RESUMO: O artigo centraliza-se em análises acerca das dimensões espaciais entre morte, memória e experiências emocionais à luz do Mausoléu de Otaviano. Tendo iniciado a construção em 29 a.C., quando disputava seu poder político com Marco Antônio e Cleópatra, produziu uma linguagem política com um viés mais dramático associado aos mores maiorum. Partindo, então, dessas observações, a proposta versa sobre espaços e locais, pois, a um só tempo, necrópole e edifício funerário produziram imagens dirigidas à comunidade de Roma sobre os aspectos político, sagrado e emocional.
Palavras-chave: Morte, Memória, Experiências Emocionais, Mausoléu.
ABSTRACT: The article focuses on the analysis of the spatial dimensions between death, memory and emotional experiences in the light of Octavian Mausoleum. Having started construction in 29 B.C., when he disputed his political power with Marcus Antonius and Cleopatra, he produced a political language with a more dramatic bias associated with the mores maiorum. Starting from these observations, the proposal deals with spaces and places, because, at the same time, the necropolis and funerary building produced images directed at the community of Rome about the political, sacred and emotional aspects.
Keywords: Death, Memory, Emotional Experiences, Mausoleum.
Dossiê: Memórias e Mortes de Imperadores Romanos (I a.C. – VI d.C.)
Dimensões espaciais entre morte, memória e experiências emocionais: um estudo de caso à luz do mausoléu de Otaviano
Spatial Dimensions between Death, Memory and Emotional Experiences: A Case Study in the Light of the Octavian Mausoleum
Recepção: 14 Maio 2020
Aprovação: 14 Julho 2020
[...] Heu me miserum, qui feci tot crudelia funera, fleo noctem diemque, post haec plus non potui praestare meis quam aeternam domum pro parte mea o quantum dolor est quod cogit, <me> miserum patronum, pectus ferre haec [...]. [...] Ai de mim miserável, que fiz funerais tão cruéis, choro noite e dia, depois destas coisas, mais não pude garantir senão uma casa eterna (sc. esta sepultura); da minha parte, oh quanta dor, que forçou ‒ eu um mísero patrono - o peito a suportar tais coisas [...] (Trad. de Omena e Funari ( 2016, p. 203). 1
A epígrafe supracitada apresenta-nos um homem dilacerado pela dor, à medida que a morte, sob sua potência tirânica, causou sua destruição. Em versos elegíacos, conclama os seus leitores ouvintes: “vos qu(i) legitis amici iam specto venit illa dies in [q]ua stat ille tyrannus [qu]i me tra(n)sponat ad illo(s)” - “vós que ledes, amigos: já espero que venha aquele dia no qual o tirano me leve a estar com eles” (Omena & Funari, 2016, p. 203). Trata-se de um lembrete acerca da finitude. A todos a morte espreita.2 Ao se tratar de epitáfios, encontramos igualmente mensagens mais amenas, como, por exemplo, a estela de Caio Vétio, esculpida com retratos. Nela, pretendeu-se homenagear a si, a sua mãe, a suas libertas assistentes e a seu Liberto Meta. Não se detecta a imagem pesarosa da morte e sim a eternização dos familiares que se dedicavam à tecelagem.3 Nesta inscrição, a experiência social da morte aparece dimensionada nas atividades laborais. De todo modo, os dois epitáfios milaneses, aqui mencionados, indicam a relevância das necrópoles e seus rituais de enterramento no Mediterrâneo Ocidental e Oriental. Assim, a presença de fragmentos de colunas, lastras, afrescos, estelas, altares, sarcófagos, urnas, entre outros mais, atestam a relevância do descarte dos corpos que, aliás, putrefatos se tornavam geradores de experiências sensoriais, visuais e emocionais. As transformações dos cadáveres impactavam e reconceitualizavam as identidades, uma vez que um ser social desaparece e emerge um cadáver. A morte biológica posicionava-o entre objeto e sujeito, pessoa e não pessoa (Williams, 2004, p. 267). 4
Entende-se que os rituais de sepultamento se caracterizavam pelas experiências sociais. Com base nelas, devemos considerá-los em um espaço-temporal, pois, segundo se propõe, as experiências sociais produzem, atribuem e expressam significados (Tuan, 1983, p. 6-7) aos espaços e locais da morte. Torna-se peremptório o contexto histórico. Se considerarmos a experiência contemporânea, veremos, entre outras motivações, que o enterramento se vincula à poluição respaldada na proliferação de doenças. Hoje, a Covid-19 é um exemplo. De modo diverso, a poluição na sociedade romana se associava à espacialidade sagrada, já que a familia funesta, durante nove dias, distanciar-se-ia das atividades públicas. A morte simbolizava fonte de poluição, pois, como sustenta Erker (2011, p. 43), pontífices deveriam regulamentar os espaços sagrados da cidade e de suas instituições, evitando, sobretudo, o contato com a morte. Mesmo o exército, que se envolvia com a morte em campos de batalha, não tinha a permissão para cruzar o pomerium (Digesta 47.12.3.4).
