Artigos

A bordo do Guaspari

On board of the Guaspari building

Raquel Rodrigues Lima
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil
Anna Paula Canez
Centro Universitário Ritter dos Reis, Brasil
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

A bordo do Guaspari

Arquitetura Revista, vol. 14, núm. 1, pp. 41-47, 2018

Unisinos

Recepción: 31 Julio 2017

Aprobación: 02 Abril 2018

RESUMO: O presente artigo apresenta parte do processo trilhado pela modernidade da cidade de Porto Alegre, em meados dos anos de 1930, por meio da análise do edifício Guaspari, projetado por Fernando Corona, em 1936, e a sobreposição de tempos ao longo da existência deste edifício. O grande evento da Exposição Comemorativa do Centenário da Revolução Farroupilha, em 1935, e a construção de edifícios com volumes puros e fachadas desprovidas de ornamentações são alguns dos indícios da chegada dos novos tempos à capital gaúcha. O edifício Guaspari possui uma luz própria, que condensa o espírito da década de trinta, como uma das reminiscências dos pavilhões efêmeros da Exposição, permanecendo no imaginário da cidade. A referência do navio esteve presente tanto na arquitetura de Le Corbusier como no expressionismo, particularmente nos trabalhos de Mendelsohn. Com maior ou menor intensidade, o edifício Guaspari lembra a engenharia naval, com a intenção de traduzir arquitetonicamente as leis do movimento, como se flutuassem no mar do fluxo das pessoas e carros, ou acompanhassem o seu movimento. A história do edifício Guaspari é composta por três fases: a primeira consiste na elaboração, articulação de referências, aprovação e construção do projeto arquitetônico – ancorado; a segunda registra o edifício submerso em luxalon por longo período, totalmente irreconhecível – encoberto; e a terceira, o ressurgimento do Guaspari no centro de Porto Alegre – à vista.

ABSTRACT: This article presents part of the process of the modernity of the city of Porto Alegre in the mid-1930s through the analysis of the Guaspari building, designed by Fernando Corona in 1936, and the overlapping of times throughout the existence of this building. The great event of the Farroupilha Revolution’s Centennial Exhibition in 1935 and the construction of buildings with pure volumes and façades devoid of ornamentation are some of the indications of the arrival of the new times in the capital of Rio Grande do Sul. The Guaspari building has a light of its own that condenses the spirit of the thirties, as one of the reminiscences of the Exhibition’s ephemeral pavilions, remaining in the imaginary of the city. The reference of the ship was present both in the architecture of Le Corbusier and in expressionism, particularly in the works of Mendelsohn. With more or less intensity, the Guaspari building resembles naval engineering, with the intention of translating the laws of motion architecturally, as if they were floating in the sea of the flow of people and cars or accompanying their movement. The history of the Guaspari building has three phases: the first consists in the elaboration, articulation of references, approval and construction of the architectural project – anchored; the second registers the building submerged in luxalon for a long period, totally unrecognizable – covered; and the third registers the resurgence of the Guaspari building in center of Porto Alegre – in sight.

Keywords: Fernando Corona, Guaspari Building, modern architecture in Porto Alegre.

Palavras chave: Fernando Corona, Edifício Guaspari, arquitetura moderna em Porto Alegre

A bordo

A modernidade apresenta os primeiros vestígios na cidade de Porto Alegre nos anos de 1930. O grande evento da Exposição Comemorativa do Centenário da Revolução Farroupilha, o início da verticalização da cidade e a construção de edifícios com volumes puros e fachadas desprovidas de ornamentações são alguns dos indícios da chegada dos novos tempos à capital gaúcha. O edifício Guaspari (1936), de Fernando Corona, é um dos representantes dessa modernidade.

Fernando Corona4 partiu de Santander, na Espanha, chegando a Porto Alegre em 1912 para se encontrar com seu pai, que residia e trabalhava nesta cidade. Contava, então, com 16 anos de idade e tinha apenas o curso primário, um ano e meio do secundário e alguma experiência em desenho. Seu pai, arquiteto e escultor, Jesus Maria Corona, partira da Espanha em 1909, permanecera por um ano em Buenos Aires e logo foi contratado por João Vicente Friederich, pelo período de três anos, para trabalhar em sua oficina de escultura em Porto Alegre.

