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“Grave é este caso que chega ao conselho dos deuses”: resolução de conflitos, harmonia e justiça no Hino Homérico IV: a Hermes
“This is a weighty matter that is come before the council of the gods”: conflict solution, harmony and justice in the Homeric Hymn IV: to Hermes
História (São Paulo), vol. 41, e2022018, 2022
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho

ARTIGO LIVRE


Recepção: 13 Abril 2020

Aprovação: 16 Outubro 2020

DOI: https://doi.org/10.1590/1980-4369e2022018

Resumo: O presente artigo analisa a narrativa do Hino Homérico IV: a Hermes, composto durante o período arcaico (séculos VIII-VI a.C.) sob a luz da Antropologia de Victor Turner, ou seja, como drama social. Destarte, procuramos demonstrar como o hino - um documento religioso - pode ser útil ao estudo do desenvolvimento do pensamento político e jurídico heleno, uma vez que serve de metáfora aos conflitos sociais que ocorriam no arcaísmo, oferecendo uma possibilidade de resolução pacífica dos mesmos através da arbitragem e negociação no espaço público.

Palavras-chave: Grécia Arcaica, História do Direito, Hinos Homéricos.

Abstract: This article analyses the narrative Homeric Hymn IV: to Hermes, composed during the Archaic period (8th-6th centuries BC), according to Victor Turner's Anthropology -in other words, as a social drama. In doing so, it portraits how the hymn -a religious document- can be useful to study the development of Hellenic juridical and political thought since it serves as a metaphor to social conflicts that occurred in Archaic Greece and offers them a possibility of pacific resolution by means of arbitration and negotiation in a public setting.

Keywords: Archaic Greece, History of Law, Homeric Hymns.

Introdução

Os Hinos Homéricos formam um conjunto poético que, acredita-se, era utilizado como um manual para aedos (MURRAY, 1960) e/ou para ser entoado em situações festivas (SERRA, 2009). Chegaram a nós 33 poemas compostos entre os séculos VII e V a.C. em dialeto jônio, estilo épico rapsódico e hexâmetro dactílico, tal como a Ilíada e a Odisseia. Daí receberem a alcunha de homéricos,1 sendo 4 hinos longos,2 28 curtos e um poema longo em fragmentos. Não se sabe o primeiro momento em que essas composições foram registradas por escrito, nem mesmo seu local de origem. Como ocorre com as elaborações orais, presume-se que “foram criados, recitados e transmitidos oralmente, de rapsodo para rapsodo, durante muitas gerações” (RIBEIRO JR., 2010, p. 46; STEHLE, 1997). Os manuscritos medievais que continham a maioria dos Hinos Homéricos hoje conhecidos teriam como matriz uma compilação de poemas helênicos realizada no século V de nossa era por Proclo, filósofo neoplatônico. Juntamente com os Hinos Homéricos, outras obras constavam na coleção organizada pelo erudito: os Hinos de Calímaco (século IV a.C.), a Argonáutica Órfica (séculos VI-V a.C.) e os Hinos Órficos (século II d.C.) (SERRA, 2009), formando uma coletânea que fornece amostras do desenvolvimento da poesia religiosa grega.3

O estudo dos Hinos Homéricos é de grande valia na análise da transição entre a poesia homérica e hesiódica e os textos do período clássico, iluminando diversos aspectos religiosos e psicológicos da época em que as comunidades políticas gregas e suas instituições começavam a ganhar força no Mediterrâneo. Eram entoados durante festivais, ocasiões nas quais as comunidades recriavam e reforçavam suas identidades coletivas (BURKERT, 1993). Ao prestarem honra às potências divinas, esses hinos e sua circulação são fundamentais para a compreensão de elementos da identidade pan-helênica,4 uma vez que serviam de prelúdio/proêmio a apresentações de coros durante celebrações religiosas em diversas partes da Grécia (RIBEIRO JR., 2010; TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, III.104.3-5). A religião helena se configurava em ideologia central da cidade-estado grega, segundo C. Sourvinou-Inwood (2000) e, assim sendo, as novas conexões políticas engendradas na cristalização da pólis como forma de organização de muitas comunidades helênicas5 fizeram-se perceber por meio de uma linguagem religiosa, manifestada em santuários, objetos votivos e em poemas como os Hinos Homéricos.

Dentre essas articulações, queremos destacar as relativas ao âmbito dos aparatos legais e dos dizeres de justiça que transparecem na poesia elaborada em diversas regiões da Hélade a partir do século VIII a.C.6 Neste artigo, propomos ver o Hino Homérico IV: a Hermes (H.H. IV) como documento que nos permite perscrutar como a resolução de conflitos e a construção dos procedimentos de justiça pelo apaziguamento das tensões sociais ocorreram nos séculos VII a V a.C., período crucial para entendermos a formação de uma identidade7 pan-helênica. Escolhemos o H. H. IV como fonte devido à escassez de análises realizadas por historiadores lusófonos sobre os Hinos Homéricos como textos políticos. É amplamente sabido que há dificuldades em datá-los precisamente, mesmo havendo um consenso entre os classicistas de que eles são fruto da cultura oral arcaica. É necessário realizar um esforço para compreender a política como atividade face a face (ARENDT, 2007) e, no contexto da Grécia Arcaica, desconsiderar textos religiosos no estudo do desenvolvimento político heleno causa uma lacuna considerável nas análises sobre o desdobramento de noções de cidadania. M. Gagarin (1989) menciona a Ilíada, a Odisseia, o Catálogo das Mulheres e o H.H. IV como documentos que permitem ver o germe dos processos nos tribunais helênicos, especialmente os atenienses. A abordagem da Ilíada como texto político e reflexivo por D. Hammer (2002, 2009) utilizando como teoria a Antropologia de V. Turner (2008) nos inspirou a redigir este artigo como exercício intelectual. Os poemas, nessa visão, não são compilações de mitos e lendas que se referenciam a um passado micênico ou o retrato do sistema social do período geométrico, e sim trazem referências sobre a gênese da pólis:

Contra esse pano de fundo histórico, os épicos emergem não apenas como registro dessas instituições e funções políticas embrionárias, mas também como reflexo sobre as novas demandas da organização comunitária. O brilho dos épicos está na intensidade com a qual os contornos da vida política emergem através da interação - frequentemente da coalisão - de crenças, objetivos, interesses, suposições e aspirações: o desafio da autoridade, a quase dissolução do campo político, o encontro com e a incorporação em potencial de diferentes grupos e a emergência de reivindicações públicas que iriam se desenvolver nas políticas tumultuadas da Grécia Arcaica. (HAMMER, 2009, p. 38).

Conflitos e obtenção de justiça na poesia Homérica e Hesiódica

Comecemos com a tradição mais antiga, ou seja: como a resolução de contendas são retratadas nos poemas de Homero e Hesíodo. A fúria (mênis) de Aquiles, que abre o Canto I da Ilíada, está ligada à querela que se criou entre esse herói e Agamêmnon, chefe dos aqueus que foram até Troia: Briseida, géras (recompensa/dádiva de honra/prêmio) do pélida, é dele tomada pelo átrida, uma vez que sua própria escrava/concubina, Criseida, teve que ser devolvida ao pai, sacerdote de Apolo (Ilíada, I.1-194). Crises roga ao deus que puna os dânaos pela humilhação que Agamêmnon lhe inflige: mesmo tendo suplicado o retorno de sua filha com ricos presentes e com os símbolos do deus flecheiro (v. 14-32), o rei se comporta de maneira arrogante, expondo a condição submissa da jovem:



Ó Átridas e vós, demais Aqueus de belas cnémides!
Que vos concedam os deuses, que o Olimpo detêm,
saquear a cidade de Príamo e regressar bem a vossas casas!
Mas libertai a minha filha amada e recebei o resgate,
por respeito para com o filho de Zeus, Apolo que acerta ao longe. (I.16-21).
[...]

Que eu não te encontre, ó ancião, junto às côncavas naus,
demorando-te agora ou voltando nos tempos próximos,
pois de nada te servirá o cetro e a fita do deus!
Não libertarei a tua filha. Antes disso a terá atingido a velhice
em minha casa, em Argos, longe da sua pátria,
enquanto se fadiga no tear e dorme na minha cama.
Vai-te agora. Não me encolerizes: partirás mais salvo. (I.26-32).