Ora, ao se verificar os testemunhos materiais e escritos, ver-se-á uma preocupação na regulamentação de enterros que se concentravam no estatuto social dos mortos e nas comemorações familiares em honra aos seus finados. Segundo as fontes romanas, o próprio monumento funerário teria sido projetado para a preservação da memória. O túmulo tornava-se um memorial. De acordo com o canto de Horácio (65-8 a.C.):
Exegi monumentum aere perenniusregalique situ pyramidum altius,quod non imber edax, non Aquilo inpotenspossit diruere aut innumerabilisannorum series et fuga temporum.Non omnis moriar multaque ... Erigi monumento mais perene Do que o bronze e mais alto do que a real construção das pirâmides, que nem as chuvas erosivas, nem o forte Aquilão, nem a série inumerável dos anos, nem a dos tempos corrida poderão, algum dia, destruir.
Não morrerei, de todo ... (Horácio; Odes III, 30).
O poeta destacava as construções tumulares para enfatizar a sua permanência entre os vivos, à medida que sua reputação viria de suas palavras, de sua poesia e não dos monumentos de pedra (Horácio. Odes 3.30).5 Tal afirmativa, levam-nos a supor que, diferente da poesia, seus contemporâneos apreciavam os monumentos funerários, tornando evidente, desta feita, as atitudes e aspirações de cidadãos e não cidadãos romanos, pois, em paráfrase à Carroll (2006, p. 04), a própria localização dos túmulos englobava visibilidade. Transformavam-se em modelos sociais, pois, de fato, os túmulos representavam uma parcela da sociedade, mas de um coletivo diferenciado de indivíduos e grupos, que transmutavam os valores sociais latinos.
Se considerar o direito romano, ver-se-á essa valorização na regulamentação dos sepultamentos. Os Digesta, atribuído a Ulpiano (150-223 d.C.), é um exemplo. Sabe-se, que o jurisconsulto escreveu sua obra à época do Principado de Caracala (198-217 d.C.), sendo, provavelmente, compilado alguns dos seus fragmentos aos Digesta do imperador Justiniano (483-565 d.C.). Os Digesta tinham a função de instruir àqueles responsáveis pela distribuição e aplicação das leis romanas. Sendo, portanto, relevante o caráter pedagógico e consultivo das obras de jurisconsultos, Justiniano, em 529, promulgou a primeira parte do Corpus Juris Ciuilis, reunindo, dessa forma, constituições imperiais que passou a ser denominada Novus Codex Iustinianus (Novo Código de Justiniano). Mais tarde, o nome alterou-se para Codex Vetus (Código Velho). À posteriori, o imperador solicitou a reunião e compilação de escritos de antigos juristas provindos do ius respondendi, os quais representavam fragmentos necessários para comporem o “tratado completo daquela parte do direito ainda vigente que, por pertencer à época clássica, somente podia ser conhecida pela obra dos prudentes” (Poletti, 1996, p. 54). Ao final da compilação, sugere-se que os Digesta incorporaram, em grande medita, um terço das citações de Ulpiano (Neto, 2012, p. 175).
Aqui, interessa-nos, sobretudo, o direito funerário. Nele, detecta-se uma riqueza de informações acerca das leis vigentes ao sepultamento, ao direito de herdeiros, ao direito de libertos e descendentes, entre outros elementos. Nessa linha, José Remesal Rodríguez, propôs, em 2016, um estudo relacional entre o direito e a epigrafia sepulcral, pois, segundo o pesquisador, “é palpável a atomização da investigação, particularmente notável entre os estudos jurídicos e arqueológicos” (2016, p. 26). Além da relevância interdisciplinar, ainda segundo o autor,
é preciso considerar que as formas jurídicas constituem a fixação de determinados elementos da vida social, uma vez que sempre estão em mutação, mais ou menos rápida. Quando a mutação é lenta, apenas há conflito entre legalidade e vida social, quando a mutação é rápida, a formulação legal está sempre atrasada em relação à realidade social, algumas vezes sem conflito, porque a sociedade vai encontrando resquícios de adaptação e reinterpretação das velhas leis (cf. Arpón, 1997) (REMESAL, 2016, p. 27).
