Resenhas

Das incertezas na pandemia aos desafios do tempo presente

De las incertidumbres de la pandemia a los desafíos de la actualidad

From the uncertainties in the pandemic to the challenges of the present time

Joelson de Sousa Morais
Universidade Estadual de Campinas, Brasil, Brasil

Das incertezas na pandemia aos desafios do tempo presente

Linhas Críticas, vol. 27, e37572, 2021

Universidade de Brasília

Morin E.. É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus. 2020. Bertrand Brasil

Recepción: 18 Abril 2021

Aprobación: 26 Abril 2021

Publicación: 27 Abril 2021

Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus (1ª edição, tradução de Ivone Castilho Benedetti, colaboração de Sabah Abouessalam). Bertrand Brasil.

Prestes a completar um século de vida no ano de 2021, Edgar Morin, reconhecido internacionalmente, com formação multidisciplinar em Direito, História e Geografia, realizou estudos em Filosofia, Sociologia e Epistemologia, nos brinda com uma obra essencial em tempos de incertezas e catástrofes geradas pela crise sanitária da pandemia da Covid-19.

Na primeira parte do livro, tematizada Preâmbulo: cem anos de vicissitudes, Morin narra os diferentes acontecimentos que enfrentou em suas experiências de vida e formação, em múltiplas crises, — desde o seu nascimento conflituoso, que o fizera acordar pelas palmadas do médico após meia hora do seu nascimento, estrangulado pelo cordão umbilical e nascido pelos pés, decorrente da problemática gravidez que não poderia ter sua mãe por complicações de saúde —, que o fizeram ir renascendo em um cenário que o autor situa historicamente pelos descaminhos emblemáticos por ele traçados, e que situa o contexto do coronavírus no mundo atual como mais uma das crises, articulando suas reflexões.

Ainda nessa primeira parte da obra, o autor tece suas narrativas das experiências que teve: na gripe espanhola; na crise mundial de 1929; formação do ciclone (1930-1940), quando Hitler se tornou chanceler da Alemanha; na Segunda Guerra Mundial; grande crise intelectual dos anos de 1956-1958; no ocorrido em maio de 1968 que, entre outras coisas, impulsionou disparar um intenso “processo de emancipação feminina, certa liberalização dos costumes, uma compreensão das homossexualidades (Morin, 2020, p. 17); na crise ecológica; e na resistência em duas frentes, que o autor se dedica tanto no âmbito à resistência intelectual como política, situadas entre:

[...] a velha barbárie, vinda do fundo das eras, de dominação, sujeição, ódio, desprezo, que irrompe cada vez mais em xenofobias, racismos generalizados e guerras do Oriente Médio e a da África, e a barbárie fria e gélida do cálculo e do lucro, que assume o comando em grande parte do mundo. (Morin, 2020, p. 18)

Nesses movimentos plurais e inconstantes de crises em diferentes espaços/tempos da existencialidade, o autor foi tecendo reflexões e pensamentos que inclusive culminaram na produção, por um período de trinta anos, da obra O método, em busca de construir os fundamentos do modo de refletir e tecer uma perspectiva de conhecimento e da busca de responder aos desafios da complexidade do mundo.

O livro É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus é composto por 97 páginas, nas quais divide-se, além do Preâmbulo e da Introdução, em três capítulos, com as seguintes tematizações: no primeiro, As 15 lições do coronavírus, trazendo as experiências formativas pautadas em reflexões dos fatos e acontecimentos gerados por esta crise sanitária com diferentes enfoques e problematizações; o segundo, Desafios do pós-corona, elucidando as diferentes crises que a humanidade poderá enfrentar, tanto no que diz respeito ao sujeito em sua interioridade, quanto às de ordem externa em sua experiência socioeconômica, política e cultural; e o terceiro, Mudar de via, no qual expõe alternativas substanciais, consolidadas pelas reformas em diferentes âmbitos, e os processos de regeneração de si e do cosmo; e a última parte, Conclusão, traz reflexões numa linha tênue entre acontecimentos passados, onde estamos e para onde vamos.

Sobre as 15 lições do coronavírus, Morin expõe no primeiro capítulo as seguintes temáticas: 1) Lição sobre a nossa existência; 2) Lição sobre a condição humana; 3) Lição sobre a incerteza de nossa vida; 4) Lição sobre nossa relação com a morte; 5) Lição sobre nossa civilização; 6) Lição sobre o despertar da solidariedade; 7) Lição sobre a desigualdade social no isolamento; 8) Lição sobre a diversidade das situações e da gestão da epidemia no mundo; 9) Lição sobre a natureza de uma crise; 10) Lição sobre a ciência e a medicina; 11) Uma crise da inteligência; 12) Lição sobre as insuficiências de reflexão e ação política; 13) Lição sobre deslocalizações e dependência nacional; 14) Lição sobre a crise da Europa; e 15) Lição sobre o planeta em crise.

