Resumo: Este estudo tem por objetivo prospectar a possível localização do Prado Guarany, um dos hipódromos que houve no Rio de Janeiro do século XIX, ativo entre os anos de 1884 e 1890. Consideramos que investigar um estabelecimento nos dias de hoje pouco conhecido pode nos permitir discutir os movimentos de urbanização, bem como os processos seletivos de memória. Trata-se de uma arqueologia da paisagem. Para alcance do intuito, cruzamos informações obtidas em periódicos, iconografias (obras de arte e fotografias), mapas e trabalhos de campo (visitas etnográficas para identificar permanências no espaço). Este artigo inaugura um projeto que pretende pesquisar as modificações das paisagens da capital fluminense nas quais há registros de experiências ligadas ao esporte, uma das manifestações culturais que, desde o século XIX, intensamente tem se estruturado na cidade. Trata-se de uma proposta de construção de uma arqueologia do esporte.
Palavras-chave: História do esporteHistória do esporte,História do Rio de JaneiroHistória do Rio de Janeiro,Arqueologia do esporteArqueologia do esporte,TurfeTurfe.
Abstract: This study intends to identify the localization of Prado Guarany, one of the racecourses that existed in Rio de Janeiro in the 19th century, active between the years 1884 and 1890. We have considered that investigating an establishment little known these days can allow us to discuss the movements of urbanization as well as the selective processes of memory. It is an archaeology of the landscape. In order to reach our goal, we cross information obtained in newspapers, iconographies (art works and photographs), maps and work in the field (ethnographic visits to identify permanencies in the space). This article inaugurates a project that intends to research the modifications of the landscapes of the Fluminense capital in which there are records of experiences related to sport, one of the cultural manifestations that, since the 19th century, has been intensively structured in the city. This is a proposition to build an archaeology of sport.
Keywords: Sports History, Rio de Janeiro History, Archaeology of sport, Horse racing.
Artigos Livres
Uma arqueologia do esporte: a paisagem do Prado Guarany (1884-1890)
An archaeology of sport: the landscape of Prado Guarany (1884-1890)
Recepção: 21 Janeiro 2018
Aprovação: 03 Julho 2019
Entre as edificações e monumentos que se encontram pelas cidades - marcas de sua história e dos distintos movimentos de urbanização tanto por sua funcionalidade quanto por serem símbolos dos processos de construção de memória -, as instalações esportivas ocupam um papel especial (WOOD, 2005). Basta ter em conta a importância hodierna dos estádios de futebol1. Nos dias de hoje, além de partidas da modalidade, usualmente acolhem outros eventos, tais como espetáculos musicais. Mais ainda, não raramente seus arredores são utilizados pela população para a prática cotidiana de atividades físicas.
Em geral, ocupando uma grande área e impondo sua imagem na paisagem, as instalações esportivas, notadamente os estádios, constituem-se em referências para a população, especialmente para os torcedores, ainda mais quando são patrimônios de um clube. Mais do que complexos de concreto, madeira e ferro, são lugares de memória valorizados no cotidiano, embora nem sempre sejam reconhecidos como locais “nobres”, como certos teatros, museus e prédios tidos como exemplos de estilos arquitetônicos. Estamos de acordo com Mascarenhas (2013, p. 145): “Uma de nossas premissas fundamentais é a possibilidade de reconhecer o estádio de futebol como espaço-tempo da cidade (...), como momento e lugar da realização de parcela da vida urbana”.
Esse autor nos conclama a perceber que o que conforma os estádios como territórios não é exatamente sua estrutura física, mas sim sua utilização, o fim que lhe é dado, “o conjunto de normas e de práticas socioespaciais que ali se desenvolvem” (MASCARENHAS, 2013, p. 146). Nesse sentido, investigar sua construção e funcionamento pode ajudar a lançar olhares para a cidade, para as tensões que constituem a dinâmica citadina.
Os estádios passaram a se tornar usuais no século XIX, com maior disseminação no decorrer do século XX, conforme pari passu foi se consolidando a cidade moderna e se forjando o campo esportivo (MELO, 2010). Ainda assim, devemos lembrar que a existência de construções similares é muito anterior. Basta considerar aquelas que acolhiam práticas corporais de gregos e romanos na Antiguidade. Daquele período, veio uma instalação que se tornou, antes dos “templos do futebol”, uma das mais notáveis, os hipódromos, até mesmo porque o turfe esteve entre as primeiras modalidades a se sistematizar em muitos países (MELO, 2010)2.
No Rio de Janeiro, os hipódromos foram as primeiras instalações esportivas. As pioneiras corridas de cavalos foram promovidas, na metade inicial do século XIX, nas areias da Praia de Botafogo. Apenas em 1849, quando foi instituída a primeva agremiação esportiva da cidade, o Club de Corridas, construiu-se o Prado Fluminense, localizado entre os bairros de São Francisco Xavier e Benfica. Depois de várias tentativas de viabilizar o seu funcionamento, inclusive com a fundação de diversas sociedades turfísticas, a partir de 1868 começou a se consolidar com a criação do Jockey Club (MELO, 2014; MELO, 2015a)3.
Posteriormente, foram construídos novos hipódromos, todos nos anos 1880: o Prado Vila Isabel (ocupado pelo Club de Corridas de Vila Isabel e pelo Derby Fluminense), o Prado Itamaraty (do Derby Club), os do Turf Club e do Hipódromo Nacional. Além desses, houve um aparentemente mais modesto, o Prado Guarany, instalado na Praia Formosa/Vila Guarany, uma pequena região da cidade espremida entre o Santo Cristo e São Cristóvão.