Ao lado do pai, no ambiente de trabalho de Jesus Maria Corona, surgiram as primeiras oportunidades de aprendizagem, que foram importantes na formação de Fernando Corona. Alguns de seus trabalhos, naquele momento, foram ampliações de ornatos e decorações de fachadas para projetos dos arquitetos Manoel Itaqui e Theo Wiederspahn. Durante alguns anos, de 1914 a 1926, Corona trabalhou como escultor-decorador na firma de seu pai, denominada Corona e Guiringuelli.

A mais expressiva contribuição de Corona, entretanto, foi à importante firma construtora Azevedo Moura e Gertum, sediada em Porto Alegre, onde, em um período de 20 anos, desenvolveu larga produção arquitetônica. Contratado em 1926, Fernando Corona trabalhou ao lado de arquitetos de diferentes nacionalidades, entre eles o austríaco Egon Weindorfer e o italiano Agnelo de Lucca. As equipes organizavam-se conforme as especificidades de cada profissional, valorizando a elaboração de plantas baixas, cálculo de estruturas e projeto e execução de fachadas. O papel do profissional frentista, que elaborava a fachada após as plantas baixas concluídas, ocupado por Corona em muitas das obras da firma, era corrente na época (Figuras 1 e 2).

Fernando Corona, Porto Alegre. Figure 1. Fernando Corona, Porto Alegre.
Figura 1
Fernando Corona, Porto Alegre. Figure 1. Fernando Corona, Porto Alegre.
Fonte: Corona, [s.d.]a.

Manuscritos de Fernando Corona em forma de diário, Porto Alegre, Tomo II. Figure 2. Manuscripts of Fernando Corona in diary form, Porto Alegre, Volume II.
Figura 2
Manuscritos de Fernando Corona em forma de diário, Porto Alegre, Tomo II. Figure 2. Manuscripts of Fernando Corona in diary form, Porto Alegre, Volume II.
Fonte: Corona, [s.d.]b.

A partir de então, em meados de 1945, Corona conheceu as novas normas contemporâneas arquitetônicas, apresentadas no edifício do Ministério de Educação e Cultura, no Rio de Janeiro, e na Pampulha, em Belo Horizonte. E, com o intuito de manter-se atualizado, adquiriu toda a bibliografia de Le Corbusier.

Influenciado por Oscar Niemeyer e Lucio Costa, em 1948, Corona projetou, em Porto Alegre, dois edifícios residenciais: o edifício residencial João Ibañez e, dois anos depois, a residência Guilhermino Cesar, ambos em estilo colonial brasileiro, ou neocolonial.

Pouco a pouco, Corona foi aprendendo os ensinamentos modernos e, no edifício Jaguaribe, de 1951, também residencial, aplicou alguns dos princípios utilizados por Le Corbusier na Unidade de Habitação.

Para coroar tal processo, no ano de 1952, Corona entrava numa velha casa da Rue de Sèvres número 35, onde, no primeiro andar, numa sala estreita e comprida, estava instalado o atelier do grande mestre de arquitetura contemporânea, Le Corbusier.

São admiráveis as etapas que Fernando Corona trilhou, especialmente como autodidata. Desde sua chegada a Porto Alegre, em 1912, muita arquitetura observou e fez, tendo acompanhado os rumos da arquitetura historicista e eclética, em que imperavam os conceitos acadêmicos que poderíamos chamar de tradicionais, especialmente vista aquela arquitetura frente à arquitetura moderna que se impunha. Apesar disso, acompanhando os novos conceitos contemporâneos da arquitetura, Corona inova com contribuições para a construção da modernidade na cidade que o acolheu. O edifício Guaspari, projetado por Fernando Corona em 1936, reconhecido como um dos primeiros símbolos da modernidade de Porto Alegre, é tombado pelo Patrimônio Histórico Cultural.