Temos, portanto, já nos 200 primeiros versos do poema o relato de dois conflitos conexos: entre Aquiles e Agamêmnon e entre esse último e Crises, sacerdote de Apolo. O que fica evidente durante o desenrolar da narrativa é que, em ambos os casos, a intervenção dos deuses faz-se necessária para restaurar o equilíbrio entre as relações: Apolo age de modo que Criseida retorne a seu pai (I.309-313, 389-391) e Aquiles ganha uma nova armadura feita por Hefestos, sendo convencido por sua mãe, Tétis, a deixar de lado sua desavença com Agamêmnon e retornar à luta, vingando a morte de Pátroclo (Ilíada, XIX.8-36). Nos dois episódios, a reconciliação entre as partes é realizada em público, diante de muitos espectadores, de forma a certificar o grupo social de que houve uma resolução dos conflitos, que um resultado atingido de comum acordo é efetuado e selado com um sacrifício aos deuses:



Quando entraram no porto de águas fundas,
dobraram a vela e guardaram-na na nau escura;
[...]
Da nau preparada para o alto mar trouxeram a filha de Crises.
Levou-a até ao altar Odisseu de mil ardis;
pô-la nos braços do pai, e assim lhe dirigiu a palavra:
“Manda-me, ó Crises, Agamêmnon soberano dos homens
restituir-te a tua filha e oferecer a Febo uma sagrada hecatombe
em nome dos dânaos, para que propiciemos o soberano,
que contra os argivos muitos sofrimentos lançou.”
Assim dizendo, entregou-a nos braços do pai, que recebeu
com regozijo a filha amada. E logo apontaram para o deus
a sagrada hecatombe em torno do bem construído altar. (I.432-448).

Átrida, será que foi isto a melhor coisa para ambos,
para ti e para mim, quando cheios de dor no coração em conflito
devorador do ânimo nos zangamos por causa de uma rapariga?
[...]
E que os dons de Agamemnon soberano dos homens
sejam trazidos para o meio da ágora, para que todos os aqueus
os vejam com os olhos e para que tu te regozijes no coração.
[...]
Em seguida, que ele te aplaque na tenda com um rico
festim, para que nada te falte daquilo que tens direito. (XIX.56-180).

Contudo, são os versos que descrevem o escudo de Aquiles os que mais despertam o interesse dos classicistas dedicados ao estudo do Direito na Grécia Antiga no que se refere à possibilidade do uso da Ilíada como documentação para entender o desenvolvimento de regras e instituições legais no alto arcaísmo helênico (REDFIELD, 1975; TAPLIN, 1980; SEALEY, 1997; HAMMER, 2002; FARENGA, 2006). O poema narra que Hefestos ornou o objeto com muitas imagens, dentre elas a de duas cidades: uma em paz, onde “havia bodas e celebrações” (XVIII.491) e outra na qual estavam “dois exércitos, refulgentes de armas” (XVIII.509-510). Mesmo com a menção a bodas,8 cantos e danças de jovens, existe divergência e conflito na primeira sociedade:



Mas o povo estava reunido na ágora; pois surgira aí
um conflito e dois homens discutiam a indenização
por outro, assassinado. Um deles afirmava ter pago tudo,
em declarações ao povo; o outro negava-se a aceitar o que fosse.
Ambos ansiavam por ganhar a causa junto do juiz.
O povo incitava ambas as partes, a ambas apoiando.
Os arautos continham o povo; mas os anciãos
estavam sentados em pedras polidas no círculo sagrado,
segurando nas mãos os cetros dos arautos de voz penetrante.
Com eles se levantavam e julgavam um de cada vez.
Jaziam no meio dois talentos de ouro, para serem dados
àquele dentre eles que proferisse a sentença mais justa. (Ilíada, XVIII.497-508).

A celebração de casamentos, com as “noivas saídas dos tálamos sob tochas lampejantes/eram levadas pela cidade” (Il., XVIII.492-493) mostra que a cidade é próspera e persistirá existindo. O matrimônio garante a continuação da comunidade, pois dá azo à procriação socialmente reconhecida, permitindo a perpetuação das famílias e linhagens às quais pertencem os cidadãos. Como bem coloca G. Sissa (2008, p. 89), “na performance nupcial, os gregos simbolizavam a natureza dual do casamento tanto quanto um evento erótico quanto como fundação de uma família legítima, resultando na aliança entre grupos de parentesco”. Harmonia, destarte, não significava para os helenos a ausência de conflito, e sim sua resolução sem o uso de violência, um acordo entre partes, mesmo que esse acordo estabeleça a concessão de direitos9com proporções assimétricas10. O que não ocorre com a segunda cidade representada no escudo11:



Mas por volta da outra cidade estavam dois exércitos,
refulgentes de armas. Duas alternativas lhe aprouveram:
ou destruir a cidade, ou então dividir tudo em dois,
todo o patrimônio que continha a cidade aprazível.
Os sitiados não queriam e armavam-se para uma emboscada.
[...]
Com eles estava a Discórdia e o Tumulto e o Destino Fatal,
que agarrava num homem vivo e recém atingido e noutro
incólume; e a outro já morto arrastava por entre a turba pelos pés.
A veste que levava aos ombros estava vermelha de sangue humano.
Participavam na luta e combatiam como homens vivos,
e arrastavam os cadáveres dos mortos uns dos outros. (Il., XVIII.509-540).

Temos, portanto, que ambas as cidades no escudo de Aquiles representam modos distintos de solução de conflitos: uma por meio da arbitragem dos mais velhos e proeminentes e a outra pelo uso da violência. O fato desses anciãos - que se reuniram na ágora da primeira cidade para decidirem a indenização - portarem cetros significa seu direito à palavra, ao dizer de justiça que é apanágio dos “chefes do povo”. Seja na Ilíada ou na Odisseia, a palavra nomos - que em época clássica virá a designar termos que traduzimos como “lei” e “direito” - não está presente. O que se tem é um apelo aos costumes e tradições, o que nos remete à ideia de direito consuetudinário:

Aqueles que proferem decisões, o rei e os anciãos são guardiões da Diké (pl. dikai), significando provavelmente “modo”, “costume” e também “direito”, mas possivelmente “julgamento” ou “precedente” e também “reivindicação justificada”, e também guardiães da Themis (pl. themistes), que é posto como estabelecido pelo costume ou por decisões prévias. (FERGUSON, 2001, p. 5).

Nos poemas homéricos o que se busca quando há um conflito dentro do grupo guerreiro12 não é a apuração dos fatos e as provas de como eles ocorreram e sim a solução da querela sem apelo ao uso da violência. Essa é reservada aos membros do lado inimigo. Também na Odisseia isso é observado: temos um exemplo no Canto XXII, a discussão entre Odisseu e Eurímaco sobre a presença dos pretendentes no palácio em Ítaca. O último tenta propor uma via pacífica, sugere o pagamento de uma indenização pela propriedade dilapidada (Odisseia, XXII.45-59).13 Contudo, o primeiro discorda do que foi proposto, afirmando que nem mesmo todo o patrimônio de Eurímaco seria suficiente para reparar a transgressão perpetrada contra o herói e sua família, de modo que a contenda só pode ser resolvida com emprego de armas (Od.,XXII.61-67). Tal apelo ao belicismo e a morte dos pretendentes faz o poema terminar com Atena14 aplacando a fúria dos familiares que, armados, dirigiram-se à casa de Laertes (Od.,XXIV.466-536). Caso a deusa não agisse em prol de Odisseu, o desequilíbrio entre os aristocratas de Ítaca poderia provocar o perecimento da ordem na ilha.

