Dossiê: As dimensões educativas da luta: saberes e aprendizados da e na militância política

Saberes e aprendizados da e na militância política

Conocimiento y aprendizaje del y en la militancia política

Knowledge and learning from and in political militancy

Kimi Tomizaki
Universidade de São Paulo, Brasil, Brasil
Luís Antonio Groppo
Universidade Federal de Alfenas, Brasil, Brasil

Saberes e aprendizados da e na militância política

Linhas Críticas, vol. 27, 39034, 2021

Universidade de Brasília

Recepción: 26 Julio 2021

Aprobación: 26 Julio 2021

Publicación: 29 Julio 2021

Os acontecimentos políticos recentes no Brasil e na própria América Latina têm deixado aturdidos os campos da pesquisa sobre os movimentos sociais e sobre os engajamentos militantes. As Jornadas de 2013 parecem ter aberto uma verdadeira caixa de Pandora de protestos e movimentos. Há uma sequência desafiadora de fatos que, após 2013, pareceram pender bem mais à direita, ao campo conservador, liberal-conservador e até mesmo neofascista, incluindo um crescente sentimento antipartido – principalmente, antipetista (contra o Partido dos Trabalhadores - PT) -, a ascensão de movimentos e organizações de direita, manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, o próprio impeachment de Dilma, a ascensão e a vitória do candidato da extrema-direita, em meio a um crescente esgarçamento da democracia e a profusão de fake news e robôs nas redes sociais da Internet.

Porém, o campo progressista não deixou de se movimentar e resistir, tanto na sobrevida do campo democrático popular representado pelo PT, quanto na resistência criativa de setores juvenis do campo autonomista e do campo socialista crítico ao PT, assim como em protestos que deram continuidade ao legado progressista das Jornadas de 2013 – como as manifestações contra os megaeventos esportivos, a onda de greves de trabalhadoras e trabalhadores do “precariado”, as ocupações estudantis de 2015 e 2016, a reação à candidatura de extrema-direita no “Ele não!” em setembro de 2018, os protestos contra os cortes na educação superior em maio de 2019 e, mesmo em meio à pandemia do Covid-19, protestos antifascistas em 2020 e manifestações de repúdio ao chefe do executivo federal em 2021.

Finalmente, temos assistido a um conjunto de fenômenos políticos e protestos que não parecem caber bem na díade esquerda versus direita, em especial as revoltas ambíguas, nos termos de Rosana Pinheiro-Machado[1]: parte importante de manifestantes e protestos durante as Jornadas de 2013, em especial na sua fase massiva; os rolezinhos de jovens das periferias no final de 2013 e início de 2014; e a “revolta da caçamba” – greve de caminhoneiros – em 2018.

O presente dossiê, “As dimensões educativas da luta: saberes e aprendizados da e na militância política”, que temos a honra de apresentar, não pretende, nem poderia, dar conta de resolver tantos enigmas. Mas, a partir de um olhar aguçado sobre as práticas formativas em meio às lutas, protestos e o cotidiano da militância política, esperamos oferecer algumas chaves para a compreensão de tantas questões desafiadoras. Os artigos aqui reunidos enfrentam estes desafios principalmente por meio de pesquisas empíricas relativas à atualidade, mas também o fazem na forma de pesquisas empíricas que avaliam processos mais prolongados de socialização política, assim como, finalmente, estudos teóricos e sínteses bibliográficas. Trazem um amplo conjunto de temas específicos e sujeitos de pesquisa, assim como referências teóricas e categorias de análise. Tal proficuidade e diversidade nos parecem salutares e mesmo necessárias em tempos de bifurcação da história política.

Sim, há uma concentração temática dos artigos no tópico juventude e participação política, destacando-se o movimento das ocupações estudantis no Brasil em 2015 e 2016. Temos 10 artigos que abordam este tópico. Metade, ou seja, 5 artigos, tratam especificamente das ocupações de instituições educacionais públicas em Goiânia[2], Baixada Fluminense/RJ[3], Francisco Beltrão/PR[4], Chapecó/SC[5] e no estado do Paraná[6], sempre a partir de pesquisas de campo, normalmente por meio de entrevistas com jovens que ocuparam escolas e universidades. Os outros 5 artigos deste tópico têm maior abertura temática, ajudando a compreender os diversos caminhos que a relação entre jovens e política tem percorrido na atualidade, quase todos via pesquisa empírica, ao tratar de: coletivos juvenis nas periferias paulistanas[7]; a participação de jovens em organizações liberais em Campina Grande-PB[8]; estudantes secundaristas com opiniões políticas conservadoras no Rio Grande do Sul[9]; e a forma como estudantes do Ensino Médio na Argentina têm enfrentado os desafios da pandemia do Covid-19[10]. Um artigo de síntese da produção bibliográfica sobre participação política e engajamento de jovens completa este primeiro grande tópico do dossiê[11].

