Resumo: O presente artigo analisa dois crimes cometidos por mulheres ocorridos em regiões de colonização europeia do Rio Grande do Sul na primeira década do século XX. Descendentes de imigrantes italianos e alemães, Anna Maria e Pedrina, após cometerem os crimes de homicídio, foram levadas para o Hospício São Pedro, localizado na capital Porto Alegre, sob a alegação de que se encontravam em “estado de loucura”. Na mencionada instituição, permaneceram internadas durante quase dois anos, não sendo constatada alienação. Apesar disso, a possibilidade de terem atuado “fora de si” não foi descartada, o que lhes permitiu não serem condenadas por seus crimes. As explicações conferidas pelas testemunhas e rés foram utilizadas como ponto de partida para se levantar questionamentos sobre os diversos aspectos que marcavam a vida familiar camponesa e as relações com os vizinhos, as tensões, bem como as decisões tomadas quando do surgimento de delitos. A existência de diferentes percepções sobre loucura é algo que se sobressai enquanto questionamento para entender os crimes, mas também para compreender um dispositivo de controle e contenção dos comportamentos femininos.
Palavras-chave: crime femininocrime feminino,loucuraloucura,controle socialcontrole social,conflitosconflitos,comunidades camponesascomunidades camponesas.
Abstract: This article analyzes two crimes committed by women in regions of European colonization in Rio Grande do Sul in the first decade of the 20th century. Descendants of Italian and German immigrants, Anna Maria and Pedrina, after committing the homicides, were taken to Sao Pedro Psychiatric Hospital, located in the capital, Porto Alegre, on the grounds that they were “crazy”. In the aforementioned institution, they remained as interns for almost two years, and no signs of mental alienation were detected. Despite this, the possibility of having acted out of being “out of themselves” was not ruled out, which allowed them not to be convicted of their crimes. The explanations given by the witnesses and defendants were used as a starting point to question various aspects that marked peasant family life and the relations with the neighbors, the tensions, as well as the decisions taken when crimes arose. The existence of different perceptions about madness is something that stands out as questions to understand the crimes, but also to understand the existence of a device to control and contain female behaviors.
Keywords: female crime, madness, social control, conflicts, peasant communities.
Dossiê: Relações entre Crime e Gênero: um balanço
Loucas e criminosas: crimes femininos e controle social em comunidades de colonização europeia no Rio Grande do Sul (século XX)
Crazies and Criminals: Female Crimes and Social Control in European Colonization Communities in Rio Grande do Sul (20th century)
Recepção: 03 Abril 2019
Aprovação: 06 Novembro 2019
O estudo dos crimes femininos é pensado como uma via de acesso para problematizar questões ligadas à vida nas regiões de colonização europeia do sul do Brasil, nas primeiras décadas do século XX. Nesse sentido, os delitos indicam para a existência de tensões e uso da violência física no cotidiano, permitindo, também, refletir sobre as lógicas de determinados comportamentos, as práticas de justiça e mecanismos de controle vividos no interior das comunidades camponesas. No presente trabalho, analisaremos dois casos de mulheres, descendentes de imigrantes europeus, que foram encaminhadas para o Hospício São Pedro de Porto Alegre após terem cometido o delito de homicídio.1 A partir de uma perspectiva metodológica que privilegia o micro como ponto de partida, que busca analisar as explicações conferidas pelos próprios personagens da pesquisa, objetiva-se levantar indagações sobre as escolhas femininas, as racionalidades, as relações entre famílias vizinhas no espaço rural, bem como os modos de se relacionar e entender as instituições de assistência do Estado republicano brasileiro.2
Para tanto, num primeiro momento apresentaremos de maneira narrativa os dois homicídios; após, realizaremos uma análise comparativa entre as experiências narradas. Através da comparação será possível compreender melhor os sentidos e atitudes conferidas pelas imigrantes e descendentes quando do surgimento de eventos que rompiam com uma determinada ordem local e ultrapassavam os limites do tolerável. Ressaltamos, desse modo, que as fontes criminais aparecem como documentos que permitem pensar as experiências em relação à loucura, as tolerâncias e condenações morais e o crime. Além de buscar compreender os diagnósticos conferidos pela justiça e médicos, buscaremos apreender através das vozes das loucas/criminosas, familiares e vizinhos os sentidos conferidos às suas aflições e comportamentos.3
Em outubro de 1910, no lugar chamado Roncador (São José do Hortêncio), primeiro distrito do município de São Sebastião do Caí,4 um crime mobilizaria várias famílias de imigrantes alemães. A relativa tranquilidade havia sido rompida pela morte violenta de uma menina de poucos meses de vida. Anna Maria J., descendente de imigrantes alemães, natural do Estado do Rio Grande do Sul, 24 anos de idade, agricultora, casada na Igreja Católica havia quatro anos, deslocara-se armada com uma faca até a casa do vizinho João C.. No interior da residência, dirigiu-se até o berço da menina Hilda C., de quatro meses de idade, avançou sobre a mesma e a degolou, causando a morte instantânea da criança. Em seguida, buscou fazer o mesmo com outra menor, Suzana C., de quatro anos de idade, deixando essa última com graves ferimentos. Anna Maria foi impedida pela mãe das crianças de levar a cabo a segunda morte. O marido da agressora tentou sair no encalço da esposa, mas não havia chegado a tempo de evitar a mencionada tragédia na casa dos vizinhos.5
Logo após a ocorrência da morte, Anna Maria foi questionada em suas atitudes pelos familiares, pais das meninas e pessoas que haviam se deslocado até a residência onde ocorreu o crime. De acordo com os relatos das testemunhas, Anna Maria desculpou-se pelos atos cometidos e pediu perdão para a mãe das meninas. E, logo, justificou atitudes violentas devido ao fato de se encontrar há vários dias “atacada por alienação mental” e ter tomado um “pouco da água ardente” antes de atacar as crianças.6 A justificativa de que se encontrava louca quando a ocorrência do crime é algo destaco pelas testemunhas e assumido pela vítima desde o momento inicial da investigação.
Para o local do crime se deslocou a autoridade policial que, após ouvir as justificativas de Anna Maria e daqueles que se encontravam presentes, deu início à investigação policial. Negando a existência de qualquer inimizade como a família vizinha, bem como intenções premeditadas, a ré alegou ter “praticado o crime involuntariamente devido ao estado de saúde”.7 Seguindo essa mesma linha, Catarina C. (28 anos, casada, mãe da menina morta) afirma que dias antes de suas filhas serem atacadas, a denunciada “manifestou evidentes sintomas de estar sofrendo de faculdades mentais”. Uma prova disso era que Anna Maria havia buscado “suicidar-se por enforcamento”, tendo passado mal e falado sem cessar durante toda à noite que antecedeu ao crime. Para acalmá-la, o marido e o tio fizeram Anna Maria beber água ardente misturada com água, o que a fez adormecer. Às 11h00 da manhã, logo após ter acordado, Anna Maria pegou uma faca da cozinha da sua casa e se deslocou até a residência da vizinha onde cometeria o crime.
A mãe das crianças revelou que já faziam três meses que a Anna Maria vinha manifestando “sintomas de loucura”, porém, seu marido procurava “ocultar” a condição da esposa. Indicou também ser de conhecimento público que a ré havia declarado que “duas virgens tinham lhe recomendado que levasse três anjinhos para o céu”, motivo pelo qual Anna Maria cometera a “desgraça” em sua casa. Além das visões místicas da acusada dos crimes, as acusações e fofocas contra ela de que havia roubado milho na roça do pai das crianças teriam sido usadas como elementos motivadores das escolhas da “criminosa”. Somado a isso, de acordo com a mãe das meninas, já fazia dois anos que Anna Maria “andava doente, devido à irregularidade própria de mulheres”, tendo ela aconselhado à mesma que procurasse um médico.8
Por unanimidade, as testemunhas afirmam que a “falta das faculdades mentais” e a ingestão de bebida alcoólica teriam levado Anna Maria a cometer o crime de homicídio. Reforçando que a “criminosa”, na noite anterior aos ataques, recebeu cuidados por conta de seu estado de excitação, outro depoente afirma que o tio e o marido da mesma haviam feito “fricções com água ardente pelo corpo” e dado de beber como “calmante”. Acreditando no estado de “loucura” dá ré, ressaltou que no local do evento criminoso, na presença de várias pessoas, ela havia declarado que “precisa levar três anjinhos para o céu e que seu pai e João C. assim o quiseram”.9
O primeiro interrogatório da “criminosa” havia se dado na casa Jacob B., provavelmente um morador da localidade de Roncador, quando da visita do delegado. É quase unânime entre os depoentes a afirmação de que Anna Maria tinha cometido o crime por “estar fora de si”. Essa condição, de acordo com uma testemunha, se devia aos “maus tratos do pai”, sendo este apontado como um homem que “vive constantemente doente, foge do convívio social e diversas vezes têm se retirado para o mato dando sinais de sofrer de faculdades mentais, conforme é público”.10 A ideia de ter sido a ré impulsionada por um “acesso de loucura” era uma forma de atenuar o crime, pois os depoentes disseram que na época em que ela era solteira havia “dado provas de sua bondade” e, “depois de casada, nunca constou que vivesse em discórdia”, referindo-se à vida conjugal. Também não tinha “intrigas com a família de João C. [pai das meninas atacadas]”. Este alegou que era “notoriamente sabido” que o pai de Anna Maria , João J., sofria de “faculdades mentais”, bem como a mãe da ré, já falecida, tendo eles dado prova ao terem “certa vez enxilhado uma vaca para conduzir abóbora da roça.”11 A proximidade entre as famílias, bem como as relações parentais e redes de apoio entre eles e os depoentes se evidenciam nos relatos das testemunhas que depuseram na investigação.
