Artigo

Nova História e Arquitetura Vernácula: diálogos

New History and Vernacular Architecture: Dialogues

Maria Letícia Silva Ticle
Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, Brasil
Marco Antônio Penido Rezende
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Nova História e Arquitetura Vernácula: diálogos

Arquitetura Revista, vol. 14, núm. 2, pp. 115-123, 2018

Unisinos

Recepção: 14 Novembro 2014

Aprovação: 30 Julho 2018

RESUMO: O presente artigo trata de duas áreas do conhecimento acadêmico e, acima de tudo, humano – História e Arquitetura. É uma proposta inicial de cotejamento entre a Nova História e a Arquitetura Vernácula, movimentos que vêm se firmando em seus respectivos campos do saber desde, aproximadamente, a década de 1970. São tratadas a ampliação da perspectiva de análise em ambas e suas aproximações conceituais pelos objetos que tratam: o cotidiano, a vida do cidadão comum. A proposta é de complementaridade e contribuição a partir da apropriação de uma pela outra. Apesar de reconhecidamente interdisciplinares, ainda podem parecer distantes a muitos pesquisadores e estudiosos. O artigo utiliza como base teórica e conceitual escritos de diversos autores, mas sua análise central se aporta em obras de Peter Burke e Thomas Carter e Elizabeth Cromley, respectivamente da História e da Arquitetura.

Palavras-chave: Nova História, Arquitetura Vernácula, interdisciplinaridade.

ABSTRACT: This paper deals with two areas of academic and, above all, human knowledge – History and Architecture. It is an initial proposal of a comparison? between New History and Vernacular Architecture, movements which have been affirming themselves in their respective fields of knowledge since approximately the decade of 1970. The broadening of the perspective of analysis and their conceptual approaches are addressed through the objects that they deal with: the everyday, the average citizen's life. This is a proposal of complementarity based on their appropriation of each other. Although admittedly interdisciplinary, they may still seem distant to many researchers and scholars. The paper uses as theoretical and conceptual basis works by different authors, but its central analysis is based on works by Peter Burke and Thomas Carter and Elizabeth Cromley, from History and Architecture, respectively.

Keywords: New History, Vernacular Architecture, interdisciplinarity.

Introdução

História e Arquitetura, duas áreas bem estabelecidas e firmadas do conhecimento acadêmico, tendem a manter uma relação de troca bastante formal e restrita, deixando os resultados de suas contribuições mútuas aquém de seu vasto potencial. A História pode mais do que fornecer contextos e servir como pano de fundo para visualizar a evolução de estilos e partidos arquitetônicos; a Arquitetura pode ser bem mais do que o patrimônio material legado por gerações anteriores à nossa. Sem desqualificar as contribuições acima citadas, de extrema importância e reconhecidamente necessárias, existem diversas outras a serem mais profundamente exploradas por historiadores, arquitetos e pesquisadores de áreas afins.

Dois campos de estudo, um da História e outro da Arquitetura, foram selecionados para que essa profícua relação pudesse ser demonstrada. Não aleatoriamente, foram eles a Nova História e a Arquitetura Vernácula, movimentos aqui entendidos como produtos culturais e acadêmicos de uma mesma época. Além da interdisciplinaridade intrínseca a ambos, o diálogo é favorecido pela dupla ampliação de perspectivas de análise e suas aproximações conceituais, ampliando e facilitando as possibilidades de contribuições entre eles. Tudo isto a partir do objeto, em certo sentido coincidente, que ambos abordam: o cotidiano e a “vida do cidadão comum” da Nova História, a casa popular (Weimer, 2005) ou “do cidadão comum” da Arquitetura Vernácula.

São utilizados como base teórica e conceitual escritos de diversos autores, mas a análise central do presente trabalho se aporta nas obras de Peter Burke (2011) e Thomas Carter e Elizabeth Cromley (2008), respectivamente da História e da Arquitetura.

Nova História

A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos, se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta de flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas de bois. Com exames de pedras por geólogos e análises de espadas de metal por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que pertence ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem. Toda uma parte, e sem dúvida a mais apaixonante do nosso trabalho de historiadores, não consistirá num esforço constante para fazer falar as coisas mudas, para fazê-las dizer o que elas por si próprias não dizem sobre os homens, sobre as sociedades que as produziram, e para constituir, finalmente, entre elas, aquela vasta rede de solidariedade e de entre ajuda que supre a ausência do documento escrito? (Febvre, 1949 inLe Goff, 1990, p. 428, grifos nossos).

O excerto da obra de Lucien Febvre pode parecer, de início, exagerado, tanto em sua extensão quanto em seu conteúdo. No entanto, exprime muito bem as ideias de uma escola historiográfica que vem se desenvolvendo desde os anos de 1920 e que posteriormente, na década de 1970, irá conformar a chamada Nova História. A Escola dos Annales, como ficou conhecida e difundida após o lançamento do periódico Annales d´histoire économique et sociale, fundado pelo próprio Febvre e Marc Bloch, traz como principal legado à disciplina histórica a ampliação da noção de documento e a maneira como o historiador deve encará-lo. Para além de textos escritos e documentos oficiais guardados em arquivos e cartórios, antes reproduzidos pelo historiador como detentores de verdades sobre o passado, passam a integrar o rol de documentação histórica obras de arte, numismática, discursos e depoimentos orais, artefatos em geral, imagens (estáticas ou em movimento), paisagens, edificações, cidades inteiras. Passam a ser, então, interrogados e interpretados pelo pesquisador, que, consciente de sua própria bagagem cultural, medeia o conteúdo do documento a partir de hipóteses.

