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Batuque dos negros x Batuque dos brancos: discursos em disputa sobre um “ajuntamento de pretos” na vila de São Salvador de Campos dos Goytacazes, no ano de 1831
Carlos Eugênio Soares de Lemos
Carlos Eugênio Soares de Lemos
Batuque dos negros x Batuque dos brancos: discursos em disputa sobre um “ajuntamento de pretos” na vila de São Salvador de Campos dos Goytacazes, no ano de 1831
Batuque of the blacks x Batuque of the whites: disputed speeches about a 'gathering of blacks' in the town of São Salvador de Campos dos Goytacazes, in the year 1831
Antíteses, vol. 12, núm. 23, pp. 510-541, 2019
Universidade Estadual de Londrina
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Resumo: A ameaça de uma rebelião escrava era motivo de constante preocupação para a classe senhorial no decorrer do século XIX. No ano de 1831, na coluna de correspondências do jornal Correio Constitucional Campista, na Vila de São Salvador de Campos dos Goytacazes, estabeleceu-se uma polêmica entre dois assinantes do periódico sobre o significado de um “ajuntamento de pretos” numa de suas freguesias. Com base numa abordagem historiográfica que concebe o escravo como agente social e na Análise do Discurso Francesa, o objetivo desse artigo é problematizar a formação discursiva liberal que dava sustentação a essa disputa de significados sobre a escravidão, inferindo-se, assim, sobre os sentidos atribuídos à liberdade a partir da posição assumida pelos sujeitos discursivos na produção textual.

Palavras-chave:EscravidãoEscravidão, Discurso Discurso, Liberalismo Liberalismo, Liberais moderados Liberais moderados, Liberais exaltados Liberais exaltados.

Abstract: The threat of a slave rebellion was a subject of constant concern for the seigneurial class throughout the nineteenth century. In the year 1831, in the section of letters from the reads of Correio Constitucional Campista, in the town of São Salvador de Campos dos Goytacazes, a controversy was established between two subscribers of the newspaper on the meaning of a "gathering of blacks" in one of the parishes of the city. Based on a historiographical approach that conceives the slave as a social agent and the French Analysis Discourse, the objective of this article is to problematize the liberal discursive formation that grounded the dispute of meanings on the slavery, being possible to infer, therefore, the meanings attributed of freedom from the position assumed by the discursive subjects in textual production.

Keywords: Slavery, Speech, Liberalism, Moderate liberals, Exalted liberals.

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Batuque dos negros x Batuque dos brancos: discursos em disputa sobre um “ajuntamento de pretos” na vila de São Salvador de Campos dos Goytacazes, no ano de 1831

Batuque of the blacks x Batuque of the whites: disputed speeches about a 'gathering of blacks' in the town of São Salvador de Campos dos Goytacazes, in the year 1831

Carlos Eugênio Soares de Lemos
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Antíteses, vol. 12, núm. 23, pp. 510-541, 2019
Universidade Estadual de Londrina

Recepção: 04 Outubro 2018

Aprovação: 26 Junho 2019

Introdução

O “ajuntamento de pretos” nas ruas das vilas do Brasil Império era motivo de constante preocupação para os senhores de escravos no decorrer do século XIX. O medo do haitianismo, isto é, de que ocorresse em seu povoado uma sublevação como aquela experimentada na colônia francesa de São Domingos (1791-1804), era um sentimento que não dava descanso às classes senhoriais (REIS, 2003; SOARES; GOMES, 2001). Nesse temido levante do jacobinismo negro, os rebeldes, liderados por Toussaint L'Ouverture, movidos pelos ideais de igualdade e liberdade, entraram em um sangrento confronto com os seus senhores, do qual saíram, momentaneamente, vitoriosos. A circulação contínua desse relato sobre a insurreição deixava em alerta os proprietários da maior vila do interior fluminense1, porque parecia bem real a possibilidade de que uma rebelião de mesma natureza também pudesse eclodir em seus domínios – colocando em risco a segurança da pátria.

Por esta Villa se tem generalisado bastante a noticia de que do Rio de Janeiro se tem para aqui enviado emissarios, debaixo de variados pretextos, para pregarem o haitiismo. Nós, sobre este assumpto, já temos falado, quanto he bastante para activar a autoridade, zeladora do soccego publico: e muito nos rigosijou ver-mos as medidas tomadas pelas Junta Pulicial desta Villa (GOYTACAZ, 1831, p. 2)2.

Esse modo de lidar com a ameaça de rebelião passava pela construção de estratégias políticas, jurídicas e discursivas que assegurassem às elites econômicas locais, assim como à sua clientela e aos seus familiares, à devida tranquilidade, segurança e proteção. Em vista disso, entre os recursos disponíveis, os “homens bons” buscavam mobilizar a legislação vigente, as milícias oficiais, os capatazes, os capitães do mato, os chefes de quarteirão e o código de posturas. E, como não poderia deixar de ser, essa batalha também era travada com obstinação no plano discursivo das convicções e da circulação de ideias pelos periódicos.

Para os cidadãos que sustentavam discursos mais moderados acerca da liberdade, o incendiário haitianismo não surgia naturalmente da cabeça dos “pretos”, pelo contrário, ele era propagado, incentivado e justificado pelos textos inflamados dos liberais radicais em seus periódicos. Por sua vez, estes últimos, como representantes das camadas médias urbanas (BASILE, 2009; COSTA, 2007; MOREL, 2003), sustentando propostas democráticas de participação popular e de abolição gradual da escravidão, consideravam o discurso do haitianismo como um recurso dos seus oponentes para gerarem o medo e evitarem que as mudanças propostas afetassem os seus interesses aristocráticos.

No ano de 1831, na coluna de correspondências do Correio Constitucional Campista, um dos primeiros jornais da Vila de São Salvador de Campos dos Goytacazes, estabeleceu-se uma polêmica entre dois assinantes do periódico. À primeira vista, o impasse da interpretação entre eles dizia respeito à natureza do “ajuntamento de pretos” ocorrido em alguns finais de semana dos meses de dezembro de 1830 e janeiro de 1831. Para o que se autonomeava como Hum cidadão, tratava-se de uma afronta à segurança pública, aos interesses particulares e às autoridades legais; para o outro, o que se nomeava como Não he Cidadão, o fato nada mais era do que o desejo natural dos negros de vivenciarem a sua religião, jogarem a capoeira e divertirem-se com os seus candombes, numa clara demonstração de saudade de sua terra natal na África. Como será possível perceber ao longo do debate, o pano de fundo era a razoabilidade ou não da existência da escravidão dentro de uma ordem liberal.

Assim, com base numa historiografia que concebe o escravo como agente de sua história (LARA, 1988; REIS; SILVA, 1989; SOARES, 2009) e na Análise de Discurso Francesa, de base materialista, pecheutiana, considerando as sequências discursivas das correspondências dos assinantes do jornal, o objetivo desse artigo é problematizar a formação discursiva liberal vigente (em suas diferentes variações) que dava sustentação a essa disputa de sentidos sobre os significados atribuídos à relação entre a ordem liberal. De certo modo, podemos relacionar as variações dessa formação discursiva liberal às diferentes culturas políticas que circulavam no contexto de então, ou seja, aos “vários sistemas de representações coerentes, rivais entre si, que determinam a visão que os homens que deles participam têm da sociedade, de sua organização, do lugar que aí eles ocupam” (BERSTEIN, 2009, p. 32).

Por conseguinte, pretende-se caracterizar os posicionamentos políticos dos sujeitos envolvidos na polêmica do “ajuntamento de pretos”. Ou melhor, analisar como ocorre essa projeção dos sujeitos sociais (em sua materialidade) para as posições de sujeitos discursivos, a partir das quais eles se identificam, se contraidentificam ou mesmo se desindentificam (PÊCHEUX, 1997) com a imagem do sujeito universal da ordem “liberal” existente naquele momento, produzindo, assim, em seus discursos, diferentes interpretações sobre o sentido a ser assumido.