O marido da Anna Maria, Nicolau N., 29 anos, agricultor, morador do Roncador, declarou que desde seu casamento sua esposa “sofria qualquer alienação mental”, pois “vivia sempre sobressaltada. A ameaça do sogro de matar ele, depoente, teria causado “agravamento do estado” de Anna Maria , motivo pelo qual havia buscado cometer suicídio através do enforcamento. De acordo com Nicolau, na noite anterior ao crime, por duas vezes sua esposa tinha saído de casa, levando consigo algumas peças de roupa, conseguindo apenas com muita insistência fazer com que retornasse, depois de ter estado “muito agitada, dando com os braços para um lado e outro, com o rosto vermelho e pronunciando palavras muito desconexas”. Por tudo isso, reforçava que o crime tinha se dado num “ato de loucura”, pois mantinham, ele a esposa, “íntimas relações com a família das vítimas, são parentes e sua mulher muito estimava as aludidas crianças”.12
Através do depoimento das testemunhas e interrogatório de Anna Maria , não existia dúvidas da responsabilidade da mesma na morte da menina de três meses. E, uma vez entendido que ela havia cometido tal delito por “estado de loucura”, fora encaminhada pelas autoridades policiais para o Hospício São Pedro, localizado na capital Porto Alegre, para que fosse submetida à observação dos médicos legistas.13 Na referida instituição permaneceu durante o período de um ano e oito meses, de outubro de 1910 até junho de 1912, não sendo constatado qualquer tipo de “alienação” em Anna Maria .14 Existia, porém, a possibilidade de a mesma “ter tido uma obsessão impulsiva para praticar o crime”, sendo, portanto, “perigosa à sociedade”.15 Este diagnóstico a levou à prisão de São Sebastião do Caí para que fosse dado prosseguimento ao julgamento de Anna Maria, denunciada pelo crime de homicídio pela justiça do Estado.
Assim, durante o período de oito dias, a ré fora observada e submetida à interrogatório por médico de São Sebastião do Caí. Respondendo “ora bem, ora com frases desconexas, seguida às vezes de risos”, a conclusão foi que Anna Maria , apesar de no momento não estar louca, já havia tido “crises de loucuras”, que poderiam se repetir ou não. De acordo com o médico, o pai da acusada também sofria de “faculdades mentais” e a “mãe era imbecil”, sendo, portanto, a loucura da Ana um “caso hereditário”.16 Apesar de a “irresponsabilidade absoluta” não ter sido comprovada, a avaliação médica indicava para dois prováveis impulsos da ré, uma obsessão para o suicídio e outra para o homicídio, concluindo, assim, que a mesma era “uma psicopata, com obsessão impulsiva motora”. Para chegar a tal diagnóstico foram consideradas as evidências colhidas nas falas das testemunhas sobre os antecedentes hereditários da acusada, permitindo as seguintes constatações: a acusada havia dois anos se encontrava doente devido a uma enfermidade “própria das mulheres”, tinha tentado se suicidar no dia anterior ao crime, mantinha relações amistosas com a família da menina degolada e não existiam fatos que justificassem a realização de uma vingança. Por todos estes motivos, Anna Maria, vista como “alienada antes de cometer o crime”17, foi absolvida da pena em setembro de 1912.
Na defesa da ré, o advogado argumenta que, apesar da “hediondez do crime praticado”, não poderia ser desconsiderado o fato de estar lutando pela “causa uma mulher infeliz que agiu em estado de loucura”, que, portanto, necessitava urgentemente da “justiça para ser arrancada da escuridão do cárcere e ser entregue a sua família”. Defende ser Anna Maria “filha de loucos”, “pai louco e alcóolico”, “mãe imbecil”, que até os treze anos de idade não havia demonstrado sofrer qualquer “moléstia mental”. Porém, com o tempo passou a se manter em “completa reclusão, insensível aos carinhos dos parentes e das pessoas de amizade”. Em alguns momentos, um “estado de completa imbecilidade a dominava” e em outros uma “verdadeira idolatria” a reduzia a uma situação de “plena animalidade, sem discernimento próprio”. Quando contrariada, afirma que Anna Maria era acometida por “excitações em furioso delírio, rasgando-se e destruindo tudo quanto chega ao seu alcance, tentando suicidar-se (...) ora completamente alheia a tudo que a cerca, ora com as ideias claras e com regular memoria”. 18
Buscando descrever o quadro patológico vivido pela “criminosa”, o advogado chama a atenção para um fato que a teria perturbado dias antes de cometer o crime. Em sonho, um anjo teria aparecido a Anna Maria e solicitado a “alma de três criancinhas”. A visão do anjo e o pedido surgiam a todo o momento, deixando a acusada com a “fixa ideia de conseguir almas de crianças”. Sempre muito impressionada, alegando que o anjo lhe aparecia a todo o instante, “a moléstia” foi aumentando. E, para acalmar a esposa, o marido e o tio deram à Anna Maria “muito álcool” para serenar os nervos. Conforme defesa, a ré:
(...) sonhou que o anjo lhe apareceu pedindo a alma de três crianças, sonhou que havia matado e dado ao anjo aquelas almas, ficando-lhe estereotipada a impressão terrível do sonho transmitido pela rede elétrica dos nervos, e daí o fenômeno psíquico de praticar o crime imitando o que havia sonhado. Provado está plenamente que a acusada é louca e ainda mais exuberantemente ficou provado com as testemunhas da acusação com os depoimentos dos pais da vítima de que a acusada estava louca no ato que cometeu o crime (...).19
A história da aparição do anjo que solicita a “alma de três crianças” aparece na fala de uma das testemunhas, sendo, portanto, retomada pelo advogado na constituição da defesa, como um indício do estado de loucura da ré. No entanto, apesar de não ganhar destaque nos depoimentos das testemunhas, talvez a mencionada explicação fosse aceita entre alguns descendentes de imigrantes da localidade. É provável que os sonhos, visões e indisposições daquela fossem algo bastante conhecido entre a vizinhança, uma vez que já fazia dois anos que a acusada se encontrava com problemas de saúde. Quando questionada sobre a morte da menina, justificou sua atitude através das aparições que a atormentavam e do pedido de que deveria conseguir a “alma de três crianças”. Essa explicação não pode ser entendida sem levar em conta os problemas de saúde e tensões vividas por Anna Maria . Foi exatamente a conexão entre a vida dessa mulher, seu modo de sentir, entender e explicar os eventos, e a explicação da aparição em sonho de um anjo, que chamaram atenção quando da leitura do documental criminal.
Nos interrogatórios, Anna Maria não foi questionada sobre suas visões. No entanto, o advogado, que acompanhou a ré durante os dois meses em que ela foi mantida reclusa na prisão, ouviu a história das aparições utilizando-a como estratégia de defesa para reforçar a justificativa que a “criminosa” se encontrava louca no momento em que havia cometido o crime. A comprovação de que a ré havia matado a filha da vizinha porque se encontrava em “estado de loucura” a livraria das penas, mesmo não tendo sido diagnosticado “alienação mental” pelos médicos do Hospício São Pedro no período em que se manteve internada na referida instituição.20 Sem hesitar, Anna Maria parece ter assumido um papel bastante passivo diante das explicações de que se encontrava louca, talvez acreditando na própria condição, diferentemente da outra ré que analisaremos na sequência.