No encalço desse legado, a Escola dos Annales integra ainda novos agentes como personagens da trama histórica, antes deixados de lado para dar espaço somente aos nomes políticos, militares e religiosos. A partir de então, inclui também os processos, simbolismos e toda a complexidade que envolve a evolução da vida humana, e não somente fatos e grandes eventos, estes anteriormente compreendidos como marcos fundamentais da trajetória das nações. E era justamente para servir à legitimação da nação que a História era escrita, a História dita positivista (Carlan, 2008). Passa a ser, portanto, uma História voltada para a atuação do homem no tempo e no espaço, uma História humana, que busca compreender o pensamento e as mentalidades de maneira mais aproximada, voltando-se para o cotidiano, para o comum, o ordinário. Nas palavras de Michel de Certeau (1994), observar o cotidiano e contemplá-lo como objeto de estudo seria como “dar voz ao silêncio, dar vida à História” – História crítica e não mais com a pretensão de estabelecer cronologias estáticas.

A historiografia divide a Escola dos Annales em diferentes gerações, sendo a Nova História considerada a terceira delas por muitos estudiosos, como é o caso de Peter Burke (2011). Burke encara o movimento como uma expressão para os desenvolvimentos que tiveram início nas décadas de 1970 e 1980, período de reação à sensação de inadequação dos paradigmas tradicionais do fazer historiográfico. As mudanças que vinham ocorrendo no mundo não mais poderiam ser explicadas a partir dos mesmos questionamentos e das mesmas metodologias de leitura documental. A Nova História é marcada, portanto, por um caráter extremamente interdisciplinar, pois anexa territórios antes alheios aos do historiador, como a Etnologia, a Sociologia, a Demografia (Chartier, 1991). Passam a fazer parte da escrita da História os valores e comportamentos humanos, a experiência comum, a vida cotidiana, a cultura.

Mas como definir a Nova História? Muitos falam de uma História Total, pela liberdade de abrangência do que seriam seus possíveis objetos de estudo; o termo História Estrutural também é amplamente difundido, pelo fato de sua metodologia não se ater a fatos centrais ou eventos pontuais, mas sim à análise das conjunturas e da vida cotidiana das pessoas comuns. Também a acompanha a História Cultural, que trata, afinal, de todos os pontos mencionados anteriormente e que conformam o cotidiano e a vida dos sujeitos comuns, agora também vistos como sujeitos históricos.

Peter Burke também fala da dificuldade de definição do movimento e afirma que ele “está unido apenas naquilo a que se opõe” (2011, p. 10). O autor sugere seis pontos de esclarecimento da diferença entre as metodologias que caracterizavam a disciplina até então e a Nova História, dentre eles os citados acima, os quais serão brevemente elucidados a seguir:

Se as dimensões cotidianas são as da duração – em contraponto às inflexões dos acontecimentos, que interrompem esse fluxo de continuidades – então, exatamente aí, na continuidade, talvez seja possível detectar o que mudou silenciosamente e de modo pouco visível, porque normalizado e rotinizado (Rizek, 2014, p. 63).

O cotidiano, a vida cotidiana e o que muitas vezes é considerado como banal ou trivial funcionam, na perspectiva da Nova História, como chaves explicativas de compreensão essencial;

  1. (iii)

    À regra velada da chamada História “vista de cima” é contraposta a História que agora pode ser “vista de baixo”. O que Burke quer dizer com isso é que, a partir da transgressão de incluir pessoas comuns como atores da História, ficou clara a sua exclusão dos escritos produzidos até então. O interesse crescente dos historiadores na chamada cultura popular e nas mentalidades coletivas demonstra como os grandes nomes, os governantes e seus feitos não são mais os únicos considerados dignos de figurar nas páginas da História. A História “vista de baixo” muda o significado dos acontecimentos a partir de novas perspectivas e contextos;

  2. (iv)

    A necessidade de basear a História em documentos oficiais não era mais uma prerrogativa do trabalho do historiador. A ampliação das fontes, processo que já vinha acontecendo desde os primeiros tempos da Escola dos Annales, é reforçado com a História “vista de baixo”. Os novos atores não mais poderiam ser explorados apenas a partir de documentação oficial de governo, de escritos rebuscados e documentos de Estado. Outros aspectos da vida humana – relações interpessoais, cotidiano, rituais – só poderiam ser acessados a partir de evidências mais amplas, como artefatos de uso pessoal, imagens, escritos pessoais, entre outros;

  3. (v)

    Os acontecimentos não foram esquecidos pelos historiadores e não deixaram de ser objeto de estudo. A variedade de questionamentos não os deixou de lado, deixou apenas de focá-los como únicos possíveis e acrescentou outros, como ações individuais de homens comuns, movimentos coletivos e de grupos específicos.

