho. Não posso chamar isso de mapa, mas um desenho a partir de informações factuais.
“Ah, a senhora pode me dizer se a batalha foi aí mesmo ou foi ali?” Eu dizia: “Não sei, estou colocando aqui Ilha de Santa Cruz, porque houve uma batalha naval aqui, mas se foi para cá ou para lá eu não sei!” Eles ficavam olhando e dizendo: “Esse pessoal de História é meio maluco, só chuta”. “Não, não chutamos, é que não podemos dizer exatamente onde aconteceu aquilo, porque não se tem essa documentação”.
Este mapa aqui também devia ter sido coberto em três mapas, porque mostra a projeção da América no mundo, mais as operações da Primeira Guerra Mundial.
Mas aqui também estão todas as participações relativas aos Congressos e mais outras informações que não deveriam constar aqui: Primeiro Congresso Continental, Primeira Reunião de Consulta de Ministros das Relações Exteriores. Para que isso? Muito factual. Para mostrar o quê? Mostra que a América está no mundo? Sabe, eu não gostei desse mapa! [Mapa América no Mundo, p. 58-59].
23) O que levou à fabricação desse mapa? Por que ele possui tantas informações diplomáticas e militares.
Eu não gostei desse mapa, mas o Arthur Cezar quis fazer. Esse mapa tem escala gráfica porque o cartógrafo ficou doidinho “Como é que a senhora apresenta um mapa mundial em duas páginas?” Eu disse: “Eu copiei de um livro e copiei de outro, juntei e levei uma folha desse tamanho assim”. Aí ele falou: “Bom, eu vou tentar fazer a escala gráfica aqui.” Foi ele quem construiu a escala gráfica. Noutros, ele conseguiu colocar escala gráfica também, mas os mapas do Brasil não têm. Neste mapa tem a escala 1:20.000.000, não tem a gráfica, mas que dá tudo no mesmo, porque escala gráfica é a mesma coisa que escala escrita. Foi o cartógrafo que colocou, com grande trabalho, a escala, porque a gente não sabia a escala, eram apenas cópias de mapas que estavam incluídos em vários livros.
24) Naquele momento, o final da década de 1950, o curso de Geografia e História era um só, ainda não se dividira. Como isso influenciava aquelas pessoas que estavam se formando no curso?
Eu tenho impressão que essa foi uma das razões que permitiram esse Atlas. A formação do historiador hoje não inclui a capacidade de espaço, ele não tem essa percepção. Foi possível, porque para Manoel Maurício, eu, Therezinha de Castro e o Delgado de Carvalho, Arthur Cezar Ferreira Reis (que era sociólogo), História e Geografia andavam juntas.
25) Como se deu a seleção dos mapas de História da América em que iriam figurar no mapa?
Partiu do Arthur Cezar, foi ele quem equacionou que seriam 15 mapas e seriam este, este e este. Da minha parte, eu nunca dei palpite, e eu acho que as outras pessoas o fizeram – o Manoel Maurício, por exemplo, mas ele não aceitou. Eu estou fazendo uma crítica a mim mesma: o Atlas não é um grande trabalho cartográfico, é um trabalho histórico, tanto que o nome é Atlas Histórico Escolar, não é um Atlas de Geografia, com detalhes, com meridianos, aqui não tem nem [...]. Onde está passando o Equador aqui? Não são mapas geográficos, mas aqui se tem até mais detalhes [...].
26) Na introdução à parte de História da América [p. 36], o texto do professor Arthur Cezar trabalha a ideia do pan-americanismo. Esse era o tom da época, e isso empresta o sentido para esta seção?