Através da análise documentação criminal na qual Anna Maria é ré percebe-se, por meio do depoimento das testemunhas, a existência de concessões e opiniões comuns. Essa questão reforça a hipótese da formação de uma rede de proteção entre os depoentes e as famílias envolvidas no sentido de atestar o estado de loucura em que se encontrava a “criminosa” no momento em que invadira a casa da vizinha para degolar a filha de três meses. Frente à explicação unânime da condição de loucura, surgem alguns questionamentos: quais seriam os sintomas e comportamentos que eram identificados como loucura entre as famílias camponesas de descendentes de imigrantes europeus? Compartilhavam da mesma compreensão dos médicos de que era uma enfermidade mental? Que procedimentos de cura eram buscados pelas famílias? Qual era a relação da população que residia nas áreas de colonização europeia com as instâncias de controle e assistência do Estado republicano? Esses são alguns dos questionamentos que buscaremos responder no presente artigo através da análise atenta das falas das testemunhas. A escolha por estudar crimes violentos interessa não tanto pela dramaticidade dos mesmos, mas pelas possibilidades que os comportamentos e justificativas permitem levantar sobre as tensões e compreensões que marcam determinadas realidades históricas.
O segundo caso que iremos apresentar trata-se de um crime de homicídio ocorrido em abril de 1909, no município de Garibaldi, nordeste do Rio Grande do Sul. Pedrina C., 27 anos, casada, agricultora, filha de imigrantes italianos, asfixiou a filha de um ano e quatro meses de idade numa bacia de água no porão da casa em que residia com o marido e os pais. Perante os familiares, vizinhos e o subdelegado de polícia, Pedrina assumiu total responsabilidade pelo ocorrido, passando, assim, a responder pela morte da própria filha.21 Sob a justificativa de que se “encontrava demente” a tempos e que sofria de “faculdades mentais”, na investigação criminal as testemunhas buscaram explicar os fatos que teriam levado a mãe a afogar a própria filha. Já opinião diferente foi exposta pela ré, que passou a alegar ter cometido o crime por ser “pobre”, não ter roupas, não querer que filha a “reconhecesse como mãe” e viesse a passar fome.22 Entre os familiares, portanto, fazia certo tempo que o comportamento da jovem mãe causava preocupação, fazendo, portanto, também surgir rumores na vizinhança que, sempre atenta, buscava entender o comportamento e insatisfações da mesma.
Depois de passar alguns dias na cadeia de Garibaldi, a jovem mãe, que permanecia firme na ideia de que havia premeditado a morte da única filha, foi encaminha para o hospital da Santa Casa de Misericórdia para tratar de uma “moléstia eruptiva febril contagiosa (varicela)”, e, posteriormente, para o Hospício São Pedro, ambos na capital Porto Alegre. Na última instituição, ela passaria por avaliação mais prolongada, uma vez que se encontrava acometida por “síndrome mental” e “estigmas de ordem depressiva”23, devendo também ser verificado se estava “alienada” quando do afogamento da filha.
Entre 1909 e 1911, Pedrina permaneceu internada no Hospício São Pedro para avaliação médica. Um pouco antes de ser liberada, de acordo com médico legista, a internada se encontrava em “plena integridade das suas funções cerebrais”, apesar de saber que a “história pregressa” da mesma indicava para o seu “caráter um pouco instável”. Seu temperamento, segundo o mesmo médico, piorou “por ocasião do seu casamento: ora parecia a mais interessada, ora considerava-se contrariada, sendo forçada ao matrimônio por seus pais (...)”. Segue indicando que as angústias e insatisfações da paciente estavam ligadas à nova vida de casada. “Quando da primeira gravidez o seu estado mental ordinário modificou-se: [Pedrina] tornou-se um pouco triste e nervosa, chorando muito”. Com as obrigações em relação à maternidade e o aumento das dificuldades “materiais e morais”, não teve forças para vencer as “atribulações”, agravando-se, assim, o seu “caráter depressivo”, desanimando e “tornando-se de mau humor, queixosa da sua indigência, rebelando-se contra o seu marido e o casamento, a quem tudo atribuía, irascível contra todos os seus”. Frente a tudo isso, de acordo com o médico, ela havia chegado à “conclusão que não valia a pena viver, nem deixar crescer sua filhinha na mesma infelicidade, para que mais tarde não conhecesse a desgraça e miséria de sua mãe”.24
Foi sob a alegação de que se sentia “desgraçada e miserável” que a paciente justificou o crime cometido.25 Descontente com a vida de recém-casada, Pedrina manifestava temor em precisar “pedir esmolas” entre os vizinhos para garantir a sobrevivência. O medo da pobreza e da fome aparece como as justificativas conferidas pela “criminosa”, divergindo, portanto, das alegações das testemunhas - conhecidos e familiares - que alegavam que há tempos se encontrava “louca”.26 Durante os dois anos em que passou internada, Pedrina expressou suas angústias, insatisfações e expectativas de uma camponesa, filha de imigrantes italianos, recém-casada, mãe de uma menina de um ano e quatro meses de idade, que se sentia insatisfeita e triste com a vida familiar e conjugal, através das cartas que escreveu durante o período que passou internada no Hospício São Pedro.27 O entendimento que tinha sobre a própria condição, bem como o porquê se percebia “desgraçada”, não querendo que a própria filha a reconhecesse como mãe, são questões que estão relacionadas aos conflitos na família, às tensões com a autoridade paterna, as pressões morais e o peso dos comentários que circulavam na vizinhança (VENDRAME, 2018).
O prontuário médico, as missivas e o processo-crime já foram analisados por Yonissa Wadi (2009), no livro A história de Pierina.28 Neste estudo, através da trajetória de descendentes de imigrantes italianos, a autora se propôs a estudar temas como crime, loucura, subjetividade, universo feminino, sociedade e o saber médico psiquiátrico no Rio Grande do Sul na primeira década do século XX. Além disso, a autora analisa o universo social e cultural vivenciado nos espaços rurais de colonização europeia, discutindo as insatisfações surgidas no seio familiar em relação ao controle do pai, os descontentamentos frente ao peso das atividades laborais e as responsabilidades em relação à vida de casada. Todas essas questões puderam ser analisadas através das cartas escritas por Pedrina - destinadas aos familiares e médicos legistas - durante o período de permanência no Hospício São Pedro.
Passados três anos do seu casamento, ela manifestava descontentamento, afirmando ter casado “sem saber o que era uma vida de casada”. Antes do matrimônio acreditava que teria uma vida feliz, porém, aos poucos, foi se tornando a “mais infeliz de todas as (...) irmãs” (WADI, 2009, p. 104). Além da insatisfação em relação à vida de casada, outros fatos, como o costume de beber do marido, as obrigações domésticas, as decisões relacionadas ao trabalho e o controle dos recursos financeiros por parte do pai eram motivos de conflitos e descontentamento. Porém, tudo isso teria se agravado quando do nascimento da primeira filha do casal.
Residindo na casa paterna desde o casamento, Pedrina e o marido não viviam de maneira pacífica com o pai e sogro. A existência de conflitos e controles entre as pessoas que viviam sob o mesmo teto, que dividiam as atividades agrícolas e domésticas, é algo que marcava a experiência do jovem casal. Após o nascimento da primeira filha, Pedrina, que se mostrava incapaz de cuidar da criança e realizar as atividades domésticas, foi submetida a diversos tratamentos de cura, como visita ao médico e a religiosos, padres e freiras. Enquanto isso, aumentaram os comentários entre as famílias vizinhas de que a mesma se encontrava “louca” (WADI, 2009).
Enquanto aumentavam os comentários das famílias conhecidas do lugar, crescia também o sentimento de vergonha da jovem mãe. Não conseguir desempenhar os papéis sociais, reclamar da falta de alimentos e vestuário, bem como ficar dependente do auxílio dos vizinhos para sobreviver, certamente, eram situações consideradas muito vergonhosas. Acrescido a isso, o fato de alguém deixar de trabalhar, revoltando-se contra a situação vivida, também era entendido como um comportamento reprovável, podendo ser classificado negativamente como “loucura”. Neste sentido, a loucura aparece como uma forma de classificar moralmente aquelas pessoas que não desempenhavam os papéis de boa mãe, esposa e vizinha confiável.