Nesse sentido, o estudo relacional entre leis e epigrafia permite compreender a aplicação das leis nos espaços funerários. Mais do que isto, as leis registradas nos edifícios mortuários serviam não somente para regulamentar o direito de sepultamento dos indivíduos, mas também alertavam aos viandantes acerca dos riscos de punição nos casos de violação das sepulturas. Tais ultrajes aparecem na obra Satyricon de Petrônio (27-66 d.C.),6 quando Trimalchião, um dos personagens petronianos, alerta aos riscos do desrespeito às tumbas, como, por exemplo, transformá-las em latrinas (Petrônio, Satyricon, livro VI, 71). Vê-se os seguintes esclarecimentos nos Digesta:
Sepulcrum est ubi corpus ossave hominis condita sunt (...) Sepulcro é o lugar onde estão depositados o corpo ou os ossos do homem (Digesta 11.7.2.5. Tradução de Luciane Munhoz de Omena).
Monumentum est quod memoriae servandae gratia existat. Monumento é aquilo que exista em função da preservação da memória (Digesta 11.7.2. 6. Tradução de Luciane Munhoz de Omena).
Pois bem, o direito romano considerava o sepulcro como lugar de depósito dos restos mortais, portanto, sagrado; por conseguinte, prescrevia-se: “as coisas sagradas, religiosas e santas não são propriedades de ninguém” ‒“sacrae res, et religiosae, et sanctae in nullius bonis sunt” (Digesta 1.8.6.2. Trad. Luciane Munhoz de Omena). Se o corpo ou os restos mortais fossem retirados da campa, o sentenciado poderia ser condenado ao suplício, ao exílio e aos trabalhos forçados em minas (Digesta. 47. 12.11). Tal formulação leva à argumentação do monumento funerário como espaço sagrado de perpetuação e transmissão de memória dos mortos, familiares e, segundo versa o artigo, da própria comunidade. Em razão disto, os monumentos de pedra a partir dos epitáfios, imagens, estruturas e localização expressavam as experiências sociais da morte e produziam memórias do passado (Hope, 2011), já que as estruturas extravagantes dos túmulos piramidais, cilíndricos ou os mausoléus (e.g. Augusto construído no Campo de Marte, Caecilia Metella na Via Appia ou Adriano) e suas posições nas necrópoles indicavam a relevância e a perpetuação de famílias aristocráticas, pois, como argumenta Wallace-Hadrill (2008, p. 47), as procissões funerárias, as tumbas e seus epitáfios transformavam-se em observatório dos passantes e, assim, a família e sua memória ganhavam relevo no espaço público. Nelas, os sentimentos de perda, saudações afetuosas, homenagens às magistraturas e aos ofícios, às relações familiares, à infância,7 às festividades, às mobilidades sociais, entre outros mais, conduziam os andantes às complexas imagens emocionais sobre a morte.
Procedendo, portanto, a essas observações, o artigo passa a discutir, mais detidamente, as necrópoles como espaços e locais de memórias, já que, nesta proposta, o Mausoléu de Otaviano, segundo se supõe, representava práticas sociais, as quais referendavam imagens acerca dos elementos político, sagrado e emocional que se dirigiam à comunidade de Roma. Para tanto, ao falarmos em necrópoles, referenciamo-nos a locais de memória, pois, citando Aleida Assmann (2011, p. 332),
a memória dos locais se diferencia claramente dos lugares da memória. É que, enquanto a memória dos locais é fixada em uma posição determinada, da qual ela não se desprende, os lugares da arte da memória se distinguem justamente por se poder transferi-los. A estrutura espacial da mnemotécnica funciona como uma planta ou um mapa, livre do seu local concreto de origem.
É um espaço fixo que se produz distintas experiências sociais. Se considerarmos o público, teremos, citando caso análogo, familiares, amigos, moradores da comunidade e passantes, em geral. Cada um destes, expressavam distintas emoções. Por exemplo, a sátira de Petrônio, Satyricon,8 mencionada anteriormente, e ambientalizada no banquete de Trimalchião, apresenta a seguinte narrativa: Nicerote, amigo de Trimalchião, com a intenção de entreter os convivas, conta que se descolava para a residência de Melissa, esposa de Terêncio, em companhia de um homem. Este querendo se aliviar, urina em uma lápide (Petrônio, Satyricon, livro VI, 62). Ainda em outra passagem, Trimalchião afirma que colocará dois libertos de guarda em seu monumento mortuário. Não quer que seu edifício se transforme em latrina (Petrônio, Satyricon, livro VI, 71). Trata-se da ridicularização do personagem. Não seria respeitado, nem mesmo no post mortem. Aqui, interessa-nos, sobretudo, a utilização do espaço da necrópole: ganha uma segunda função, poderia se tornar latrina, por conseguinte, se altera o significado: a morte e o morto, em particular, perderiam a aura sagrada.