Ancorado

Para sentir a arquitetura de um edifício, é necessário sentir o espírito de sua época, observar seus contemporâneos, reconhecer, no seu tempo, a sua história. Dessa forma, pode-se visualizar com olhos mais atentos a sua aura, ou a de seu criador.

O edifício Guaspari, localizado na Avenida Borges de Medeiros esquina com a Rua José Montaury, em Porto Alegre, projetado em 1936 por Fernando Corona, tem essa luz própria que condensa o espírito da década de trinta, cujo maior acontecimento foi a Exposição Comemorativa do Centenário Farroupilha, em 19355, implantada no chamado Campo ou Várzea da Redenção, local que, a partir de então, foi denominado Parque Farroupilha. O espetáculo arquitetônico montado no Campo da Redenção, com um conjunto edificado tão significativo, embora efêmero, não poderia deixar de influenciar os arquitetos mais atentos. Fernando Corona bebeu na fonte luminosa que, aliás, ainda permanece lá, hoje isolada da grandiosa festa da qual fez parte.

A Exposição consistia em uma grande feira industrial e agrícola, de características monumentais, promovida pelo Governo do Estado e realizada a partir do Plano de Embelezamento Várzea, feito pelo arquiteto e urbanista francês Alfred Agache, no início da década de trinta, a pedido da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, e reaproveitado por seus organizadores. Destacam-se, entre eles, o arquiteto da Prefeitura Municipal Cristiano de La Paix Gelbert, que também projetou vários de seus prédios6. Uma exposição monumental, com inúmeros prédios intensamente iluminados com neon, dispostos num grande eixo marcado por monumento, pórtico de entrada e fonte luminosa, culminando no pavilhão da indústria rio-grandense, que chegava a ofuscar os olhos dos visitantes embevecidos com tamanha demonstração de força elétrica e política. Segundo Weimer, o mais expressivo dessa realização foi a variedade de linguagens arquitetônicas empregadas, utilizando exemplos de arquitetura neoclássica, clássica moderna e estilo marajoara, que lembram navio, edifício com a forma de uma descomunal tocha, de influências corbuseanas e, sobretudo, o expressionismo alemão. Weimer lembra, ainda, que o planejamento geral da Exposição se espelhava nos planejamentos de regimes totalitários (Weimer, 1992). Os pavilhões eram efêmeros, com o objetivo de serem demolidos, mas permaneceram no imaginário da cidade em outros locais. O Edifício Guaspari é como uma dessas reminiscências.

De um extremo a outro, Erich Mendelsohn referiu-se, numa conferência a respeito de sua obra, em 1923, ao edifício Mosse não como um espectador indiferente ao zumbido dos carros, nem ao fluxo e refluxo do tráfego, mas como um elemento que havia se transformado em receptor e participante do movimento que o rodeava (Pehnt, 1975). Essa descrição do edifício, realizado em Berlim no ano de 1923, é bastante pertinente para introduzir o trabalho de Fernando Corona no edifício Guaspari. Situado no centro histórico de Porto Alegre, voltado para a avenida Borges de Medeiros, com suas esquinas suavemente arredondadas, é algo muito parecido com o edifício Mosse de Mendelsohn e outras de suas obras, como Peleteria C. A. Herbichi, de 1924, na mesma cidade, e as lojas Petersdorff, em Breslau, de 1927 (Zevi, B. 1984). Existe uma inevitável correlação entre não só essas obras, mas outras do expressionismo alemão e do futurismo italiano com alguns dos pavilhões da Exposição de 35: em particular com o pavilhão que abrigou o cassino de Cristiano de La Paix Gelbert e o pórtico de entrada de Franz Filsinger.