Tudo o que Pedrina não queria era ser reconhecida como “louca”. Ela indicava para o peso que tinha tal classificação entre a população colonial. Ao ser interrogada, afirmou ter matado a filha para que essa “não a conhecesse como louca”. Era reconhecido na vizinhança as reclamações da jovem mãe de ser “pobre, não ter roupa” e “não [querer] pedir esmolas”, motivos pelos quais passou a desejar matar a filha e também a si mesma.29 No entanto, uma das testemunha negou o fato de Pedrina não ter o que comer e vestir, omitindo a existência de conflitos entre os integrantes do grupo familiar.30 Da mesma forma, o marido, Giovanni B., também negou a existência de divergências entre ele e a esposa, ressaltando que isso poderia ser confirmado pelos “vizinhos e sua própria sogra”. Reforça, ainda, não saber o motivo que teria levado a companheira a matar a filha, já que por esta “tinha grande amizade”, acrescentando, no entanto, que ela seguidamente “ameaçava terminar com sua vida”.31
Através dos depoimentos, é possível perceber as classificações e comportamentos vistos como negativos. Reclamar da condição de pobreza, da falta de alimentos e vestuário, bem como ficar dependente do auxílio dos vizinhos para sobreviver, eram situações consideradas muito vergonhosas. Acrescido a isso, o fato de alguém deixar de trabalhar, revoltando-se contra a situação vivida, também era entendido como um comportamento reprovável. Mesmo frente à circulação de comentários negativos, aspecto esse que prejudicava a “boa fama” daqueles que eram alvos dos julgamentos e rumores, Pedrina somente foi afastada do lugar onde residia após ter matado a filha. O afastamento temporário nos núcleos de colonização italiana surge, portanto, como algo necessário para o controle dos fatos que causavam desordem e “escândalo” local (VENDRAME, 2016).
Como já destacamos, ser vista como louca pela população colonial era um dos grandes motivos da aflição e do sentimento de vergonha sentido por Pedrina. Tanto que ao ser presa, pronunciou diversas vezes que ela era “criminosa” e não “louca”, desejando, portanto, ser julgada pelo crime cometido. Com tal afirmação contrariava a versão do marido, Giovanni B. - 30 anos, agricultor, natural da Itália - que alegou que a mesma havia manifestado desejar “terminar com a sua vida” e que tinha “grande amizade pela filha”.32 Por meio de tais revelações, desejava demonstrar que a esposa não se encontrava em juízo perfeito quando da ocorrência do crime. Apesar de não ter sido constatado sinal de loucura durante o período em que esteve internada no Hospício São Pedro, Pedrina foi considerada pelo médico legista “irresponsável quando cometeu o crime”, sendo, portanto, libertada da prisão e livre da condenação.33
O sentimento de vergonha frente aos rumores dos vizinhos aumentou o descontentamento e o desejo de Pedrina de evitar que sua filha crescesse naquele universo, sendo reconhecida como a filha da “louca”. Através dos comentários sobre a conduta da jovem mãe, a população da colônia exercia o controle dos comportamentos. Esse domínio se fez sentir com toda a força em Pedrina, especialmente porque sua postura se distanciava do ideal feminino esperado: garantir a harmonia e a tranquilidade no espaço doméstico e público.
Estudos apontam que existia um alto percentual de internados com nacionalidade italiana no Hospício São Pedro, podendo sugerir que a população colonial convivia bem com a ideia de afastar rapidamente do convívio os suspeitos de loucura (WADI, 2009, p. 208).34 No entanto, através do caso aqui analisado, pode-se intuir que o afastamento e a internação não eram decisões facilmente aceitas. Elas eram tomadas, provavelmente, apenas em último caso, quando vários outros recursos haviam sido acionados e, principalmente, quando a permanência na família e na comunidade representava graves prejuízos ao grupo. Os homicídios cometidos por ambas as mulheres podem ser tomados como acontecimentos limite, que ultrapassaram a tolerância dos familiares que não buscaram encaminhá-las antes para tratamento, sendo que há tempos indicavam sofrer de “faculdades mentais”. Somente quando da ocorrência dos crimes surge como necessário o encaminhamento das criminosas para as instâncias de controle do Estado, enquanto maneira de afastar temporariamente da vivência local aquelas que representavam instabilidade e causavam temor.35
Nos casos de homicídios apresentados, as rés Anna Maria e Pedrina foram liberadas das penas dos crimes. Depois de terem passado um tempo no Hospício São Pedro, quando ambas não apresentaram sintomas de alienação mental, conseguiram retornar para suas casas. Na conclusão dos autos judiciais considerou-se que as criminosas agiram em condição de “irresponsabilidade”, possuindo “obsessão impulsiva” para o suicídio e homicídio.36 A justificativa de que Anna Maria e Pedrina se encontravam em estado de loucura no momento dos crimes foi defendida pelos médicos psiquiatras, pelas testemunhas e familiares, sendo aceita pela justiça do Estado como uma explicação válida para entender o comportamento violento das acusadas. Elas estariam de fato fora de si no momento de cometerem os assassinatos.
Antes de estabelecer comparações entre os aspectos das trajetórias das descendentes de imigrantes europeus, é importante destacar que episódios específicos e experiências individuais permitem analisar as escolhas e tensões cotidianas, bem como os mecanismos de controle familiares e comunitários no universo camponês. Os processos-crime analisados, somados a outras fontes como cartas e inventários, possibilitam levantar questionamentos sobre a realidade familiar e local em realidades bastantes complexas. Permite também pensar os conflitos como algo presente nas relações entre os membros de uma parentela, como ainda as lógicas morais que faziam as pessoas silenciarem quanto a certos delitos.
Entendemos que as duas mulheres aqui apresentadas se aproximam em diversos aspectos. Um deles é o crime praticado; o outro, o destino que tiverem após a ocorrência dos mesmos, uma vez que ambas foram encaminhadas para o Hospício São Pedro sob a alegação de que se encontravam “loucas”. Na condição de rés em investigação criminal, Anna Maria e Pedrina haviam sido responsáveis por dois crimes de homicídio cujos alvos foram crianças com pouca idade. Apesar de serem denunciadas por delitos diferentes, elas foram admitidas no hospício com a diferença de apenas alguns meses, tendo permanecido no local sob a avaliação médica por período concomitante. Talvez tenham até tido contato no interior da instituição, uma vez que lá se encontravam por motivos semelhantes: tinham cometido crimes em “estado de loucura” de acordo com as justificativas de familiares e conhecidos.
Abaixo, construiu-se um quadro (Quadro 1)com algumas informações referentes à trajetória de Anna Maria e Pedrina. Para além de estabelecer comparações entre ambas as experiências, a organização dos dados permitiu pensar nas diferenças e semelhanças como um método para obter uma melhor aproximação da realidade estudada e entendimento dos questionamentos realizados. As especificidades e semelhanças são tomadas como pontos de iluminação de realidades distintas e, ao mesmo tempo, parecidas, propondo, a partir disso, perguntas sobre as percepções e os aspectos que marcavam a vida das famílias nas áreas de colonização europeia no Rio Grande do Sul.
No início da segunda década do século XX, momento em que Pedrina e Anna Maria são liberadas do Hospício São Pedro, ainda não existia na instituição um setor específico para cuidar dos criminosos alienados. Somente posteriormente, em 1924, é que começa a serem dados os primeiros passos para a criação do manicômio judiciário junto ao hospício. No entanto, as reinvindicações para a organização de um lugar especial para os delinquentes datam já do período em que Anna Maria e Pedrina se encontravam internadas (WADI, p. 2009, 180-82). Ambas as criminosas permaneceram na referida instituição, não sendo, porém, diagnosticada alienação mental durante os meses de internação.
A explicação de que se encontravam “loucas” meses antes de cometerem os crimes foi conferida pelas testemunhas e familiares na investigação criminal. Em seguida, as autoridades policiais e judiciais, apoiados nas avaliações médicas, entenderam que os delitos haviam sido praticados de maneira involuntária pelas autoras, por se encontrarem em estado de perturbação psíquica. Nas duas investigações foram semelhantes as conclusões que chegaram os médicos e autoridades judiciárias sobre a condição em que se encontravam as rés quando da ocorrência do crime.