Breves considerações sobre a Vila de São Salvador

Na passagem do século XVIII para o XIX, no contexto de desmonte do Antigo Regime e de expansão do capital, sob a jurisdição/ administração da capitania do Espírito Santo, mas com fortes vínculos econômicos com o Rio de Janeiro, a vila de São Salvador de Campos dos Goytacazes, tendo por base exploração da mão de obra escrava, tornou-se uma importante produtora de açúcar, aguardente, alimentos e madeiras, destacando-se como o centro econômico da região (SOARES, 2010; OLIVEIRA, 1999). Esse status, decorrente de transformações que vinham ocorrendo desde as últimas décadas do século XVIII, num irregular processo de desregulamentação e incentivo à produção para o mercado, fortaleceu-se com a vinda da família real para o Brasil (1808). Portanto, esse papel de centro açucareiro aprofundou-se ainda mais em função das demandas do Rio de Janeiro e seus entornos.

No ano de 1833, a vila contava com uma população estimada em 51.618 habitantes, sendo 20.890 cidadãos livres, 30.495 escravos e 233 estrangeiros. Dos livres, 10.015 homens e 10.875 mulheres; dos escravos, 17.242 homens e 13.253 mulheres; dos estrangeiros, 208 homens e 25 mulheres3. Para atender as suas 4 freguesias e 3 curatos existiam cinco escolas públicas, sendo quatro de meninos e uma de menina, e nove particulares4. Muito embora a lei de 18275 não vedasse o acesso dos escravos à escola pública, eles não puderam frequentá-la, e, por sua vez, os pobres livres, devido às precárias condições de vida, também encontravam grandes dificuldades para participarem da pequena comunidade dos letrados6.

Não diferente das outras vilas no interior da Província, seguindo o que era de costume e respaldado pela lei, o poder político local era exercido pelos “homens bons” da elite camarária, “considerados taes os cidadãos que havião occupado os cargos das Municipalidades, ou governança da terra ou costumavam andar na governança” (ALMEIDA, 1870, p. 155). Conforme as regras vigentes da Constituição de 1824, os vereadores da Câmara Municipal e o juiz de paz eram eleitos pelo voto censitário e direto dos cidadãos ativos. Os eleitos eram, em sua maioria, proprietários de terras e escravos e/ou negociantes, profissionais liberais7. Nesses termos, no ano de 1831, com a abdicação do imperador Pedro I, pelo que se pode inferir das páginas dos periódicos locais, não muito diferente do que ocorria na capital do Império, a cidade estava politicamente dividida em torno de questões sobre quais deveriam ser os limites para o exercício da liberdade e o papel da autoridade.

No tocante ao acesso à informação e liberdade de expressão política, três jornais circulavam entre os homens e mulheres letrados da vila no ano de 1831: o Correio Constitucional Campista, assumidamente liberal moderado e defensor da ordem, cujo redator, o Sr. Antônio José da Silva Arcos, era também proprietário da tipografia; O Goytacaz, igualmente de orientação liberal moderada e mais dedicado a textos de reflexão política, cujo redator não foi possível identificar8; e o Farol Campista, considerado pelos seus críticos como um periódico “anarquista”, “rusguento”, mas que podemos toma-lo como porta voz dos chamados liberais radicais, cujo redator era o professor Prudêncio Joaquim de Bessa.

Dos três periódicos, o Correio Constitucional Campista e o Goytacaz foram preservados e constituem uma série histórica de ricos exemplares do ano de 18319. Neles, há um conjunto de indícios que permite analisar o nível de identificação dos seus leitores com a formação discursiva liberal, na medida em que a mesma servia de referência para o debate sobre o modelo político de sociedade que deveria prevalecer após a independência, indo de polêmicas que envolviam a política imperial a reclamações sobre a necessidade de novas posturas e a incivilidade dos moradores no uso do espaço público e em sua relação com o próximo.

A historiografia, a imprensa e a formação discursiva liberal no I Reinado

Como afirmam diversos historiadores (NEVES, 1999; BARROS; MOREL, 2003; RIBEIRO, 2009), na primeira metade do século XIX, em terras brasileiras, a imprensa se apresentava como um importante palco de acirradas batalhas discursivas entre diferentes facções políticas sobre temas considerados cruciais para a o estado em construção: a natureza do contrato social, a soberania da nação, os limites da liberdade, o princípio da autoridade, entre outros. Portanto, os posicionamentos sobre a escravidão e a civilização também estiveram na pauta dessas polêmicas que, direta ou indiretamente, incendiavam as páginas dos jornais da Vila de São Salvador, “a partir de diferentes matrizes e formulados em consonância com formas variáveis de compreensão do que era o Direito e os direitos, e isso se fazia de acordo com as releituras e readaptação dos teóricos às experiências vividas” (RIBEIRO, 2009, p. 1).

Muito embora, no período em questão, apenas uma pequena parte da população soubesse ler e escrever, conforme propõe Morel (2005), devemos relativizar o papel meramente elitista dos impressos, procurando entendê-los como um dispositivo de participação política que se encontrava conectado a outras dimensões da vida social. Desse modo, passando também de boca a boca, os sentidos propostos pelos escritos dos periódicos faziam circular determinadas imagens do mundo social. Era uma tentativa de os proprietários/letrados naturalizarem e/ou desnaturalizarem a vida como ela era ou deveria ser, a exemplo do debate sobre a aceitabilidade ou não da escravidão, no qual os senhores marcavam posição, fazendo circular os seus ditos e não ditos sobre a situação dos cativos.

É clássica a proposição de Pêcheux, Haroche e Henry (2007, p. 26) de que uma formação discursiva determina “o que pode e deve ser dito” numa certa conjuntura, assim como a de que “as palavras mudam de sentido” quando se deslocam entre diferentes formações. A relação entre as noções de sujeito e formação discursiva é fundamental para a problematização da polêmica que analisaremos. Em certas passagens de sua teoria materialista do discurso, Pêcheux (1997) discorre sobre a “reduplicação da identificação” do sujeito. Trata-se de um processo em que o indivíduo, interpelado pela ideologia constitui-se em sujeito do seu discurso, pois mergulha na crença de ser a origem do seu dizer e se esquece dessa identificação com o sujeito universal da formação discursiva na qual se encontra inscrito. Desse modo, ele toma o seu “eu - ego” e a realidade social como uma ordem natural, como se ambos estivessem desvinculados das injunções que a historicidade produz sobre o imaginário de todos:

Em termos discursivos, há um apagamento (necessário) para o sujeito desse processo do significante que o constituiu na interpelação ideológica e na identificação a uma formação discursiva. O sujeito não se percebe preso em uma rede de linguagem, rede essa que o constituiu como sujeito antes de mais nada. O sujeito “sofre” os efeitos da interpelação-identificação ficando preso às evidências constituídas na própria linguagem: julga-se fonte dos próprios pensamentos, origem do próprio dizer, julga-se capaz de dominar o seu dizer, julga-se livre para dizer o que quiser etc (MARIANI, 2003, p. 67).

Contudo, em que pese o reconhecimento dessa perspectiva homogênea da máquina discursiva, optou-se aqui por incorporar também uma outra abordagem do próprio autor. Trata-se daquela na qual, em certos momentos de sua obra e nas retificações posteriores, Pêcheux (1997) relativiza a definição de formação discursiva enquanto unicidade e fechamento. Nessa concepção, pode-se considerar que os sujeitos, interpelados pela ideologia, apesar de submetidos aos constrangimentos estruturais, assumem diferentes posicionamentos diante da interpelação10. Assim, eles podem se identificar, contraidentificar ou desindentificar com o sujeito universal de sua formação discursiva, considerando-se que a mesma, por ser atravessada pelos saberes do interdiscurso, comporta contradições, equívocos e falhas:

Dito diferentemente, a superposição perfeita que ocorre na primeira modalidade de tomada de posição, responsável pelo efeito de reduplicação da identificação e da produção do efeito de unidade imaginária do sujeito dá lugar a uma superposição que não é completa. Desta superposição incompleta e, por conseguinte, imperfeita resulta um certo recuo que permite a instauração da diferença e da dúvida, as quais são responsáveis pela instauração da contradição no âmbito dos saberes da Formação Discursiva e, consequentemente, pelo surgimento de posições-sujeito no interior da Formação Discursiva. Ou seja: esta segunda modalidade traz para o interior da FD o discurso-outro, a alteridade, e isto resulta em uma FD heterogênea (INDURSKY, 2007, p. 86).