A primeira cidade no escudo de Aquiles mostra que a comunidade prospera quando as partes discordantes consentem a uma solução proposta por um dos anciãos, que, como recompensa por seu dito de justiça, levará a soma de dois talentos de ouro (Il., XVIII.507-508). A segunda cidade (XVIII.535) perece, uma vez que ali não impera a Diké, e sim a Discórdia (Eris), o Tumulto (Kydoimos) e o Destino Fatal (Ker). R. Sealey (1997) argumenta que, na poesia homérica, a Diké é um modo, um procedimento que encerra uma disputa sem violência, podendo esse ser um juramento. A busca pela verdade dos fatos não seria o objetivo das partes envolvidas na contenda e sim que se atinja um acordo entre elas, de modo que ambas fiquem satisfeitas. M. Gagarin (2005) defende que, no alto arcaísmo, a forma precederia o conteúdo, de modo que os primeiros códigos legais helênicos que começam a ser desenvolvidos a partir do século VII a.C. tratam do procedimento, do rito para a resolução do conflito e não muito da definição desse último. Isto é: esse “protodireito” (GERNET, 2001, p. 81; DONLAN, 1997, p. 21-24) grego era mais processual que substantivo.15

Hesíodo também condena o uso da violência como modo de resolução de disputas:



Bens não devem ser roubados; doados por deus são muito melhores.
Pois se alguém, pela força do braço, alcança riqueza,
ou a consegue pela palavra, o que com frequência
acontece quando o lucro ilude a mente
dos homens e perfídia afugenta pudor,
facilmente os deuses escurecem e mínguam a casa
do homem e a prosperidade se torna efêmera. (Os Trabalhos e os Dias, v.320-324).

O poeta urge ao irmão Perses para que não apele aos “reis comedores de presentes” (doraphagous), conclamando-o a adequar-se à “boa luta” (agathe eris) (v.25-29). Também na Teogonia temos o esforço de Hesíodo para que as querelas não deem origem ao caos e à violência, as gerações de deuses governadas por Urano e Cronos sofrem desses males, que se voltam aos seus próprios perpetradores: ambos são derrotados pelos filhos oprimidos. É apenas com Zeus que o equilíbrio é alcançado, pois esse:



Os deuses imortais chamou ao grande Olimpo,
e disse que todo deus que com ele combatesse Titãs,
dele não arrancaria suas mercês, e cada um a honra
teria tal como antes entre os deuses imortais.
Disse que quem tivera honra e mercê tirados por Cronos,
esse entraria na honra e nas mercês como é a norma.
[...]
Assim como prometera, para todos, sem exceção,
realizou; e ele mesmo tem grande poder e rege. (Teogonia, v.390-403).

O poema afirma a posição de Zeus como garantidor da ordem e da justiça, uma vez que conseguiu obter dos deuses aquiescência, oferecendo a cada um deles um quinhão de honraria (timé). A ideia de partilha, de conceder a “cada um aquilo que lhe cabe”, presente nas noções de Platão e Aristóteles sobre a justiça, já se encontra presente em Homero e em Hesíodo. Conforme explicita R. Sealey (1997), “Diké pode ser traduzida como porção. [...] Pessoas de todos os tipos têm um lugar próprio na ordem do universo, isto é, na sociedade de deuses e homens” (SEALEY, 1997, p. 140). Essa busca por um espaço de participação nas decisões políticas que se caracteriza em confronto entre grupos distintos que compõem a pólis arcaica está presente na poesia de Sólon e de Teógnis (BALOT, 2006) e, entendemos, está também simbolizada no atrito entre Hermes e Apolo relatado no H.H. IV, sobre o qual nos debruçaremos mais adiante.

A poesia grega arcaica ilumina a existência e a necessidade de conferir publicidade ao assentamento de disputas no contexto de gênese da pólis. Considerando o trabalho de V. Turner (2008), podemos entender os épicos como dramas sociais: a vida em sociedade adquire forma, segundo o antropólogo, “por meio de metáforas e paradigmas nas cabeças de seus atores”. (TURNER, 2008, p. 11). Os dramas sociais16, assim, permitem aos agrupamentos humanos darem conta das transformações de seus valores e atitudes. Essas zonas de conflito constituem espaços liminares17, nos quais os velhos paradigmas são contestados e a formação de novas noções estão em andamento, recebendo de Turner a denominação de campos (2008). Ao utilizarmos as ideias de Turner é possível vislumbrar a cultura poética elaborada durante o arcaísmo grego como dramas sociais. As cerimônias religiosas, debates nas assembleias e performances de justiça - nos quais estão em conflito os interesses da aristocracia privilegiada e do demos, desejoso de maior agência nos destinos das póleis em formação - como campos, servindo à comunidade política em consolidação como um espelho de si mesma, um espaço liminar (ANDERSON, 2005) no qual há uma intensa disputa por elementos marcadores de pertencimento social (VAN WEES, 2000).

Poesia e Stásis na Grécia Arcaica

D. Hammer (2002) afirma que os poemas épicos devem ser entendidos em seus aspectos reflexivos da agência humana: “o épico, por ser composto durante a performance, aparece como poesia pública que estava engajada numa reflexão sobre a atividade de organizar a vida em comunidade” (HAMMER, 2002, p. 11-12). Com isso em mente, entendemos que o H.H. IV possa ser compreendido como elemento que expressa a experiência das crises sociais vivenciadas na Grécia balcânica durante os séculos VII e VI a.C., bem como funcionou como aparato político18 e religioso que auxiliou no assentamento simbólico das demandas por maior participação política pelo demos durante o período mencionado, demandas essas que eram solucionadas no espaço público, comunitário.

Quanto às staseis (crises) vivenciadas pelos gregos durante o arcaísmo, existem duas correntes interpretativas: a que defende que a crise agrária mencionada em Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo, é primordialmente uma querela familiar sobre herança (POLIGNAC, 2010) e outra - com a qual nos coadunamos - que enxerga a colonização/diáspora grega dos séculos VII e VI a.C. como elemento crucial para compreender causas, consequências e sintomas das crises agrárias e sociais que permearam as comunidades gregas tanto nos Balcãs quanto nas nascentes apoikiai (colônias) da Sicília, Magna Grécia, dentre outras localidades (CORVISIER, 1996; VALLET, 1996; MALKIN, 2011). Dentre os poetas que atestam as divergências entre os grupos que compunham as cidades, geralmente, destacam-se Sólon, de Atenas, e Teógnis, de Mégara, que viveram no século VI a.C., como já foi dito. O primeiro declara que concedeu ao povo o privilégio que lhe cabia e que garantiu aos ricos que “nenhum insulto recebessem”, não permitindo que “nenhum dos dois vencesse injustamente” (SÓLON, FR 5W,); já o último aconselha Cirno a gozar da companhia de “homens de bem” (agathoi) e evitar os “inferiores” (kakoi), que antes estavam nos campos e “pastavam fora da cidade, como cervos” (TEÓGNIS, Poemas Elegíacos, v. 1109-1114).

Outros nomes também são importantes a fim de pensar como os helenos utilizavam versos como elemento de questionamento social: Arquíloco (FR 38W) desafia os valores aristocráticos vigentes no século VII a.C. ao afirmar que largaria seu escudo sem hesitar, a fim de preservar sua vida;19 Hesíodo, em Os Trabalhos e os Dias, adverte quanto à corrupção e à violência da camada mais abonada da população, alertando que Zeus, como garantidor da ordem e da justiça, castiga aqueles que agem e falam em dissonância com o que é correto:



[...] Dizei Zeus, hineando vosso pai,
por quem são os homens mortais igualmente famosos ou sem fama,
lembrados ou esquecidos, por vontade do grande Zeus,
pois fácil fortalece, e fácil ao forte faz falir,
fácil o brilho escurece e o escuro esclarece
fácil o torto endireita e enfraquece o arrogante.
Zeus altitonante que as mais altas moradas habita,
vem! Vê e escuta: com justiça endireita as sentenças,
tu! Eu, por mim, a Perses quero dizer verdades. (v.2-10, grifos nossos).