Omena e Funari (2018, p. 140-141), em outro conjunto documental, analisam uma inscrição funerária em que se homenageia uma menina. No altar funerário, encontraram dois tipos de inscrição: uma em que se honra a filha Iunia Procula, tendo o nome da mãe Acte apagado, e outra na qual o pai Marcus Iunius Euphrosynius amaldiçoa a esposa. Acusa-a de traição e conclama o espírito vingativo da filha. 9 Neste ponto, a espacialização da morte acentua os
conflitos familiares personificados por crenças mágicas que pretendiam, acima de tudo, desonrar a memória de Acte, transformando-a, por consequência, em uma vergonha pública ou, em outras palavras, nos stigmata aeterna, em desgraças eternas (Omena & Funari, 2018, p. 141).
Pode-se concluir que a necrópole produzia uma gama diversificada de sentidos e emoções. Entretanto, supõe-se que a transmissão das reminiscências se torna o ponto fulcral nas comunidades emocionais (ROSENWEIN, 2011, p. 07), em especial, quando aliadas ao âmbito mortuário. Pretendia-se divulgar suas recordações emotivas, fossem lembranças de perda, tal como se verifica na estela funerária de Lúcio Trébio (OMENA; FUNARI, 2016), fossem conflitos familiares (Cf. CARROLL, 2011). Em uma sociedade hierarquizada e mediada por mobilizações, constata-se que os enterramentos se tornavam fontes inestimáveis de visibilidade social. Daí, a aparência física dos monumentos funerários e seus epitáfios tornarem possíveis os processos de negociação de status e pertencimento nas relações sociais com a comunidade. Identidades étnicas e cívicas, educação, carreiras públicas, ofícios e os complexos laços familiares foram expressos nesse espaço memorável e sagrado (CARROLL, 2011, p. 65-66). Tal como argumenta Johanson (2011, p. 228), em seu artigo A walk with the dead: a funerary citys cape of Ancient Rome,
a cidade de Roma apresentava um arranjo paradoxal dos vivos e dos mortos. Por força da lei, os mortos eram enterrados fora dos domínios dos vivos, mas, em uma cidade de limites inconstantes e confusos, os mortos e os símbolos da morte estavam em todos os lugares. Os vivos caminhavam lado a lado com os mortos nos funerais, tomavam banho próximo às suas tumbas e caminhavam ou se deslocavam entre eles por milhas, quando viajavam.
Ver-se-á nos sítios arqueológicos a presença de estruturas de armazéns, anfiteatros, palestras e templos nas proximidades das necrópoles. Por exemplo, o Mausoleum de Otaviano, objeto dessa proposta, localizado no Campo de Marte, representava uma arquitetura de poder. Sabe-se, pois, que o Campo de Marte tinha um significado religioso, já que se vinculava ao deus Marte. Relizava-se a eleição de cônsules e censores, generais iniciavam suas procissões triunfais e dignitários estrangeiros se hospedavam no local, até receberem a permissão para entrarem em Roma (Brangers, 2007, p. 06; Omena & Funari, 2016, p. 59). Assim, o túmulo de Otaviano ganhou maior significado nas estruturas institucionais da Res Publica. O monumento se tornou um espaço teatralizado, para usarmos o conceito contemporâneo de Georges Balandier. Neste caso, o ritual de enterramento ganha uma linguagem política dramática, à medida que o poder “se realiza e se conserva pela transposição, pela produção de imagem, pela manipulação de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial” (Balandier, 1982, p. 07). A casa eterna das gentes Iulia e Claudia estaria associada aos mitos fundacionais de Roma, à construção identitária do mos maiorum e, em termos figurativos, à instituição republicana.