Ao mostrar as “fraturas expostas” causadas pela pandemia do Coronavírus, neste primeiro capítulo, Morin salienta uma desfragmentação total do pensamento e conhecimento humanos, construídos pelo sujeito no contexto da ciência, tornando-se míope para enxergar descobertas e visibilizar invenções que pudessem ser empreendidas diante do caos, de incertezas e bifurcações provocados nas tramas que surgem e das eventualidades do imprevisível que emergem. Ou como melhor pontua o autor:

As insuficiências e carências de conhecimento e pensamento durante a crise confirmam que precisamos de um modo de conhecimento e pensamento capaz de responder aos desafios das complexidades e aos desafios das incertezas. Não podemos conhecer o imprevisível, mas podemos prever sua eventualidade. Não devemos nos fiar nas probabilidades nem esquecer que todo acontecimento histórico transformador é imprevisto. (Morin, 2020, p. 35)

O autor nos incita a pensar profundamente acerca dos impactos e das problemáticas gerados pela pandemia da Covid-19, que se reverberaram, entre outras coisas: no aumento das desigualdades sociais; na crise violenta da globalização; na desvalorização e no desprezo de profissionais que se tornaram essenciais nesse tempo de crise sanitária, como enfermeiros, médicos, professores, coletores de lixo, entregadores, verdureiros, pequenos agricultores, agentes de segurança, guardas-civis e outros; na supremacia do econômico ao invés de uma política de humanidade entre as pessoas e os países com mais dificuldades em relação aos que melhor se saíram diante da situação; da irresponsabilidade de conduzir a pandemia na gestão de governantes, como os do Brasil, Peru, dos Estados Unidos e do México, entre outros agravantes.

No segundo capítulo da obra, sobre os Desafios do pós-corona, apresenta, de modo bem provocativo, questionamentos e problematizações, sobretudo os fortes impactos propiciados pelas assimetrias e os rearranjos que poderíamos enfrentar em um período posterior à pandemia. A tônica recai sobre se o que estamos enfrentando agora poderá servir para ressignificar nossas práticas, convívio e experiências, encontrando uma nova via diante de tudo isso, ou se voltarão com uma turbulência que poderá, sem precedentes, ser tramada entre o ser humano consigo próprio e com o outro, como também do que acontece no âmbito das diferentes culturas e sociedades, e as outras tantas dimensões suscitadas pela economia, política, pelo mundo digital, a ecologia, o desafio da existencialidade e outros tantos aspectos. Segundo Morin:

O momento histórico extremamente grave que atravessamos está cheio de desafios. A crise sanitária que continua em curso é acompanhada por uma crise política e uma crise econômica cuja profundidade e duração ainda não foram dimensionadas, parece prenunciar-se uma crise alimentar mundial; iniciou-se uma crise social dramática em consequência da explosão do número de desempregados e de trabalhadores precários. (Morin, 2020, p. 43)

Uma contundente reflexão põe em voga o que parece ser uma das mais esperadas reivindicações tecidas pela humanidade nesses tempos de incertezas causados pela pandemia, a de que “[...] a esperança está na luta pelo despertar das mentes e pela busca de outra Via, que a experiência da megacrise mundial terá estimulado” (Morin, 2020, p. 53).

No terceiro capítulo, Mudar de via, Edgar Morin discute acerca de uma ressignificação de instâncias da sociedade e do humano de modo a produzir outras possibilidades de mudanças que primem pela qualidade de vida dos sujeitos em harmonia consigo e com o meio em que vivem. Por isso, reflete as implicações das grandes linhas da nova Via, que seriam, no contexto “político-ecológico-social imposta pela crise inédita que vivemos [que] são criadas pela necessidade de regenerar a política, de humanizar a sociedade e de ter um humanismo regenerado” (Morin, 2020, p. 56).

A necessária defesa de uma reforma é, pois, uma das bases da crítica e reflexão tensionadas pelo autor no livro, entre as quais as que possam consolidar-se pela reforma: econômica, empresarial, da democracia, ecopolítica, do pensamento reformador e da sociedade, entre outras.

Todas essas reformas com que advoga Morin se refletem e se refratam na qualidade de vida do sujeito que as enfrenta e constitui o ser, saber, fazer, poder e pensar com que mobiliza em diferentes perspectivas, intensidades e propósitos na sua existencialidade. Por isso, a importância de primar pela qualidade de vida, tendo em vista que esta “[...] se traduz por bem-estar no sentido existencial, e não apenas material. Implica a qualidade das relações com o próximo e a poesia dos envolvimentos afetivos e afetuosos” (Morin, 2020, p. 75).

A atualidade do pensamento de Edgar Morin não é só necessária como imprescindível nesses tempos que estamos vivendo de instabilidades e incertezas da própria vida, da política, economia, educação e sociedade, entre outras instâncias, que nos convoca a empreender uma aventura de desbravar e explorar outras tantas reflexões, narrativas e epistemologias com as quais possamos entender os fenômenos globais que afetam a humanidade sem precedentes, e em que o pensamento complexo se torna uma via indispensável para o sujeito compreender, interpretar e buscar soluções diante dos acontecimentos que surgem e enfrentam no meio circundante.

Referências

Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus (1ª edição, tradução de Ivone Castilho Benedetti, colaboração de Sabah Abouessalam). Bertrand Brasil.

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