Muito antes de terem cometido as mortes, ambas vinham manifestando descontentamento com a vida que levavam, fazendo com que as testemunhas afirmassem que há tempos davam sinais de loucura. Pedrina e Anna Maria , assim que casaram, foram morar na casa paterna, passando a enfrentar dificuldades relacionais com seus pais. Insatisfeita com a nova vida de casada, com os compromissos de casada, com os trabalhos agrícolas e o controle exercido pelo chefe da família, Pedrina passou a sentir-se “desgraçada”, “infeliz” e “miserável” (VENDRAME, 2018, p. 103). O descontentamento da jovem mãe, que se mostrava incapaz de desempenhar certas atividades domésticas e trabalhos, começou a ser percebido pelos familiares e vizinhos como um indicativo de loucura. Logo, a loucura era uma classificação e um estigma que podia estar associado a questões éticas. Esse entendimento pode ser percebido na rejeição da própria Pedrina em ser reconhecida como louca, sendo este um dos motivos pelo qual seu sentimento de insatisfação começou a aumentar. Os comentários que circulavam pela vizinhança foram motivos que fez aumentar a vergonha e a revolta da mesma. Assim, quando inquirida pela primeira vez pelas autoridades policiais, declarou ser “criminosa e não louca”.
A loucura era percebida como um problema de ordem moral. Não querer cumprir com os papéis de filha, esposa e mãe, deixando de assumir as obrigações em relação ao cuidado da casa e ao trabalho, abriam espaço para julgamentos e avaliações negativas. Pedrina apontou em vários momentos para o sentido valorativo que a classificação de loucura tinha na localidade em que vivia. A busca da família por diversos tratamentos, dentre eles os sobrenaturais através de rezas e bênçãos, indicam para as tentativas de controle familiar dos comportamentos que causavam prejuízos à reputação individual e que atingiam o coletivo, perturbando a harmonia numa determinada vizinhança.
O comportamento piorou após o nascimento da filha. O bebê foi afastado da mãe aos quatro meses de idade, uma vez que a mesma se mostrava incapaz de realizar qualquer atividade. Com essa atitude, os familiares buscavam alternativas que pudessem auxiliar Pedrina a se livrar do mal que a afligia. O entendimento de que o aleitamento causava fraqueza na mãe teria motivado a separação das duas E, enquanto aumentavam os comentários e julgamentos na vizinhança, a família buscou acionar recursos para resolver a situação. Um “doutor” visitou a jovem mãe e receitou alguns remédios, não sendo diagnosticado doença alguma (WADI, 2009, p. 162, 174).
Quando se encontrava internada no Hospício São Pedro, Pedrina passou a escrever cartas aos médicos e familiares, onde explicava o período anterior ao internamento na instituição psiquiátrica. Numa das missivas afirmou que, antes de cometer o crime, sua família teria também chamado uma “mulher feiticeira” para verificar se ela tinha “algum feitiço”. Além dessa, também foi visitada por outros “dois feiticeiros”37. A percepção de que os descontentamentos e indisposições que afligiam a jovem mãe poderiam ter origem sobrenatural, pode ser compreendido através dos tratamentos em que a mesma foi submetida. Pedrina foi atendida por “feiticeiros” (as), pessoas essas que podiam afastar ou romper com os feitiços, causadores de doenças e infortúnios diversos. Porém, todos os que a atenderam afirmaram que a mesma não se encontrava enfeitiçada.38
Para além do diagnóstico, entende-se que a crença no feitiço estava presente entre a população colonial, de que algumas doenças poderiam ser consequência da ação direta do sobrenatural. É provável que a explicação para a situação da jovem mãe fosse percebida como ligada ao poder mágico, devendo, portanto, ser a mesma submetida a rituais e orações, enquanto recursos para garantir o restabelecimento da normalidade do seu comportamento.
A procura por curandeiros, “feiticeiros” e padres para restaurar a saúde dos indivíduos acometidos por males físicos não era incomum na realidade vivida por descendentes de imigrantes nas primeiras décadas do século XX.39 O entendimento de que doenças e infortúnios podiam ser causados por forças sobrenaturais demandava a intervenção de sujeitos acreditados como possuidores de poderes mágicos. Nos locais de colonização italiana, as enfermidades em crianças, adultos ou animais eram entendidas como malefícios causados por vizinhos com os quais havia alguma inimizade. O surgimento de conflitos, bem como a existência de sentimentos de inveja e desconfianças, levava às pessoas a ver as doenças como consequência de uma vingança pessoal.
Neste sentido, a crença na eficácia do “feitiço” propiciava um entendimento sobre a origem sobrenatural das enfermidades e a necessidade de que fosse rompida a continuidade dos prejuízos, muitas vezes através do uso da violência física. A crença de que alguns indivíduos podiam acessar o sobrenatural para causar algum mal não deve ser compreendida sem levar em conta as disputas, vinganças, invejas e até o rompimento das reciprocidades entre sujeitos que residiam num mesmo espaço (VENDRAME, 2016). A bruxaria e feitiçaria eram justificativas socialmente aceitas para entender as doenças em pessoas ou em animais, bem como uma explicação para o fracasso individual numa sociedade camponesa marcada por conflitos, vinganças e controle social.
Era, portanto, a crença no poder mágico de certos ritos e orações que fazia com que as pessoas recorressem a curandeiros/feiticeiros e sacerdotes que possuíam certo prestígio entre a população. Antes de ter cometido o crime, Pedrina foi submetida aos cuidados e tratamento das freiras pertencentes à ordem das Irmãs de São José de Moûtiers, fixada na localidade de Garibaldi. Como muitos padres, as mencionadas irmãs, além de se dedicarem à educação das crianças, também atendiam aos doentes. Após várias visitas, Pedrina, que há tempos se negava a comer, voltou a se alimentar e a ter um cuidado maior com a aparência. A oração, certamente, era uma das principais armas das mencionadas freiras, pois entendiam ser a doença uma consequência do castigo divino ou possessão satânica (WADI, 2009, p. 231-233). O castigo divino e a possessão diabólica também eram percebidos como causadores de enfermidades e infortúnios entre a população que vivia nas regiões de colonização europeia.
Em relação à Anna Maria, o agravamento dos “sintomas de loucura” fez com que aquela fosse submetida a um tratamento curativo que consistia em “fricções com água ardente pelo corpo”. Na noite anterior ao crime, o indivíduo que a assistia fez uso da mencionada substância para buscar acalmar o estado de excitação da mesma, conforme indica uma das depoentes.40 As indisposições que a tempos castigavam Anna Maria foram apontadas como “irregularidades própria de mulheres”.41 Sem indicar o tipo de problema específico enfrentado por Ana, provavelmente estavam relacionadas aos ciclos menstruais e ao funcionamento do útero. A não regularidade dos ciclos poderia também ser vista como consequência de algum encantamento ou sortilégio. Nesse sentido, a “madre” (sistema reprodutivo feminino) enfeitiçada desregulava o funcionamento do corpo das mulheres, sendo, portanto, os problemas femininos percebidos como essencialmente uterinos (DEL PRIORI, 2009).
A justificativa de que Anna Maria se encontrava acometida por doença “própria de mulheres”, somada à alegação de que manifestava sinais de loucura e que para acalmá-la fizeram uso da água ardente através de beberagens e fricções pelo corpo, indicava para uma compreensão particular sobre as perturbações e visões que afetavam a enferma. A loucura como uma enfermidade ligada aos males do útero feminino e ao sobrenatural é algo que pode ser percebido a partir das explicações conferidas nos dois processos-crimes aqui analisados. Em ambos os casos, aparecerem indícios que permitem questionar o fato das agitações e “sintomas de loucura” de Anna Maria e Pedrina serem entendidos como doenças e adversidades que tinham uma origem sobrenatural.
Entender o aparecimento de doenças e pestes que causavam prejuízos às plantações e aos animais como resultado de um castigo divino ou feitiçaria era algo presente entre as famílias que viviam em áreas rurais. Um feitiço podia ser lançado a uma criança ou animal doméstico pelos vizinhos com os quais havia alguma rivalidade. Logo, a crença que alguns infortúnios tinham origem sobrenatural, sendo geralmente causadas por inimigos e rivais, também era um desencadeador de ataques violentos e vinganças (VENDRAME, 2016). A perda da saúde, a ruptura das relações de amizade e o surgimento de um clima de tensão e suspeitas constituíam um cenário privilegiado para o surgimento de suspeitas.
Os incômodos de Anna Maria , definida como “irregularidades próprias de mulheres”42, estavam relacionadas a questões sexuais e reprodutivas. Apesar de não terem sido mencionadas quais eram as “anormalidades” que o corpo e o comportamento dela manifestava, talvez estivesse relacionado à dificuldade para engravidar. Explicar indisposições e enfermidades como decorrentes de forças sobrenaturais, como um feitiço, esclarece, em parte, a justificativa apresentada por Anna Maria . A explicação de que “um anjo” lhe havia pedido que “levasse três anjinhos”, e que tal solicitação a fez se deslocar até a casa da vizinha para matar as crianças, e, logo depois do crime, retornou a certa normalidade, é algo que indica para a percepção de que forças mágicas haviam sido motivadoras da ocorrência do delito.