  4. (vi)

    A objetividade da História é posta em xeque, ou seja, a noção de verdade histórica é rechaçada pelos novos historiadores. O entendimento de que a variedade de fontes e documentos traz múltiplas vozes à produção historiográfica é o próprio relativismo cultural citado no primeiro item. Não há como trazer à tona os fatos acontecidos no passado de forma objetiva, mas sim os discursos variados advindos de pessoas que pertencem a espectros culturais variados.

Jacques Le Goff, um dos expoentes da Nova História, traz uma importante discussão acerca da noção de documento em sua obra intitulada História e memória. O capítulo Documento/Monumento (Le Goff, 1990) pode ser bastante elucidativo quanto às questões relativas às fontes que envolvem o movimento em tela, território ainda pouco familiar à época da publicação da obra. O autor afirma que o monumento é uma herança do passado, já o documento é uma escolha do historiador. Dessa forma, os dois estariam opostos, ainda mais se levarmos em consideração a forma majoritariamente assumida por cada um deles no decorrer da trajetória das sociedades: monumentos como obras comemorativas de arquitetura e escultura, documentos como testemunhos escritos.

Le Goff afirma justamente o contrário: “O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias” (Le Goff, 1990, p. 548, grifo nosso). O autor tenta deixar claro que o que hoje o historiador considera como documento foi, de fato, deixado como legado de uma época que possui um contexto específico de produção que não deve ser ignorado. Como apresentado anteriormente, a revolução documental ocorrida no âmbito da Escola dos Annales e característica marcante da Nova História ampliou a noção de documento para muito além de textos escritos oficiais, principalmente de caráter político.

A cultura material passa a figurar também como importante fonte de produção histórica e historiográfica, o que pode gerar desconfortos nos historiadores. “Seria uma grande ilusão imaginar que a cada problema histórico corresponde um tipo único de documento, especializado para esse uso […]” (Bloch inLe Goff, 1990, p. 540). Tal afirmação de Marc Bloch trazida por Le Goff serve como suporte para suas considerações, reafirmando que não há documento por si só, mas sim a extração de determinada fonte dentre tantas outras possíveis para ser interrogada pelo historiador. A ela é conferido o status de possível testemunho:

A concepção do documento/monumento é, pois, independente da revolução documental e entre os seus objetivos está o de evitar que esta revolução necessária se transforme num derivativo e desvie o historiador do seu dever principal: a crítica do documento – qualquer que ele seja – enquanto monumento. O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa (Le Goff, 1990, p. 545).

Segundo Roger Chartier, “não há práticas ou estruturas que não sejam produzidas pelas representações, contraditórias ou em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles” (1991, p. 177). Por ser monumento, ou seja, herança de um passado e fruto de relações de poder que fizeram com que sua permanência fosse possível como legado de uma época, o documento é também representação. Ou seja, somente a partir da crítica feita pelo historiador o documento torna-se vestígio de um mundo que não mais pode ser acessado, que ficou no passado; o documento é representação na medida em que, ao ser questionado, traz muito da visão de mundo de seu produtor. O sentido dessa representação é atribuído de acordo com a leitura que se faz dela, ou seja, de acordo com o modo de se produzir a História – em determinado tempo, espaço, lugar social.

A Nova História rompeu com o que antes era tido como regra para a boa produção historiográfica. No entanto, o grande número de profissionais que a praticam e sua não marginalização não a isentam de algumas questões problemáticas. Peter Burke (2011) lista alguns desses problemas, como os já elencados em relação às fontes e às explicações dos temas abordados pela Nova História. As dificuldades de definição do próprio movimento, também discutidas no presente trabalho, são acompanhadas das dificuldades em definir alguns de seus objetos mais relevantes, como a cultura popular, o próprio povo, o cotidiano. Afinal, nesse contexto de abordagem ampla no qual as ações humanas, as mentalidades e as práticas estão intimamente ligadas a um contexto maior chamado cultura, o que poderia ser considerado como não sendo cultura ou cultural? Quem é, ou melhor, quem não é o povo na perspectiva da Nova História? Até mesmo o cotidiano, razoavelmente de fácil compreensão quando pensamos nas atividades realizadas no dia a dia, pode ser um pouco mais complexo do que isso.

Apesar de parecer simples, a noção de cotidiano gera possibilidades interpretativas diversas, além de ser a mediação dos processos históricos. Como dito anteriormente, é na escala de tempo do cotidiano, que não existe isolada das escalas das excepcionalidades, que o historiador opera com a longa duração, detectando pequenas rupturas na continuidade, que vão conformando os processos históricos. O que para uns é considerada uma rotina sem sentido ou grandes significados, para observadores externos se configura como verdadeiras práticas culturais. Os rituais, vistos como extraordinários e opostos ao cotidiano, como coloca em discussão Peter Burke, na verdade estão presentes em grande parte de nossas atividades, como as refeições, celebrações e até mesmo práticas de trabalho. E é justamente no cotidiano que as mudanças lentas e profundas ocorrem e dão fôlego aos chamados fatos históricos e aos grandes acontecimentos.