À época, tornava-se imprescindível Otaviano projetar-se como restaurador da Res Publica (Augusto. Res Gestae Divi Augusti, VII).10 Sabe-se, pois, que a crise e seu discurso produziram um clima de instabilidade nas estruturas políticas de Roma. Havia uma intensa disputa entre romanos, os quais negociavam suas posições no poder. Disto resultava normalmente um acúmulo de assassinatos e mortes voluntárias (Ver ainda: Eder, 2005; Galinsky, 2005; Rowe, 2013). Um exemplo é o assassinato de Cícero (106-43 a.C.). Adversário de Marco Antônio, não sobreviveu. No período, o triúnviro possuía poder igual aos cônsules, poderia escolher suas províncias e controlar as eleições. Tornou-se um adversário imponente, por isso,
em dezembro de 43 a.C., foi enviado um esquadrão especial de assassinos atrás dele, e cortaram-lhe a cabeça enquanto era transportado de liteira de uma de suas propriedades rurais, numa tentativa inútil de se esconder (inútil em parte porque um dos ex-escravos da família tinha revelado o seu paradeiro (Beard, 2016, p. 376)
Condenado à morte desprezível, sua cabeça e mão direita foram levadas a Roma e expostas, segundo Mary Beard (2016, p. 376), na tribuna dos oradores ‒ rostra ‒ que se localizava no Fórum (Dion Cássio. História Romana. 47, 8, 5). Neste excerto, Dion Cássio narrou a morte de Marco Túlio Cícero a mando de Marco Antônio. Nela, temos uma narrativa dramática que acentua, em especial, práticas consideradas tirânicas presentes na política romana. Segundo Dion Cássio:
καὶ ἥ γε Φουλουία πολλοὺς καὶ κατ' ἔχθραν καὶ διὰ χρήματα, καὶ ἔστιν οὓς οὐδὲ γιγνωσκομένους ὑπὸ τοῦ ἀνδρός, ἐθανάτωσεν. ἐνὸς γοῦν τινος κεφαλὴν, ἰδὼν εἴπεν ὅτι "τοῦτον οὐκ ἠπιστάμεν." ὡς δ'οὖν καὶ ἠ τοῦ Κικέρωνός ποτε ἐκομίσθη σφίσι φεύγων γὰρ καὶ καταληφθεὶς ἐσφάγη, ὁ μὲν ᾿Αντώνιος πολλὰ αὐτῷ και δυσχερῆ ἐξονειδίσας ἐπειτ' ἐκέλευσεν αὐτὴν ἐκφανέστερον τῶν ἄλλων ἐν τῷ βήματι προτεθῆναι ἱν ὅθεν κατ' αὐτοῦ δημηγορῶν ἠκούετο, ἐνταῦθα μετὰ τῆς χειρὸς τῆς δεξιᾶς, ὥστερ ἀπετέτμητο, ορῷτο. ἡ δὴ Φουλουία ἔς τε τὰς αὐτὴν πρὶν ἀποκομισθῆναι ἐδέξατο, καὶ ἐμπικράναμενη οἱ καὶ ἐμτύσασα ἐπι τε τὰ γόνατα ἐπέθηκε, καὶ τὸ στόμα αὐτῆς διανοίξασα τὴν τε γλῶσσαν εξείλκυσε καὶ ταις βελόναις αἶς ἐς τὴν κεφαλὴν ἐχρῆτο κατεκέντησε, πολλὰ ἅμα καὶ μιαρὰ προσεπισκώτουσα. και οὗτοι δ' οὖν ὅμως ἐσωσάν τινας, παρ' ὧν γε καὶ πλείω χρήματα ἔλαβον ἥ τεευτησάντων εὑρησειν ἤλπισαν. καὶ ἵνα γε μὴ κεναὶ αἱ ἐν τοῖς λευκώμασι χῶραι τῶν ὀνομάτων αὐτῶν ὦσιν, ἑτερους ἀντενεγραψαν. πλὴν γε ὅτι τὸν θεῖον ὁ ᾿Αντώνιος, πολλὰ τῆς μητρὸς τῆς ἐαυτοῦ τῆς ᾿Ιουλίας ἱκετευσάσης, ἀφῆκεν, οὐδεν ἄλλο χρηστὸν εἰργάσατο.
E mesmo Fúlvia também causou a morte de muitos, tanto para satisfazer sua inimizade e para obter a riqueza deles, em alguns casos, homens com quem seu marido não era muito familiarizado; de qualquer forma, quando ele viu a cabeça de um homem, ele exclamou: “Eu conhecia este homem”. Quando, contudo, a cabeça de Cícero foi trazida para ele um dia (ele tinha sido morto e decapitado em combate), Antônio pronunciou reprovações amargas contra isso e então ordenou que fosse exposta na rostra mais proeminentemente do que os demais, de forma que fosse visto no mesmo lugar onde Cícero tinha sido ouvido declamando contra ele, junto com a sua mão direita, tal como ela tinha sido cortada. E Fúlvia tomou a cabeça em suas mãos antes que fosse removida e depois de abusar dela com maldade, cuspiu nela, coloca-a em seus joelhos, abriu a boca, e tirou a língua, que ela tinha furado com os alfinetes que usava no seu cabelo, ao mesmo tempo pronunciando gestos brutais. Contudo, mesmo este par salvou algumas pessoas das quais eles conseguiram obter mais dinheiro do que seria com a morte deles, e a fim de que os lugares para os seus nomes nos tabletes não estivessem vazios, eles inscreveram outros ao invés deles. De fato, com a exceção da libertação de seu tio na súplica mais sincera de sua mãe Júlia, Antônio não executou num ato digno (Dion Cássio. História Romana, 47, 8,5).