Na conferência em que fez a descrição citada, referindo-se ao edifício Mosse, Mendelsohn acrescentou, em tom de brincadeira, que o mesmo ficou conhecido em seu escritório como o transatlântico “Mauritânia afundado em Berlim Oeste”. Mizoguchi (Xavier e Mizoguchi, 1987, p. 44), ao descrever o cassino da Exposição de 35, de Gelbert, diz ser o pavilhão “concebido segundo um vocabulário de inspiração nitidamente expressionista, onde predominam os elementos figurativos derivados da engenharia naval”; por extensão, pode-se incluir nessa descrição o pórtico de entrada de Filsinger. Com mais ou menos intensidade, esses edifícios lembram a engenharia naval, mas, de qualquer forma, o que os une talvez seja a intenção de traduzir arquitetonicamente as leis do movimento, como se flutuassem no mar do fluxo das pessoas e carros, ou acompanhassem o seu movimento.

O expressionismo, segundo Browne (Browne, 1982, p. 33), ecoou fortemente na América Latina a partir da década de trinta, estendendo-se até a metade da década seguinte, sobretudo através da obra de Erich Mendelsohn. Para esse autor: “Se Le Corbusier foi considerado o pai dos jovens arquitetos locais, Mendelsohn seria algo como o tio predileto”, justificando a sua adoção na América Latina pelo êxito pessoal que obteve esse arquiteto de muitas obras publicadas, algumas utópicas, representadas por marcantes croquis de perspectivas diagonais que obscureciam o “desenvolvimento simétrico ao longo de um único eixo [...], um resíduo acadêmico que agradeciam os pioneiros locais”. Browne justifica, ainda, a penetração da estética expressionista como uma saída “mais apropriada que o rígido racionalismo para realçar edifícios de importância. Aumentava o potencial semântico dos edifícios em um marco cultural que associava com metáforas estilísticas óbvias”. As afirmações de Browne aparecem ilustradas por vários edifícios de influência expressionista na América Latina; entre eles, destaca-se pelo pioneirismo o edifício comercial Oberphauer, de 1930, de Sergio Larrain G. M. e Jorge Arteaga, construído em Santiago do Chile, inspirado nas obras de Mendelsohn. A semelhança deste com o edifício Guaspari assinala e reforça a inserção do expressionismo mendelsohniano, também no Sul do Brasil, através da obra de Corona.

Encoberto

No projeto arquitetônico do edifício Guaspari, aprovado em 1936 pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, consta material diferenciado daquele do edifício construído, de acordo com a verificação feita em três processos distintos. O primeiro deles consta de um conjunto formado por cinco plantas-baixas das lojas – porão, térreo, galeria, primeiro e segundo pavimentos; planta-tipo com quatro unidades residenciais e grande terraço do sétimo ao décimo primeiro pavimento; planta-baixa do décimo segundo pavimento com uma unidade residencial e terraço; planta baixa do décimo terceiro pavimento com uma unidade residencial. O segundo processo contém um único corte longitudinal, mostrando os treze pavimentos. O terceiro processo consta de planta-baixa da loja no andar térreo; planta-baixa do primeiro ao terceiro pavimento de sobrelojas; planta-baixa do terraço e telhado, e fachada voltada para a avenida Borges de Medeiros.

O primeiro projeto, que inclui os dois primeiros processos, além da diferença quanto ao número de pavimentos, chama atenção por não possuir as esquinas arredondadas; também guarda diferenças no volume central vertical no eixo da composição – hall de entrada e acesso aos elevadores e escada.

O último projeto aprovado, embora semelhante ao construído, apresenta diferença no número de pavimentos e também no volume central que marca o acesso principal, configurando-se em composição que segue a horizontalidade do restante do edifício. O Guaspari foi construído em terreno público, com o compromisso da demolição do imóvel estabelecido entre a Prefeitura Municipal e o proprietário.

Algumas fontes alegam que este edifício para lojas e apartamentos foi construído em local público, tendo sido firmado entre a Prefeitura Municipal e o proprietário do imóvel compromisso de demolição, quando vencida cessão temporária do terreno. Em 1943, o então prefeito Antonio Brochado da Rocha, pretendendo remodelar a Praça XV de Novembro, fronteira, cogitou de sua demolição e do Malakoff, contíguo, não efetivando, porém, a ideia (Xavier e Mizoguchi, 1987, p. 47).

