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Assumir a infância e a educação como prioridades
Lisandra Ogg Gomes; Monique Aparecida Voltarelli
Lisandra Ogg Gomes; Monique Aparecida Voltarelli
Assumir a infância e a educação como prioridades
Linhas Críticas, vol. 26, e34622, 2020
Universidade de Brasília
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Dossiê: Tempo de pausa ou de crise? Assumir a infância e a educação como prioridades

Assumir a infância e a educação como prioridades

Lisandra Ogg Gomes
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Monique Aparecida Voltarelli
Universidade de Brasília, Brasil
Linhas Críticas, vol. 26, e34622, 2020
Universidade de Brasília

Recepción: 08 Octubre 2020

Aprobación: 09 Octubre 2020

Publicación: 14 Octubre 2020

[…] as crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas se volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer uma relação nova e incoerente entre esses restos e materiais residuais. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo das coisas, um pequeno mundo inserido no grande (Benjamin, 2002, p. 57-58[1]).

Nos dias de hoje, que rosto o mundo das coisas tem voltado para as crianças? Que relações novas e incoerentes as crianças têm (re)estabelecido com o mundo e as pessoas? Que mundo as crianças têm formado que ainda não conhecemos? Esse mundo, das coisas e pessoas, assumiu a infância e a educação como prioridades?

A citação que abre a apresentação deste Dossiê tem como propósito retomar o antigo para pensarmos o novo, o simples, mas não simplório, retomar algo que elucide as formas de perceber e recriar as relações sociais, no sentido de, a partir de uma dimensão “clássica”, pensar e formar algo outro que se compõe como uma constelação com funções diversas e para realização de uma diferente figura (Cicu, 2005[2]). Dessa forma, queremos conduzir as/os leitoras/es a colocarem em destaque uma rede de correlações e constelações para formar uma figura diferente, a qual possibilite perguntas e reflexões.

De antemão, sabemos que não temos respostas para essas questões, mas, para além delas, o mais complexo é fazer perguntas que nos façam parar, refletir e pensar o nosso mundo. Perguntas, trocas e encontros que permitam verdadeiros diálogos com as crianças e com a infância, portanto que possamos compreender que interações estão interagindo com esse tempo (Rosemberg, 1976[3]). Foi assim que partimos da premissa de que não existe ação sociocultural, política ou econômica sem as crianças e a infância, e que colocá-las na condição de estar em primeiro lugar em importância é compreender que isso dá por formarem um grupo minoritário, sem altos e maiores privilégios, com características físicas ou culturais que as singularizam, as tornam invisíveis e as colocam à parte da sociedade, com um tratamento diferencial, desigual e com atitudes paternalistas “no sentido de uma estranha combinação de amor, sentimentalismo, senso de superioridade em relação à compreensão equivocada das capacidades infantis e à marginalização” (Qvortrup, 2011, p. 210[4]).

Esta discussão a respeito da condição minoritária, marginal, e também sobre estabelecer as crianças e a infância como prioridade na sociedade e tornar visíveis suas ações e falas não é algo novo, são proposições que fundamentam os Estudos da Infância, assim como também embasam os debates em nossos grupos de pesquisa, com nossos interlocutores teóricos e em nossas investigações. É um debate constante e militante, o qual possibilitou que a infância e as crianças fossem aos poucos ganhando corpo como categoria e sujeitos de direitos, sobretudo após a redemocratização política brasileira. Porém, a partir do golpe jurídico-parlamentar de 2016 e a chegada ao poder de um governo de extrema-direita, a prioridade passou a ser de outra ordem, com um viés ideológico de tutela, depreciação e desconsideração de qualquer ação infantil, tratando a infância como futuro possível de ser moldado e controlado.

Esse cenário gera tensões, incertezas e embates para o atual momento, que foi agravado pela crise epidêmica e afetou de maneira profunda a infância e as crianças. Foi a partir desse quadro que organizamos este dossiê, para tratar das políticas destinadas à infância e educação, às novas exigências socioculturais para as crianças e suas relações com adultos, jovens e velhos e sua posição e atuação na sociedade de hoje. Assim, ponderamos que para tratar destas questões seria preciso privilegiar diferentes campos das ciências humanas, a fim de buscar um diálogo presente, mas pautado em produções teóricas e caracterizado por revisões, ponderações e reorganizações das práticas e dos discursos socioculturais e educacionais.

Também entendemos que era preciso registrar esse momento de crise, considerando, conformando e ponderando os vários interesses em jogo quando a vida cotidiana entra em estado de espera, temor e incerteza, e mostra-se muito mais frágil do que se pensava. Escolas fechadas, isolamento social, encontros virtuais, famílias ilhadas, trabalhos em semi-suspensão, desemprego etc.; é, sem dúvida, um estado de exceção que nos exige parar e pensar no querer coletivo, naqueles que estão à margem e naquilo que desejamos construir enquanto sociedade. Dessa forma, nos questionamos: O que na atual conjuntura devemos valorizar? Como as relações sociais estão se desenvolvendo? Quais outras possibilidades despontam? Quais novas estruturas temporais e espaciais serão estabelecidas? O que há no amanhã?