A trajetória do Prado Guarany, que se manteve ativo entre 1884 e 1890, foi marcada pela má fama. Supostamente, sua característica principal teria sido a constante ocorrência de “tribofes”, conflitos desencadeados por trapaças ou erros de julgamento dos resultados dos páreos. Por isso, foi apelidado de “Maxixe” (MELO, CHEVITARESE, 2018).
Há poucas evidências materiais de sua existência. Um dos primeiros livros de memória do turfe fluminense, escrito por Eduardo Pacheco, em 1893, apresentou os desenhos das pistas de quatro hipódromos (Figura 1), mas não a do Prado Guarany. Até este momento, de fato, não conseguimos nenhuma referência imagética de seu formato4.
Também os mapas da cidade (Figura 2) registraram somente a existência de quatro prados. Em vermelho, está marcado o do Jockey Club, onde hoje se encontra o conjunto habitacional Bairro Carioca, antes a Cidade Light, bem próximo ao Hospital Central do Exército. Em azul, vê-se o hipódromo do Turf Club; atualmente há no local a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em laranja, o prado do Derby Club, exatamente onde está construído o Maracanã. Em verde, o Hipódromo Nacional; hodiernamente, uma parte é ocupada pela Praça Afonso Pena. Em lilás, identifica-se a área onde poderia se encontrar o Prado Guarany. Os periódicos faziam referência à Praia Formosa e Vila Guarany, mas não definiam sua localização exata.
Tendo em conta sua trajetória peculiar no que tange ao perfil de seus dirigentes e relacionamento com outras agremiações turfísticas (MELO, CHEVITARESE, 2018), este estudo tem por objetivo prospectar a possível localização do Prado Guarany. Consideramos que investigar um estabelecimento nos dias de hoje pouco conhecido pode nos permitir discutir tanto os movimentos de urbanização quanto os processos seletivos de memória. Trata-se, portanto, de um estudo de caso - uma instalação esportiva localizada numa região específica do Rio de Janeiro - que intenciona lançar olhares mais abrangentes sobre a história da cidade.
Para alcance do intuito, cruzamos informações obtidas em periódicos, iconografias (obras de arte e fotografias), mapas e trabalhos de campo - visitas etnográficas realizadas para identificar permanências no espaço, ainda que tenha passado muito tempo e que a área tenha sofrido intensas mudanças. Esse esforço de discussão e compreensão de uma região específica da cidade é assumido como uma arqueologia da paisagem.
Não consideramos a arqueologia da paisagem como um campo subdisciplinar, como sugere Sousa (2005)5, mas sim como um primeiro procedimento metodológico que um pesquisador interessado na materialidade deve adotar para melhor compreender o seu objeto de investigação. Trata-se de uma abordagem multidisciplinar, que não pertence exclusivamente a um campo de conhecimento específico ou a um especialista em particular. Deve ser pensada como um laboratório em que dialogam diferentes saberes, tais como o geográfico, arquitetônico, arqueológico, antropológico e histórico.
A paisagem é uma área de ocupação situada no tempo e no espaço, devendo ser assumida como resultado da agência humana (DUNCAN, DUNCAN, 2009). É estruturada por indivíduos que buscam se apropriar e dar funcionalidade a um determinado ambiente. Para tal, empregam mecanismos de controle e ordenação que estejam em sincronia com os seus interesses. Nesse processo, a natureza, evidentemente, não é um mero detalhe. Ela transforma ao mesmo tempo em que é transformada.
A paisagem nunca é estática na medida em que está sendo constantemente constituída como resultado e vetor das relações sociais (MENESES, 1983), processo que pode ou não convergir com a ideologia que emana do poder político institucionalizado. Até por isso, ela é produto e produtora de lembranças e esquecimentos que interpolam fatos acontecidos em momentos diferentes. Convém observar que memórias podem desaparecer - ou não se forjar - caso deixe de existir a materialidade à qual elas se referem. Em outros casos, ao contrário, mesmo com a sua destruição, seus ecos ainda permanecem por anos, tal a força da presença cotidiana do fenômeno no seu tempo.
Assim, uma das potencialidades da arqueologia da paisagem é possibilitar um entendimento mais profundo das relações entre os indivíduos e os ambientes que o cercam. Compreender o processo de mudanças do uso/apropriação dos espaços no decorrer do tempo pode ser uma eficaz estratégia para lançar um olhar sobre a dinâmica social. Até mesmo por isso, é importante que se tenham em conta as intervenções entabuladas no momento em que a pesquisa está sendo realizada.
Se, a princípio, a arqueologia da paisagem foi utilizada para a investigação de sítios arqueológicos de comunidades primitivas (FAGUNDES, 2009), recentemente tem sido também usada para uma melhor compreensão das cidades modernas e contemporâneas. Como sugere Bueno (2016, p. 100):
A paisagem é um precioso instrumento de trabalho, na medida em que, como salienta Fernand Braudel, é como nossa pele condenada a conservar a cicatriz das feridas antigas. Como acumulação desigual de tempos, as rugosidades dos sucessivos passados amalgamados na paisagem atual permitem supor cada etapa do processo social.
Partindo desses pressupostos, este artigo inaugura um projeto que pretende investigar as mudanças naquelas paisagens do Rio de Janeiro nas quais há registros de experiências ligadas ao esporte, uma das manifestações culturais que, desde o século XIX, intensamente se estruturou na cidade (MELO, 2001). Trata-se de uma proposta de construção de uma arqueologia do esporte.