Isso posto, cabe destacar que, na historiografia do Brasil Império, alguns autores buscaram demonstrar a suposta incompatibilidade ou flagrante contradição do liberalismo brasileiro com a existência da escravidão, como se as ideias estivessem fora do lugar (PRADO JUNIOR, 1987; ADORNO, 1988; SCHWARZ, 2000). Ora, se a Constituição de 1824, pautada numa premissa contratualista, partia do pressuposto de que todos nasciam com o direito natural à liberdade, como justificar, então, que alguns homens pudessem ser escravizados por outros? Como inscrever o Brasil no rol das nações civilizadas arrastando consigo um tipo de relação social que era considerada uma marca constitutiva da barbárie?

O fato é que, nas primeiras décadas do século XIX, o liberalismo não era exatamente uma novidade entre nós, considerando-se que as Conjurações do final do século XVIII (em Minas Gerais e na Bahia), cada uma ao seu modo, também se apropriaram desse ideário em sua inspiração. À vista disso, o pensamento político liberal teve uma importância significativa no processo de emancipação da América portuguesa, pois a defesa de uma ordem constitucional extrapolou as fronteiras da metrópole e colocou em xeque as bases do domínio do Império ultramarino português.

Ao contrário das abordagens tradicionais, algumas contemporâneas não veem o liberalismo e a escravidão como realidades necessariamente inconciliáveis (FRANCO, 1993; PIÑEIRO, 2010). Partindo de uma interpretação peculiar da concepção jusnaturalista, esses autores consideram que a ideia de liberdade do pacto social de então apresentava-se condicionada à de propriedade, sendo que esta legitimava aquela. Assim, identifica-se na formação discursiva liberal clássica a presença de proposições que, sob condições específicas, como no caso da guerra infundada, justificam a escravidão de um ser humano,

Mas há uma outra categoria de servidores, a que damos o nome particular de escravos, que, sendo cativos aprisionados em uma guerra justa, estão pelo direito de natureza sujeitos à dominação absoluta e ao poder absoluto de seus senhores. Como eu disse, estes homens tiveram suas vidas capturadas, e com elas suas liberdades, perderam seus bens – e estão, no estado de escravidão, privados de qualquer propriedade – e não podem nesse estado não poder ser considerados parte da sociedade civil, cujo principal fim é a preservação da propriedade (LOCKE, 1994, p. 57).

De todo modo, trata-se de um liberalismo adaptado à realidade do Brasil de então, onde certos aspectos da velha ordem colonial foram mantidos, como no exemplo da permanência da escravidão, o que demonstrava claramente o propósito de a elite política preservar da ideia de liberdade aquilo que realmente lhe interessava, a garantia de sua hegemonia política e concentração da propriedade (COSTA, 2007). Assim, esse “liberalismo moderado”, caracterizado por tal ambivalência, foi a marca constitutiva do processo de construção do estado imperial brasileiro (GUIMARÃES, 2001), arrastando a infame escravidão às portas do século XX, pois,

O que atuou eficazmente em todo esse período de construção do Brasil como Estado autônomo foi um ideário de fundo conservador; no caso, um complexo de normas jurídico-políticas capazes de garantir a propriedade fundiária e escrava até o seu limite possível (BOSI, 1988, p. 4).

Segundo Bosi (1988), uma análise semântico-histórica nos sugere, no mínimo, quatro significados para o termo liberal para o período de construção do estado imperial brasileiro. Podemos considerar como liberal a liberdade de comércio e produção, a liberdade de o cidadão ser representado na política, a liberdade de o proprietário explorar o trabalho escravo e, por fim, a capacidade de se adquirir terras na livre concorrência. Seja em qualquer uma dessas acepções ou mesmo na combinação entre elas, os limites do significado da palavra liberdade eram objeto de disputas discursivas nos periódicos. Trata-se de um significante apropriado e traduzido com diferentes sentidos pelos senhores e/ou diferentes facções que acompanhavam apreensivos a sucessão dos acontecimentos naquele tumultuado ano da abdicação. Nessa deriva de interpretações, cabe problematizar a diversidade dos posicionamentos dos sujeitos na batalha de significados sobre a coexistência entre a liberdade e a escravidão dentro da formação discursiva liberal em que se encontravam.

A polêmica sobre o “ajuntamento de pretos”

Em sua edição de nº 03, do dia 08 de janeiro de 1831, na página 03 da sessão “Correspondência”, o Correio Constitucional Campista veiculou uma correspondência de uma pessoa que assinava pelo pseudônimo “Hum Cidadão” (doravante Sr. Cidadão). No texto, iniciando com uma afirmação sobre o respeito à Constituição de 1824 ser a garantia da liberdade de expressão, o sujeito fez uma denúncia que esperava chegar aos ouvidos das autoridades legalmente constituídas, na expectativa de que essas mesmas autoridades tomassem as providências necessárias,

Nas tardes dos dias 26 de Dezembro do ano passado, 1, e 2 de Janeiro do corrente, se juntou no largo do Rosário, desta Villa, hum numero considerável de pretos, que com seus importunos candombes, ou batuques, [*] atormentarão toda a vizinhança, terminando nas duas primeiras tardes, seu bárbaro divertimento com algumas desavenças entre si mesmos; na ultima porém eles se mostrarão mais ameaçadores e dispostos a desordem, (confiados talvez em que nem uma só ronda apareceria ali, para os reprimir em seos excessos) e principiando entre eles mesmos pelo barbaro jogo de Capoeiras, terminarão pela ousadia de empunharem facas, desafiarem, e insultarem algumas pessoas ali residentes, assobiando, e apupando a muitas outras que ali passavão a Cavallo (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831b, p. 3)11.

Na sequência de sua denúncia, o autor considerava que o atrevimento “em gente tal” (os pretos)12 se devia à falta de polícia e, por isso, alertava para a necessidade de se remediar tal problema. Portanto, destacava que, em seu artigo 5º, a Lei de 15 de outubro de 1827 incumbia os juízes de paz de vigiarem esses ajuntamentos e, em caso de desordem, usarem da força armada para rebatê-los. Não só, também ressaltava que a Lei de 1º de outubro de 1828, em seu título 3º e artigo 7º, estabelecia a obrigação de as câmaras deliberarem sobre a manutenção da segurança, da tranquilidade, saúde e comodidade dos seus habitantes. Então, diante de leis tão explícitas, deviam-se consentir ajuntamentos, candombes e batuques? Ele mesmo responde:

Não de certo, Sr. Redactor: he pois aos depositarios da authoridade legal, que devemos recorrer, lembrando-lhes que a eles cumpre vigiar cuidadosamente sobre o publico socego, certos de que – Salus Populi, suprema lex est - ; he a eles quem devemos fazer conhecer a necessidade de prohibirem taes ajuntamentos, de que podem resultar funestas consequências, não só a respeito da publica segurança, mas também dos interesses particulares de cada hum dos cidadãos, que possuírem escravos, aos quaes também advertimos hajão de cohibil-os quanto lhes for possivel, para que não venhamos inda ser victima de nossa nímia confiança, e negligencia (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831b, p. 3).