Por último, há os chamados problemas de síntese, decorrentes da fragmentação da disciplina. A “permissividade” da Nova História quanto aos temas e fontes gerou tal entusiasmo entre os historiadores que quase fez com que os acontecimentos fossem completamente excluídos do processo. Burke fala de um movimento contrário ao anterior, em um claro desprezo dos historiadores da cultura pela História política. O cenário atual, no entanto, demonstra maior interesse na inter-relação entre estruturas e fatos, entre cultura e política, entre cotidiano e acontecimentos, o que explica o fato da maior parte da produção historiográfica de fins do século XX e princípio do XXI se encontrar no âmbito da História Cultural (Pesavento, 2003).

Arquitetura Vernácula

A Arquitetura Vernácula é encarada de diferentes maneiras – como um fenômeno, como um campo de estudos, uma metodologia de pesquisa. Uma certeza a seu respeito é sua inserção em estudos referentes à cultura material, já que o objeto de pesquisa em questão se materializa em artefatos específicos produzidos pelo homem e para o homem – edificações. Segundo Carter e Cromley, “estudos de arquitetura vernácula poderiam ser definidos como o estudo das ações e comportamentos humanos que se manifestam na arquitetura comum” (2008, p. xiv)3. Mas é preciso pensar um pouco mais sobre o significado da palavra comum nessa afirmação. Para tanto, é interessante resgatar as origens dessa área da Arquitetura para, então, tentar chegar a uma conclusão a seu respeito4.

Durante os anos de 1970 e 1980, alguns questionamentos se articularam em torno do movimento da Nova História, abordada no item anterior. As novas metodologias e objetos de estudo da disciplina histórica, como as pessoas comuns e seu cotidiano, influenciaram outras áreas de estudo, entre elas a Arquitetura. Desde o século XIX, pesquisadores da História da Arquitetura se dedicavam a estilos construtivos consagrados e a grandes arquitetos e designers, ignorando o enorme contingente de edificações ditas populares (Weimer, 2005) ou típicas de determinadas localidades5. A partir da década de 1970, uma maior gama de edificações passou a ser considerada digna de estudos no âmbito acadêmico. Muitas foram as dificuldades encontradas para definir esse novo campo de pesquisa ainda em processo de sedimentação.

Uma delas foi o próprio termo vernáculo, que, segundo Carter e Cromley, acabou se sobressaindo dentre outras tentativas de definições para os inúmeros exemplos da arquitetura do cotidiano. “Vernácula se tornou o termo utilizado para tudo desde o mais simples ao estranho e excêntrico” (Carter e Cromley, 2008, p. 6). Essa arquitetura do cotidiano poderia ser descrita como aquela permanente ou que se tornou permanente em uma localidade específica, em um determinado recorte de tempo. Se o cotidiano é a própria vida humana, aquilo que há no tempo presente construído na rotina dos anos, a arquitetura é uma excelente forma de visualizar a materialização de certas práticas e costumes da vida e da rotina dos seres humanos.

O termo é uma analogia à linguagem vernácula, aquela que é característica de uma região específica, que não utiliza rebuscamentos, mas é extremamente expressiva do lugar por ser um produto das circunstâncias vividas pela comunidade, ou seja, por ser expressão de sua cultura. Constitui sua identidade, contém valores locais e cotidianos. Segundo Eric Mercer (1979 inCarter e Cromley, 2008), e retomando a ideia lançada no primeiro parágrafo, é simplesmente a arquitetura comum, feita e utilizada pela maioria das pessoas em certo limite espacial e temporal. O termo comum aqui utilizado não tem nenhuma conotação pejorativa, mas se refere ao que é bastante disseminado, existe em grande quantidade e se opõe aos exemplares considerados espetaculares.

Para muitos historiadores da arquitetura tradicional, a separação [entre arquitetura acadêmica e vernácula] foi conveniente porque fez uma distinção clara entre as edificações acadêmicas que eles consideravam válidas para estudo e aquelas, as vernáculas, que poderiam ser ignoradas. […] Para a maioria dos estudiosos americanos, o termo trata de um tipo de arquitetura e de uma abordagem de estudos de arquitetura que enfatiza a íntima relação entre os objetos do dia a dia e a cultura, entre construções comuns e pessoas (Carter e Cromley, 2008, p. 7).

Assim como Peter Burke discorreu sobre as dificuldades de definição da Nova História e das várias oposições feitas para tentar explicá-la, Upton e Vlach (1986) afirmam que a literatura que trata da Arquitetura Vernácula é cheia de negativas. Há uma tendência de compreendê-la intuitivamente que passa mais pela percepção do que ela não é do que pelo que é. A Arquitetura Vernácula não trata de expoentes, não se interessa pelas grandes obras, nem mesmo pelos grandes arquitetos; o vernáculo não se preocupa em distinguir estilos ou nomeá-los; a Arquitetura Vernácula não se concentra no trabalho de uma só pessoa, mas nas soluções comunitárias e cotidianas; ela não se volta para as construções como obras de arte, mas para a dimensão social da Arquitetura. “O termo vernáculo marca a transição do desconhecido para o conhecido” (Glassie, 2000, p. 20).