Determinadas enfermidades e infortúnios pareciam ter uma origem sobrenatural, sendo motivos de conflitos e rivalidades entre indivíduos que viviam num mesmo espaço. Essa era uma explicação considerada legítima em diferentes realidades.43 As invejas e tensões poderiam ser algumas das motivações para que fosse lançado um mau-olhado, causando doenças em crianças e enfermidades de ordem mental nas mulheres, conforme é constato em estudo que analisa as acusações de bruxaria e feitiçaria entre população de origem pomerana no sul do Brasil (BAHIA, 211, 372). A percepção da presença de elementos mágicos na origem das perturbações que atingiam as mulheres e crianças estava ligada às tensões, ressentimentos e rivalidades surgidas entre pessoas conhecidas. Neste sentido, o entendimento de que algumas doenças tinham origem sobrenatural, sendo consequência de um infortúnio, podiam desencadear violências físicas enquanto um recurso para interromper o malefício e restaurar o equilíbrio rompido entre famílias vizinhas.44
A existência de conflitos na vizinhança, especialmente a percepção negativa em relação ao comportamento daqueles que não se mostravam confiáveis e solidários, podia fazer surgir suspeitas de que os males físicos haviam sido causados por aqueles que tinham poderes sobrenaturais, como as bruxas. O malefício era uma explicação conferida as adversidades surgidas na vida cotidiana, em particular as originadas nos espaços de sociabilidade feminina entre pessoas de determinada vizinhança. A ideia de que certas mulheres eram causadoras de enfermidades, aparece como característica muito presente em sociedades camponesas europeias do Antigo Regime (Macfarlane apud RUSSELL; ALEXANDER, 2008, p. 115). As hostilidades, os sentimentos de inveja e o não cumprimento de obrigações morais de auxílio faziam surgir suspeitas em relação às más intenções de alguns.
Nas crenças dos grupos populares e camponeses, os males sofridos pelo corpo e sexualidade estavam ligados à maneira como eram avaliadas as ações individuais pela comunidade. Uma série de ritos mágicos e simpatias era acionada para fazer recuperar ou restaurar um determinado estado de normalidade ou regularidade, existindo a compreensão de que em determinados períodos, como o da menstruação, gravidez e aleitamento, a condição física da mulher se tornava frágil (MATTHEWS-GRIECO, 2005). O entendimento sobre a debilidade do corpo feminino e exaltação dos nervos, enquanto uma questão ligada à diferença sexual, marcava as explicações médicas, nos séculos XIX e XX, sobre os comportamentos violentos e enfermidades. As diferenças sexuais entre homens e mulheres eram elementos que explicavam as distintas questões psíquicas, as anormalidades, debilidades nervosas e doenças. Logo, a histeria e a loucura aparecem como perturbações essencialmente femininas, ligadas ao útero, podendo estar também associadas a possessões sobrenaturais, causadas por espíritos ou pelo demônio (CASTELLS, 2016).45
O organismo da mulher apresentava predisposição para a doença mental, estando essa ligada às fases reprodutivas, como a maternidade ou ausência da mesma. A menstruação, a gravidez e o parto eram aspectos priorizados na definição e diagnóstico da loucura feminina.46 O período menstrual era compreendido como o momento propício para o surgimento de distúrbios mentais, enquanto que na percepção popular existia a crença de que o mesmo carregava qualidades mágicas. Mais do que ser apenas uma perspectiva dos médicos, a maternidade, de um modo geral, era vista como algo capaz de prevenir e curar moléstias femininas. A não ocorrência da gravidez indicava para um estado de anormalidade, podendo ser percebido como fruto de um malefício que tinha origem sobrenatural que levaria a mulher a um estado de loucura. O cumprimento dos deveres da maternidade (parto, gestação, amamentação etc.) era atributo indispensável para a manutenção da boa saúde da mulher e da regularidade do seu corpo (ENGEL, 2007, p. 33-35, 342). Não engravidar, na visão popular, era entendido como sinal de fraqueza, anormalidade, irregularidades no útero e desequilíbrio.
Ao se estabelecer comparações entre os casos de Anna Maria e Pedrina constatou-se que, apesar de existirem diferenças entre elas, alguns aspectos permitem pensar em questões que afetavam a ambas. Por meio das aproximações é possível sugerir questionamentos sobre os significados atribuídos a determinados comportamentos e o peso de alguns sentimentos como a vergonha, bem como as tensões e controles num universo camponês. Enquanto Pedrina nega a maternidade tempos depois do nascimento da filha, Anna Maria ainda não havia se tornado mãe.
A dificuldade das mulheres em desempenhar o papel de boa esposa e mãe é algo que, nas primeiras décadas do século XX, estará presente nos diagnósticos médicos de loucura feminina. Através de critérios científicos, a medicina surge enquanto instância de controle da vida social dos indivíduos que se apresentavam como desviantes, afrontavam as normas socias e cometiam crimes. Logo, a incapacidade da mulher de assumir funções vistas como definidores e essenciais da sua natureza feminina, era percebida como indicadora de doenças mentais (NUNES, 2010; ENGEL, 2007). Como já destacamos, os deveres da maternidade surgem como aspectos indispensáveis da saúde e reguladores da sexualidade da mulher/esposa.
Não se pode negar as aproximações entre o saber médico e a psiquiatra com as percepções populares sobre a relação do corpo das mulheres - alterações como menstruação, parto, maternidade - e a loucura. Os aspectos que caracterizavam o feminino, essencialmente as questões ligadas ao útero, eram fatores que tornavam as mulheres vítimas da sua própria natureza. Nesse sentido, os comportamentos violentos e os crimes, como aqueles praticados contra crianças, ocorriam frente à ausência de sentimento ligado à maternidade ou “irregularidades” dos órgãos reprodutivos.
Os discursos médicos e criminológicos irão entender as mulheres que cometiam determinados crimes, como o delito de infanticídio e homicídio, através da perspectiva da loucura e da histeria, garantindo, assim, a imputabilidade das acusadas. A relação entre enfermidade mental, violência e criminalidade é uma perspectiva que se constrói a partir da percepção da diferença desigual e hierárquica entre os corpos feminino e masculino (CAPONI, 2019; SOMAVILLA; LUCENA, 2003). A convicção de que existia uma maneira normal de ser mulher, que se assentava no desempenho da condição de mãe, e que ser louca não era o mesmo que ser louco, foi algo discutido pelos médicos psiquiatras no decorrer nos séculos XIX e XX.47
O debate sobre a “feminização da loucura” é um tema destacado em trabalhos que buscam analisar os processos pelos quais a loucura se caracterizou como um transtorno feminino, uma vez que as mulheres tinham mais probabilidade a serem percebidas com transtornos mentais, especialmente aquelas que não aceitavam assumir determinados papéis. Levando em conta essa questão, não podemos deixar de problematizar a loucura a partir de uma perspectiva de gênero, considerando, assim, a existência de relações e tratamentos desiguais, segundo a natureza sexual dos corpos.48 Neste sentido, a criminalidade feminina estava associada à existência de um “desequilíbrio nervoso natural”, segundo os psiquiatras, assumindo aspectos ligados ao gênero e a dificuldades de cumprir certos desempenhos sociais. Enquanto para as mulheres os desejos de independência e liberdade sexual influenciavam na identificação da loucura, para os homens, era a impossibilidade de realizar algumas tarefas e a incapacidade para cumprir determinados papéis (SOMAVILLA; LUCENA, 2003, p. 13-15). A dificuldade de realizar as funções esperadas na família, na comunidade e no trabalho eram fatores que demandavam o acionamento das instituições, como os hospícios, que assumiam um papel de controle social e normatização das condutas.49
Mais do que buscar entender os diferentes significados atribuídos à loucura, conferidos pelos médicos e os atribuídos pelos familiares, procuramos uma via de acesso ao mundo social e cultural de origem daquelas pessoas afastadas da convivência comunitária quando da ocorrência de um crime. Nesse sentido, pensar o delito feminino e a loucura através de uma perspectiva de gênero50 é algo que ajuda a problematizar uma série de questões sobre os limites locais da tolerância em relação à determinadas condutas, o peso do controle moral na família e vizinhança, o momento em que a loucura aparecia e os motivos do afastamento para o hospício.