Ao final da correspondência, o autor solicitava que o redator do Correio Constitucional Campista se pronunciasse a respeito do caso relatado. E, como era de se esperar, o interpelado não fugiu à solicitação. Na coluna imediatamente abaixo, também fazendo alusão à Lei de 1º de outubro de 1828 - destinada a dar forma às Câmaras, às funções dos vereadores e juízes de paz - o redator convocava a autoridade local a fazer valer a manutenção da ordem na pátria. Em seu modo de ver, não diferente da proposição do seu assinante, era preciso tomar providências para conter os desatinos de tal gente ignorante, ignóbil e rústica que, “no furor da embriaguez”, sobretudo nos dias de festa, fazia o interior da vila parecer “mais uma habitação própria da tribo de Guiné, pela faculdade ampla que tem os escravos de formarem batuque em qualquer canto, largo, ou esquina das ruas” (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831b, p. 3).

Uma semana depois, na edição de n.05, também na seção de correspondências, foi publicada a carta do juiz de paz José Vieira de Mattos. Nela, o senhor, eximindo-se da responsabilidade a ele atribuída pela denúncia do Sr. Cidadão, alegava que, pelas leis citadas e em vigor, o dever do seu cargo era o de julgar as multas das posturas e não o de dar execução às posturas policiais da Câmara. Nesses termos, a queixa sobre a falta de polícia deveria ser dirigida aos oficiais de quarteirão, pois que

Segundo a citada Lei são os Officiaes de Quarteirão obrigados á avisar-me de todos os acontecimentos, para eu poder dar as providencias necessárias; o que se não fez: e segundo as instrucções, que tenho distribuído, devem os mesmos, como executores das minhas ordens, separar os ajuntamentos, em que houver manito (sic) perigo de desordem ; o que igualmente se não praticou. Com esta exposição parece-me que tenho satisfeito aos que desejão, como eu, o andamento das Leis Municipaes, e a segurança e tranquilidade pubilca (sic) (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831c, p. 3).

Na edição de n.06, na seção de correspondência, o Sr. Cidadão alegou não ter se dirigido diretamente ao Juiz em sua exposição e nem tampouco ter dado ao fato um tratamento diferente daquele recomendado pela legislação vigente. Assim, nada mais fez do que tornar o público ciente da lei que tratava da proibição dos ajuntamentos de pretos e de quem eram os depositários da autoridade legal a quem o cidadão deveria recorrer. Ora, como os oficiais de quarteirão estavam submetidos ao juiz de paz, só a ele cumpria conhecer as omissões de seus subordinados. E, como propunha o artigo 5º da Lei de 15 de outubro de 1827, não bastava chamar a atenção dos oficiais de quarteirão para separarem os ajuntamentos, era necessária uma ação mais enérgica: o uso da força armada das tropas. De todo modo, cabe destacarmos que o Código Criminal do Império, de 1830, substituindo o Livro V das ordenações Filipinas, não previa nenhum crime de ajuntamento, mas, sim, o crime de insurreição.

Na edição nº 07, na seção de correspondência, outro assinante do jornal, identificando-se como Não he Cidadão (doravante Sr. Não é Cidadão), publicou uma carta na qual se posicionava abertamente contra a visão do dito Sr. Cidadão. Nessa explanação, no início do primeiro parágrafo, acusando o interlocutor de parcialidade, de ter desembainhado “a espada contra os pobres Pretinhos”, de ter chamado ao serviço o juiz de paz, de apresentar as posturas contra os candombes dos negros etc – portanto, o Sr. Não é Cidadão se perguntava pela razão que levara o outro assinante a um posicionamento tão parcial. Então, ele próprio se deu a resposta:

Talvez porque são Pretos, e destes infelizes deverá ser até prohibido o seu unico divertimento: no tempo das Festas dos seus Santos. O Sr. Cidadão não contente de ver um pobre Preto, arrancado dos braços da Liberdade que gozava em seu Paiz, preso, manietado, conduzido ao mercado para ser vendido como a maneira de huma besta, reduzido a escravidão, condenado por toda a sua vida aos penosos trabalhos de nossa pesada Agricultura, reputa tudo isto em tão pouco, que quer que se lhe tire até o único meio que lhe resta de recordar a saudosa memoria de sua Pátria. Pobre Preto!!! Até onde chega a tua infelicidade!!! (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831d, p. 3).

Em seguida, ele questionou o porquê de o Sr. Cidadão não ter pedido ao juiz de paz o extermínio de uns homens brancos que, na noite do dia 07 do mês corrente, percorreram as ruas da vila perturbando o sossego público, com insultos e impropérios contra os outros moradores. Então, ele perguntou se não seria porque uns eram brancos e outros pretos. No seu modo de ver, os ajuntamentos noturnos ofereciam bem mais perigos do que aqueles realizados durante o dia, principalmente se levado em consideração que os negros tinham tomado uns licores e, por isso, ultrapassaram certos limites da obediência. Logo, finalizava:

O dos Brancos foi de noite e não se póde dizer o mesmo. A Lei he igual para todos, e visto que o Sr. Cidadão se mostrou tão zeloso do socego Publico, será de summa utilidade, e mesmo por coherencia, que diga alguma palavra respeito ao batuque dos Brancos (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831d, p. 3).

A resposta veio numa correspondência cujo autor se identificava com o pseudônimo de O Azurrague do Sr. que diz não he Cidadão, na edição de nº 08. Segundo esse assinante, ao afirmar que os escravos apenas se divertiam nos dias dos seus santos, o Sr. Não é Cidadão parecia querer dizer que os pretos tinham muito apego pela religião. Ora, se eles estavam bêbados não podiam reconhecer religião alguma, portanto, o Sr. Cidadão reclamou dentro de sua razão, simplesmente denunciara os insultos sofridos pelos moradores. E quanto aos divertimentos dos pretos... Bem, era obrigação dos donos dos escravos oferecerem o recreio em suas fazendas,

Aonde parece mais próprio, por serem elles quem disfructão o interesse, por tanto tenhão o incommodo de ouvil-os; e não dentro da Villa, que muitos deles, por se acharem ausentes de seus Srs., mais atrevidos se tornão: ora se nós vemos que a Lei marca penas ou castigos a homens livres, que sabem melhor combinar suas idéas, o que se deve entender com homens de uma educação baixa, que apenas cuidão, e se limitão a ligeiras obrigações, e essas mesmas a poder de muito rigor? (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831e, p. 4).

Dito isso, ele procurou responder aquele trecho do texto em que o Sr. Não é Cidadão dizia ter sido os negros arrancados dos braços da liberdade em que viviam em seus país para serem escravizados no Brasil. Para o Sr. Azurrague, se o outro não tinha uma solução para o problema da mão de obra, então, que evitasse o assunto para o qual a filantropia não apresentava uma saída. E no referente ao extermínio dos brancos, a proposição era absurda, sobretudo se considerada a benevolência que ele demonstrara em relação aos escravos, pois buscava um rigor para com os brancos que a lei sequer concebia para os pretos.

Que lhe parece Sr. Redactor, quer o Sr. que não he Cidadão, que a Lei seja igual para o homem livre, e o escravo! Eu desde já renuncio tal prebenda, que por direito pertence, ao Sr. que não he Cidadão, salvo se é Cidadôa ou extrangeiro (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831e, p. 3).

Na edição de nº 09, o assinante Sr. Cidadão escreveu uma correspondência em resposta ao texto do Sr. Não é Cidadão, publicada na edição nº 07. Nessa argumentação, ele ironizou o que chamava como “os filantrópicos sentimentos da alma” do seu debatedor e, também, se disse lisonjeado por lhe ter despertado o gênio adormecido e a sua “tão habil penna em defesa dos pobres Pretinhos”. Alegou ainda que nada escreveu sobre o “batuque dos Brancos” porque esse mesmo batuque teria ocorrido depois do dia seis, dia em que ele enviara a sua correspondência ao jornal para denunciar o ajuntamento dos pretos. Fez algumas contestações em relação às interpretações do outro sobre as suas palavras e, por fim, transcreveu um trecho do texto do seu interlocutor para, logo em seguida, interromper a citação por considerá-la muito perigosa:

Prossegue dizendo: - o Cidadão não contente de ver... – Não leitores, nem me attrevo a transcrever aqui este periodo: Lêde-o na correspondencia do Sr. que não he Cidadão: ajuizai vós mesmos a sua doutrina, que eu sou forçado por Bem da Patria a negar-lhe analise, que teria por fim esclarecer hum negocio, sobre que he mais preciso lançar o véo do silencio; e para que não pareça vago o que acabo de avançar direi ao Sr. que não he Cidadão, que se recorde, e contemple por hum pouco a triste Cathastrofe dos Atheniense, e modernamente a d’algumas posseções das Antilhas (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831f, p. 4).