Tamanha abrangência é, ao mesmo tempo, o ponto forte e o ponto fraco da Arquitetura Vernácula. Causa a dificuldade de definição do campo e da escolha de objetos de estudo, mas possibilita uma rica leitura acerca da cultura de uma comunidade, observada a partir de suas práticas construtivas. No entanto, nem toda e qualquer construção fomenta reflexões, mas sim aquelas que se encaixam nas características mencionadas em tela, ou seja, exemplares lidos enquanto representação cultural de determinado grupo em determinado contexto.

A Arquitetura Vernácula está em constante mudança, o que para uns pode representar um dificultador das análises, e para outros o foco dos estudos sociais e culturais. As mudanças sinalizam novas necessidades ou mesmo o acesso a novas informações e materiais, pois o vernáculo também se concentra nos materiais utilizados.

Uma das causas para a Arquitetura Vernácula ser típica de um lugar e expressão da vida comunitária é o fato de usar, prioritariamente, matéria-prima disponível nas proximidades dos locais das construções. Além de não seguir nenhum tipo de projeto previamente estabelecido, os materiais utilizados pelo construtor, que também não é especialista nessa atividade, são aqueles que estão à mão, manipulados por seus pais e avós e pelos pais e avós dos demais integrantes da comunidade. O conhecimento adquirido através da tradição oral, da observação e da prática coletiva é o principal substrato da Arquitetura Vernácula e faz dela importante e reconhecido campo de pesquisa acadêmica. Portanto, o processo que leva à materialidade das edificações não é menos importante do que elas próprias, mas tem protagonismo nos estudos e reflexões.

Esse conhecimento é fruto de estratégias e adaptações que se dão em conjunto, estabelecendo permanências e gerando mudanças. As demandas e necessidades sociais apontam para continuidades ou rupturas:

[…] uma tecnologia construtiva cara ou demorada poderia ser abandonada quando uma produção de massa equivalente se torna disponível, por exemplo. Mais comuns são os métodos de adicionar novas técnicas ao antigo repertório. Algumas novas ideias são adotadas quando complementam uma função que não é cumprida por nenhuma prática vernácula existente, outras vezes quando não interferem em nenhum hábito estabelecido. Outras ideias são adotadas quando são análogas às práticas vernáculas estabelecidas. Mais complexas e mais interessantes são as várias maneiras em que os construtores vernáculos repensam novas ideias e as misturam nas práticas tradicionais (Upton e Vlach, 2008, p. xx-xxi).

Podemos afirmar, portanto, que o objeto do campo de estudo aqui tratado não é uma edificação ou um conjunto de edificações, mas tudo aquilo que perpassa e envolve essa materialidade. A arquitetura, segundo Glassie (2000, p. 22), “é um tipo de comunicação, uma atividade conceitual que transforma ideias em planos, planos em coisas que as pessoas podem ver”. Para que sejam vislumbrados as ideias e os valores sociais a partir do estudo de uma ou mais construções, é preciso ir além de descrições formais e detalhamento de materiais e questionar seu contexto de produção, seus próprios produtores, suas semelhanças e diferenças com outros exemplares.

Cláudia Teixeira (2008) coloca uma interessante definição de Rapoport para a Arquitetura Vernácula, que sintetiza suas principais características dizendo que se trata de “ausência de pretensões teóricas ou estéticas; trabalha com o lugar de implantação e com o microclima; respeito às demais pessoas e suas casas e, em consequência, com o ambiente total, natural ou fabricado pelo homem […]” (Teixeira, 2008, p. 35).

Ou seja, a Arquitetura e, principalmente, a Arquitetura Vernácula se encaixam muito bem no conceito que Chartier (1991) nos apresenta como representação6. Indicam-nos valores, ideias e crenças, hábitos e práticas. A Arquitetura Vernácula é, ao mesmo tempo, produtora e produto de relações sociais, sintetiza “resultados finais das decisões das pessoas do passado sobre como seu mundo seria organizado” (Carter e Cromley, 2008, p. xx). Por ser representação e inserir-se no campo de estudos da cultura material, além das várias características exploradas até aqui, a Arquitetura Vernácula alia-se aos preceitos da História Cultural, figurando ricamente como documento e fonte para a pesquisa histórica.

Diálogos

O diálogo possível entre a Nova História, na perspectiva da História Cultural, e a Arquitetura Vernácula em muito ultrapassa sua coincidente inserção e afirmação no mundo acadêmico a partir das décadas de 1970 e 1980. Coincidência que não se dá ao acaso, como já observado anteriormente. Em ambos os campos acontece uma ampliação dos objetos e das metodologias de pesquisa, incluindo movimentos populares e novas referências de estudo. Na Arquitetura, para além de grandes nomes, monumentos, construções excepcionais e definições estilísticas, são incorporados o comum, as práticas construtivas e materiais do cotidiano, as edificações erigidas por anônimos e representativas de determinados grupos e práticas culturais, aquelas que traduzem tipologias características de certas comunidades, períodos, contextos, que são lidas enquanto representações. Na História, o povo e suas atividades, seus modos de pensar e a materialidade por ele produzida se tornam de interesse para o pesquisador e fonte de interpretação e estudo. Além ainda das dificuldades de definição já colocadas por Burke (2011) e Upton e Vlach (1986), as duas áreas se firmam como interdisciplinares.