Com o passar do tempo, o termo de compromisso firmado com a Prefeitura desapareceu de seus arquivos, impedindo a demolição do Guaspari. De qualquer forma, não existe qualquer indício de construção temporária. É necessário lembrar, corrigindo Mizoguchi, que, embora tendo sido primeiramente projetado para uso residencial e comercial, no mesmo ano foi modificado para atender um uso exclusivamente comercial, e assim foi construído. Pelas razões levantadas, o edifício foi implantado em terreno exíguo, voltado para a avenida Borges de Medeiros, ocupando toda a extensão do quarteirão que faz frente para essa avenida, limitado na sua divisa de fundos com o edifício Malakoff, construção de exceção do final do século XIX.

Um outro aspecto desse período foi o desenvolvimento do comércio, representado pelas lojas no andar térreo, e habitações nos demais. Exceção deve ser feita ao edifício Malakoff, de uso exclusivamente comercial, cuja característica tipológica era basicamente colonial, mas com dimensões maiores e a presença do frontão neoclássico (Souza, 1992, p. 12).

O edifício Malakoff, vizinho ao Guaspari, onde hoje está o edifício Delapiev, com características ainda coloniais, mas que tomava ares de grandeza com o frontão neocolonial e altura considerável para o final do século XIX (térreo mais três pavimentos), talvez tenha influenciado este projeto aprovado na prefeitura, de mesma altura, conformando o quarteirão. Na planta-baixa do térreo do edifício Guaspari, o edifício Malakoff é mencionado, sugerindo uma preocupação do seu autor com o contexto imediato (Figura 3).

Edifícios Guaspari e Malakoff, Porto Alegre, Vista do Paço Municipal. Figure 3. Guaspari and Malakoff Buildings, Porto Alegre, View of the City Hall.
Figura 3
Edifícios Guaspari e Malakoff, Porto Alegre, Vista do Paço Municipal. Figure 3. Guaspari and Malakoff Buildings, Porto Alegre, View of the City Hall.
Fonte: Edifícios Guaspari e Malakoff, [s.d.].

O edifício Guaspari, implantado em sítio de dimensões incomuns quando se considera a trama urbana do centro de Porto Alegre, apresenta a dimensão generosa de cinquenta metros, paralelamente à avenida Borges de Medeiros, e dimensões reduzidas e variáveis, transversalmente à mesma avenida – quatro metros e oito metros. Apresenta-se ocupando todo o terreno em volume único, com clara preocupação com a conformação do quarteirão em continuum edificado, com suas esquinas arredondadas voltadas também para o espaço hoje denominado Largo Glênio Peres e para a rua José Montaury.

A análise do edifício Guaspari aponta que, por trás de sua linguagem expressionista, encontra-se uma retórica compositiva bastante clássica, típica dos projetos de Corona. O acesso principal – hall de entrada e acesso à circulação vertical, elevadores e escada – no eixo transversal simétrico à sua composição é marcado pelo contraponto vertical de maior altura com os braços que abarcam o quarteirão. A horizontalidade perseguida na sua fachada é obtida pelos peitoris marcados volumetricamente pelas esquadrias levemente recuadas. A transição da horizontalidade e verticalidade da fachada é dada pela pequena saliência dos braços horizontais, interrompidos pelo volume central levemente recuado, diferenciado no tratamento da massa construída com maior proporção de cheios em detrimento dos vazios (Figura 4).

Edifício Guaspari e avenida Borges de Medeiros, Porto Alegre, enchente de 1941, sequência cronológica. Figure 4. Guaspari Building and Borges de Medeiros Avenue, Porto Alegre, 1941 flood, chronological sequence.
Figura 4
Edifício Guaspari e avenida Borges de Medeiros, Porto Alegre, enchente de 1941, sequência cronológica. Figure 4. Guaspari Building and Borges de Medeiros Avenue, Porto Alegre, 1941 flood, chronological sequence.
Fonte: Silva, 1941.