A Teogonia também trata de crises e arranjos de poder ao narrar a genealogia do panteão helênico, concluindo que é com a justa distribuição de honrarias que o mundo adquire estabilidade, como já mencionamos neste trabalho. Zeus não governa sozinho: suas decisões são muitas vezes questionadas ou rejeitadas pelos demais deuses, conforme se pode observar na Ilíada (IV.25-29) e no Hino Homérico a Deméter (v.321-339). Na Odisseia, conforme mapeou J. Marks (2008), os concílios dos deuses (I.26-103, V.3-54, XII.377-425, XIII.128-160 e XXIV.473-488) apresentam-se de acordo com a seguinte fórmula: à reclamação feita por um deus (Atena, Poseidon, Hélios), Zeus demonstra surpresa e responde com uma contraproposta tida como justa, a qual o reclamante aquiesce e executa.20 Fica patente, portanto, a busca de um equilíbrio por meio da deliberação. Os versos de Tirteu, de Esparta, sinalizam que a maneira encontrada pelos lacedemônios para lidar com as crises vivenciadas durante o período arcaico consistiu no reforço da ordem cívica através de “rituais, oráculos e canções” (VAN WEES, 2009, p. 1-2, 24-25; FR 2 W), ou seja, dramas sociais e performances21. Tirteu conclama os espartanos a seguir os deuses e o concílio dos anciãos, idealizando uma estrutura social hierárquica na qual o povo ocupa o último lugar nas decisões sobre a cidade (FR 4 W).22

Resta claro, portanto, que a poesia que emergiu e circulou na Hélade ao longo do período arcaico, demonstra tensões entre os diferentes segmentos que compunham a comunidade, bem como explicita que o assentamento de disputas precisa ser realizado em público. No período clássico, a filosofia e o teatro tomavam para si a tarefa de pensar e questionar a vida em sociedade e seus valores. Todavia, no arcaísmo, esse papel cabia à poesia e os aedos e rapsodos eram algumas das principais referências de sabedoria. Homero e Hesíodo ensinaram aos gregos “a teogonia, a aludir aos epítetos dos deuses, ao seu culto e funções e a traçar-lhes o retrato” (HERÓDOTO, Histórias, II.53), e os demais poetas colocaram em evidência outras problemáticas da vida cotidiana sob vocabulário mítico e religioso. O Hino Homérico IV: a Hermes é particularmente ilustrativo quanto a essa afirmação. Passemos a ele, analisando-o como drama social.

O Hino Homérico IV a Hermes. Algumas considerações

Chegaram até nós, dois hinos dedicados ao deus: um curto, o Hino Homérico XVIII: a Hermes (H.H. XVIII), com 12 versos, e o longo, o H.H. IV, objeto de nosso estudo. Todavia, se compararmos ambos, o menor é praticamente o proêmio do hino maior: relata a origem divina de Hermes, filho de Zeus e da ninfa Maia, uma das plêiades; coloca-o como guardião da Arcádia, região central do Peloponeso, que figurou no imaginário greco-romano como um “mundo à parte” possuidor de elementos étnicos muito próprios, caracterizado por autoctonia, um suposto isolamento cultural fruto de sua paisagem montanhosa e por um bucolismo: pastoreio, caça e culto a divindades, como Pã e as ninfas (PAUSÂNIAS, Descrição da Grécia, 8.1.4 et seq., 8.26.2; HARVEY, 1987; JOST, 2007). Em outras palavras: uma espacialidade que seria ambígua e misteriosa, fronteiriça ao mundo urbano da pólis, o que bem caracteriza o aspecto transitivo de Hermes.23 Impossibilitados como estamos de saber qual dos hinos foi composto primeiro ou mesmo onde foram elaborados, é preciso ressaltar que o H.H. XVIII é, em si mesmo, uma narrativa fechada e completa, dando conta da gênese de Hermes, correspondendo a um padrão observável no conjunto dos Hinos Homéricos (SERRA, 2006).

O H.H. IV apresenta, como a maioria dos demais, uma estrutura tripartite (JANKO, 1981): um prólogo/proêmio (v.1-19), o qual já abordamos, semelhante ao H.H. XVIII, que discorre sobre a gênese de Hermes; em seguida, temos a narrativa mítica dos feitos de Hermes e de como ele conquista seu lugar no Olimpo, sua jurisdição nos assuntos divinos (v.20-575). Essa porção do hino pode ser dividida em outras partes: a primeira trata da invenção da lira pelo deus a partir do sacrifício de uma tartaruga (v.20-61); a segunda narra o modo ardiloso e inventivo pelo qual o bebê Hermes furta o gado de seu irmão Apolo (v.62-321), e a terceira discorre sobre a querela entre os filhos de Zeus e a sua resolução (v.322-575). Por fim, a saudação (v.576-580): o poeta aponta a principal atividade regida por Hermes (as trocas), pede ao deus que aceite o poema como oferenda e promete realizar-lhe outros cantos. A. Vergados (2013, p. 125-128) propõe a seguinte estruturação:



v.1-19: Proêmio;
A v.20-64a Lira;
B v.64b-141 Gado;
C v.142-396 Retórica de Hermes;
B' v.397-414a Gado;
A' v. 414b-502 Lira;
v.503-508 Coda.

Um dos debates existentes acerca do texto é concernente à sua datação: enquanto M. L. West (2003) defende que sua composição ocorreu por volta do século V a.C. devido a suas características cômicas,24 a opinião preponderante situa-o no século VI a.C. (SERRA, 2006; JANKO, 1982; VERGADOS, 2013), ao que nos coadunamos, uma vez que percebemos o H.H IV como elemento demonstrativo no campo simbólico, como drama, das negociações empreendidas pelas diferentes camadas da população no acesso às instituições em formação na Hélade e na obtenção de direitos subjetivos e organização dos tribunais.

M. Jarczyk (2017) destaca a dimensão pedagógica da narrativa no H.H. IV:

Hermes provou-se não apenas um ladrão inteligente (apesar de que ele, sem isso, não seria ele mesmo), mas também, inesperadamente, um educador: um inventor de coisas úteis à humanidade (nas seções 1 e 3), um professor (na seção 2) e em último lugar, mas não menos importante (novamente na seção 3), um originador de duas instituições sociais importantes: a oferenda de comida, que aproxima os homens dos deuses, e a “bela/justa festa”, que une os homens. (JARCZYK, 2017, p. 233).

Em nosso ver, assim como Hermes busca adquirir sua porção da timé (honra) entre os demais deuses, por meio de uma redistribuição das honrarias (CLAY, 1989), o mesmo ocorria com parcelas menos afortunadas da população em diversas partes da Hélade, como já argumentamos. Um dos aspectos didáticos dos H. H. é sua ideologia unificante: com a Ilíada, a Odisseia e a poesia hesiódica, tem-se um conjunto poético que demonstra a formação de um panteão pan-helênico e suas atribuições. Ao circularem nas comunidades gregas, esses versos auxiliam na criação de noções comuns sobre o divino (CLAY, 1989; STEHLE, 1997). Em seu contexto festivo, os hinos, ao relatarem um mito relacionado ao deus celebrado, colaboram na articulação das preocupações endereçadas pelo ritual, expressando as tensões percebidas durante a performance (JOHNSTON, 2002).

Muitos dos classicistas que se dedicaram a estudar o H.H. IV reclamam de uma aparente falta de centralidade temática do poema, chegando mesmo a caracterizá-lo como “errático”, de forma que sua interpretação seria difícil (PENGLASE, 1997). Concordamos, contudo, com a visão de que o hino em tela, ao trazer episódios aparentemente desconexos, na verdade oferece um quadro mais amplo: trata-se da integração de Hermes ao panteão olímpico através de sua performance de virilidade e inteligência (o furto do gado) e da obtenção do reconhecimento do seu status divino por Apolo - que, ao fim, coloca-se como patrono do irmão mais novo (H.H. IV, v. 574-575) - e pelo pai deles, Zeus.

S. I. Johnston (2002) defende que uma das ocasiões privilegiadas para que o H.H. IV fosse entoado seria durante competições atléticas, uma vez que a temática da maturação e do provar-se viril e digno é abordada pelo poema. Considerando esse cenário - da celebração da masculinidade aristocrática -, não causa estranheza que o poema aborde, como defendemos, uma idealização da solução de conflitos existentes entre aqueles que detêm uma posição privilegiada perante o grupo social (representados no poema por Apolo), os que buscam reconhecimento de sua pertença à comunidade - pastores, pequenos proprietários, entre outros descritos por Teógnis como kakoi -25 cujo papel é equivalente ao que Hermes desempenha na narrativa, mediada pelas figuras de autoridade reconhecidas por ambos: os anciãos, no plano terreno, e Zeus, no divino. Sua performance no ambiente festivo, que, em si mesmo possui caráter pedagógico e é elemento de coesão social (BURKERT, 1993), vai ao encontro do objetivo de dirimir as contendas entre os diferentes estratos da população e reforçar o sentimento de comunalidade ao reconhecer as prerrogativas de cidadania dos grupos menos abastados da cidade. Afinal, como aponta Richardson (2010), algumas das características observadas em todos os hinos longos são: o foco no estabelecimento de uma ordem divina, as relações entre deuses e humanos e a proximidade e distância entre esses. Ao narrar a atribuição e divisão de poderes e esferas e atuação entre os deuses - no caso do H.H. IV, Apolo e Hermes -, os hinos homéricos serviam como artefatos que despertavam a reflexão sobre as relações existentes nas camadas sociais que compunham a pólis, expressando um ideal de comportamento: o encerramento das contendas por via pacífica, por intermédio da arbitragem de um corpo de juízes aparentemente neutros.