Os variados aspectos da Arquitetura Vernácula podem ser vislumbrados a partir de abordagens da própria História, da Arqueologia, da Antropologia, da Geografia, da Sociologia, da Engenharia, entre outras. Por se tratar de um campo que tem como objeto fatos e aspectos sociais, econômicos e culturais que estão por trás de edificações concretas, essas e outras disciplinas servem como aportes seguros para as análises a serem feitas pelo pesquisador, seja qual for sua origem acadêmica. O lugar de inserção da edificação ou edificações analisadas, a paisagem, seus materiais, sua implantação e seus usuários, tudo isso será relacionado em um estudo de Arquitetura Vernácula e requer estabelecimento de diálogo entre várias áreas do conhecimento.

Quanto à aplicação da metodologia da Nova História, o uso de fontes ampliado para além dos documentos escritos certamente acontecerá. Ao lidar com documentação tão ampla e de origem tão vasta, disciplinas de apoio sempre serão úteis. Por exemplo, ao utilizar a imagem fotográfica ou cinematográfica como documentação primária, a Semiótica aliada a teorias fundamentais da Comunicação Social serão extremamente úteis. Na compreensão de mentalidades, ideias e pensamentos de uma época, em estudos que não se prendem aos fatos e acontecimentos políticos, a Sociologia é ferramenta indispensável. Ao lidar com a própria cultura material, na qual os estudos de Arquitetura Vernácula se inserem, História e Arquitetura formam uma dupla que traz rica complementaridade.

Sendo a cultura fruto de associações e as duas áreas em perspectiva voltadas para a cultura, não há maneira mais apropriada de pensar a História e a Arquitetura que não seja associando diversos campos do conhecimento. O arquiteto, o historiador ou qualquer outro pesquisador que se aventure pela prática da Nova História e/ou da Arquitetura Vernácula deve ter em mente que a interpretação de vestígios das atividades humanas do passado e também do tempo presente requer habilidades voltadas para a memória, afetividade e relações de pertencimento e alteridade.

As edificações vernáculas são entendidas aqui como documentos/monumentos e como representação, conforme concluído no item anterior. Funcionam, portanto, como fonte histórica. Essa relação só é possível devido às características de ambas já exaustivamente colocadas e a outras a serem exploradas a seguir.

Na escrita de uma História do cotidiano que utiliza a metodologia da Nova História, especialmente aportada na História Cultural, são necessárias fontes que informem sobre ele em suas diversas facetas. Uma delas é a vida privada, e o que seria melhor para revelar aspectos do morar do que as habitações das pessoas comuns, as construções típicas, sua morada, seu teto? Algumas práticas passadas e atuais podem ser vislumbradas ao se notar as variações da distribuição dos cômodos, como os quartos de dormir, que demonstram a ascensão do individualismo e da privacidade (Burke, 2011) e a evolução das relações de poder; os materiais utilizados, ou seja, o que havia disponível para a construção daquela casa, que podem dizer muito sobre a condição social e econômica de seus habitantes. “Na maneira como criamos e utilizamos o espaço arquitetônico, dizemos coisas que nunca diríamos em nossos diários” (Carter e Cromley, 2008, p. xxi). O cotidiano guarda a riqueza e a miséria da vida humana, e a casa guarda os hábitos mais arraigados, as rotinas mais pessoais, muitas vezes impressas de maneira involuntária em suas paredes, pisos, subdivisões. A habitação e a flexibilidade de mudanças e escolhas feitas por seus moradores dizem muito de um grupo social e daquilo que o sociólogo Pierre Bourdieu explica como seus hábitos:

[…] propensão de seus membros para selecionar respostas de um repertório cultural particular, de acordo com as demandas de uma determinada situação ou de um determinado campo. Diferentemente do conceito de “regras”, o hábito tem a grande vantagem de permitir que seus usuários reconheçam a extensão da liberdade individual dentro de certos limites estabelecidos pela cultura (Bourdieu inBurke, 2011, p. 35).

Ou seja, como parte de um grupo social e inserido em um contexto cultural específico, o indivíduo toma decisões particulares que, no entanto, não são desconectadas de seu ambiente. O hábito é flexível, porém está inserido em um conjunto de práticas que, de certa forma, o restringem. Por isso, uma edificação apenas, apesar de suas particularidades e marcas individuais, pode ser analisada e tomada como documento em uma pesquisa de espectro mais amplo.

A flexibilidade dos hábitos que estão inseridos em práticas culturais específicas formula pouco a pouco um cotidiano que não é estático, apesar de suas características marcantes levarem a crer justamente o contrário. As múltiplas tensões e modulações levam a transformações lentas, seja na substituição de um ou outro material, seja na supressão ou adição de um cômodo, seja no estilo que vai sendo adaptado. A arquitetura como fonte histórica, ou melhor, a Arquitetura Vernácula como documento para a História Cultural, nos desvela que “[…] no vivido reside a fonte das contradições que se fazem sentir na vida cotidiana de ‘tempos em tempos’” (Rizek, 2014, p. 62). O que a autora afirma é que as transversalidades do cotidiano, as pequenas alterações no banal, são as forças que estruturam a História.