A estrutura de concreto é rigidamente modulada com uma linha de pilares de cinco em cinco metros, independente da parede, paralela ao alinhamento do terreno e outra linha de pilares, embutida na parede, acompanhando a inclinação do terreno em sua divisa de fundos, sendo que as vigas acompanham a malha formada pelos pilares. Os pavimentos superiores, com pequeno balanço em relação ao térreo, têm suas fachadas libertas pela estrutura independente. O pavimento térreo é conformado pelos pilares e, entre eles, os grandes panos de vidro, formando as vitrines da loja, com bandeiras abaixo da marquise, percorrendo toda a sua extensão. Esse conjunto de soluções, formado pela transparência, pelos pilares e consequente sombreamento, desperta a sensação, descrita no início deste texto, de que o edifício flutua entre o mar de pessoas e veículos (Figura 5).

Edifício Guaspari e avenida Borges de Medeiros, Porto Alegre, enchente de 1941, sequência cronológica. Figure 5. Guaspari Building and Borges de Medeiros Avenue, Porto Alegre, 1941 flood, chronological sequence.
Figura 5
Edifício Guaspari e avenida Borges de Medeiros, Porto Alegre, enchente de 1941, sequência cronológica. Figure 5. Guaspari Building and Borges de Medeiros Avenue, Porto Alegre, 1941 flood, chronological sequence.
Fonte: Silva, 1941.

À vista (liberto)

O tema do barco esteve presente, tanto no expressionismo, particularmente nos trabalhos de Mendelsohn, como na arquitetura de Le Corbusier. Pode-se até dizer que os “cinco pontos” estavam seriamente contaminados figurativamente pela estética náutica. Se, na obra de Le Corbusier, as regras compositivas da tradição acadêmica são reinterpretadas e adaptadas a novas soluções arquitetônicas evidenciadas nos cinco pontos, os pilotis, ao contrário da base clássica, separam o piano nobile, liberando o solo; a janela horizontal e contínua, fenêtre en longueur, substitui a janela vertical, ritmicamente marcada; o terraço-jardim substitui o ático ou o coroamento em telhado inclinado; a fachada tem composição livre em substituição à rigidez compositiva; a planta livre, por fim, com a estrutura independente, não está mais condicionada pela superposição das paredes (Colquhoun,1981).

No edifício Guaspari, Corona subverte, de maneira cautelosa, as mesmas regras clássicas de composição. Os pilares de base circular propostos para o térreo da loja separam e distinguem o piano nobile, já não é a base clássica, e não são os pilotis; as esquadrias do corpo do edifício que conferem um efeito contínuo e horizontal, na verdade, são interrompidas na sua continuidade por saliências da alvenaria; o terraço não é jardim e seu uso não é evidenciado, com parte da cobertura em telhado escondido; a fachada regida pela simetria não é livremente composta, mas subordina-se a ela; a planta, finalmente, é livre, permitindo um livre arranjo de distribuição (Figura 6).

Edifício Guaspari e avenida Borges de Medeiros, Porto Alegre, sequência cronológica. Figure 6. Guaspari Building and Borges de Medeiros Avenue, Porto Alegre, chronological sequence.
Figura 6
Edifício Guaspari e avenida Borges de Medeiros, Porto Alegre, sequência cronológica. Figure 6. Guaspari Building and Borges de Medeiros Avenue, Porto Alegre, chronological sequence.
Fonte: Silva, [s.d.].

Corona conferiu ao edifício um forte ar de modernidade, presente no efeito contínuo, obtido na resolução das esquadrias; na fluidez continuada pelas esquinas arredondadas; na analogia náutica da máquina como símbolo da nova arquitetura; na transparência do térreo, que permite antever a planta livre; na ausência de decorações aplicadas, derivadas dos estilos históricos e na consequente economia de meios. No entanto, de maneira tradicionalmente clássica, utilizou-se da simetria axial e frontalidade, cuja modernidade e tradição derivam de forte influência mendelsohniana.