Nós estávamos vivendo a ideia do desenvolvimentismo do Brasil década de 1950, de 1955 até 1960 - Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek. O Arthur Cezar fazia parte desses Congressos, ele era convidado para isso e quis valorizar as relações do Brasil com os Estados Unidos. Afinal, ele estava ao lado de Osvaldo Aranha. Naquele tempo, não havia a dicotomia de esquerda com direita, ainda se estava admirando, e muito, a posição dos Estados Unidos, aguardando-se que o Brasil tivesse uma grande posição junto a esse país, Acho que isso era ideia de todos nós, que o Brasil, na década de 1950 para 1960, iria ser o país líder da América do Sul, junto, e em segundo lugar com os Estados Unidos. Era um sonho que depois foi se afastando. Juscelino saiu e depois veio o Jânio e aí é que os dois países se afastam. A percepção passou a ser a de que nós éramos dependentes dos Estados Unidos, sob o ponto de vista econômico e cultural. Se podia ser muito francófilo e americanófilo na década de 1950, ou um ou outro, e ser contra ou a favor da Inglaterra, pois isto ficou muito enraizado em função da Independência, porque nós tivemos que pagar a nossa Independência. Já em relação à Alemanha, ficou um peso em nosso coração com a guerra, então não era um país amigo, mas não era inimigo, era distanciado. Mas com os Estados Unidos, tínhamos uma esperança, a de que nós iríamos lá para o Primeiro Mundo com os Estados Unidos.
27) Não havia por conta da Guerra Fria algum tipo de sentimento antiamericano?
Não, nós acreditávamos que tínhamos tido um papel importante na Guerra – o que não aconteceu, porque nós fizemos parte do 5º Exército Americano e nem por isso fomos valorizados, né? Fui à França, e estive em um museu, que eu não sei se é o Museu do Homem, que aponta a participação na Segunda Guerra Mundial de cada país. E existe um mapa histórico da Segunda Guerra Mundial, mas nele não consta a participação do Brasil. Perguntei: “Como? Nós não fizemos parte?”. E eles disseram: “Como vocês fizeram parte?” Eu respondia: “Viemos com as forças americanas!”. E exclamavam: “Ah! Americanas!” Eles não conseguiam perceber ou não houve na historiografia essa valorização, mas na década de 1950 acreditávamos que o Brasil estava sendo valorizado.
28) A sra. falou de Osvaldo Aranha, havia alguma ligação deste com o Arthur Cezar?
O Osvaldo Aranha era muito amigo do Arthur Cezar, eles conversavam muito, tomavam café, almoçavam, eram os lideres intelectuais do momento e o Osvaldo Aranha era americanófilo.
29) Quando começou esse o ressentimento contra os Estados Unidos? Começa logo com a Guerra Fria?
Vai minando, porque a juventude toda era toda americanófila, com a música, o jazz e o rock and roll. Era a juventude na época de 1950 para 1960. Eu não sei te dizer, sinceramente, como o negócio foi se aprofundando [...].
30) Na introdução à seção de História da América há um texto onde Arthur Cezar coloca “O mapa relativo à América em nossos dias inclui o Canadá com certo relevo, pelo que ele representa como realização atual no campo do progresso.” [p. 36]. Por que isto?
Não houve escravidão na formação daquela parte da América [...].
31) Mas o que se quis dizer com essa colocação: “pelo que ele representa”? É como fosse um exemplo a ser perseguido? Ele coloca deliberadamente o Canadá dentro do Atlas? Mas por que essa admiração pelo Canadá?
Fazia parte da ideologia da época, né? Ser americanófilo e utilizar Canadá como exemplo... Está aqui, outro exemplo, de nosso trabalho no Atlas, o da Guerra Civil nos Estados Unidos. Nos deu muito trabalho fazer esse mapa, porque tivemos que explicar o movimento dos exércitos, dos estados confederados e escravagistas, a área livre. Estes territórios variaram com o tempo, porque num momento um estado passou para um lado, noutro mudou [...]. Foi muito complicado fazer esse mapa, nem sei se ele está absolutamente correto, como se diria hoje, porque há muita informação em coisas dinâmicas. A Guerra Civil durou quatro anos e, nesse período, muitos estados passaram de um lado para o outro. O estado escravagista tornou-se uma área livre, então eu não sei se está tudo exatamente correto, por conta do movimento. Como é que você pode transformar um mapa de quatro anos numa folha plana? Isso daqui é movimento, quatro anos! [Mapa Guerra Civil 1861-1864, p. 55].