Dando continuidade à desconstrução do argumento do seu oponente, fazendo referência à doutrina do evangelho, o Sr. Cidadão considerou satânica e inconstitucional a proposição de extermínio dos brancos. E o Sr. Não é Cidadão deveria estar ciente que, naquele momento, a base da sociedade brasileira era a escravatura. Portanto, em vez de dizer impropérios, que ele fosse ler um pouco dos escritos do abade Du Pradt13 e dos economistas americanos onde, certamente, encontraria sensatas informações, tais como: 1) Os navios negreiros eram verdadeiros vulcões, prontos para explodirem, “e lá achará escriptas as razões porque, as quaes eu não quero mui de proposito aqui relatar”; 2) Que o sistema escravista era um “cancro das sociedades”, sendo necessário adotar “todos os meios para evitar os seus terriveis efeitos”; 3) Cientes da realidade da escravidão, nos Estados Unidos, os senhores americanos buscavam colocar um fim a essa instituição, pois o aumento da população e a entrada dos imigrantes europeus ajudavam nesse intento. Assim, era possível dar liberdade aos negros, podendo eles voltarem para a África ou então ficarem na América, quando se mostrassem dignos disso; 4) Por fim, que alguns estados americanos, de população pequena e grande extensão de terras, semelhantes ao Brasil, seguiam um caminho diferente. Em vez de darem liberdade aos escravos, pelo contrário, os senhores aumentavam o grau de sujeição e ignorância dos pretos, “sendo até grande crime nestes Estados ensinar algum a lêr e escrever”. Então, concluiu:

Sr. que não he cidadão, faça reflexão sobre tudo isto; medite um pouco sobre as causas, e efeitos; e depois se quiser continuar a escrever para provar , que sou parcial, continue, que não me cansarei mais com as suas infundadas respostas; e não cuide, que he por medo ou falta de cabedal para ventilar a questão, mas sim por sêr a matéria tão melindrosa, e de tão serias consequencias para os cidadãos, e homens livres estabelecidos no Brasil, que julgo muito prudente não tocar mais em tal objeto. V. m., como diz, que não he Cidadão, faça o que quiser; e talvez, talvez fará como disse o poeta – Video meliora, proboque, deteriora sequor (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831e, p. 4)14.

Na edição nº 11, o Sr. Não é Cidadão enviou uma correspondência na qual procurou responder às duas anteriores que o refutavam. A respeito daquela escrita pelo Sr. Azurrague, preferiu desprezá-la devido à sua natureza muito confusa, limitando-se, então, a responder ao seu opositor com a seguinte interlocução latina: Nemo dat, quod non habet, ou seja, “Ninguém dá o que não tem”. Dito isso, voltou-se para responder ao Sr. Cidadão.

Nesse novo texto, ele novamente acusou o seu interlocutor de parcialidade e de distorcer as suas palavras ao tomar pelo sentido natural o que era metafórico. Argumentou que as suas ideias nada mais eram do que um resumo do que vinha sendo dito pelos oradores do Parlamento Britânico, Condorcete, Mr. Schwartz e os próprios deputados brasileiros. E quanto ao fato de o outro ter se horrorizado com as suas expressões sobre os negros, ele propôs que fosse feita uma comparação entre o nível de civilização dos escravos de São Domingos com os do Brasil:

Ali havia coriphéos de liberdade que assanharão os escravos, e sobre todo o fermento revulucionario (sic) que a França tinha espalhado por todos os lugares das suas possessões, os conduziu a rebelião. [...] Não se envenene a minha Correspondencia que ella nada tem de incendiaria, pois que os conhecimentos dos pretos do Brasil em geral (quanto mais de Campos!!) são muito inferiores a escravos da Georgia Maryland e mesmo do resto de toda a America (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831g, p. 3).

Analisando a Polêmica

Para Bakhtin (1997, p. 280), “cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados”, a que chamamos de gêneros do discurso. A correspondência é um gênero utilizado em situações próprias do dia-a-dia, sendo marcada pela existência de um remente, um destinatário, uma mensagem e um suporte específico. No caso das sequências textuais aqui trabalhadas, trata-se de uma exposição em que um leitor (assinante) do jornal apresenta a sua opinião sobre determinado acontecimento público para a comunidade de leitores desse mesmo jornal, podendo assim dar início a um debate em que os demais concordarão ou não com as suas considerações.

O jornal Correio Constitucional Campista foi criado num contexto de crise do Primeiro Reinado em que, ao seu modo, as lutas políticas ocorridas no plano da nação reverberavam na escala local. Então, a liberdade de expressão da imprensa era um instituto relativamente novo no qual os cidadãos letrados poderiam se posicionar politicamente acerca daqueles temas considerados cruciais para a estruturação do país e educação dos povos. No editorial de inauguração do periódico, esse ideal de liberdade foi compartilhado com os seus leitores.

O livre exercício de comunicar os nossos pensamentos ou seja por palavras, ôu por escripto he condição sem a qual não póde existir hum governo livre; todos os homens amigos da justa liberdade estão intimamente convencidos deste axioma, e quando o sentimento interno esta força motriz que quasi arrasta o homem, os não movesse a isso, bastaria lançar um golpe de vista sobre os preciosos escriptos dos Escriptores liberaes, que nos forção abraçar esta verdade (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831a, p. 2).

De fato, tratava-se de uma aspiração porque, na prática, o que prevalecia era a liberdade possível, na medida em que o acesso ao jornal estava limitado por uma série de constrangimentos, tais como: as restrições impostas pela legislação que regulava a imprensa, a escassa oferta de cursos de primeiras letras para a população livre, a dificuldade de manutenção da tipografia com os recursos dos assinantes e, por fim, a existência de uma pequena comunidade de leitores ilustrados a servir de referência para o que os redatores entendiam ser a opinião pública enquanto “Rainha do Universo” e “a melhor das recompensas”. Essa compreensão sobre quem seriam os formadores da opinião pública, os senhores ilustrados, está bem próxima daquelas verificadas para alguns jornais da Corte entre os anos de 1820 e 40 (MOREL, 2010).

Os embates discursivos entre os leitores eram recorrentes e deveriam ser julgados pelo respeitável tribunal da opinião pública. De acordo com os trechos reunidos no tópico anterior, a divergência entre os dois senhores em questão refere-se ao modo como, a partir de seu posicionamento na formação discursiva, eles interpretam e reagem à presença dos agrupamentos de negros e brancos no espaço público da cidade. Mas, ao discutirem o significado de tal acontecimento na esfera pública, os letrados senhores vão além, estabelecem um debate eivado de convicções, silêncios e não ditos sobre a pertinência da escravidão dentro da ordem liberal vigente. Sobretudo, o potencial explosivo do regime de trabalho escravo e de como “os homens bons” se protegeriam de um vulcão que, se explodisse, como ocorrera no Haiti, produziria enormes estragos (AZEVEDO, 1987).

Como os dois debatedores não assinam os seus próprios nomes, é incerta a identificação dos senhores Cidadão e Não é Cidadão. De qualquer modo, nessa abordagem interessa identificar o sujeito discursivo projetado nas sequências dos textos destacados e, ao problematizá-lo, depreender sobre o sujeito social a quem essas sequências discursivas se referem. Em outras palavras, do ponto de vista analítico, seria um facilitador partir desses sujeitos sociais para se chegar ao sujeito discursivo, mas, como não é possível, convém fazer o movimento contrário, analisar as pistas sobre o sujeito discursivo para inferir que grupos sociais e políticos ele procura representar.