Nesse trecho, tem-se não somente a eliminação do adversário de Marco Antônio, mas também uma condenação que se transformou em espetáculo. Cícero teve seus membros ultrajados. Tornou-se um ato exemplar. Logo, o ambiente de mortes e as listas contra senadores e cavaleiros provocavam, muito provavelmente, sentimentos de medo e instabilidade no poder político. A própria construção do Mausoleum em 29 a.C., reforçava um clima de disputa entre Otaviano e Marco Antônio (83 a.C. - 31 a.C.), que, aliado à Cleópatra, teria sido acusado de se aproximar dos costumes orientais, já que dedicou territórios e honras à Cleópatra e ainda desejava, segundo as acusações de seus opositores, que seus restos mortais fossem depositados em Alexandria, segundo Plutarco (46-120 d.C.) em Vida de Antônio. 58.04. É importante ressaltar que, em termos figurativos, Otaviano criou um inimigo externo e não interno. Lutava contra Cleópatra (Goldsworth, 2012, p. 395).
Pode-se pressupor, em linhas gerais, que o mausoleum de Otaviano, construído no Campo de Marte, produzia e ressurgia imagens de uma possível retomada de unidade política: valorizava-se o mos maiorum; além disso, a própria espacialidade representava a Res Publica. Nesse sentido, a cidade se transformava em um complexo jogo entre memória e identidade. A urbs se constituiu por espaços de deslocamento, aproximação e distanciamento, uma vez que produziam narrativas variadas, entre o espaço vivido e a produção de significado, que transformava, de fato, o espaço físico em discursos de poder (RICOEUR, 2007, p. 158-159). Nesse ambiente, se reivindicavam identidades em expressões públicas memoráveis representadas nos monumentos funerários. Deve-se, então, ressaltar nestas reivindicações,
a reprodução de uma visão de mundo, de um princípio de ordem, de modos de inteligibilidade da vida social, [que] supõe a existência de “produtores de autoridades” da memória a transmitir (Candau, 2011, p. 124).
O que nos aproxima daquelas quatro perguntas sugeridas por Candau: “O que conservar? Quem conserva? Como transmitir? Por que transmitir?” (Candau, 2011, p. 106). Conservava-se o espaço ficcional do “oficial” - monumentos mortuários - já que se pretendia introjetar imagens de legalidade, legitimação e reconhecimento das instituições romanas sob as vias dos mores maiorum, que produziam unidades fictícias em torno do domínio político. O edifício funerário transformava-se em uma linguagem política que se dramatizava na visibilidade, na escolha espacial, nos personagens e em significados para a comunidade, na representação do culto aos mortos e suas ancestralidades (Consultar: Smith, 2006).
A morte possuía um apelo mais emocional. O ambiente dramático, composto pelo cuidado corporal, pelos lamentos, pelas canções fúnebres, pelo cortejo em torno do fórum, pelo discurso em homenagem ao morto nos rostra, pela queima do corpo na pira funerária e pelo depósito dos restos mortais no sepulcro, produzia identidades entre os participantes, compartilhamento do símbolo comemorado e, além disso, inserção em uma memória social (Cf. GUARINELLO, 2001). Nesse sentido, afirma-se que a morte se transformava em uma transposição mais dramática que se traduzia no simbolismo das relações sociais e políticas.
Imbuído dessa percepção, este artigo propõe destacar a dimensão emocional dos monumentos funerários. Afirma-se que a arquitetura possibilita a construção de uma memória afetiva, pois, como se supõe, o significado do edifício, seus objetos móveis e imóveis, afrescos, pinturas, estatuária, relevos e bustos propiciavam a construção do sentimento de identidade. Diria, em outras palavras, a produção de um espaço comum de afetividade. Na Antiguidade a adequação e experiência emocional com a espacialidade se configuravam imprescindíveis à construção. Como supõe Dolansky (2011, p.), a decoração dos edifícios funerários, a exemplo de Isola Sacra,11 condensa uma diversificação de cores.