Conforme as informações presentes no quadro apresentado anteriormente, no processo em que Anna Maria é ré, as testemunhas reforçaram as relações pacíficas entre a acusada e os vizinhos com os quais mantinha relações parentais. Ao serem questionadas pelas autoridades, negaram o fato do crime ter ocorrido por motivo de vingança ou rivalidades existentes entre as vizinhas. Apesar disso, os depoimentos apontam sobre a existência de possíveis impasses, como quando Catarina C. (mãe das crianças) afirma que Anna Maria “tinha roubado milho em sua roça” para não passar fome. Por fim, reforça a depoente estar “convencida de que a ré tinha consciência do crime que praticou”, tendo a mesma “pedido perdão” e confessado à autoridade policial o delito, porém, não podia saber se o homicídio “foi um ato de loucura”.51
Indicando a existência de tensões na família, outro depoente afirma que Anna Maria , depois de casada, não permaneceu por muito tempo na casa paterna devido aos “maus tratos” do pai, João J., tendo este inclusive ameaçando de morte o genro. Por conta disso, o casal foi abrigar-se num “pequeno ranchão” construído numa “roça” existente sobre as terras da família, passando a pernoitar na casa de uma vizinha.52 De acordo o Nicolau C., marido da acusada, desde o casamento sua mulher vivia “sempre sobressaltada”. A situação agravou-se quando Anna Maria tomou conhecimento, por intermédio dos irmãos, que “seu pai, que também é desequilibrado, pretendia matar ele respondente”. Essa notícia prejudicou o “estado mental da denunciada ao ponto de, na véspera do delito, pretender se suicidar por meio de enforcamento”.53 As relações entre Anna Maria e o pai não eram amistosas, estando aquela também descontente em relação aos comentários que circulavam pela vizinhança, quando da ocorrência do crime. Os relatos dos depoentes apontam para as tensões no interior do grupo familiar, o que teria motivado o jovem casal a encontrar meios para morar, trabalhar e garantir a própria sobrevivência não mais na casa paterna.
De acordo com algumas testemunhas, o pai de Anna Maria também sofria de faculdades mentais, motivo pelo qual tinha dificuldade para cumprir com certos compromissos morais. O fato de João J. se afastar do “convívio social” e se retirar para os “matos”, é apontado como aspectos que indicavam viver ele em estado de loucura.54 A busca pelo isolamento ia contra o ideal de convivência solidária que se esperava dos vizinhos e parentes nas comunidades camponesas fundadas por imigrantes europeus, propiciando, assim, o surgimento de desconfianças e medos. Os impasses que surgiam no interior de uma determinada família ou parentela deviam ser contornados pelos próprios envolvidos enquanto maneira de controlar e restabelecer os equilíbrios ocasionados por conflitos e situações que causavam instabilidades locais.
As tensões entre os integrantes da família de Anna Maria parecem ter se agravado quando do casamento da mesma, que passou a morar com o marido na casa onde residia o pai e irmãos, tendo sua mãe falecido anos antes, em 1901. Nesse período, residiam na casa 10 filhos (cinco homens e cinco mulheres), além dos pais. Anna Maria era a terceira filha e, provavelmente, assumiu junto com os irmãos mais velhos os cuidados dos mais jovens, sendo que o último deles tinha apenas 11 meses. Através do inventário, realizado quando da morte da mãe, é possível perceber que todos os irmãos estavam solteiros, momento esse em que foi realizada a partilha dos bens. Os móveis e bens semoventes55, bem como a terra onde se encontrava construído o “paiol”, local onde residiam, deveria ficar para o inventariante, o viúvo solicitante. Já o pedaço de terra que possuíam na localidade do Roncador deveria ser dividido em 10 partes, uma para cada herdeiro. Pelos bens declarados na partilha, pode-se perceber que o patriarca buscou ficar com os utensílios da casa e do trabalho, bem como com o local que servia de casa, além dos animais e carroça. Apesar de cada filho ter recebido um pedaço de terra, dificilmente conseguiriam sobreviver nas extensões herdadas sem contar com casa, ferramentas e meios para produzir nelas, o que leva a pensar que durante muito tempo ficaram residindo todos juntos. Mesmo após casada, Anna Maria não deixou de viver na residência paterna, o que fez apenas posteriormente por conta de prováveis problemas relacionais, como sugerem os depoimentos de algumas testemunhas no processo crime já apresentado. O jovem casal foi então se estabelecer num dos pedaços de terra que Anna Maria havia recebido na partilha dos bens da família. Porém, essa mudança não parece ter terminado com as tensões existentes entre ela e o pai.
Em ambos os casos analisados neste artigo, percebemos que as descendentes de imigrantes europeus reagiram frente ao controle patriarcal e cobranças sociais que recaiam sobre elas, mulheres jovens, recém-casadas, que se encontravam no início da vida reprodutiva. Insatisfeitas com o domínio paterno e a nova condição de casadas, somadas às dificuldades em relação à moradia e trabalho, reagiram de maneira similar. Mais do que os aspectos semelhantes da vida das duas mulheres, percebemos as demandas cotidianas que passaram a pesar sobre a vida de ambas. Os conflitos existentes no interior do grupo familiar, o sentimento de vergonha e a pressão social exercida através dos comentários sobre suas condições (pobres, “loucas”) foram fatores que acabaram provocando agravamento no estado de insatisfação de Ana e Pedrina. Circunstâncias que as levaram a cometer os crimes e até mesmo a acreditarem que estariam “em estado de loucura”. Os dizeres que passaram a circular na vizinhança, de que se encontravam “loucas”, tinham carga negativa e tornavam-se um sinal de vergonha. Na percepção da população que habitava nos núcleos coloniais a loucura estava associada a comportamentos condenados e a questões morais (VENDRAME, 2018, p. 109). Os julgamentos das pessoas próximas - parentes e vizinhos - e o sentimento de vergonha fizeram com que Pedrina matasse a própria filha para que essa “não a conhecesse como louca” 56.
Quanto ao caso de Anna Maria , fazia três meses que os “sintomas de loucura” se manifestavam, porém, de acordo com testemunha, o “seu marido procurava ocultar”.57 Apenas após a ocorrência dos crimes, ao serem questionados pelas autoridades, os familiares assumiram a justificativa da loucura como um enfermidade que havia se manifestado anteriormente às mortes. Logo, aspectos comuns são apontados como indicadores da perturbação mental: a ameaça e tentativa de cometer suicídio de ambas as mulheres, a questão hereditária, visto que os pais e um dos irmãos eram apontados como “loucos” e “alienados”. Também é destacada a ausência de inimizades com integrantes das famílias vizinhas, ao contrário do que acontecia no interno das famílias de ambas as mulheres.58
Por meio da leitura dos dois processos-crimes, percebemos que os consensos presentes nos depoimentos sobre o estado de loucura das rés estavam ligados à articulação local realizada logo após os eventos. Nas duas situações, ambas foram questionadas sobre os motivos do ocorrido, por familiares, parentes e vizinhos, tendo Anna Maria pedido perdão para a mãe das crianças atacadas. Entendemos que é neste momento, quando as pessoas próximas e conhecidas se reúnem no local dos crimes, que tem início as articulações para encaminhar da melhor maneira possível uma saída para os casos, evitando ao máximo a instabilidade e os prejuízos individuais e coletivos. Pensar o envolvimento da família e parentes/vizinhos no encaminhamento das criminosas/loucas para o hospício permite refletir sobre os mecanismos de controle, punição e justiça aceitos localmente quando do surgimento de certos crimes graves, como o de morte.59
Logo após ter cometido o crime e assumido a responsabilidade pelo mesmo, Anna Maria foi conduzida até a delegacia de São Sebastião do Caí. Frente à alegação de que havia cometido o delito involuntariamente devido ao seu estado de saúde, o delegado de polícia60 considerou “tratar-se de uma mulher perigosa devido as suas crises nervosas”, encaminhando a “criminosa”, que estava “sofrendo de faculdades mentais”, para o Hospício São Pedro de Porto Alegre. 61 Depois de passar pela mencionada instituição, Anna Maria voltou a responder pelo crime, sendo a ré absolvida devido a nova avaliação médica.62 Sem querer descobrir se realmente Anna Maria se encontrava em “estado de loucura” quando cometeu o delito, o que queremos apontar é a rápida articulação local após a ocorrência do homicídio e o encaminhamento da “criminosa” para a Hospício São Pedro. Os consensos em relação à loucura de Anna Maria e a maneira como tudo foi rapidamente resolvido indicam para colaborações entre a família, vizinhos e autoridades locais.