No cenário nacional, não há ainda nenhum esforço claramente assumido como sendo de arqueologia do esporte. Internacionalmente, só nos últimos anos alguns investigadores têm se debruçado sobre o tema. Jason Wood (2016), um dos protagonistas desse grupo de pesquisadores, sistematizando suas ideias acerca da contribuição da arqueologia para o estudo da história do esporte, destaca dois aspectos que merecem atenção e crítica.
Seu interesse principal é a compreensão da cultura material a partir da potencial contribuição da arqueologia para iluminar narrativas textuais e documentos históricos. Ainda que se deva reconhecer os méritos de sua reflexão, especialmente no que tange a assumir a disciplina não apenas como estudo da Antiguidade, preocupa-nos a grande ênfase que concede a um aspecto que, se segue importante para o campo, tem sido questionado por seu caráter restrito: a questão da escavação.
Não só o conceito de arqueologia tem sido tratado de forma ampliada, não se prendendo à ideia de que é apenas “escavação de um sítio histórico”6, como também deve-se ter em conta que os resultados de uma pesquisa arqueológica, no caso de virem a dialogar com materialidades de certas culturas, podem contradizer parcial ou totalmente outras narrativas e documentos históricos.
O segundo aspecto a ser destacado relaciona-se à preocupação de Wood (2016) no tocante a uma possível articulação entre esporte, história e arqueologia na construção de uma agenda local, especialmente tendo em conta os significativos papéis desempenhados pela paisagem esportiva na construção da memória. Sem dúvida, deve-se reconhecer a importância do “lugar”, da “memória” e da “paisagem” no pensar do potencial da contribuição da arqueologia para a história do esporte. O problema que sentimos, nesse caso, é a falta de uma maior precisão e aplicação desses conceitos tão relevantes.
Nesse mesmo sentido, pareceu-nos necessário um pouco mais de precisão nas considerações de outro autor que tem atuado nas recentes iniciativas de construção de uma arqueologia do esporte, John Schofield (2012). O que nos incomoda é sua sugestão de que a arqueologia seria um meio de investigar duas dimensões distintas, a atividade humana passada e a cultura material resultante da pesquisa, como se fosse possível entender uma sem a outra.
A despeito desses limites, reconhecemos a importância dos esforços desses e outros autores que têm chamado a atenção para a necessidade e potencialidade de promover pesquisas arqueológicas que se debrucem sobre o fenômeno esportivo7, aqui entendido como prática urbana que se sistematizou num passado recente e foi ganhando notoriedade no tempo presente (MELO, 2010).
Ao pensar uma arqueologia do esporte, interessa recuperar a ideia de que a disciplina pode ser tomada como a investigação da materialidade das experiências sociais verificada e interpretada à luz de parâmetros heurísticos, a partir de modelos teóricos e metodológicos (HICKS, 2010).
Há que se ter em conta que um artefato/paisagem ganha a dimensão de materialidade pela intervenção de um especialista, eleição que passa também por critérios relacionados com o tempo presente. Tal escolha não se dá necessária e exclusivamente em função do que aquele artefato/paisagem representava no seu momento de produção e consumo, mas também do valor que o investigador lhe atribui no aqui e agora.
Isso implica dizer que as interpretações sofrem a mediação de valores estabelecidos no tempo do estudo, filtros de leituras que se interpõem entre o especialista e o artefato/paisagem no instante em que são investigados. A escolha do pesquisador dialoga com pares de binômios: recordação/esquecimento; pertencimento/estranhamento; presente/pretérito. Lida com uma questão central: o que deve/pode/pôde ou não ser lembrado como parte de um passado assumido como “nosso”, mesmo que o “nosso” adquira um contorno de tradição inventada, como bem destacaram Hobsbawm e Ranger (1997).
A memória, logo, não deve ser assumida como um registro mecânico de tudo o que ocorreu no transcurso da vida/história8. A propósito, o que acaba por permanecer na lembrança manifesta-se de três formas: o instantâneo, que se encerra na própria geração que a produziu; o efêmero, que pode alcançar até a geração seguinte; o de longa duração, cujo impacto ultrapassa várias gerações.
Mesmo as sociedades contemporâneas, dotadas de escrita e de arquivos capazes de guardar uma ampla variedade de documentos, fazem “escalas de memória”, um processo de seleção do que é lembrado ou esquecido, sempre uma manipulação da experiência humana em constante transformação no tempo e espaço. Isso também, obviamente, se aplica às vivências esportivas.
No caso do Rio de Janeiro, desde o século XIX percebe-se uma disseminação de equipamentos esportivos pelas suas freguesias/bairros (MELO, 2015b), decorrência de ações tomadas tanto por agentes privados quanto públicos. As atividades promovidas nesses espaços são encaradas como entretenimento por uma ampla parcela da população. Em alguns casos, essas experiências foram registradas nas memórias, na maior parte das vezes instantâneas ou efêmeras.
Não se trata de um processo exatamente espontâneo. Houve iniciativas (eventualmente bem-sucedidas) de imposição de uma memória “oficial” em detrimento de outra “subterrânea”, aquela produzida por grupos minoritários no que tange às disputas de poder. Por motivos diversos, foram “esquecidos” relevantes ecos das vivências esportivas.