O não saber que se instaurou se relaciona à crise econômica e política que vivíamos antes da crise pandêmica – com as reformas trabalhistas e da previdência, cortes orçamentários para a educação e saúde, ensino doméstico ou domiciliar e escola sem partido – agora paira sobre nós outros retrocessos ainda mais significativos, que são pautas de estudiosos/as e pesquisadores/as de diversas áreas, reunidos aqui com suas análises, críticas, ponderações e questionamentos. É uma perspectiva crítica à modernidade e um posicionamento político a respeito da infância e da educação em tempo de crise e de pausa.

Visibilidade e prioridade: quais crianças estão sendo notadas?

As questões que envolvem este Dossiê visam dialogar, a partir de diferentes perspectivas, sobre as situações que perpassam a vida das crianças em cenário de crise, principalmente em um momento em que as circunstâncias e as condições de vida das crianças estão sendo agravadas diariamente.

O conjunto de direitos explicitados pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, em 1989 (Brasil, 1990)[5], o qual foi ratificado por 196 países, reconhece a necessidade de melhorar a situação de vida das crianças, principalmente em todos os países em desenvolvimento. No Brasil, de acordo com o Art. 227 da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988[6]), as crianças devem ter seus direitos fundamentais assegurados, com absoluta prioridade, por meio da família, da sociedade e do Estado, ressaltando a proteção diante de toda forma de negligencia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

De acordo com o Observatório da Criança e do Adolescente (2020[7]), em 2019 estimava-se que cerca de 69,3 milhões de crianças e adolescentes compunham a população brasileira, sendo que destas, 26,3 milhões estão em famílias que vivem em situação de pobreza e miséria no país. Outros dados, de acordo com esse documento (Observatório da Criança e do Adolescente, 2020), demonstram situações preocupantes em que as crianças se encontram: 4,1% das crianças de 0 a 5 anos estão em situação de desnutrição; a taxa de mortalidade infantil perpassa 12,2 %, com indicadores agravantes no Nordeste; apenas 28,6% das crianças de 0 a 3 anos estão matriculadas em creches; 188.216 mil crianças entre 6 e 14 anos estão fora da escola; 86,7% de notificações registradas de meninas violentadas sexualmente; 2.390.846 milhões de crianças de 5 a 17 anos de idade trabalham; no último ano, houve um aumento nas taxas de homicídios entre crianças negras, apontando quatro vezes mais já registrados na história, demonstrando os efeitos do racismo e da discriminação no Brasil, atingindo em especial as crianças e os jovens.

Esse panorama demonstra o caráter paradoxal com que as crianças são consideradas pela sociedade adultocêntrica (Sarmento & Pinto, 1997, p. 2[8]), uma vez que, no discurso legal, a demonstração de preocupação e compreensão da prioridade de ações que garantam os direitos das crianças é claro, entretanto, as lacunas para a efetivação dos direitos têm deixado rastros complicadores e desfavoráveis para a vida delas.

A compreensão das crianças enquanto um vir a ser cidadão e a “promessa futura para uma sociedade melhor” tem negligenciado suas vidas no tempo presente, com inconsistências de uma agenda pública, com ações incoerentes e que desconsideram as necessidades reais vividas cotidianamente por elas em tempos de crise, e que ficaram mais evidentes com os efeitos causados pela pandemia da COVID-19.

Pensar a infância enquanto categoria geracional na estrutura social se torna uma conceitualização necessária e urgente, principalmente em tempos de crise em que se nota, de forma mais manifesta, como as crianças e os adolescentes sofrem com os impactos econômicos, políticos e pandêmicos, pois dependem de alimentação, educação, proteção para sobreviverem e se desenvolverem. Além disso, o confinamento demonstrou a distinção dos cenários em que as crianças vivem, ressaltando a desigualdade social diante dos recursos materiais e tecnológicos para acessar ao ensino remoto; com diferenças marcantes nas taxas de contaminação de crianças em situação de vulnerabilidade; aumento da violência física, sexual e psicológica por estarem confinadas com familiares e/ou responsáveis agressores e vitimados como elas; dentre outros aspectos que demonstram a falta de atenção e direcionamentos de ações governamentais para com as crianças. Como pontuado por Nelson Mandela: “Não existe revelação mais nítida da alma de uma sociedade do que a forma como esta trata as suas crianças” (Le Monde, 2020[9]).