Destarte, analisemos os versos do poema que tratam da resolução do conflito entre Apolo e Hermes, obtida através da mediação de Zeus e que se situa no Olimpo, a arena pública dos deuses.

Ordem e Justiça no Hino Homérico IV: a Hermes

Primeiramente, vejamos como o evento causador da lide entre Apolo e Hermes é narrado: o bebê Hermes utiliza de ardis para furtar as vacas do irmão, mata duas reses e esconde o restante (v. 74-154). Quando admoestado por Maia, sua mãe, sobre o que fez, a resposta do jovem deus é clara: suas ações têm como objetivo adquirir “santas honras”, “as mesmas do apanágio de Apolo” (v.172-173). Em sua conversa com ela, Hermes constrói mesmo uma ameaça: diz que caso o pai não lhe conceda o que almeja, tomará à força, uma vez que é capaz de ser o “rei dos bandidos” (pheletéon orchamos) (v. 175).



Se em busca de mim vier o filho da gloriosa
Leto, uma coisa pior lhe advirá, estou certo:
Em Pito vou arrombar-lhe a sua morada excelsa.
Lá, trípodes roubarei, e primorosas caldeiras
Muito ouro e muito fúlgido ferro, com mais profusos
tecidos de bom estofo: tu hás de ver, se quiseres! (v.176-181, grifos nossos).

Mesmo afirmando que agirá de forma colérica, arrombando (antitoréson) a propriedade de Apolo e tomando-lhe as riquezas, fica evidente que essa é a ação que Hermes tomará caso o pai não reconheça as prerrogativas que o jovem deus acredita serem seu direito. Destarte, a violência é o último recurso daqueles que veem negados seu acesso a uma porção do poder e dos bens materiais. Hermes, como filho de Zeus, requer sua parte nas honrarias divinas, mesmo que para isso tenha que fazê-lo à custa de subtrair as posses do irmão rico.

O H.H. IV ressalta a competitividade como elemento essencial nos modelos de masculinidade na Grécia antiga (VAN NORTWICK, 2008). No período clássico, o ideal de cidadania varonil atrelava-se à presença a céu aberto: na ágora, no teatro, etc., conforme aduz Xenofonte (Econômico, VIII.30): “Para a mulher é mais belo ficar dentro de casa que permanecer fora dela e para o homem é mais feio ficar dentro de casa que cuidar do que está fora”. O roubo de gado fazia parte de mitos que relatavam a entrada dos rapazes na vida adulta (JOHNSTON, 2002). No poema, as ações de Hermes demonstram sua astúcia e virilidade: ele está pronto para deixar a caverna de sua mãe (espaço privado) e entrar no mundo dos homens adultos (concílio dos deuses, o “espaço público” divino), caso tenha seu valor reconhecido por Apolo e por Zeus. Sendo um trapaceiro, é papel do jovem deus questionar a ordem vigente, apresentando meios de contestá-la e transformá-la. Todavia, Hermes não deseja usar de violência, como já mencionamos, ele quer a aprovação da comunidade dos deuses,26 que a mesma legitime seu status. Tanto é assim que, quando Apolo indigna-se pela perda do gado e confronta o argifonte (v.234-306), este lhe sugere levar o caso ao concílio divino (v.307-315, grifos nossos):



“Fere-longe, onde me levas, ó furioso entre os deuses?
É irado por tuas vacas que tu assim me atormentas?
Ó! Abole, divindade, a raça dos bois! Eu não
fui quem vacas te roubou, nem outro viram meus olhos.
Sei lá que vacas são essas?! Delas só conheço a fama!
Mas vamos pôr a questão diante de Zeus Cronida.”
Lá se foram discutindo atentos, ponto por ponto,
Hermes divino pastor e o filho de Leto esplêndido,
Com inclinações discordes [...]

É interessante notar que, mesmo mentindo, Hermes deseja ir à arbitragem. Isso nos remete ao que é descrito em Os Trabalhos e os Dias: segundo a narrativa, é Perses quem pressiona Hesíodo a ir aos juízes para resolver suas desavenças,27 o que reforça a ideia de que a reconstrução verdadeira dos acontecimentos não era o objetivo, e sim o acordo entre as partes.28 A narrativa herodotiana acerca de Déjoces, unificador dos Medos e seu primeiro rei, é moldada segundo a perspectiva helênica sobre o direito, a ordem e o correto procedimento para a obtenção de sentenças justas. Heródoto afirma que Déjoces ganhou fama em sua própria vila como um juiz zeloso, o que fez com que as comunidades ao redor recorressem a ele para o assentamento de disputas. Seu sucesso fora tamanho que ele conseguiu ser proclamado rei (HERÓDOTO, Histórias, I.96-98). O lógos sobre Dejóces permite reconstituir um quadro dos dizeres de justiça numa época anterior ao registro escrito das leis:

[...] em um lugar particular ou vila, um ou mais homens regularmente sentavam-se e decidiam sobre casos, embora esses "juízes" também atendessem outros assuntos. Esses casos eram trazidos a eles pelos litigantes, que poderiam selecionar qualquer juiz que quisessem e poderiam até mesmo ir a outra vila para ter sua disputa resolvida. Se eles não conseguissem encontrar um juiz aceitável, muitas disputas ficavam sem resolução e a anomia aumentaria. Esses juízes com reputação de "retas" sentenças teriam muitos casos a resolver; aqueles com reputação contrária a essa teriam poucos. (GAGARIN, 1989, p. 20-24).

Esse entendimento é corroborado tanto pela leitura da passagem do Escudo de Aquiles na Ilíada, já discutida, quanto pelo trecho dos versos 307-315 H.H. IV, já reproduzidos: Apolo e Hermes mostram-se de acordo a irem à presença do concílio dos deuses para que Zeus resolva a arenga em tela (v.322-332):



Logo ao cume recedente do Olimpo chegados foram
os belos filhos de Zeus, dirigindo-se ao Cronida.
Lá os esperava a ambos a balança da justiça.
Vozes suaves soavam no Olimpo nívio, que os divos
reuniam-se, incocussos, atrás do trono da aurora.
Apolo do arco de prata e Hermes se detiveram
ante os joelhos de Zeus. Ao filho ilustre, indagando,
Zeus que atroa nas alturas dirigiu-lhes estas palavras:
“Febo, de onde me trazes esta presa preciosa-
um petiz recém-nascido, que tem uns ares de arauto?
Assunto grave teremos nesta assembleia dos deuses!”

Mesmo que Apolo e Hermes se coloquem diante de Zeus, transparece o caráter coletivo do julgamento: as vozes dos deuses podem ser ouvidas e o Cronida declara que se trata de uma theon meth' homegyrin, uma assembleia divina, na qual Zeus atua como presidente. Tal princípio colegiado será marca dos tribunais helenos do período clássico, dos quais as principais fontes são atenienses. Nos séculos V e IV a.C., esse corpo jurídico era composto por magistrados escolhidos pela estrutura políade já consolidada. Quanto ao período arcaico, nossas melhores evidências estão nos poemas: além da emblemática cena de julgamento contida no escudo de Aquiles e descrita na Ilíada, a Odisseia29 nos fornece amostras de que esses concílios e assembleias foram adquirindo formalidade e regularidade com o passar do tempo (SEALEY, 1997), o que é reforçado por Aristóteles (Política, 1285b) e, também, pela leitura do Orestes de Eurípides.30 Assim como descrito no lógos sobre Déjoces, elites locais em toda a Hélade tomaram para si, durante o arcaísmo, a tarefa de controlar a ordem vigente, o que no H.H IV é representado por Zeus e os demais deuses. Esse caráter público, coletivo das decisões na vida cotidiana das aldeias e vilas fazia com que, uma vez resolvida a querela, as redes informais de vizinhança efetivassem a decisão ao fazer pressão e exercer vigilância sobre as partes litigantes, de modo que as mesmas cumprissem o que foi acordado (GAGARIN, 1989; PAPAKONSTANTINOU, 2012).