Investigar, portanto, as paisagens nas quais essas experiências se desenrolaram parece ser um esforço interessante no que tange a desvendar mais uma faceta da história da cidade, inclusive do ponto de vista do patrimônio esportivo, um tema que tem recebido pouca atenção no cenário nacional e mesmo internacional (MELO, FONSECA, PERES, 2017). Da mesma forma, conhecer melhor os artefatos decorrentes das vivências com o esporte pode ajudar a ampliar nosso olhar sobre o fenômeno e sobre a urbe que as acolheu.
Lowenthal (1999) apresenta um argumento que está diretamente relacionado ao que aqui está sendo chamado de arqueologia do esporte. Diz respeito à decisão de salvar o passado tangível, uma resolução recente, mais claramente delineada no século XX. Bem entendido, no longo processo histórico, as sociedades tenderam a negligenciar a maioria dos remanescentes. Levando em conta um tipo de herança coletiva, permitiu-se que o passado, enquanto materialidade física, sobrevivesse, decaísse ou desaparecesse como as leis da natureza.
Se, no século XIX, as nações europeias se identificaram mais amiúde com sua herança material, foi somente no século XX que grandes programas foram lançados para protegê-la. Esforços para garantir que as “relíquias” não fossem expostas à destruição e à decadência só se tornaram mais comuns nas últimas décadas.
Em terras brasileiras, houve também interessantes diálogos entre cultura material e História, destacando-se as contribuições de dois importantes intelectuais: Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses e Pedro Paulo Abreu Funari.
Meneses (1983) foi pioneiro nessa área, um trabalho amplamente utilizado em trabalhos acadêmicos e salas de aulas. A ênfase consistia em “lançar algumas pistas para refletir sobre o alcance de um tipo de documento, as coisas físicas, como campo de fenômenos históricos, sem o qual a compreensão de uma sociedade se vê comprometida” (MENESES, 1983, p. 103).
Funari tem sido bastante profícuo em termos de uma produção acadêmica consolidada, veiculada por meio de livros individuais (1988, 2006) ou organizados com pesquisadores brasileiros (2005a) e estrangeiros (1998, 1999, 2005b, 2008). Fica evidente, na sua obra, a necessidade de um diálogo cada vez maior entre História e Arqueologia a fim de se ampliar a documentação e iluminar com maior precisão os contornos do objeto de pesquisa.
Enfim, por uma arqueologia do esporte entendemos a investigação de um tipo particular de materialidade diretamente associada a um fenômeno que tem sido intensamente acessado por diversos setores da sociedade. Trata-se de prospectar e interpretar artefatos e paisagens nas quais essas experiências ocorreram. A proposta multidisciplinar cruza elementos das arqueologias industrial, urbana e contemporânea, tendo o potencial de contribuir para os estudos históricos por ampliar a compreensão sobre uma vivência humana específica.
A propósito, pela abrangência do fenômeno, a arqueologia do esporte não deve se resumir a investigar apenas a prática formalmente institucionalizada, mas sim seus mais diferentes arranjos, as experiências sociais ao seu redor, protagonizadas e vivenciadas por uma plêiade de agentes históricos.
O Prado Guarany teve origem em outro estabelecimento, o Boat Rink, inaugurado em setembro de 1884 (Figura 3). Tendo como proprietário Saul Severino da Silva, promovia corridas de remo, a pé e de velocípedes. Chegou a contar com bom público e ser reconhecido com um dos lugares elegantes da cidade (MELO, CHEVITARESE, 2018).
No mesmo mês de fundação, um grupo anunciou que instalaria um hipódromo no Boat Rink, que até dezembro continuou em funcionamento. A partir de então, entrou em cena o Prado Guarany (Figura 4), que se manteve ativo até 1890, quando foi posto à venda depois de uma enchente que ocasionou muitos problemas na região. Na sua curta trajetória, acolheu quatro agremiações turfísticas: Associação Prado Guarany (1884/1885), Hipódromo Fluminense (1885), Sport Fluminense (1886/1887) e Sport Club (1887/1890).
Para dar início à investigação, foram consultados 37 mapas da cidade, abrangendo um período temporal situado entre 1760 e 1922. O primeiro a indicar a localização da Praia Formosa foi o de Michellerie e Steinmann, lançado em 18319. O balneário foi se tornando, de fato, melhor delineado conforme paulatinamente diminuiu o tamanho do Saco de São Diogo. Desde o século XVIII, esse braço de mar foi sofrendo sucessivos aterros, intensificados com a chegada da família real portuguesa (1808), inclusive para facilitar o trânsito dos monarcas entre o Paço do Largo do Carmo (atual Praça XV) e o Palácio da Quinta da Boavista.
O processo de aterro fica claro ao se comparar mapas de 1808 (Figura 5) e 1864 (Figura 6). No primeiro, se percebe a Praia Formosa (não denominada, marcada em vermelho) integrando o Saco de São Diogo que avança em direção ao Campo de Santana (em azul). No segundo, o antigo braço de mar já estava mais aterrado e a Praia Formosa melhor delineada no encontro com a Praia dos Lázaros, futuramente também chamada de Praia das Palmeiras.
Na imagem a seguir (Figura 7), podemos ver a referência aos aterros no nome dos logradouros marcados em azul (Rua de São Diogo, Rua do Aterrado, Rua do Mangue, Rua de Pedro da Cidade Nova e Rua do Sabão da Cidade Nova)10. Para facilitar a localização, os círculos em vermelho identificam a Estação Central da Estrada de Ferro Pedro II e o Campo de Santana. A linha laranja indica a Praia Formosa.