As contribuições advindas de outras fontes não devem ser ignoradas, pois poderão complementar aquilo que foi extraído da Arquitetura Vernácula. A metodologia da Nova História pressupõe a associação de documentos de tipologias variadas, como os depoimentos orais e, por que não, escritos, as imagens, canções, etc. Todas as evidências devem ser consideradas, mas muitas vezes os vestígios materiais (ou a falta deles) são tudo o que há disponível. Não se deve excluir a crítica documental7 ao lidar com a Arquitetura Vernácula, pois não há verdade intrínseca na História, tampouco informações dadas nos documentos. O pesquisador deve “ler os edifícios como um texto histórico” (Carter e Cromley, 2008, p. xviii) sempre que eles se apresentarem como as melhores fontes para confrontar suas hipóteses.

A Arquitetura Vernácula, como outras tipologias de documentos que não os escritos, se isenta da mediação textual – linguagem escrita – feita por seu produtor, podendo ser interpretada diretamente pelo pesquisador. Os objetos são essenciais para o entendimento acerca da cultura de uma sociedade e, muitas vezes, representam a única forma de acessá-la8. No caso da aparência das edificações, por exemplo, seu estabelecimento nunca se dá ao acaso, mas como representante de preferências estéticas de determinada camada social em uma dada época e num dado recorte espacial. Isso significa lidar também com um problema. Como um monumento, a arquitetura é mantida ou suprimida como registro de uma época de acordo com forças e poderes vigentes, sejam eles simbólicos ou não. Sendo assim, a ausência ou número reduzido de edificações que seguem certo padrão pode ter significados variados, ficando sob responsabilidade do pesquisador buscar fontes complementares.

Teixeira (2008) aborda a questão da tradição presente nos estudos da Arquitetura Vernácula, muito cara também aos estudos históricos dentro da perspectiva da História Cultural, entendida aqui como uma vertente da Nova História A transmissão das práticas construtivas e do uso dos materiais de geração em geração funciona como um rico substrato para entender um padrão cultural. Crenças, valores e relações podem ser percebidos na manutenção ou ruptura dessas práticas. Tais aspectos ajudam a compreender acontecimentos específicos (“fatos históricos”) e, mais ainda, estruturas sociais que conformam a longa duração analisada pela Nova História.

Pequenas variações na arquitetura de uma região para outra, por exemplo, demonstram variações de padrões culturais que podem ser decorrentes de diversos fatores, como migrações, produção e base econômica local, religião predominante, influências externas, coesão, conflitos, clima e outras características geográficas. Tais variações não significam, no entanto, desrespeito às tradições ou tentativas de implantação de outras novas, mas apenas o cotidiano se fazendo presente e reafirmando sua vocação para a multiplicidade e para as mudanças lentas e sutis.

Certamente, existem rupturas decorrentes de processos revolucionários, sejam sociais, políticos ou artísticos. Porém, não se deve tentar compreender as ditas revoluções como fatos alocados em temporalidades afastadas do cotidiano. A longa duração nos dá as bases necessárias para perceber que as transformações mais profundas não se dão como um estalo, mas são resultantes do que vem sendo vivido no cotidiano das pessoas comuns.

Tanto a Arquitetura Vernácula quanto a Nova História, especialmente na sua vertente História Cultural, trazem consigo a diversidade do olhar sobre os objetos clássicos de suas grandes áreas, a saber, o ambiente construído e o estudo do homem no tempo. Glassie (2000) fala de procedimentos históricos melhores no estudo do vernáculo, numa clara referência ao movimento da terceira geração da Escola dos Annales, a Nova História. O foco nos processos, e não nos produtos, nas ações mais do que nas consequências, leva os campos aqui estudados a altos níveis de sofisticação e complexidade. Tende a oferecer ao público uma visão mais íntegra do mundo, não mais apreendido em categorias e fragmentações temporais definidas por marcos rígidos, sejam eles edificações, nomes ou acontecimentos.

Upton e Vlach (1986) entram nesse território trazendo a questão do funcionalismo na Arquitetura, que presume uma causa única para aspectos do ambiente construído que são, na verdade, bastante complexos. O funcionalismo lido em um contexto no qual a História se apropria da Arquitetura Vernácula como fonte significa fazer uma projeção anacrônica diante dos vestígios disponíveis. Ou seja, aplicar conceitos e ideias contemporâneos à documentação que diz respeito a outra época ou período em estudo, fazendo uma interpretação sem a correspondência cronológica necessária. O que os autores pretendem demonstrar é a importância da diversidade, citada acima. Não há ou houve uma única solução para as questões da habitação ou uma única leitura das demandas sociais, mas sim escolhas de indivíduos inseridos em contextos culturais específicos, que através de suas atitudes e decisões conformaram, na longa duração, a História.

Da mesma forma, os diálogos apresentados no presente artigo não são os únicos possíveis. Há diversas outras questões a serem abordadas quando se fala de Arquitetura Vernácula como fonte histórica, ou mesmo de seus conceitos que convergem com os da Nova História. Foram colocados os considerados mais profícuos e evidentes, apesar de pouco explorados na literatura interdisciplinar. O que se percebe é a convergência prática das duas áreas em um empirismo que extrapola o conhecimento teórico.