Em relação ao outro caso, Pedrina, após matar a filha, foi presa na cadeia de Garibaldi. Posteriormente, devido a uma “moléstia eruptiva febril contagiosa (varicela)”, encaminharam-na para Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, sendo, depois de curada, destinada para o Hospício São Pedro, conforme pedido do “Juiz do Crime” daquele município.63 Nas duas experiências aqui apresentadas, foram as autoridades policiais e judiciais das regiões coloniais que solicitaram o encaminhamento das criminosas para a instituição psiquiátrica, sob a alegação de que haviam comedido o crime em estado de loucura. É preciso reconhecer o papel da família e da vizinhança na articulação com as autoridades mais próximas, buscando encontrar consenso em relação às explicações fornecidas, influenciando, assim, nas decisões de enviar as criminosas rapidamente para o Hospício.
Uma análise quantitativa sobre as mulheres criminosas que foram encaminhadas das comunidades rurais para o Hospício São Pedro poderia permitir identificar frequências em relação às diferentes percepções de loucura e os modos de proceder da família, parentes e vizinhos quando da ocorrência de crimes femininos.64 Nas comunidades de imigrantes europeus no sul do Brasil, apesar da existência de julgamentos e vigilância sobre os comportamentos, quando da ocorrência de conflitos e impasses locais, a formação de redes de apoio garantia que as decisões das famílias prevalecessem. A constituição de um “tribunal privado” que buscava pensar nas maneiras de resolução dos atos condenados para a restauração da relativa paz, aparece como uma prática seguida nos núcleos coloniais do Rio Grande do Sul.65
A justificativa de que as rés haviam cometido o crime em “estado de loucura”, aparece como uma explicação preferível, pois, assim, seriam encaminhadas para o Hospício São Pedro e não para o presídio. Existia nas comunidades coloniais lógicas próprias de justiça, que se baseavam em procedimentos autônomos, muitas vezes prescindindo do Estado. Logo, a denúncia pública aparecia como recurso para expor a pessoa quando acordos privados não surtiam efeito. Por tudo isso, é preciso atentar para os usos que a população fazia dos mecanismos oficiais de punição (VENDRAME, 2016). Contudo, por vezes a condenação do Estado poderia representar prejuízo às famílias, não sendo este o objetivo quando do oferecimento da denúncia. Além disso, o cumprimento de uma pena por crime significava um longo período de afastamento, ocasionando prejuízos à reprodução familiar..
Entendemos que a ideia do Estado sobre loucura estava ligada às imagens sobre o feminino. Às mulheres cabia a função de maternidade e cuidado com os filhos. Logo, as que rejeitavam ou se viam impossibilitadas de assumir tais papéis poderiam ser vistas como “doentes”. O não cumprimento dos papéis ligados à condição de mãe, somado às transgressões sexuais e outros comportamentos condenados, podiam ser tomados como sinal de loucura. Essa apareceu como justificativa dos comportamentos violentos, rebeldia e crimes cometidos por mulheres que se encontravam insatisfeitas e revoltadas com as obrigações e pressões sociais do contexto familiar e comunitário.66
A negação da maternidade aparece como elemento central do julgamento e controle feminino. Isto porque a constituição do “ser mulher” se dava numa órbita onde a maternidade e a honra estavam em constante tensão, sendo uma dependente da outra na composição da identidade feminina (CALANDRIA, 2017). A identificação de ausência de instinto maternal permitia entender o comportamento como desprovido de razão.
Nesse sentido, o encaminhamento da mulher “criminosa” para o hospício aparece como uma escolha frente às perturbações femininas ligadas ao período menstrual, à maternidade ou ausência dela. Essa explicação funcionava como justificativa para atestar a irresponsabilidade ou para diminuir a culpa das mulheres em crimes cometidos.67 A justiça buscará identificar elementos para verificar o estado mental daquelas que cometiam delitos, e a estratégia dos advogados de defesa será, justamente, a de atestar a presença de comportamentos que indicassem enfermidades mentais. O entendimento dos crimes cometidos pelas mulheres como consequência da degeneração psíquica comum a todas as “descendentes de Eva” era, portanto, a maneira como as instituições de controle do Estado passaram a perceber os comportamentos desviantes e antissociais. A vida biológica e reprodutiva era responsável por gerar distúrbios comportamentais, sendo, portanto, “a mulher transformada em objeto de interesse científico por conta da sua ‘natureza singular e patológica’, conformando a medicalização do seu comportamento” (ROHDEN, 2001; RINALDI, 2015, p. 73, 77). O abandono das funções domésticas ou o afastamento do modelo ideal de mulher, esposa e mãe, abriam espaço para o mundo das transgressões e dos delitos.
A justificativa de loucura podia, contudo, esconder conflitos internos nas famílias e parentela. Os casos aqui analisados permitem refletir sobre usos e significados da reclusão feminina nos hospícios para as famílias que buscavam garantir o afastamento temporário de um dos membros do grupo familiar, bem como entender as lógicas e dinâmicas socioculturais dos contextos de origem das loucas/criminosas. Enquanto manifestação de um comportamento transgressor e anormal, a loucura aparece também como um sinal de vergonha, que deveria ser escondido, silenciado e resolvido privadamente, uma vez que ocasionava comentários e fofocas que prejudicavam a moral do grupo familiar.
A análise de casos específicos indica que o afastamento era uma estratégia de controle das condutas desviantes - de jovens desobedientes, esposas e maridos violentos etc. Geralmente, médicos e juízes aceitavam rapidamente as justificativas dos membros da família em relação aos apontados como insanos (ABLARD, 2005).68 O estudo de experiências particulares femininas, como as apresentadas neste artigo, pode ajudar a entender os usos das instituições psiquiátricas, os significados atribuídos à loucura, os objetivos e momentos da internação, aparecendo este como último recurso para evitar maiores prejuízos para o grupo familiar, seja de ordem moral, social ou econômica.
No presente artigo analisamos dois crimes femininos onde o diagnóstico da loucura evitara uma maior condenação das mulheres. Quando os alvos eram crianças, o entendimento de que a mãe se encontrava louca garantia a imputabilidade do crime. Não recorrentes nas fontes criminais, as mulheres aparecerem como rés em determinados tipos de crime, o que ajuda a entender que tipo de comportamento feminino devia ser criminalizado. É necessário levar em conta a perspectiva de gênero para analisar as ações e condutas das mulheres que se tornavam alvo de investigação. Além do ato criminoso em si, é importante analisar as justificativas e motivações do delito.
O sentimento de vergonha e a possibilidade de contar com apoio das redes de proteção existentes no meio rural faziam com que certos crimes femininos não chegassem facilmente às esferas judiciais. Cabia à família controlar os comportamentos contrários que fugiam dos ideais de conduta, sendo, portanto, necessário que se reflita sobre o uso que as pessoas faziam da justiça do Estado e da internação no hospício.
A justificativa da loucura lançada às mulheres que haviam cometido algum crime surgia como um motivo para uma exclusão temporária em hospício, visando o controle do comportamento das loucas/criminosas por parte da família e parentela quando do surgimento de fatos que causavam tensões e agitações locais, bem como quando do aparecimento de crimes. Entendemos que a documentação criminal e a experiências das loucas/criminosas permitem perceber os usos que as pessoas faziam de determinadas instituições, os diferentes entendimentos sobre loucura e, especialmente, o universo social e cultural de origem das reclusas, geralmente marcado por conflitos e tensões familiares que geravam fofocas entre os vizinhos.
Enquanto espaço de assistência, contenção, exclusão e disciplinamento, o encaminhamento para o hospício impedia a ida para uma prisão comum. Funcionava como uma espécie de castigo aos comportamentos femininos condenados nos locais onde viviam. Durante o período em que ambas as mulheres permaneceram no hospício, não foi possível identificar loucura, mas é certo que Anna Maria e Pedrina demonstraram todo o peso do controle da família, parentes e comunidade a que estavam sujeitas. Se havia nelas grande insatisfação, o gatilho para cometerem os crimes pode ter sido acionado pelos conflitos existentes no grupo familiar, agravado pelas fofocas da vizinhança. Esperamos que as questões discutidas no presente artigo, através das experiências vividas por duas mulheres filhas de imigrantes, tenham iluminado alguns pontos do que era viver em pequenas comunidades rurais de regiões de colonização europeia do Rio Grande do Sul.
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