De acordo com a ordem cronológica de entrada de processos de aprovação na Prefeitura Municipal de Porto Alegre, pode-se concluir que o edifício Guaspari foi inicialmente projetado para atender um uso misto – comercial e residencial –, mas, no mesmo ano, ainda em 1936, o projeto foi modificado para abrigar apenas a Loja Guaspari, embora ainda distante do edifício construído. Este, entretanto, possui loja no térreo mais cinco pavimentos.

A história do edifício Guaspari, apesar disso, conta com um período de escuridão. Depois de aproximadamente cinquenta anos fazendo parte da paisagem urbana da área central de Porto Alegre, o prédio, desde o final dos anos de 1980, esteve fechado. Submerso em luxalon, totalmente irreconhecível, foi envolvido por uma estranha pele, que causou a sua desfiguração durante cerca de três décadas.

Finalmente, liberdade será concedida às fachadas com as curvas nas extremidades e às aberturas contínuas do edifício Guaspari. Em 2017, o prédio ressurge na paisagem da avenida Borges de Medeiros. Por meio da iniciativa privada, a renovação do edifício dará espaço novamente ao térreo comercial, três andares destinados a lojas e o restante será explorado por atividades gastronômicas. À vista, o edifício Guaspari retorna ao Centro Histórico da cidade (Figuras 7 e 8).

Edifício Guaspari e avenida Borges de Medeiros, Porto Alegre, sequência cronológica. Figure 7. Guaspari Building and Borges de Medeiros Avenue, Porto Alegre, chronological sequence.
Figura 7
Edifício Guaspari e avenida Borges de Medeiros, Porto Alegre, sequência cronológica. Figure 7. Guaspari Building and Borges de Medeiros Avenue, Porto Alegre, chronological sequence.
Fonte: Correio do Povo, 30 de julho de 2017.

Edifício Guaspari e avenida Borges de Medeiros, Porto Alegre, sequência cronológica. Figure 8. Guaspari Building and Borges de Medeiros Avenue, Porto Alegre, chronological sequence.
Figura 8
Edifício Guaspari e avenida Borges de Medeiros, Porto Alegre, sequência cronológica. Figure 8. Guaspari Building and Borges de Medeiros Avenue, Porto Alegre, chronological sequence.
Fonte: Barbiero, 2017.

Conclusão

Vale lembrar, para fins de conclusão, embora parcial a respeito de parte do processo trilhado pela modernidade da cidade de Porto Alegre, que o evento da Exposição Farroupilha foi uma importante fonte de inspiração local para arquitetos que produziam arquitetura no sul do Brasil. O edifício Guaspari, para citar um exemplo paradigmático da referida urbe, possui uma luz própria, reunindo o espírito da década de trinta, como uma das reminiscências dos pavilhões efêmeros da Exposição, permanece no imaginário da cidade. Mas esse “tal de Guaspari” navegou muito em águas, ou terras, portalegrenses até tornar-se à vista novamente.

Na publicação (Re)Discutindo o Modernismo, resultado das contribuições apresentadas no I Seminário DOCOMOMO Brasil (Cardoso e Oliveira, 1997), os temas da Caracterização, avaliação e transformação, sugerido por Frederico de Holanda, da Relação ambígua – conservação ou invenção, por Odete Dourado e Modernismo e Patrimônio – Antigo-Moderno e do Novo Antigo, por Márcia Sant’Anna, expressam algumas das preocupações de estudiosos atentos à preservação da arquitetura significante do Moderno. Talvez o edifício Guaspari em suas diferentes fases possa representar a vivência do objeto arquitetônico, característico do modernismo, que, mesmo mantendo relações ambíguas, segue acompanhando movimento do fluxo das pessoas e carros que insistem em dar vida ao Centro Histórico da cidade.

Referências

BARBIERO, J.P. 2017. Edifício Guaspari e avenida Borges de Medeiros. Porto Alegre, Acervo João Barbiero.