Observa-se, constantemente, os direitos das crianças sendo negados e/ou postergados e estas têm se tornado reféns dos efeitos da globalização e das decisões que não consideram as implicações para suas vidas (UNICEF, 2011[10]).

Reflexões que compõem esse Dossiê

Resultado de uma rede de cooperação acadêmico-científica, o Dossiê “Tempo de pausa ou de crise? Assumir a infância e a educação como prioridades” buscou centralizar discussões com autores nacionais e internacionais sobre os estudos da infância de modo a não apenas trazer visibilidade às problemáticas que atravessam a vida das crianças, mas também privilegiar pesquisas do campo das ciências humanas que busquem certo diálogo com o atual período.

O início da pandemia trouxe várias mudanças e muitos desafios, alguns ainda perpassam o cotidiano e outros já foram incorporadas no dia a dia, mas cabe ressaltar que o isolamento social modificou drasticamente a vida social das crianças. Sabe-se que a elas eram permitidos o convívio em espaço público e nas instituições educativas, e com o fechamento das escolas, as relações das crianças com seus pares e com o processo educativo foram modificadas e afetadas pelas possibilidades econômicas familiares. Além disso, os fatores que envolvem a temática sobre a relação da educação e infância demandam considerar o uso das tecnologias, o tempo de exposição diante das telas; crianças em fase de alfabetização; a alteração na socialização entre os pares; o processo de ensino e aprendizagem; a educação dos corpos para se ajustarem às rotinas familiares, bem como o ensino remoto, sendo estes alguns dos aspectos que perpassam as discussões nos textos desse Dossiê.

Preocupações sobre a situação da primeira infância, vulnerabilidades inerentes e estruturais das infâncias; bem-estar das crianças e políticas públicas também estão presentes nos diálogos teóricos a fim de ressaltar os direitos delas, com a pluralidade e diversidade que compõem essa população brasileira. Por isso, atenção foi dada à infância quilombola, ribeirinha, migrante e às crianças sem terrinha que frequentemente são expostas ao descaso das políticas públicas e às ameaças políticas geográfico-territoriais.

Os estudos sociais da infância, neste sentido, contribuíram para problematizar as relações geracionais, trazendo visibilidade para a participação e o protagonismo infantil em diversos contextos, bem como os olhares para os bebês enquanto sujeitos de direitos e atores sociais, que, juntamente com as crianças, têm tido suas vozes silenciadas e não reconhecidas nos cenários sociais, fato que notavelmente é questionado, revisto e criticado pelos autores e pelas autoras diante dos aportes científicos androcêntricos, colonizadores e adultocêntricos que deixaram à margem perspectivas e pontos de vista das crianças nas ciências sociais e humanas.

Diante deste contexto, o presente conjunto de textos que compõe esta edição da Revista buscou refletir sobre a infância, educação e políticas em momentos de tensão. As zonas de invisibilidade continuam perpetuando-se pelo mundo, e talvez mesmo aqui, bem perto de cada um e uma de nós, seja possível observar os silenciamentos diante de tantas vidas que não são vistas ou consideradas, assim, espera-se que, com as discussões propostas, possamos abrir as janelas, como propõe Boaventura de Sousa Santos (2020, p. 8-9)[11], de modo a enxergar as sombras que as realidades sociais vão criando.

Boa leitura!

Material suplementario
Referências
Benjamin, W. (2002). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. Duas Cidades, Editora 34.
Cicu, L. (2005). Le api il miele la Poesia. Dialettica intertestuale e sistema letterario greco-latino. Casa Editrici Università degli Studi di Roma La Sapienza.
Rosemberg, F. (1976). Educação para quem? Ciência e Cultura, 2(12), 1466-1471.
Qvortrup, J. (2011). Nove teses sobre a “infância como um fenômeno social”. Pro-posições, 22(1), 199-211. https://doi.org/10.1590/S0103-73072011000100015
Brasil. (1990). Decreto nº. 99.710, de 21 de novembro de 1990 (Promulga a Convenção sobre os Direito da Criança). Diário Oficial da União. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm
Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Assembléia Nacional Constituinte. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
Observatório da Criança e do Adolescente (2020, outubro 02). Cenário da infância. Observatório da Criança e do Adolescente. https://observatoriocrianca.org.br/cenario-infancia
Pinto, M., & Sarmento, M. (1997). As crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando o campo. In: Pinto, M., & Sarmento, M. J.(Coords.). As crianças: contextos e identidades. Universidade do Minho.
Le Monde. (2020, outubro 04). Citations. Le Monde. https://dicocitations.lemonde.fr/pensamentos/citacao/3677.php
United Nations Children’s Fund (UNICEF). (2011). Child Outlook: a policy briefing on global trends and their implications for children. United Nations Children’s Fund.
Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Edições Almeida.
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