Mosaicos e afrescos parecem destinados a contribuir com a atmosfera de túmulos e a experiência de seus visitantes. Em Isola Sacra se encontra, por exemplo, a combinação de elementos utilitários e decorativos, sobretudo, nas edificações maiores (Dolansky, 2011, p. 136).
As pesquisas revelam que tais complexos sepulcrais incorporavam repertórios com temáticas de caçadas, banquetes, cenas míticas, ofícios e interessantes representações com plantas e animais (Newby, 2011; Omena & Gomes, 2017; Jong, 2017). Toma-se como argumento a defesa de que há uma estreita relação entre o edifício tumular e os elementos funcionais e decorativos presentes nas residências romanas. Não é sem razão que, ao se verificar os epitáfios, ver-se-á, em grande medida, a presença da expressão “casa eterna” (Thomas, 2011). O monumento representava a última morada. Na perspectiva de Dolansky (2011, p. 133), as edificações e todo o seu conjunto ornamentivo se relacionavam à festividade dos Parentalia,12 pois, segundo a autora, túmulos teriam sido equipados com fornos, por exemplo, com o objetivo de facilitar os sacríficos aos mortos. Os afrescos continham a presença de cores vibrantes como rosa, laranja, vermelho e roxo, propiciando, dessa forma, um cenário festivo. Ainda segundo o estudo da autora (2011, p. 139), supõe-se que à época da cerimônia as ruas ficavam ruidosas e com os cheiros de incensos e oferendas em altares. Os familiares dos mortos proferiam orações, preparavam e consumiam alimentos no interior de seus túmulos ou, como se propõe, em jardins anexados a estrutura tumular. Embora o artigo se vincule ao eixo argumentativo de Dolansky (Cf. Omena & Funari, 2018), acrescenta-se, pois, que os elementos visuais dos edifícios funerários semelhantes às domus proporcionavam, como se argumenta, um ambiente de intimidade. Estabelecia-se uma relação particular com o lugar e os familiares aproximar-se-iam de seus ancestrais. Reconhecer-se-iam na espacialidade tumular, uma vez que a “casa-túmulo” compunha objetos comuns, logo, representaria um ambiente íntimo (Tuan, 1983, p. 164).
Como se observa, a casa-túmulo simbolizaria a pietas. Nela, realizar-se-iam os sacrifícios aos ancestrais e seus integrantes passariam a representar o sentimento de piedade. A adoração aos mortos ocupava uma posição central no mundo dos vivos, pois, como afirma Dolansky (2011, p. 139), a presença dos túmulos e a observância anual de rituais comemorativos fomentavam um sentimento comum de pertencimento à gens romana, ligando aos habitantes do império sobre seu vasto território, vinculando-os ao passado e presente, uma fonte de ligação entre vivos e mortos. Ao se considerar o Mausoleum de Otaviano, ver-se-á a relação entre o enterramento dos familiares do princeps e seus cidadãos da cidade de Roma. Neste caso, o sepultamento representava, em termos figurativos, a ancestralidade e a própria comunidade de Roma. Escolher o Campo de Marte simbolizava, segundo a proposta desta leitura, preterir que a casa eterna imperial se fixava no centro do império. Guarinello e Joly (2001, p. 143) produziram reflexões sobre a relação entre o imperador e a plebe. Segundo os pesquisadores:
Embora eventualmente tensas, as relações entre imperador e plebe eram um componente fundamental do exercício de poder, que assegurava aos cidadãos habitantes de Roma o abastecimento de trigo a preços administrados e jogos e espetáculos dos quais o próprio Nero foi grande incentivador e participante. A própria presença física do imperador garantia à plebe que esta se encontrava no centro do império e que era parte de sua estrutura de dominação. Isto talvez explique as queixas ouvidas em Roma, quando Nero pensou, pela primeira vez, em viajar para o oriente (Tácito, Anais, XV, 36).
Aqui, a análise alicerça-se na relação entre Nero (54-68 d.C.) e a plebe, porém, quando ampliamos o eixo argumentativo, a comunidade de Roma criava uma identidade social com a casa imperial. Estabelecia-se, nesse sentido, uma relação paternalística que reservava a possibilidade de mobilizar a comunidade em favor do governante. De acordo com as palavras de Sêneca (04-01 a.C.-65 d.C.),
Hoc, quod parenti, etiam principi faciendum est, quem appellauimus Patrem Patriae non adulatione uana adducti. Atualmente, o que se institui ao pai é instituído também ao príncipe, a quem designamos Pai da Pátria, sem termos sido levados por vã adulação (Sêneca. De Clem. III, XII, 2. Trad. de Luciane Munhoz de Omena).