Os pseudônimos utilizados nos oferecem os indícios sobre como eles se posicionam e os prováveis efeitos esperados de suas palavras. Pela Constituição outorgada de 1824, para ser considerado cidadão eram necessárias duas prerrogativas: nacionalidade e liberdade. E, caso o sujeito fosse livre, para participar da vida política tinha que ser homem e possuir certa renda. Nesses limites, apresentar-se como cidadão já marcava uma posição de identificação com uma ordem inicial que não estava franqueada a todos, e menos ainda se o sujeito quisesse participar dos processos eleitorais. Donde se compreende, de imediato, a existência de uma dupla imersão na cidadania, a dos cidadãos ativos e a dos não ativos.

No entanto, havia também os não cidadãos, aqueles que não eram livres ou nacionais, isto é: os escravos, os estrangeiros, os menores e as mulheres. A possibilidade de um não cidadão saber escrever cartas como as publicadas naquela seção do jornal era algo incomum. Nesse caso, só se fosse mesmo um estrangeiro; ou, mais raramente, um(a) escravo(a) que, por razões humanitárias ou econômicas, tivesse sido iniciado(a) no estudo das primeiras letras; ou ainda uma mulher livre, provavelmente de família abastada, contrariada por se sentir excluída da vida política formal. Em todo caso, apresentar-se, afrontosamente, com o pseudônimo de Não é Cidadão apontava para uma contraidentificação com o arranjo social escravista.

O reconhecimento da nova ordem pós-independência parece unir os dois sujeitos em torno dos princípios referentes à formação discursiva liberal, a partir da qual modulam os seus respectivos argumentos aos olhos da opinião pública. Contudo, os dizeres não são exatamente os mesmos, tendo em vista que, não sendo homogênea, a formação discursiva liberal corrente, envolvida pelo interdiscurso (a memória discursiva) de uma história específica de escravidão, não comporta apenas os saberes referentes a visão de mundo considerada burguesa, mas também se vê atravessada por diferentes saberes de outras formações discursivas, como os da ordem escravista. Acompanhemos, então, como isso se processa.

O Sr. Cidadão, respaldado pelas liberdades que lhe garantem o discurso constituinte do Estado de direito, reclama as devidas providências das autoridades para assegurar a paz dos moradores. Ele parte de uma identificação plena com a forma-sujeito prescrita pela formação discursiva liberal, a de que os indivíduos são sujeitos portadores de direitos naturais e, na condição igualitária de cidadãos (e povo), devem ter esses direitos protegidos pela sociedade política. Assim, a lógica dessa correspondência se filia à lógica de um discurso que circulava na comunidade dos ilustrados leitores do jornal, como podemos perceber num trecho do editorial de inauguração do Correio Constitucional Campista,

O estarmos intimamente convencidos que a affrondoza arvore da Constituição, que abriga debaixo de seos verentes e copados ramos o Solo Brasileiro, he quem faz gozar áos seos habitantes de um Governo livre, quem protege em toda a sua plenitude os sacros santos direitos de igualdade e de justiça, quem firma a inviolabilidade do Cidadão e de sua propriedade: e que os esforços da Assembléa Geral Representativa he quem por meio de Leis só próprias de sua sabedoria, tem garantido taes direitos, e regulado o equilíbrio administrativo dos deveres do Povo para com o Governo, e deste para com o Povo (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831a, p. 2).

Em outras palavras, essa formação discursiva serve de suporte ideológico para o Sr. Cidadão apresentar a sua interpretação sobre o “ajuntamento de pretos”. Inspirado nesses discursos que o precedem, ele se posiciona como a origem desse seu dizer, esquecido do processo de interpelação que o levou a essa identificação com a ideia de igualdade jurídica universal e, ao mesmo tempo, de naturalização da ordem desigual da escravidão, avalizado pela Constituição de 1824 que se “silenciava” sobre o negro escravo. A memória discursiva está atrelada a uma visão de mundo escravocrata, fruto de uma cultura material de séculos e de uma prática social que se especializara em desumanizar o negro e tomar a escravidão como um dado natural da realidade. Nas sequências discursivas, esse posicionamento é ilustrado com várias passagens em que o Sr. Cidadão se incorpora de uma matriz de sentido liberal e, simultaneamente, adere à escravidão com o argumento de que se trata da base específica, para não dizer natural, de fundação da sociedade brasileira.

Desordeiros, excessivos, bárbaros, atrevidos, ignóbeis, rústicos e ignorantes. Esses são alguns dos adjetivos utilizados pelo Sr. Cidadão e o redator para a retomada das descrições dos pretos ajuntados nas ruas da vila. Nesse espaço de circulação pública, os escravos são relacionados às seguintes ações: ousar, desafiar, ameaçar, empunhar, insultar e insurgir. E, a partir dessa sequência de ações ameaçadoras, somada às paráfrases depreciativas, que o Sr. Cidadão, “amigo da boa ordem e da bem entendida liberdade”, faz a derradeira pergunta: onde se encontravam as autoridades que, devendo fazer valer a Constituição e a sua autoridade, não garantiam o sossego e a tranquilidade dos moradores da Vila? Neste ponto, nunca é demais destacar que essa crítica às autoridades será parte de um processo que “no espaço de pouco menos de uma década, a elite política brasileira variou da ampla credulidade sobre os juízes eleitos a total descrença na capacidade dos cidadãos brasileiros em usufruir de instituições do autogoverno” (CAMPOS, 2018, p. 131).

Por seu turno, o Sr. Não é Cidadão também constrói a sua argumentação dentro de uma matriz liberal. Em alguns trechos de sua primeira correspondência, é possível inferir que a filiação a tal discurso se refere à liberdade de que os negros gozavam em sua pátria, ao processo de desumanização deles e ao trabalho pesado a que estavam submetidos. E, em seu texto, marcadamente metafórico, ele destaca o tratamento diferenciado que o Sr. Cidadão deu aos “batuques” dos dois ajuntamentos, o dos brancos e negros, contrariando a ideia de que a lei era igual para todos. Contudo, por sua vez, ele mesmo, o Sr. Não é Cidadão, ao partir dessa premissa de igualdade, parece ignorar ou finge desconhecer que, muito embora a lei fosse para todos, nem todos eram considerados iguais perante a lei.

“Muito pode a parcialidade!” (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831d, p. 2). Ao abrir a sua carta com esse enunciado, o Sr. Não é Cidadão mobiliza a memória de uma disputa que se processa no campo da política nacional, onde os senhores se agrupam de acordo com a sua maior ou menor adesão às ideias de liberdade e igualdade. Nos documentos oficiais e na imprensa, o princípio da imparcialidade estava colocado como condição sine qua non para o bom funcionamento das instituições do Estado de direito, no qual o interesse da facção deveria estar submetido à vontade geral. E, em teoria, a aplicação dessa imparcialidade nas leis era considerada fundamental para o exercício da igualdade jurídica porque, andando de mãos dadas com a razão, concorreria para a boa ordem do mundo social, como bem defendia um importante deputado fluminense da época,

Senhores, a igualdade com que a lei deve ser guardada por todos e que ellas devem guardar para com todos, é um princípio elementar do nosso systema constitucional: embora a constituição nos prometa essa e outras muitas garantias, se, ou na formação das leis, ou na aplicação se não guardar praticamente essa imparcialidade, essa feliz igualdade. Como é que com justiça havemos de isentar das leis geraes do estado, uma classe de pessoas, quando todas as outras estão a ellas sujeitas?15

Se a formação discursiva liberal brasileira serviu de base para a elaboração do discurso de identificação do Sr. Cidadão, a mesma estratégia não se pode afirmar sobre o seu debatedor. De fato, é possível pontuar uma tomada de posição em que o Sr. Não é Cidadão se contraidentifica com a forma sujeito em questão, principalmente ao discutir sobre a escravidão dentro de uma ordem liberal, entendendo-a como uma terrível chaga. Por sua vez, para os seus debatedores, os amigos da ordem, se ele não tinha uma solução para o problema da mão de obra deveria simplesmente se calar, em vez de alardear uma suposta igualdade entre livres e escravos. De certo modo, as posições dos dois assinantes reproduzem as posições que circulavam nos debates do Parlamento, como se pode perceber a afinidade do discurso do Sr. Não é Cidadão com a do deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos.