Considerações finais

As aproximações entre História e Arquitetura são muitas. Na tentativa de estabelecer um diálogo entre a Nova História e a Arquitetura Vernácula, buscou-se demonstrar algumas delas. O princípio da afirmação acadêmica de ambas dado no mesmo período e suas coincidências conceituais as colocam como produtos culturais análogos de uma sociedade motivada a alcançar um conhecimento menos fragmentado e mais global, mesmo que para isso precise dividir as áreas de pesquisa, em um movimento aparentemente paradoxal.

O conceito de representação, caro às duas vertentes da História e da Arquitetura aqui trabalhadas, é extremamente importante como chave de compreensão e perspectiva de entendimento dos objetos e problemas tratados por seus pesquisadores. Ter a clareza de que as abordagens e o acesso ao real a partir de manifestações e artefatos, ou seja, a partir de representações do mundo inteligíveis ao ser humano, fazem com que o cotejamento e a cooperação entre as disciplinas sejam extremamente profícuos e esclarecedores. Por meio de canções, filmes, obras de arte, literatura, documentos ditos oficiais, depoimentos orais, por meio da moda ou da própria arquitetura, ambas as áreas demandam a compreensão do conceito de representação para terem seus potenciais bem explorados, embora dificilmente esgotados.

O cotidiano e a vida comum das pessoas ditas também comuns são fatores que unem a Nova História e a Arquitetura Vernácula de maneira ímpar, consideradas as possibilidades de aplicação de ambas as disciplinas. O que faz essa união tão forte é, provavelmente, a abertura de ambas as disciplinas para a análise e o estudo do que antes era considerado banal. O cotidiano e o comum se mostraram como possibilidades de compreensão da trajetória humana no tempo e no espaço de maneira mais orgânica, mais completa; o acesso aos fatos da vida cotidiana e do dia a dia de mulheres e homens antes considerados coadjuvantes da História e à margem da Arquitetura digna de ser estudada tornaram-se essenciais para a colocação de questões e a resolução de dúvidas quanto às estruturas e práticas culturais das sociedades. A Nova História e a Arquitetura Vernácula não propõem a supressão dos nomes políticos, dos arquitetos renomados, dos marcos temporais da História ou dos estilos arquitetônicos consagrados. No entanto, ambas reconhecem e legitimam os hábitos, as tradições populares, as mudanças lentas e as permanências como substratos para as ciências humanas e sociais aplicadas, como chaves interpretativas da vida humana em suas dimensões temporais, materiais e afetivas.

O caráter interdisciplinar da Nova História e da Arquitetura Vernácula está na busca bilateral e em disciplinas complementares e compatíveis por objetos, fontes, metodologias e conceitos. Isso faz com que as duas áreas sirvam de aportes teóricos ricos para as pesquisas e trabalhos propostos por estudiosos, professores e outros profissionais envolvidos. Por tratarem de questões ligadas essencialmente à trajetória humana, a Arquitetura Vernácula e a Nova História, da maneira como foram discutidas aqui, apresentam-se como culturais. A cultura lida aqui não como erudita ou clássica, mas no sentido de expressão de hábitos, costumes e valores, tradições, práticas cotidianas. Estudadas e aplicadas de maneira complementar ou separadamente, o que deve ficar de mais importante para o pesquisador e/ou profissional é a ênfase dada por elas à diversidade e à pluralidade que marcam a existência do homem. São deixadas em seus vestígios culturais, sejam eles materiais ou intangíveis, de maneiras sutis, improváveis ou objetivamente, como resistência.

Referências

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Notas

3 Este seria um ponto da confluência entre História e Arquitetura, nas perspectivas aqui propostas, que será abordado no próximo item.
4 O artigo não pretende esgotar o assunto ou chegar a conclusões definitivas sobre o que é Arquitetura Vernácula. O objetivo, como já explicitado, é pincelar algumas das principais reflexões de estudiosos para que o leitor se sinta confortável com o termo.
5 Segundo Henry Glassie (2000), a História da Arquitetura se inspirou nos estudos das artes. Ao eleger cânones, o processo de seleção e organização cronológica é facilitado, como na História tradicional. No entanto, a Arquitetura Vernácula se interessa mais pelo caráter contingencial e cultural do que pela excepcionalidade das edificações.
6 O conceito ou a noção de representação nas Ciências Humanas é bastante debatido e não há um consenso. Roger Chartier discute a representação enquanto produto de práticas simbólicas, nas quais um fato não é um fato por si só. O que temos diante de nós no real é a representação desse fato por meio de algum tipo de linguagem, que busca dar significado à realidade vivida. A História Cultural constantemente se remete às representações, já que a própria cultura pode ser compreendida enquanto tal, enquanto representação da realidade vivida e experienciada pelos grupos de indivíduos.
7 Confere caráter científico à disciplina da História e diz respeito à análise criteriosa das fontes, que vai muito além de atestar sua autenticidade, mas deve observar o contexto de produção e a percepção de seus múltiplos e possíveis sentidos.
8 A Arqueologia, por exemplo, firmou-se como um campo do saber ao pesquisar a cultura material de sociedades ditas pré-históricas por não possuírem escrita inteligível para os homens da contemporaneidade.
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