Pai e princeps possuíam a mesma função social: deveriam garantir o bem comum de seus familiares. Os laços basear-se-iam, pelo menos, em termos ideais, em relações de reciprocidade, uma vez que se garantiria o bem-estar dos integrantes, salvaguardando, dessa forma, a ajuda mútua, a condução moral, as expressões de afetividade e a perpetuação do nomen e do numen da família (Cenerini, 2009; Gloyn, 2017; Omena, 2018). O soberano devia distribuir benesses a cada súdito, garantir a assistência comum e o bem público (Sêneca, De Clem. II, IV, 3), pois, segundo a argumentação senequiana, representava o populus romanus. Augusto recebeu o título de Pater Patriae. Passava a incorporar um estatuto público e ampliava, sobretudo, suas relações familiares, já que seus laços tornar-se-iam institucionais. Observa-se, assim, a criação de um modelo familiar associado às relações de reciprocidade que permitia, em termos simbólicos e diríamos, em termos retóricos, a construção de um modelo político fundamentado nos interesses da Res Publica.13
Embora estejamos considerando a perspectiva imperial, quanto ao título de Pater Patriae, o mausoleum compunha a história da cidade de Roma. Nela, valorizava-se a fundação e apoteose de Rômulo, as magistraturas da Res Publica, sobretudo, a apreciação dos costumes dos ancestrais, uma vez que, em 28 a.C., Otaviano recebeu o título de Princeps Senatus e, em seguida, tivemos o banimento dos cultos egípcios de dentro do pomerium. Ainda, nesse contexto, em 29 a.C., houve a consagração do Templo do Diuus Iulius. Todos esses elementos, aqui reportados, reforçavam, em termos imagéticos, o mausoleum das gentes Iulia e Claudia como símbolo de unidade e resiliência aos mores maiorum. Neste momento,
a família do príncipe representava uma instância reguladora das atividades públicas; por isso, a atuação de seus membros, seja do sexo feminino, seja do sexo masculino, incorporava-se à política da Res Publica (Omena & Funari, 2016, p. 95).
Logo, o ato de construir o mausoleum acentuava, sobretudo, o comprometimento de Otaviano com os cidadãos de Roma. Filho do Divo César, desejava honrar os ancestrais de Roma em seu monumento sagrado de memória. Nela, teria a sua morada eterna. Estabeleceria, com isso, um forte vínculo com a cidade, em especial, em uma sociedade que se enalteciam os rituais de enterramento. Cultuavam-se os Manes.14 A linguagem política tornava-se um adendo do espaço sagrado, pois, como se propõe, Otaviano aliava-se à sacralidade. Construía um passado coletivo que, elaborado nos costumes dos ancestrais, tornava-se fonte inesgotável de negociação e legitimação de sua posição nas estruturas de poder. Empregava-se uma narrativa idealizada, possibilitando, com isso, a criação dos laços afetivos entre Otaviano e os cidadãos da cidade de Roma. Estes viam-se na figura do governante. Apoiavam ou questionavam as ações do imperator. O mausoleum, portanto, conteria os restos mortais da família imperial e permitiria aos cidadãos prestarem honras aos seus ancestrais que, como se sabe, confundiam-se, segundo se propõe, com os próprios ancestrais da cidade. Estariam eternamente ligados a Roma. Os cidadãos, então, em uníssono, expressariam, devotariam e cantariam aos espíritos ancestrais, sugerindo, com isso, a criação dos laços de obrigação familiar com a flor do império, a cidade de Roma.
Neste artigo foram enfatizadas as dimensões espaciais entre morte, memória e experiências emocionais nas necrópoles romanas, em especial, quando vinculadas às construções dos edifícios funerários. Transformaram-se em transmissores de cerimoniais teatralizados, os quais colocavam em cena o morto e seus familiares na estrutura de poder e sua posição nas gerações familiares. Nesse contexto, o mausoleum de Otaviano ganha um verniz público. A sua narrativa se entrelaça à memória sagrada da Res Publica e da cidade de Roma.
Agradeço ao meu orientando Dyeenmes Procópio de Carvalho por me auxiliar na transcrição do excerto em grego e à Margarida Maria de Carvalho pelo convite, pela elaboração do dossiê e pelos constantes diálogos e trocas de ideias. As reflexões desenvolvidas no decorrer do texto são de responsabilidade apenas da autora.
E-mail: lucianemunhoz34@gmail.com