Outro conjunto de artigos versa sobre o que podemos denominar de movimentos urbanos – incluindo o movimento sindical, a luta pela moradia e a luta pela mobilidade urbana. São 4 artigos: dois deles tratam do movimento sindical implicado em uma série de aprendizados e saberes mais amplos, ao focar a história de ex-metalúrgicos do ABC paulista[12] e de suas famílias[13]. Outro foca as trajetórias e as militâncias de mulheres no Movimento dos Trabalhadores Sem-teto (MTST)[14]. Enfim, temos um artigo que trata da militância no coletivo Tarifa Zero, de Belo Horizonte-MG[15].

Finalmente, há um artigo de caráter teórico, tratando da relação entre comportamento político e conscientização, com base no marxismo[16]. Na verdade, o já citado artigo sobre a revisão bibliográfica relativa à participação política e engajamento de jovens também poderia caber aqui. Ambos os artigos nos alertam sobre a importância de cotejar nossas pesquisas de campo – tão preocupadas com o atual e o emergente – com o que já têm sido produzido, refletido e teorizado no campo da participação e formação política.

Os artigos fazem uso de diversos referenciais teóricos, como anunciado. Parte relevante deles fez uso da mais clássica, mas ainda necessária, discussão a respeito da socialização política. Mas a própria socialização política foi abordada de forma inventiva e aberta, cotejando as influências dos processos formativos no interior das instituições socializadoras – em destaque, família e escola – com o contexto sociopolítico e as experiências de participação.

Esta abertura no uso da análise da socialização política tem sido importante para compreender melhor as descontinuidades ou os desenvolvimentos inesperados do comportamento político das novas gerações – sem contar as alterações vertiginosas da opinião política das próprias gerações adultas. No dossiê, destaca-se o comportamento político de adolescentes do Ensino Médio, tanto no movimento das ocupações – o mais largamente tratado aqui –, quanto na adesão a valores liberais e conservadores. Entretanto, o inesperado ou o não trivial na participação política foi abordado também por outros conceitos, categorias e referenciais. Alguns são igualmente clássicos, como a experiência de classe segundo E. P. Thompson, a memória por Walter Benjamin, a geração segundo Mannheim e a consciência segundo o marxismo, enquanto outros são mais contemporâneas, como a experiência em Larrosa e a sociologia das emoções.

Metodologicamente, como dito, 13 artigos são fruto de investigações empíricas, enquanto 2 são sínteses bibliográficas. Sobre as pesquisas empíricas, parte delas teve de se adequar ao estado de calamidade sanitária criado pelo coronavírus e a irresponsabilidade de governos e diversos setores da sociedade civil. Adaptações diversas foram necessárias, como entrevistas de forma remota ou a passagem da observação participante à netnografia. Na verdade, a própria pandemia foi o tema principal de um dos artigos – sobre os estudantes de ensino médio na Argentina – e o tema secundário de outro – sobre os coletivos da periferia paulistana.

Do ponto de vista da abrangência territorial, afora o artigo teórico sobre consciência e comportamento político segundo o marxismo, apenas um artigo não tratou de casos empíricos no Brasil – o artigo sobre estudantes do Ensino Médio na Argentina. Quanto aos demais, tenderam a se concentrar, como tende a ser comum na produção científica brasileira, em casos do Sudeste (6 artigos) e do Sul (3). Entretanto, fizeram-se representar o Centro-Oeste e o Nordeste, cada qual com um artigo.

Esta distribuição territorial tendeu a se replicar na distribuição institucional. Das autorias, contando autoras/autores e coautoras/coautores, 3 foram do exterior – duas da Argentina e um de Portugal. Quanto às do Brasil, 14 autorias foram de instituições do Sudeste, 7 do Sul, 4 do Centro-Oeste e 2 do Nordeste. Uma das autorias é vinculada a uma instituição da sociedade civil sem fins lucrativos, o Instituto Vladimir Herzog, enquanto todas as outras se vinculam a universidades públicas, incluindo as três do exterior (Instituto Universitário de Lisboa, Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais e Universidad Nacional de La Plata).

Ao final, gostaríamos de reforçar as contribuições diversas deste dossiê. Primeiro, teoricamente, em esforço de recapitulação e renovação de categorias, conceitos e referências – inclusive nos artigos empíricos –, em análises e sínteses que recuperam campos clássicos das Ciências Humanas – como o marxismo e as teorias da socialização política –, bem como fazem o balanço de produções sobre o comportamento político e as formas de engajamento. Segundo, pelo esforço de analisar dados colhidos empiricamente sobre trajetórias políticas e a influência de participação em movimentos sociais na vida atual de pessoas outrora engajadas e de suas famílias, implicando em um olhar mais alargado no tempo.