[...] nem um desses africanos agradeceria ao illustre deputado este acto de compaixão e humanidade, que os arrebata da companhia de suas mulheres, de seus filhos e de sua pátria, para os vir entregar com a mais horrivel degradação e zombaria ao açoute de um senhor implacavel; quanto mais que é constante, pelo testemunho de todos os viajantes, que essas guerras nunca forão mais freqüentes e cruéis, como depois da introdução de tão abominável trafico; que foi desde tão funesta época que a escravidão começou a ser na jurisprudencia dos africanos a pena do crime; que desde então a confiança, e a paz fugirão daquellas regiões, e que a presença de um navio sobre a costas e torna como o signal da mais barbara perseguição, estimulando a cobiça, a perfídia e a vingança que despregão, e exercitão sobre as povoações vizinhas a sua fatal influência.16

Na visão do Sr. Cidadão, para além da ideia de igualdade, se havia algo inaceitável na fala do seu opositor era justamente ele ter levantado o suposto véu sob o qual se escondia a naturalidade da escravidão negra e, baseando-se nos “filantrópicos sentimentos de sua alma” (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831f, p. 3), condená-la como se condena uma perversidade, ignorando que se tratava de uma necessidade econômica e civilizatória. Falar sobre o que deveria permanecer silenciado abria espaço para a emergência de uma memória discursiva sobre a “catástrofe” do Haiti, municiando os pretos com ideias que os levariam inevitavelmente a uma rebelião. O teor desse discurso será recorrente no imaginário da elite local, como se perceberá alguns anos depois, em 1838, a exemplo da circulação de um opúsculo em defesa da escravidão, escrito por um autor anônimo, natural da vila de São Salvador:

Esses pretendidos amigos dos negros, como chama o autor francez não podem deixar de serem reputados como huns incendiarios e hypocritas que nada menos tendem com seus capeiosos discursos [...] Na verdade custa a soffrer, e nem se pôde olhar sem horror para estes philanthropos que , manchando o sentido desta palavra , preferem antes prestar esses pretendidos serviços ás nações barbaras africanas, que nem ao menos lhes agradecem, e que até os reputão como huma oppressão , do que a seu bem estar e da nação que os alimenta (MEMORIA..., 1838, p. 9-10).

A política do “silêncio eloquente” em torno da escravidão parece ser a melhor estratégia para o Sr. Cidadão. Dito de outro modo, nessa formação discursiva “liberal escravista” existe o que não deve e nem pode ser dito. No entanto, ao contrário de se silenciar sobre esses dizeres, ele os reforça com as seguintes expressões: “Não, Leitores, nem me atrevo a transcrever aqui este período”, “e lá achará escriptas as razões porque, as quaes eu não quero mui de proposito aqui relatar”, “que julgo muito prudente não tocar mais em tal objeto” (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831f, p. 4). Assim, esse não dizer, visando a interdição de algo que foi dito pelo outro, produz um efeito de apagamento e deslocamento: diz o tempo todo, mas não diz realmente o que o outro disse, diz algo por cima do que foi dito, relegando este dito ao periférico. Observa-se, então, a mudança do foco da ideia de que os negros nasciam livres para o fato de que eles poderiam representar um perigo, como se um enunciado pouco tivesse a ver com o outro.

Então, esses “não dizeres” tinham um destino certo, confirmar a visão de mundo dos que defendiam ser a porta da senzala o limite à liberdade, em contraposição à visão dos que gostariam de estendê-la a todos os lugares. Ao se negar a reproduzir alguns trechos do seu interlocutor, o Sr. Cidadão lançou uma cortina de fumaça sobre um dos pontos mais críticos do que havia sido dito. Em vez de se ater ao argumento do Sr. Não é Cidadão sobre a liberdade anterior dos escravos, julgar se era razoável ou não essa proposição jusnaturalista, ele simplesmente a desconsiderou. Desse modo, reproduziu a tônica corrente de que a base de fundação da sociedade brasileira era a escravidão e de que não era possível o fim do regime de trabalho escravo num curto prazo de tempo sem desestabilizar a economia. Portanto, por sobre esse esquecimento da liberdade e igualdade dos direitos naturais do negro emergia a defesa de que a escravidão era um mal necessário, de que levantar suspeitas sobre a validade do negócio colocava em risco a propriedade e a prosperidade do Império. Em outras palavras, como bem sugere Hespanha (2004, p. 6), num outro contexto, tratava-se de “um projecto constitucional que, para realizar os seus pressupostos de realização prática, tinha que começar por desmentir alguns dos seus postulados teóricos”.

O não dito sobre o fato de os negros não terem nascido escravos estava expresso na memória da diáspora africana, pois foi a partir de guerras, dívidas e sequestros que, no circuito mercantil do tráfico no Atlântico, eles foram transformados em mercadorias valiosas. E nesse quesito de defender a propriedade com os recursos jurídicos, a política do silêncio e o uso das armas, o Brasil não se encontrava sozinho, pois a Geórgia, nos EUA, também trazia os seus escravos embaixo do chicote, proibindo-os mesmo de aprenderem a ler e a escrever. Os negros não deveriam desnaturalizar a sua situação de submissão e nem ter acesso a textos que lhes suscitassem ideias de inconformidade. Em todo caso, a maioria dos escravos não sabia ler e, ainda que soubesse, nem seria necessário um texto para se rebelar, visto que a dura realidade poder-se-ia encarregar de fazê-lo.

Na polêmica, o Sr. Não é Cidadão fez o movimento contrário ao do seu debatedor. Em vez de aderir à política do silêncio, ele detalhou as razões pelas quais, baseado em pensadores e políticos liberais, considerava o trabalho escravo um verdadeiro contrassenso, representando, ao final, mais custos do que benefícios reais para os seus senhores, como nas proposições de Adam Smith (1985) e Diderot (1979), entre outros. Ponderou também que os escravos da vila de São Salvador não tinham como serem incendiados pelas suas correspondências, pois possuíam menos conhecimentos do que os do Haiti e, apesar do receio do seu interlocutor, não existia na localidade um ambiente de estímulo às ideias revolucionárias dos franceses. Logo, se havia algo com o que se preocupar era com o barril de pólvora da exploração desumana dos negros e não com a verdade dos princípios defendidos em sua carta.

O debate entre os dois era parte dos conflitos decorrentes das diferenças de visão política entre os liberais moderados e os liberais radicais. Estes, como defensores de uma ordem liberal democrática e antiescravista, encontravam no jornal Farol Campista, um espaço para as suas reivindicações. Na sucessão dos acontecimentos pós-abdicação de Pedro I, a partir das tomadas de posição do redator do jornal contra alguns senhores locais, os críticos passaram a acusá-lo de ser um exaltado e seguidor dos jornais radicais da Corte do Rio de Janeiro, como o Nova Luz e a Voz da Liberdade. Numa dessas críticas no Correio Constitucional Campista, foi transcrita uma passagem que ilustrava a posição radical sobre a liberdade assumida pelo jornal em um de seus artigos:

A França fez huma revolução completa, e o Brasil deo apenas o princípio à sua revolução, e no tempo em que se devia tratar rigorosamente de processar os ministros do Caifaz Bourbon, tudo era vias e mais vivas, no tempo em que talvez o fogo da guerra deveria estar ateado por toda a parte, o fogo da polvora se gastava em bombas e em foguetes, e todo o tempo que se devia gastar n’uma justa revolução, se empregou em acenos de lenços, em banquetes e cantorias!!! (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831i, p. 3).