BROWNE, E. 1982. Otra Arquitectura en América Latina. México, Gili, 170 p.

CANEZ, A.P.M. 1998. Fernando Corona e os caminhos da arquitetura moderna em Porto Alegre. Porto Alegre, EU; Porto Alegre, Faculdades Integradas do Instituto Ritter dos Reis, 209 p.

CARDOSO, L.A.F.; OLIVEIRA, O.F. de (org.). 1997. (Re) Discutindo o modernismo: universalidade e diversidade do movimento moderno em arquitetura e urbanismo no Brasil. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 301 p.

COLQUHOUN, A. 1981. Essays in Architectural Criticism: Modern architecture and historical change. Cambridge, MIT Press; The Beaux Arts and Plan, p. 161-168.

CORONA, F. [s.d.]a. Acervo do Instituto de Belas Artes. Porto Alegre.

CORONA, F. [s.d.]b. Manuscritos de Fernando Corona em forma de diário. Porto Alegre, Acervo da família.

CORREIO DO POVO. 2017. Edifício Guaspari e avenida Borges de Medeiros. Porto Alegre, 30 jul.

EDIFÍCIOS GUASPARI E MALAKOFF. [s.d.]. São Paulo, Acervo Hugo Segawa.

ESKINAZI, D. 1995. Arquitetura e tipologia na exposição comemorativa do centenário Farroupilha de 1935. Porto Alegre, RS. Monografia do Propar. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 39 p.

PEHNT, W. 1975. La Arquitectura Expresionista. Barcelona, G. Gili, 227 p.

SILVA, J.A.F. da. [s.d.]. Edifício Guaspari e avenida Borges de Medeiros. Porto Alegre, Acervo João Alberto/UniRitter.

SOUZA, C.F. 1992. Morfologia e tipologias urbanas. In: S.J. PESAVENTO (org.), O Espetáculo da Rua. Porto Alegre, Editora da Universidade – UFRGS; Prefeitura Municipal de Porto Alegre, p. 11-42.

WEIMER, G. 1992. A arquitetura. Porto Alegre, Editora da Universidade – UFRGS, 143 p.

XAVIER, A.; MIZOGUCHI, I. 1987. Arquitetura moderna em Porto Alegre. São Paulo, Pini, 403 p.

Notas

4 O presente artigo configura-se como um dos subprodutos do estudo a respeito de Fernando Corona e sua obra arquitetônica (Canez, 1997 e 1998).
5 “O evento, conhecido de forma abreviada como Exposição Farroupilha, insere-se em uma década de fortes tensões políticas, na qual pode ser visto como um subproduto da participação estadual nos acontecimentos que marcaram a vida do país no período. Em seu contexto, a Exposição de 35 representou o derradeiro esforço do grande projeto político do Rio Grande Republicano, de condução do Estado de posição de liderança no cenário político-econômico nacional, correspondendo à última manifestação de um ideal regional de remotas raízes históricas que, àquela altura dos acontecimentos, já não apresentava condições reais de viabilização [...] o processo vivido no Estado na década de 30, deixou, através da arquitetura empregada na montagem da Exposição Farroupilha e suas imagens suficientemente poderosas para simbolizarem a república Nova Riograndense, um registro fundamental para a compreensão da história da arquitetura regional do período” (Esquinazi, 1995, p. 1).
6 “Cristiano Gelbert foi o arquiteto da prefeitura responsável por diversos projetos da Exposição e pela fiscalização das obras de superestrutura da mesma, o que incluía o acompanhamento da construção de todos os pavilhões. Foi, portanto, um personagem central da implantação do evento, para o qual exerceu intensa atividade projetual em que se destacaram os [...] pavilhões do Cassino e da Agricultura, particularmente o primeiro que, por outro lado, constitui-se no centro da vida social de Porto Alegre, no período” (Esquinazi, 1995, p. 4).

Notas de autor

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS raquel.lima@pucrs.br Centro Universitário Ritter dos Reis - UniRitter, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS annapaulacanez@yahoo.com.br

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