A Vila Guarany surgiu no mesmo período em que se propôs o aterro da Praia Formosa, que começou a se materializar na transição dos anos 1870 e 1880. O decreto 7.302, de 24 de maio de 1879, autorizou:
o Engenheiro Luiz Raphael Vieira Souto, Francisco José Gonçalves Agra Filho e Filadelpho de Souza Castro a aterrarem a área compreendida entre as praias dos Lázaros e Formosa e as ilhas dos Melões e das Moças (...), arrasando a nível os morros existentes nestas ilhas e parte do morro do Pinto, construindo outrossim um cais naquela parte do litoral (BRASIL, 1879).
No mesmo ano, apresentaram-se as plantas para a realização da obra. Todavia, houve uma série de atrasos. Os engenheiros encontraram várias dificuldades e muitos foram os pedidos de mudanças na concessão e nos projetos. Percebe-se que, em 1884, ainda não se iniciara o desmonte do Morro do Senado (BRAZIL, 1884, p. 2), cujas terras ao fim foram utilizadas na execução do aterro11.
Deve-se ter em conta que a Praia Formosa não era de fácil acesso, ainda que geograficamente próxima do Centro. As dificuldades tinham a ver com a geografia da região e a falta de transporte. Era habitada por gente das camadas médias baixas e populares. Os relatos nos jornais transitavam entre considerá-la um sítio bucólico, marcado pela existência de uma colônia de pescadores, ou um lugar turbulento em função da constante presença de prostitutas e capoeiras, sempre citados quando os moradores pediam a ação policial. A intervenção do poder público na área tinha ainda em conta indicações da Junta de Higiene Pública, relacionadas a preocupações com o saneamento.
Enquanto atrasava a execução do aterro, quem impulsionou a ocupação da região foi a Empresa Ferro-Carril Vila Guarany (CARDOSO, 1987), de propriedade de Francisco Eugênio de Azevedo - “comerciante mineiro que mudou para a Corte por volta da década de 1850, tornando-se negociante de grosso trato, matriculado no Tribunal do Comércio” (PINTO, 2016, p. 46).
Pelo decreto n. 8548, de 20 de maio de 1882, Francisco Eugênio recebeu o privilégio para “a construção, uso e gozo de uma linha de carris de ferro entre a Praia Formosa e a Estação de São Cristóvão da Estrada de Ferro D. Pedro II, com um ramal para a Praça D. Pedro I” (BRASIL, 1882a). Encontrou dificuldades para iniciar seu empreendimento. Pelo decreto n. 8776, de 25 de novembro de 1882 (BRASIL, 1882b), prorrogou-se o prazo para dar início às obras.
Alguns importantes personagens da cidade, além de Francisco Eugênio, se envolveram com a Empresa. Um deles foi o engenheiro Antonio José de Mello e Souza, cujo nome foi dado a uma das ruas da Vila Guarany. Não confundir com o futuro senador e governador potiguar. Trata-se de um membro da importante família que viera de Portugal e se notabilizara pelo comércio de carnes. Eugênio e Souza eram tratados por comendador, sinal de que alguma relevância tinham na vida do Império.
O serviço da Empresa Vila Guarany iniciou-se em novembro de 1883. Segundo Stiel (1984), os 3.845 metros da rede estavam assim distribuídos:
1.800 m da praça Francisco Eugênio12 à rua Duque13 e 2.045 m no ramal da rua São Luiz Durão14. Os trilhos empregados eram do sistema Spelman e a bitola de 0,82 cm. Possuía uma estação com cocheira e várias dependências na praça Francisco Eugênio e outra na rua Duque de Saxe.
A inauguração foi celebrada com uma grande festa que mobilizou habitantes da região e ilustres convidados. Foi a primeira das muitas que a Empresa promoveu sempre tendo em conta potencializar e divulgar seus negócios (Figura 8). Além disso, tratava-se de uma estratégia para demonstrar que a nova área estava plenamente inserida na dinâmica de uma cidade que já ocupava notavelmente a cena pública com fins de diversão, inclusive em função da melhor conformação de um mercado de entretenimentos (MELO, 2017).
A companhia não permaneceu muito tempo nas mãos de Azevedo. Ele até recebeu autorização para ampliar o serviço para algumas ruas de São Cristóvão (BRASIL, 1885), mas ao fim transferiu sua concessão para a Companhia de Ferro-Carril de Vila Isabel (BRASIL, 1886). Ainda que o tamanho da rede da Empresa Vila Guarany fosse significativamente pequeno15, atraía interesse em função de esta estar instalada em potencial zona de expansão. Muitos foram os conflitos que enfrentou com as outras companhias de transporte pelo privilégio de atender a área16.
De toda forma, o nome do comendador ficou registrado na região. Nos dias de hoje, ainda existe a Rua Francisco Eugênio, ligando a Francisco Bicalho à Quinta da Boavista. Para um cronista, graças as suas ações, criara-se “um novo bairro na capital do Império”, bem como se implementou o “saneamento da cidade” (DIÁRIO DO BRASIL, 1883, p. 3). Suas intervenções foram muito celebradas pelos “esforços que emprega para melhorar um bairro esquecido” (GAZETA DA TARDE, 1884, p. 3).