Enfim, se, por um lado, alguns radicais incluíam em seu repertório a liberdade para os escravos; pelo outro, os moderados defendiam a permanência da escravidão. Para a manutenção do status quo, os senhores de escravos locais precisaram enfrentar dois oponentes: os negros rebeldes e os liberais exaltados. Nesse sentido, dentre as várias estratégias adotadas, uma das recorrentes foi a da mobilização do fantasma do haitianismo para justificar a tomada de medidas mais drásticas contra os negros e estigmatizar o ideário dos “rusguentos” como caótico e desordeiro, prisioneiro dos excessos das comoções populares. E como discursos são práticas, diante das ameaças em curso, a Câmara Municipal fez circular e mandar executar a postura de nº 91, aquela que restringia a permanência e circulação de escravos no espaço público da cidade e, de acordo com a tipificação do delito, previa uma pena de cinquenta a cem açoites:

O escravo que for encontrado nas ruas da Villa, ou estradas do termo, depois das dez horas da noite sem licença ou ordem por escripto da pessoa, debaixo de cujo poder ou governo esteja, será enterrogado sobre o seu destino, e não dando resposta satisfatória, será conduzido à cadêa (CORREIO CONSTITUCIONAL CAMPISTA, 1831h, p. 1).

Basta uma simples verificação das fontes dos anos subsequentes para averiguarmos que a postura em questão surtiu poucos efeitos e foi de diversos modos burlada, o que levou a uma maior intensificação do discurso favorável à repressão, resultando nessa “tensão permanente entre, de um lado, o processo de codificação das leis que definem as relações de direitos e deveres e, de outro, o mundo da vida e sua dinâmica (VELLASCO, 2004, p. 26). E essa política policialesca repressiva prosseguiu, na mesma medida em que cresceram as insatisfações dos negros e os protestos abolicionistas pelas várias freguesias da cidade ao longo do século XIX.

Considerações Finais

Ao fazerem circular pelos jornais as correspondências cujo efeito de sentido pretendido era o de representar os “ajuntamentos de pretos” como uma ameaça permanente à paz social, os senhores liberais moderados da Vila projetavam-se como “os amigos da ordem e da bem entendida liberdade”, em contraponto aos liberais exaltados, representados nos jornais daqueles como fomentadores do ódio que os negros sentiam e promotores do caos social. Assim, todos os cidadãos eram convocados a se prevenirem de uma possível sedição cujo preço pela falta de precaução poderia ser pago com a propriedade e a própria vida.

No decorrer da análise das sequências discursivas recortadas para esse trabalho, constatou-se que a formação discursiva liberal, por comportar falhas, atravessamentos e equívocos, oferecia diferentes possibilidades de subjetivação do sujeito, demonstradas em seus posicionamentos discordantes sobre o significado da escravidão dentro da ordem liberal vigente e, em última instância, da marcha da civilização. Nesse ângulo, encontramos o Sr. Cidadão que, ao se identificar com a formação discursiva liberal brasileira, relativizava a “suposta” contradição do seu componente escravista, considerando que um colapso econômico por falta de mão de obra produziria uma barbárie. Por outro lado, também encontramos o Sr. Não é Cidadão que, inscrito na mesma formação discursiva, mas atravessado por outros saberes do interdiscurso (ou da memória discursiva), mostrava não se identificar com o componente escravista da ordem instituída no país, considerando-o cruel, desumano e bárbaro.

Material suplementar
Referências
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GOYTACAZ. Vila de São Salvador, 24 set. 1831.
Jornais da Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
MEMORIA sobre o commercio dos escravos, em que se pretende mostrar que este tráfico he, para elles, antes hum bem que hum mal. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Comp., 1838.
Relatórios do presidente de Província do Rio de Janeiro (1836-1840).
Notas
Notas
1 Muito embora fosse um distrito da Comarca de Vitória, capital da Província do Espírito Santo, a elite política da vila de São Salvador considerava-se parte da Província do Rio de Janeiro, pois as suas atividades comerciais, políticas e culturais estavam vinculadas a ela.
2 As sequências textuais retiradas das fontes primárias serão mantidas em sua forma original.
3 Atas da Câmara Municipal de 11 de julho de 1833. Mapa da população de Campos dos Goytacazes com distinção de sexos, de estado livre, de escravidão e de estrangeiros. Como a estimativa era feita pelas imprecisas listas de família, as autoridades não garantiam a exatidão dos dados.
4 Atas da Câmara Municipal de 12 de abril de 1833. Relação das escolas públicas e particulares existentes na Vila de São Salvador de Campos dos Goytacazes.
5 Lei de 15 de outubro de 1827, que determinava a criação de escolas de primeiras letras nas cidades, vilas e lugares mais populosos do Império.
6 Os relatórios dos presidentes da Província estão repletos de informações sobre as dificuldades de estruturação do ensino de primeiras letras, dentre elas encontramos a ausência da criança na escola por causa do trabalho doméstico ou nas lavouras. Relatórios disponíveis em: CRL (2017).
7 Em julho de 1831, o Senado da Câmara era composto pelos seguintes vereadores: Joaquim José Gomes da Silva e Castro, Candido Narciso Bitancourt, João Bernardo de Andrada e Almada, Manoel Pinto Netto Cruz, Balthazar Caetano Carneiro, Francisco José da Silva Guimarães, José Fernandes Ribeiro da Costa. Cf Correio Constitucional Campista, n. 58, 6 ago. 1831. Obs: Em pesquisa nos jornais da década de 30 (Monitor Campista, Correio Constitucional Campista, Goytacaz), é possível verificar que esses senhores eram todos proprietários de terras e/ou de escravos, sendo alguns deles grandes produtores de açúcar, como é o caso de Manoel Pinto Netto Cruz, mais tarde condecorado como barão de Muriaé.
8 Trata-se de um jornal que era impresso na tipografia do Correio Constitucional Campista, de propriedade do Sr. Antônio José Silva Arcos. Algumas pistas existentes no próprio jornal nos levam a suspeitar era escrito pelo médico José Alypio, conhecido liberal moderado que foi assassinado alguns anos depois por razões que podem ter sido políticas ou de ordem privada.
9 Exemplares disponíveis na hemeroteca da Biblioteca Nacional. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em: 12 fev. 2018.
10 Para Pêcheux, devem ser consideradas três modalidades de subjetivação, espécies de resposta dos sujeitos à interpelação ideológica, podendo eles se identificarem, contraidentificarem ou desindentificarem.
11 O texto foi transcrito como se apresenta no documento, portanto, mantive as suas características originais de estrutura, léxico, sintaxe etc, que podem estar relacionados aos limites da tipografia de então. No trecho com asteriscos [*], o autor fez a seguinte notificação de rodapé: “Estes vocábulos não existindo nos Dicionarios da nossa lingoa, he da mais urgente necessidade fazer desaparecer, para sempre d’entre nós aquillo que elles vulgarmente significão.”
12 Ao longo das correspondências, os autores não parecem fazer distinção entre os negros nascidos no Brasil e os que chegaram da África. O termo preto parece ser utilizado de modo genérico no evento que é objeto dessa análise.
13 O abade e barão Dominique De Pradt (1759-1837) foi um escritor muito lido pelos brasileiros ilustrados das primeiras décadas do século XIX. Em seus escritos, ao versar sobre a inevitabilidade da independência das colônias e a necessidade de que a liberdade fosse negociada, o autor utilizava como contraexemplo a violência do que acontecera no Haiti, sendo recomendável o silêncio em torno do assunto ou, então, a sua condenação completa. Autor de diversas obras, como a famosa: Des colonies et de la Révolution actuelle de l’Amérique. Paris: Bechet / Egron, 1817.
14 A expressão latina Video meliora, proboque, deteriora sequor pode ser traduzida como: Vejo as coisas melhores e as aprovo, mas sigo as piores. (VIDEO MELIORA, PROBOQUE, DETERIORA SEQUOR, 2017).
15 Pronunciamento do deputado Souza França, na Sessão de 18/08/1826, Annaes do Parlamento Brasileiro, edição 04, p. 183 - Biblioteca Nacional.
16 Cf. BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados..., t. 3, sessão de 3 de julho, 1827, p. 21.
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