Estando no concílio divino, Apolo é o primeiro a falar (v.333-365): reconta o caso, afirmando que Hermes lhe arrebatara as vacas utilizando truques para despistar a autoria do feito, mas que fora visto por um homem - a quem Hermes ameaçou caso contasse o que aconteceu (v.87-93, grifos nossos):



Um velho que da videira cuidava, lá o viu que vinha
Pela planura, buscando os doces prados de Onquesto.
O filho da ínclita Maia antecipou-se a falar-lhe:
“Ó velho que de ombros curvos estás a moldar as plantas!
Bem avinhado estarás, assim que isso tudo vingue;
Agora, o que vês, não vejas, nem ouçam os teus ouvidos:
Silêncio, que não te alcance dano do que te pertence!”
Disse e passou, a tocar vacas de fortes frontes.

É importante ressaltar que no H.H. IV os sentidos desempenham um papel de grande relevância, tal como demonstra o relato de Apolo a Zeus e aos demais deuses sobre seu encontro com o bebê Hermes na caverna de Maia (v.356-365):



Depois de tranquilamente as ter guardado, e na via
Pirilampear com passos volúveis deambulando,
Foi no seu berço deitar-se, igual à noite sombria
Num antro caliginoso, em tal escuro que nem
águia de olhos agudos pudera vê-lo; com as mãos
dissimulava-se as vistas, maquinando mil malícias.
Pronto aí me declarou, petulante nas palavras:
“Eu nada vi, nada sei, não escutei dizer nada!
Indícios não tenho a dar, nem alvíssaras reclamo!”
Tendo feito este discurso, Apolo Febo sentou-se. (grifos nossos).

São eles que permitem captar a vida social, e no H.H. IV, a visão, a audição e a fala são destacados em diversos momentos da narrativa: na interação entre Hermes e a tartaruga, que é sacrificada e transformada em instrumento musical (v.30-40); quando Hermes elabora um canto sobre si mesmo (v.54-62); na ameaça ao idoso mortal, testemunha do furto (v.90-93); quando Apolo interroga esse ancião sobre o que ele sabia (v.199-214); na negação de Hermes sobre o ocorrido (v. 263, 276-279, 308-310); durante o julgamento por Zeus (v.363-364). A única testemunha das peripécias de Hermes é um homem mortal, que não pode estar perante a assembleia dos deuses, embora tenha confessado a Apolo que viu um menino realizando o furto (v.199-212). Contudo, na vida cotidiana, o testemunho de terceiros na resolução dos conflitos da comunidade era elemento crucial: Heráclito (22 B 101a) afirmou que ‘os olhos são, de fato, testemunhas mais seguras que os ouvidos”. Sabemos da importância do ver e do ouvir para a construção do saber no desenvolvimento da escrita da História no período clássico com Heródoto e Tucídides (HARTOG, 2014): o mundo é cognoscível, primeiramente, pelos sentidos, especialmente a visão.31 Em Atenas, Sólon (FR 41-44bW) escreveu que, na ausência de testemunhas que corroborassem as versões dos fatos apresentadas pelos litigantes, estes deveriam fazer juramentos sobre a veracidade do que alegavam (GAGARIN, 2006, p. 267-269).

A presença de testemunhas nos julgamentos, pois, era importante também para evitar perjúrios e mentiras, coisa que Hermes, sendo ladino, não se intimida de fazer. Ele ainda afirma que errado está Apolo por não apresentar quem comprove sua acusação (v.368-389, grifos nossos):



“Zeus pai, eu te vou dizer agora a verdade toda
pois sou sincero sem falha, mentira não sei contar.
A nossa casa, em demanda de umas reses sinuosas,
ele ontem foi, mal o sol a erguer-se principiava,
sem um deus por testemunha que a mim me tivesse visto.
[...]
Nada tenho de ladrão de gado, que é tipo forte.
Acredita-me - pois tu te gabas de ser meu pai:
Para casa não toquei vaca - tão certo quanto me quero
rico - nem passei da porta! - com franqueza te declaro.
Ao Sol e a todos os deuses eu tenho muito respeito,
e amor e temor a ti; e tu no íntimo sabes:
culpa não tenho! Confirmo e juro com jura grande:
Não, por estes bem talhados pórticos dos imortais!
Ah, um dia me vingarei da injusta perseguição,
por forte que seja ele... Já tu, socorre o menor!”
Assim falou, a piscar, o Argifonte Cilênio [...]

Ao compararmos o H.H. IV e Os Trabalhos e os Dias é preciso frisar que a manipulação dessas cortes de justiça improvisadas por um dos litigantes deveria ser algo muito comum, vide a denúncia de Hesíodo quanto aos presentes recebidos pelos basileis, algo que despertava a cobiça dos mesmos de modo a “entortar as sentenças”. Hermes, no hino, manipula seu juramento perante Zeus e os demais deuses. Tais evidências, analisadas em conjunto, demonstram certa fragilidade desse modo de arbitragem, uma grande desconfiança entre as partes envolvidas,32 enfatizando a necessidade da presença de um grande público para reforçar os acordos alcançados. A flexibilidade dos procedimentos arcaicos davam azo à contestação ideológica: na poesia homérica a performance de justiça “reforça e reproduz o ideal aristocrático de organização social”, enquanto Hesíodo exemplifica, “a lei como um campo dinâmico e altamente contestável, que envolve vários participantes (ele mesmo, o irmão, os juízes, a comunidade) bem como interpretações, recursos e interesses que se sobrepõe ou se contradizem” (PAPAKONSTANTINOU, 2012). Os menos abastados, no século VII a.C., passam a desconfiar dos dizeres de justiça das elites, exigindo participação nos procedimentos decisórios.

O hino coloca Zeus rindo das mentiras e pilhérias de Hermes (v.389-390), pois o rei dos deuses conhece a natureza matreira de seu filho. No que diz respeito ao perjúrio, Teógnis (v.743-746) fala de “juramento criminoso” que impede a realização da justiça. As leis de Carondas, da Catânia, diz Aristóteles (Política, 1274b5-8), eram enfáticas em lidar com os falsos testemunhos. Também Heródoto (Histórias, I.23-24) traz uma anedota envolvendo Periandros, tirano de Corinto: o poeta Árion teria sido obrigado a pular no mar perto da costa da cidade. Ali chegando, relatara o que lhe acontecera. Desconfiado, Periandros chamou os marinheiros e lhes indagou sobre o destino de Árion e esses afirmaram que o deixaram em Tarento. O poeta apresenta-se, revelando a mentira. Heródoto não nos conta o que acontecera com essas testemunhas, mas o que a documentação comprova é que mentir em julgamentos era algo corriqueiro. Também, no período clássico, a prática persistia: em As Nuvens (v.399-400) Simão, Cleônimo e Teoro são chamados de perjuros e, em Assembleia de Mulheres, Blepiros e Praxágoras discutem as consequências de mentir em juízo (v.602-608). Punir essa ação é tarefa de Zeus (HOMERO, Ilíada, XIX.258-260). ATeogonia (v. 783-806) afirma que mesmo os deuses podem sofrer caso jurem em falso. Contudo, no H.H. IV, Hermes é apreciado por sua inventividade.

Zeus sabe que houve mentira e pede a aquiescência de Apolo para que Hermes mostre onde guardou o gado (H.H. IV, v.389-396):



Ria Zeus às gargalhadas de ver aquele malino
Negando com tanta arte a tal história das vacas.
Mas logo ordenou a ambos os filhos que eles, concordes,
dessem busca, indo adiante Hermes, ele mesmo guia,
a revelar, sem malícia nem segundas intenções,
o local onde escondera as vacas de rijas testas.
Com um nuto o Crônio o firmou; Hermes ilustre cedeu:
a Zeus da égide é fácil impor a obediência. (grifos nossos).