De fato, a Vila Guarany se materializou em conjunto com a instalação da empresa de transporte, no mesmo ano de 1883. Foi planejada a partir de princípios modernos, com ruas retas e quarteirões quadriculados, prevendo-se a oferta de serviços urbanos básicos. Um cronista assim saudou o empreendimento: “Domingo, fez um ano que daquelas águas salgadas que umedeciam a Praia Formosa surgiu a Vila Guarany, que o sopro de um homem animou o que hoje é um bairro aprazível” (REVISTA ILUSTRADA, 1884, p. 2).
Para criar a Vila Guarany, Francisco Eugênio se associou ao Banco Industrial e Mercantil17 e adquiriu “a extensa chácara do antigo negociante Costa Ferreira” (BRAZIL, 1883, p. 2). Essa teria sido, inclusive, a ideia original, sendo a empresa de transporte decorrente do intuito de tornar atraente a ocupação do novo bairro. Conforme no Rio de Janeiro se sentia a necessidade de espraiar a zona urbana em função do aumento do número de habitantes, a região passou a ser pensada como lugar de moradia, para o qual havia a necessidade de aterros.
O projeto de urbanização enfrentou dificuldades para ser concretizado em função de objeções do poder público à instalação de construções em área alagadiça, bem como da população de São Cristóvão devido aos transtornos ocasionados pelas obras. Além disso, por interesses comerciais, alguns consideraram absurda a concessão de exploração daquele espaço que se localizava “nos fundos do antigo matadouro em terreno mal aterrado, baixo e insalubre” (JORNAL DO COMÉRCIO, 1883, p. 2). De toda forma, houve também apoios por parte de certos setores da imprensa que vislumbravam o potencial para valorizar e melhorar a qualidade de vida da área. Depois de algumas negociações, o empreendimento acabou sendo autorizado18.
Mas quem habitaria a nova região? Não temos como precisar. De toda forma, há que se ter em conta que São Cristóvão em breve começaria a receber as primeiras iniciativas industriais e mudar de perfil, algo que se acentuaria na transição dos séculos e décadas iniciais do XX. As famílias mais abastadas já se transferiam para a Zona Sul, especialmente para o Flamengo e Botafogo, à busca dos ares saudáveis do litoral. Posteriormente, também seriam estimuladas pela proximidade do poder: a partir de 1897, o centro decisório da República se instalaria no Catete.
Vale observar que os jornais chegaram mesmo a ponderar que a Vila Guarany poderia ser utilizada para resolver o “problema das habitações das classes operárias” (GAZETA DA TARDE, 1884b, p. 2). Apontavam-se como vantagens a organização, a higiene, a boa rede de transporte e a proximidade com a região central. Vejamos que essa posição foi publicada na Gazeta da Tarde, periódico que tinha grande simpatia pelas causas populares (PINTO, 2014), dirigido por José do Patrocínio, o abolicionista que tinha na região sua base eleitoral19.
Os jornais acompanharam amiúde o processo simultâneo de instalação da Empresa Ferro-Carril e da Vila Guarany. Em 1881, informou-se a conclusão da via que comunicava a Praia Formosa com a recém-construída Rua Francisco Eugênio (JORNAL DA NOITE, 1881, p. 3). Em 1883, Francisco Eugênio e o Banco Industrial e Mercantil solicitaram a iluminação a gás das ruas da região a fim de facilitar tanto a passagem dos bondes quanto o aumento do número de habitações, pedido atendido pelo Ministério da Agricultura (REVISTA DE ENGENHARIA, 1883).
Desse cenário de mudança, fez parte o Boat Rink/Prado Guarany. Provavelmente pesou na decisão de Saul Severino para instalar o estabelecimento na região a grande oferta de lotes. Vejamos que, em 1884, estavam sendo oferecidos, em leilão conduzido por Roberto Grey, muitos prédios e terrenos do Banco Industrial e Mercantil, “todos divididos em lotes, limitando com os rios Joana e Maracanã, completamente desobstruídos, e comunicando com a Praia Formosa”. Situavam-se nas ruas Francisco Eugenio, Oliveira Fausto, Fonseca, Souza Pinto, Coronel Figueira de Melo e São Cristóvão, algumas delas recém-construídas (JORNAL DO COMÉRCIO, 1884, p. 4)20.
O pouco tempo de existência da Empresa Ferro-Carril Vila Guarany e do Prado Guarany parece uma metáfora da própria Vila Guarany. No início dos anos 1880, o bairro começou a ser instalado com o aterro dos alagadiços ao redor dos rios Joana e Maracanã. Em 1882, ganhou uma nova área com a transferência do Matadouro para Santa Cruz21. No fim do século XIX, foi de novo reconfigurado com o aterro da Praia Formosa. No início do XX, houve novas mudanças com a conclusão da parte final do Canal do Mangue22, que recolhia as águas dos rios que desaguavam na região e as levava até o novo porto, construído com o aterro da Praia de São Cristóvão e Saco dos Alferes.
Atualmente, em boa parte de onde havia a Vila Guarany está construída a Avenida Francisco Bicalho, embora seu núcleo original ainda esteja no mesmo lugar, mesmo que bastante descaracterizado. O Morro de São Diogo, nos dias de hoje, é uma pequena elevação que mal lembra o passado; foi arrasado por uma pedreira que serviu durante décadas à cidade.
As imagens a seguir exibem uma rara visão da Vila Guarany (Figura 9) e de sua posterior descaracterização (Figuras 10 e 11).
A Vila Guarany deixou poucos registros na cartografia. Somente encontramos referência ao bairro em dois mapas consultados: um do início dos anos 1900 (Figura 12) e outro de 1910 (Figura 13), esse último já com o novo porto e o Canal do Mangue construídos. Em vermelho, vê-se a identificação da região. Em azul, para fins de localização, observa-se o Campo de Santana.