32) Esse conteúdo era trabalhado no Ensino Fundamental e Médio da época?
Não. Foi incluído a partir de estudos de Arthur Cezar, que me passava os livros a serem consultados.
33) Mas o Atlas não foi pensado para se tornar um instrumento pedagógico?
Então deve ter tido pouca atuação do Ginásio, pouca significação.
34) Como é que o mapa partiu para essa complexidade se o objetivo principal era outro?
Verdade, você descobriu uma coisa, a parte de História do Brasil está mais acessível no Ensino Médio, Ensino Ginasial. Aqui está muito focado na universidade, isto é o que a universidade vai trabalhar: História dos Estados Unidos. Olha quantos mapas dos Estados Unidos: dois mapas trabalham com os Estados Unidos. Agora com a Descoberta da América e a Colonização, já são três trabalhando com os Estados Unidos, quatro com a Colonização Inglesa. Esse aqui não deixa de ser Estados Unidos também: são cinco só sobre os Estados Unidos, o resto é América Espanhola.
Agora, respondendo a tua pergunta, ninguém quer aprender nada sobre História dos Estados Unidos, caiu no desuso. Quem vai comprar um mapa desses? Não tem significação nenhuma, não querem nem saber o que é a Guerra Civil, né? Talvez a primeira explicação do porquê desse Atlas ter tido tantas edições e reedições, acabou caindo em desuso; a segunda, seria porque as fronteiras dos países mudaram muito, a África mudou toda, houve uma grande transformação na Europa [...].
35) Mas não poderia ter sido feita outra revisão? Por que se deixou, de repente, de se utilizar o Atlas Histórico Escolar?
Eu acho que ele se tornou um Atlas com capacidade acadêmica, além do que era para ter sido, no seu objetivo, um Atlas para educação infantil, até porque as crianças não iriam perceber todos esses detalhes. Olha só estes: a África na primeira parte do século XIX tem regiões independentes, ocupação francesa, inglesa, portuguesa. É uma História da África na primeira parte do século XIX. Deus que perdoe! [Mapa África nos séculos XIX e XX, p. 121].
36) Será que isto aconteceu por conta de se ter tomado como referência os Atlas estrangeiros?
Se procurou colocar no Atlas muita informação, e no Brasil não se trabalha assim. Nós, na escola média, não trabalhamos com isso, e eu acho que, na universidade... Da parte de História Antiga, deixa eu ver [...]. O que seria um exemplo [...] A Grécia, ainda se estuda muito na faculdade? Observe o mapa da Grécia com tantos detalhes [...]. Veja o mapa do Mundo Mulçumano, isto não se estuda. O de Comércio Medieval, também não. Europa das Cruzadas? Isto se trabalha. Península Ibérica, mais ou menos [...].
37) Apesar dessa falta de sintonia com os conteúdos, o Atlas ainda poderia ser usado nas universidades brasileiras hoje?
Império do Oriente [...]. Deixa eu ver se a Grécia [...]. Império de Carlos Magno, Santo Império, Povos e Invasões, Império Romano, Império de Alexandre, Itália Antiga, Grécia no século XV [...]. Aqui: Colonização Grega. Tem dois mapas sobre a Grécia Antiga, mas hoje já não se faria isso, né? Far-se-ia com muito mais detalhes e principalmente com informações que não são só mapeáveis, né? Informações sociais [...].
38) O Atlas Histórico Escolar do MEC foi o primeiro e único atlas histórico brasileiro, nunca se produziu, nem antes ou depois, outro atlas histórico. É impressionante, uma vez que nos Estados Unidos e na Europa, existem muitos. Por que a sra. acha que isto não aconteceu no Brasil?
Agora eu vou te dizer, estou pensando alto para dizer essa informação para você: o jovem brasileiro não percebe o mapa. Vou até fazer essa experiência, vou chegar para o meu neto de 14 anos de idade: mostro um mapa, e percebo que ele não tem noção de espaço. Eu acho que a terceira dimensão, que é a televisão, que mudou o que é espaço. Direi para ele: faça um mapa de história do Brasil. Talvez ele nem saiba fazer [...].
Notas