No trecho destacado, fica consubstanciado que Zeus exige que as partes entrem em comum acordo para colocarem fim ao conflito. Os versos que se seguem narram como Apolo surpreende-se com a métis (astúcia) de Hermes em furtar e esconder o gado (v.405-408). O flecheiro tenta impedir Hermes de fazer mais travessuras e o amarra com agnocasto. Contudo, este consegue se soltar e começa a tocar a lira e a cantar, “encantando” o irmão (v.411-455) e conquistando-lhe o respeito por sua habilidade musical. Apolo propõe que o instrumento é tão valioso quanto o gado roubado por Hermes: “vale bem cinquenta vacas a prenda de teu desvelo!” (v.437). Em seguida, o argifonte revela também admiração por Apolo e pelo status que o mesmo goza, sua riqueza e seus dons. Ambos entram em acordo: a cítara é dada ao flecheiro, enquanto Hermes fica com as vacas (v.494-510):



“(...) Não convém a ti, que amas
teu lucro, seguir guardando uma zanga rancorosa.”
Assim disse, e deu-lhe a lira; Febo Apolo recebeu-a
e entregou de imediato a Hermes rútilo açoite
e deu-lhe a guarda do gado; acolheu de Maia o filho
estes dons com alegria. Cítara na mão esquerda
o nobre filho de Leto, soberano arqueiro, Apolo
tangia as cordas com o plectro, melódico - e em sua mão
dava a lira som vibrante, no que a bela voz cantava.
Logo os dois apascentaram os bois no divino prado,
volvendo atrás: eles ambos, os belos filhos de Zeus,
para o Olimpo nervoso se encaminharam depressa,
com a fórminx encantados; alegrou-se Zeus prudente
e fez com que os dois se amassem. Hermes, de fato,
passou a gostar do filho de Leto, como até hoje:
um sinal é que lhe deu a cítara, em suas mãos
a dádiva encantadora, de voz que muito longe se escuta. (grifos nossos).

Os irmãos chegam pacificamente à resolução de seu conflito por meio do estabelecimento de uma troca, que será o campo sobre o qual o argifonte terá domínio, sob os auspícios de Zeus. O H.H. IV passa a narrar os juramentos trocados entre os dois: Hermes compromete-se a não mais roubar a propriedade do irmão, enquanto Apolo reconhece seu status divino, dando-lhe o açoite (para o controle do gado), o báculo - que representa o dom da palavra - e conferindo-lhe presidência sobre o oráculo das Thíades no Parnasso (v.513-565).



“Receio filho de Maia, ó guiador, ardiloso
que ainda me roubes junto cítara e arco recurvo.
De Zeus tens o privilégio de ser, na terra nutriz,
quem dá as artes da troca aos homens e estabelece-as.
Mas se me dá garantia com a grande jura dos deuses
por um sinal da cabeça, ou pelas águas do Estige,
tudo que tu realizes há de ser grato a meu peito.”
Então o filho de Maia prometeu e atestou
que nunca iria roubar as posses do deus arqueiro
nem rondaria sua forte morada; e o filho de Leto,
Apolo, o sinal que lhe fez, prometendo-lhe amistoso
que um mais caro não teria entre os deuses imortais
nume, nem varão humano vindo de Zeus.
[...]
“[...] Belo báculo vou dar-te, dom de ventura e riqueza,
ramo de ouro trifólio, que ileso há de preservar-te
e todo voto cumprir-te em obras como em palavras
de agouro bom que, confesso, da boca de Zeus conheço.
[...]
Três venerandas irmãs existem, que são germanas
virgens, e muito orgulhosas de suas rápidas asas,
com as cabeças salpicadas de um polvilho brilhante,
as suas moradas têm nas gargantas do Parnasso.
[...]
Quando, tendo-se fartado de louro mel, se arrebatam,
de bom grado elas consentem em anunciar verdade.
Porém, se privadas forem do alimento dos deuses,
elas erram e desviam, conduzem a descaminho.
Estas três te dou agora, francamente as interroga
a comprazer-te no íntimo.” (grifos nossos).

Aristóteles (Ética a Nicômaco, 1155a20-25) sustenta que a amizade é o vínculo que une as cidades, sendo sua impressão a de que “os legisladores zelam mais por ela do que pela justiça”. Essa última residiria nas demonstrações de amizade - que pressupõe, na filosofia do estagirita, reciprocidade -, no banimento da discórdia e na celebração da concórdia como análoga à philía. Mesmo no período clássico, a lei se configurava em elemento maleável, sendo seu principal objetivo a produção do sentimento de ordenação. Aqui, a boa vontade de Apolo em presentear Hermes faz parte de uma reordenação do divino: lembremos que Diké também tem o sentido de partilha, loteamento, sendo ainda uma ação (SULLIVAN, 1995). A primeira impressão que temos, ao ler o hino, é a de que Apolo dá coisas ao irmão em demasia. Todavia, devemos analisar essa doação mais detidamente. O flecheiro afirma perante a assembleia dos deuses o reconhecimento da timé (honra) de Hermes: ele, sendo rico, decide conceder ao irmão uma parcela de sua jurisdição divina, selando com ele uma relação de amizade. Apolo ainda possui dons e status superiores aos do argifonte, mas isso é aceito pelo filho de Maia, lembremos que essa repartição de justiça, para os gregos, era distributiva e meritocrática. Hermes, por sua astúcia e filiação, é benemérito dos dons que recebe, mesmo tendo utilizado de meios escusos para obter o gado. O Olimpo tem, assim, sua ordem recomposta com a adição de Hermes ao panteão. Ao ceder, em verdade, Apolo ganha, pois a ameaça do argifonte de roubar-lhe os bens não irá se concretizar.

Mesmo tendo em mente a plasticidade envolvida no assentamento de conflitos na Grécia arcaica, existe um esquema elaborado por M. Gagarin (1989) sobre as características básicas que os procedimentos protojudiciais apresentavam no período, e o narrado no H.H. IV encaixa-se no mesmo de forma substancial: 1) a divergência é submetida aos juízes; 2) cada uma das partes afirma que tem uma acusação válida; 3) uma solução envolvendo cessão de direitos/propriedades por ambas as partes é proposta ou encontrada; 4) o desenlace é proposto e aceito (caso seja aceito) em um espaço público como a ágora ou uma assembleia; 5) a opinião pública pode ser um fator de peso no desenvolvimento do caso; 6) um juramento de negação pode ser feito ou demandado por uma das partes, mesmo que isso não dê fim à contenda; 7) quando o conflito trata de perda de propriedade, a solução deve envolver a restauração da mesma, ainda que não em sua totalidade; 8) além de resolver os danos materiais, é preciso considerar os aspectos morais: a honra das partes também é um fator importante na conclusão do problema.

O hino, pois, finda-se com o comprometimento de amizade entre os litigantes e a descrição dos poderes de Hermes: as trocas, a negociação, o pastoreio, o logro, a palavra e a movimentação (v.567-578). O juramento perante os juízes e o público era parte crucial do rito de justiça tanto no arcaísmo quanto no período clássico, como já abordamos. A epigrafia oriunda de Creta é bastante esclarecedora quanto a isso: em Górtina foram editadas leis - datadas dos séculos VI e V a.C. - em que os procedimentos para a enunciação de juramentos em tribunais são meticulosamente descritos, sendo geralmente realizados em nome de Apolo, Atena e Zeus. Sabemos que o perjúrio era prática comum e a tentativa de evitá-lo passava pelo estabelecimento de multas e outras penalidades para quem fosse descoberto mentindo ou abusando de sua promessa. Assim, apesar do risco religioso de quebrá-los, a quantidade de leis em Górtina e em Atenas referentes ao abuso dos juramentos demonstram a tensão existente na passagem entre os períodos arcaico e clássico, entre um idealismo em relação ao âmbito divino e aristocrático e o dia a dia nas póleis (PAPAKONSTANTINOU, 2012).