Ainda que tenha se ampliado o bairro, com a nova vocação econômica - instalação de indústrias e grandes armazéns relacionados à atividade portuária -, a área foi sendo apagada da memória da cidade, tornando-se menos valorizada, inclusive, em função da degradação do tecido urbano.
Mas, afinal, onde estaria o Prado Guarany? Como vimos, os anúncios do hipódromo publicados nos jornais apenas informam que se localizava na Praia Formosa/Vila Guarany. Nos mapas e iconografias, não conseguimos indicações. Num trabalho de campo exploratório (visita etnográfica) que realizamos na região, encontramos um indício interessante, um ferro velho que possuí símbolos de turfe na fachada, estabelecido na Rua Pedro Alves, 113.
O dono nos informou que o negócio há muitas décadas pertence a sua família. Ainda há no estabelecimento uma velha máquina de fazer ferraduras. Sugerimos, todavia, que é mais provável que pudesse servir prioritariamente aos animais que puxavam os bondes, tal como exibido na fachada da antiga Estação Praia Formosa que ainda está de pé (Figura 14).
Foram mesmo os periódicos que apresentaram importantes indícios. Em 1885, informou-se que foi indeferido o pedido de José Pereira de Barros (um dos principais dirigentes do hipódromo) para ocupar os “terrenos de mangue que estão devolutos entre o Prado e a Estação da Vila Guarany” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1885, p. 1).
Assim sendo, o Prado se encontrava a certa distância da Estação. De fato, eram oferecidos bondes extras dali até o hipódromo nos dias de corridas. Se esse percurso era marcado pela existência de mangue, é provável que o estabelecimento, na verdade, estivesse mais próximo da Praia das Palmeiras/Lázaros do que da Formosa. Mas, então, por que era a denominação da última que se destacava nas propagandas? Provavelmente porque foi esse o nome que preponderou para designar a região.
Vejamos que as primeiras referências à Estação Barão de Mauá/Leopoldina, inaugurada em 1926, informavam que se situava na Praia Formosa, quando o balneário não existia há muitos anos (Figura 15)24.
Outro indício encontramos num anúncio de venda de uma vaca a ser combinada numa propriedade localizada na “Rua de Mello e Souza, encostada no rio do prado da Villa Guarany” (JORNAL DO COMÉRCIO, 1886, p. 4). Posteriormente, tomamos conhecimento que este fora canalizado e passava junto ao hipódromo (O PAIZ, 1888, p. 2). Mais ainda, em certa ocasião foi informado que a entrada do Prado fora transferida da Rua Francisco Eugênio para a Rua Mello e Souza (VANGUARDA, 1885, p. 1).
O que ocorre é que em algumas ocasiões se passa a impressão de que o hipódromo ficava próximo do Rio Joana. Em outras, que estava em local distinto: “A varanda do Boat Rink é elegantemente construída no re-de-chausée, ao lado do Rio Maracanã” (BRAZIL, 1884b, p. 2). Sabemos também que se encontrava “perto da ponte dos marinheiros” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1884, p. 4). Além disso, que fora construído “entre lugares pantanosos ali nos arredores da Estação Lauro Muller, da Central do Brasil” (ANUÁRIO DA ESTAÇÃO ESPORTIVA, 1930, p. 19)25.
Por fim, mais dois dados ajudaram-nos na busca da localização do hipódromo. Uma matéria informou que alguns adeptos assistiam de binóculos as provas dos “morros que sobrepujavam o Prado” (GAZETA DA TARDE, 1890, p. 3). Além disso, ficamos sabendo que o terreno tinha uma “extensão de 900 metros com 650 metros de largura”, tendo ao centro uma lagoa de 480 m x 330m (JORNAL DO COMÉRCIO, 1884c, p. 2).
Tendo em conta esses dados, vejamos o mapa a seguir (Figura 16).
Vejamos as identificações. Em lilás, trata-se da área onde havia o Matadouro. Em azul escuro, as ruas Mello e Souza e Francisco Eugênio. Em amarelo, os cinco morros das redondezas. Em rosa, o atual Campo de São Cristóvão (na ocasião Praça Pedro I). As linhas verdes demarcam os rios Joana e Maracanã. O círculo laranja é a Estação Praia Formosa. Em azul claro, o Canal do Mangue. A seta laranja marca a direção da Quinta da Boavista. Os círculos verdes marcam a antiga Ponte dos Marinheiros, a passagem férrea e a ligação da Praia Formosa com a Francisco Eugênio.
Assim sendo, em vermelho, temos os quatro possíveis locais do Prado Guarany. Num mapa posterior (Figura 17), vemos a região numa conformação mais próxima da atual. A possível área do hipódromo está marcada em vermelho. Ainda não é possível ser peremptório na definição da sua localização.
Em mapas de 191026, 191327 e da década de 1920, permanece a imprecisão. Vamos apresentar apenas o último (Figura 18), no qual se exibe um cenário bem próximo do atual, em que já está construída a Estação Leopoldina (identificada como Estação Praia Formosa). Os possíveis locais do Prado estão marcados em vermelho.
Na imagem a seguir (Figura 19), captada a partir do Google View, simulamos o que haveria nos dias atuais nos possíveis locais do antigo hipódromo.