Supostamente em contraponto, mas, na verdade, como seu complemento, temos pesquisas empíricas sobre adolescentes e jovens nos dias atuais – via memória de participação em protestos sociais progressistas, ou via relatos sobre a adesão a ideologias ou organizações de direita, ou ainda via o esforço pela sobrevivência em coletivos ou na resposta aos desafios da pandemia. Elas são, como já foi dito, a grande maioria das investigações aqui relatadas. Os pés e os olhos que se fincam nos protestos e engajamentos contemporâneos apoiam ambas as contribuições citadas anteriormente: teorias e categorias clássicas e contemporâneas são cotejadas aos dados empíricos, quase sempre de modo não-ortodoxo, revitalizando as clássicas e testando as contemporâneas; iluminam-se novas experiências políticas e formativas na atualidade, oferecendo-se bases e categorias que serão importantes para acompanhar as trajetórias de tais jovens, tanto quanto para compreender possíveis reenquadramentos dos protestos políticos da população brasileira e latino-americana.

Fica o convite à leitora e ao leitor para conhecer melhor os artigos deste dossiê, organizado com o carinho de quem deseja compartilhar pesquisas de jovens e experientes pesquisadoras e pesquisadores, assim como com a esperança de que o conhecimento sobre os modos como as pessoas têm se formado – e até de-formado – politicamente na atualidade possa orientar lutas pela defesa das tão ameaçadas democracias na América Latina.

Referências

Pinheiro-Machado, R. (2019). Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e as possíveis rotas de fuga para a crise atual. Planeta do Brasil.

Munhoz Sofiati, F., Domingos Costa Marques, J. E., & Resende Ferreira, J. R. (2021). Ocupações secundaristas em Goiânia: formação e experiências políticas das/os jovens. Linhas Críticas, 27, e36308. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36308/29279

Alves, A., & Groppo, L. A. (2021). Narrativas, memórias e experiências: o processo de ocupação estudantil na Baixada Fluminense. Linhas Críticas, 27, e36242. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36242/29955

David, F. M., & Martins, S. A. (2021). As ocupações secundaristas em Francisco Beltrão-PR – 2016: fazer-se e experiências. Linhas Críticas, 27, e36442. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36442/29739

Simões, W. (2021). Ocupações secundaristas em Santa Catarina: experiência e (auto)formação política. Linhas Críticas, 27, e36759. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36759/29544

Fayet Sallas, A. L., & Meucci, S. (2021). “O melhor medo da minha vida” - emoções nas ocupações estudantis. Linhas Críticas, 27, e36528. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36528/30116

Corrochano, M. C., & Laczynski, P. (2021). Coletivos juvenis nas periferias: trabalho e engajamento em tempos de crise. Linhas Críticas, 27, e36720. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36720/29688

Salles, T., & Franch, M. (2021). Pela via dos afetos: experiência universitária na trajetória política de jovens liberais. Linhas Críticas, 27, e36531. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36531/30387

Severo, G. R., Weller, W., & Araújo, G. C. (2021) Jovens de direita e extrema-direita: posicionamentos políticos no ensino médio. Linhas Críticas, 27, e 36319. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36319/30482

Otero, E. Nuñes, P. Quinzani, G. (2021). Ciudadanía y escuela secundaria en Buenos Aires (Argentina) durante la pandemia covid-19. Linhas Críticas, 27, (no prelo)

Pontes Sposito, M., De Souza Tarábola, F., & Ginzel, F. (2021). Jovens, participação política e engajamentos: experiências e significados. Linhas Críticas, 27, e36719. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36719/30058

Valdivino Silva, M. G. (2021). Socialização e ressocialização política entre ex- trabalhadores metalúrgicos do ABC Paulista. Linhas Críticas, 27, e36547. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36547/30158

Santos Junior, J., & de Menezes, M. A. (2021). Educação e trabalho em famílias de ex-metalúrgicos(as). Linhas Críticas, 27, e36527. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36527/29211

Carvalho-Silva, H. H. de, & Tomizaki, K. (2021). Os aprendizados da luta política: trajetórias militantes das mulheres no MTST. Linhas Críticas, 27, e36690. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36690/29699

Moreira Oliveira, I. T., & Magela Pereira Leão, G. (2021). Horizontes da luta pelo transporte público universal: a experiência do Tarifa Zero. Linhas Críticas, 27, e36336. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36336/29155

Soares da Silva, A., & Euzébios Filho, A. (2021). Marxismo, consciência e comportamento político. Linhas Críticas, 27, e36500. https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36500/29569

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