Com essas imagens e informações em mãos, fizemos uma nova visita etnográfica. A intenção era ver, no terreno, como poderiam nos conceder mais precisão na busca pela localização do hipódromo. Caminhamos pelos quarteirões da antiga Vila Guarany e áreas possíveis do Prado, fazendo simulações de medidas e composições de espaço.
De pronto, foi possível perceber que a Rua Francisco Eugênio foi duplicada. Prospectando os estilos arquitetônicos, identificamos o formato original desse logradouro. Além disso, tivemos em conta os atuais percursos dos rios Joana e Maracanã. Visitamos os estabelecimentos e residências que nos permitiram a entrada, bem como levantamos contatos para uma fase futura do projeto.
Com essa visita, foi possível rever o que pensávamos ao acessar somente a cartografia e as informações de periódicos. A imagem a seguir (Figura 20) apresenta de forma mais consolidada o que pensamos ser a localização do Prado Guarany. Trata-se de um modelo especulativo a ser verificado em fases futuras do projeto.
As linhas vermelhas demarcam uma possível delimitação do espaço do Prado, tendo em conta as medidas apresentadas nos periódicos e o que conseguimos verificar nos trabalhos de campo. Sugerimos em azul as possíveis entradas do hipódromo. Em verde, identificamos possíveis locais das arquibancadas. Em lilás, o possível espaço da pista e do lago central. Perceba-se, então, que o hipódromo teria sido instalado na grande área vazia onde havia o Matadouro.
Na imagem a seguir (Figura 21), captada do Google View, vemos o que hoje se encontra na área.
Como podemos ver, o hipódromo provavelmente se encontrava nas atuais instalações da Estação Barão de Mauá/Leopoldina. Mesmo que tenhamos que considerar que a área sofreu várias obras no decorrer do tempo, a existência de áreas livres nos parece estimulante para dar sequência à investigação.
A arqueologia da paisagem que nos propusemos a realizar, portanto, parece ter logrado êxito, apresentando-nos possíveis locais para a promoção de prospecções arqueológicas cujo intuito será buscar vestígios materiais que nos ajudem a definir com maior precisão o local do Prado, bem como vislumbrar algo dos costumes esportivos daquele tempo.
A preparação das escavações já está em curso, contando também com a participação do arqueólogo Leonardo Amatuzzi. Neste momento, já conseguimos novos mapas - tanto no Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro quanto no Serviço de Proteção do Patrimônio da União -, utilizados para melhor precisar o local do trabalho de campo. A empresa atualmente responsável pela Estação Leopoldina já deu autorização prévia para a intervenção. A ideia é contar com o aporte do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da UFRJ no que tange ao material e recursos humanos necessários.
Certamente, os dados advindos dessas prospecções arqueológicas serão tema para outro estudo. Cabe, à guisa de conclusão, um debate sobre a “invisibilidade” do Prado Guarany.
Enquanto alguns acontecimentos e construções deixaram marcas que chegaram até os dias de hoje, outros foram sendo esquecidos/apagados. O Jockey Club, entre outros hipódromos, preponderou na memória da cidade. O Prado Guarany, não. Investigar o local desse equipamento esportivo é também lançar um olhar para uma faceta da dinâmica citadina, descortinando algo de seu passado que talvez ajude a compreendermos melhor a história do Rio de Janeiro.
Por que o Prado Guarany deixou poucos registros? Um dos motivos pode ter sido seu breve tempo de existência. Todavia, o Turf Club e o Hipódromo Nacional também não tiveram longa duração e, ainda assim, foram identificados em mapas mais amiúde.
Outro motivo pode ter sido o fato de que Jockey Club, Derby Club e Turf Club se mantiveram como terrenos desocupados por mais tempo. Os espaços do Hipódromo Nacional e do Prado Vila Isabel foram mais rapidamente loteados. Porém, no caso do Prado Guarany, sua área também parece ter se mantido em parte vazia durante décadas.
Há ainda que se ter em conta o conjunto de preconceitos que cercaram o Prado Guarany. Dirigido por gente de estrato socioeconômico médio, diferenciava-se dos outros hipódromos e sofreu com iniciativas distintas de restrição, sendo inclusive alcunhado de Maxixe (MELO, CHEVITARESE, 2018).
Talvez a mais forte explicação seja o profundo conjunto de mudanças que houve na região da Praia Formosa/Vila Guarany, um bairro que existiu por pouco tempo em função das várias reformas urbanas promovidas entre fins dos anos 1870 e as primeiras décadas do século XX. O que há hoje naquela zona da cidade em nada lembra a paisagem do século XIX.
O bairro de São Cristóvão deixou de ter um perfil aristocrático e foi se proletarizando conforme várias fábricas foram, nas redondezas, instaladas. Com o decorrer do tempo, cresceram as favelas e a zona se configurou como de camada média baixa/popular, caracterizada por grande degradação do tecido urbano. Essa impressão se acentuou com a construção de vários viadutos, vias de alta velocidade e mesmo da Rodoviária Novo Rio e da Estação Leopoldina. Grassa a impressão equivocada de que é mais uma área de passagem do que de moradia.
Nossa maior surpresa foi descobrir que provavelmente o Prado se localizava nos atuais terrenos da Leopoldina, que oferecem boa possibilidade para se promover prospecções arqueológicas. Por aí daremos sequência à investigação. Já foram entabulados os primeiros passos no sentido de estabelecer algumas áreas passíveis de sofrer tais intervenções. Talvez seja possível encontrar preciosos indícios da cultura material do turfe. Esperamos em breve comunicar os resultados dessa nova fase do projeto.
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