S.D. Sullivan (1995) enfatiza que nos poemas de Hesíodo a justiça é apresentada como “uma consciência do que é correto e o reconhecimento das reivindicações alheias” (SULLIVAN, 1995, p. 184), e o mesmo ocorre no H.H. IV. No cotidiano da pólis, nos séculos VII e VI a.C., fazia-se necessário acolher as reivindicações do povo quanto à administração do espaço público e dizeres de justiça a fim de evitar as crises internas que são marcas da transição entre os períodos arcaico e clássico. Vale lembrar que as elites resistiram a esses apelos: para Teógnis, é precisamente quando os kakoi (maus) buscam se impor no centro urbano que a injustiça se manifesta na cidade.33 Os agathoi (bons), de acordo com o poeta megarense, sofrem indignidades ao terem que dividir o gerenciamento dos negócios da cidade - seu apanágio - com o povo.34 Esse quadro de diversidade na composição do tecido políade é abordado pela filosofia clássica ateniense,

35 como é bem sabido. No arcaísmo, contudo, enquanto poemas como os Theognidea objetivavam o reforço dos ideais aristocráticos e alimentavam o orgulho de uma elite que via como seu direito intrínseco o monopólio de proferir decisões de justiça, outros, como o H.H. IV, mostravam a necessidade de negociar com o dêmos para evitar a stásis e a perda por completo dos seus privilégios.

Conclusão

O meio mais eficaz de transmissão de valores e mensagens para um grande público ou mesmo para grupos restritos, em sociedades tradicionais, é por meio de poemas, canções e mitos e “porque a Grécia arcaica era uma “cultura da canção”, a performance era uma parte muito viva de todos os aspectos da vida social, canções e poesia figuravam em todos os tipos de contextos [...]” (KURKE, 2007, p. 147). Assim sendo, não é motivo de surpresa ver que essa mesma poesia nos serve de documentação para tentar reconstruir o passado jurídico heleno. Através da linguagem mítica esses versos serviam de guia para a vida cotidiana, trazendo consigo elementos que nos permitem vislumbrar as negociações entre as diferentes camadas sociais e mesmo dentro dos grupos da elite. Atribuir a autoria dos Hinos Homéricos à mesma pessoa que teria concebido a Ilíada e a Odisseia reforça o caráter pedagógico dos mesmos, uma vez que, juntamente com Hesíodo, Homero era considerado um dos “educadores da Grécia”. A performance do H.H. IV em ambiente religioso reforçava a mensagem geral de esforço para a coesão e harmonia da comunidade.

Quando temos em mente o modelo descritivo elaborado por V. Turner (2008) acerca das fases dos dramas sociais, vemos que o H.H. IV nos oferece uma perspectiva coerente dos concílios e assembleias que, no período clássico, tomaram forma de tribunais colegiados: 1) Crise (com o nascimento de Hermes e sua necessidade de ganhar espaço no Olimpo); 2) Ampliação da crise (marcada pelo furto do gado de Apolo); 3) Regeneração (iniciada pela arbitragem presidida por Zeus) e 4) Rearranjo ou cisão (o reconhecimento de Hermes como novo membro do panteão olímpico). A Grécia Arcaica, assim como a sociedade Ndembu etnografada por Turner, produzia metáforas e paradigmas, como o H.H. IV, para lidar com as tensões cotidianas da vida. Essas distensões serão marca da política e das instituições das póleis clássicas, quando a vida social atinge uma maior complexidade e exige que esses padrões de comportamento sejam colocados por escrito, gerando um corpo de leis organizado. A gênese do Direito helênico ocorre com práticas ritualizadas, performances de ponderação e concordância entre as partes litigantes, formando um processo legitimado pela comunidade. O direito, ou “protodireito” (como configura L. Gernet), nos séculos VII e VI a.C. condizia mais com os ritos, com o cumprimento de um cerimonial público que com uma norma definidora do que consistia ou não em transgressão social.

Como canção, o hino tem a necessidade de criar uma conexão com a audiência, trazendo circunstâncias que refletem as condições da vida material e valores conhecidos pelos espectadores. Os deuses na narrativa do H.H. IV, portanto, funcionam como “Outro Social”. Os épicos construíam uma “gramática cultural” que dava significado às relações em comunidade, metaforizando a gênese da pólis (HAMMER, 2002) e o desenvolvimento de suas instituições. O retrato oferecido pela poesia arcaica mostra um período de crises, cuja prática recorrente de performances - poéticas, de rituais religiosos, de justiça - auxiliava na construção de uma sensação de estabilidade, ainda que precária. O caráter repetitivo, modelado, previsível das mesmas oferecia uma válvula de escape à ansiedade social.

A poesia foi o primeiro veículo da filosofia grega, os pré-socráticos transmitiram suas ideias por versos. Estudar os aspectos políticos da poesia arcaica é sempre necessário. Apesar da crítica elaborada aos poetas em diversos diálogos, Platão não se intimidava em utilizar linguagem mítica para transmitir suas ideias de modo que essas fossem mais compreensíveis a seu público. Devemos recordar aqui as lições legadas por L. Gernet (2012) e J-P. Vernant (2009): não houve uma brusca ruptura entre mythos e lógos, e sim uma progressiva transformação e desenvolvimento do pensamento político e, também, jurídico.

O Hino Homérico IV: a Hermes, assim, mostra essa transição entre o reforço de uma ordem divina e aristocrática e os esforços realizados pelos menos abastados por reformas, por intermédio das leis e tribunais na época arcaica (VAN WEES, 2009). Tratou-se de uma transformação conservadora e conciliadora que propagava a seguinte mensagem: harmonia, para os gregos, não era a ausência de conflito, mas sim a neutralização das desavenças de forma a criar uma reconciliação produtiva (FRANKLIN, 2002). Para isso, era preciso que a organização da justiça, embora tivesse uma estruturação ritual, fosse suficientemente flexível e polivalente a fim de lidar com os conflitos ideológicos que permeavam as sociedades helenas nos séculos VII e VI a.C.

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Notas

1 Na Antiguidade helênica, poemas dos quais não se sabia a autoria eram muitas vezes atribuídos a Homero, como é o caso dos Hinos Homéricos, da Tebaida, da Edipodia, dos Epígonos, da Pequena Ilíada, entre outras composições que se perderam. KIRK, 1985, p. 110; DE ROMILLY, 2001, p. 16.
2 Os outros Hinos longos possuem: 546 versos (III: a Apolo), 495 versos (II: a Deméter) e 293 versos (V: a Afrodite). Portanto, o Hino Homérico IV: a Hermes, com seus 580 versos, é o mais extenso do conjunto.
3 H. G. Evelyn-White (1920, p. xxxiv) e M. L. West (2003, p. 20) defendem que os Hinos Homéricos foram reunidos primeiramente por estudiosos ligados à Biblioteca de Alexandria antes do século I a.C., visto a menção dos mesmos como um conjunto por autores da Antiguidade, como Diodoro Sículo (Biblioteca de História, IV. 2.4).
4 Para J. M. Hall a etnicidade é derivada dos parentescos fictícios presentes em listagens como o Catálogo das Mulheres, sendo a forma mais importante de pertencimento identitário no século VI a.C. (HALL, 2002, p. 12). Contudo, concordamos com as críticas traçadas por L. Mitchell (2005, p. 416), que acusa Hall de relegar a um segundo plano a importância da religião e dos nomina no estabelecimento de identidades, bem como a relevância da experiência colonial para a formação da Hélade. É possível observar, através da obra de Heródoto, da circulação da poesia helênica, bem como de experiências jurídicas e políticas, além da arqueologia de santuários como Delfos, Perachora (Corinto) e o Hellenion, em Náucratis, que uma identidade pan-helênica já era reconhecida pelas comunidades gregas em meados do século VI a.C. Ver: MITCHELL, 2005 e 2007; MALKIN, 2011.
5 Uma outra forma de organização das comunidades helênicas foi o ethnos (plural: ethne). Na definição de Z. H. Archibald (2000, p. 214), nos ethne “a entidade estatal era uma teia complexa de grupos, cidades e outros assentamentos”, cuja administração geralmente se dava em torno de santuários de relevância regional. C. Morgan (2006) afirma que os ethne e as póleis não devem ser compreendidos como diferentes formas de Estado e sim como “níveis de identidade as quais os grupos aderiam em diferentes épocas e diferentes circunstâncias”. Regiões como a Arcádia, Fócida, Lócrida e a Tessália estruturavam-se em ethne. Ver também: MORGAN, 2003.
6 Hesíodo, Teógnis, Alceus, Sólon, todos esses poetas lidam com a questão da Justiça durante o período arcaico. A Ilíada relata a fúria de Aquiles perante um ato que o herói julga ser injusto: a tomada de sua concubina por Agamêmnon. Na Odisseia, Odisseu e Telêmaco punem os pretendentes de Penélope por seus excessos, injustiças. A discussão sobre a justiça é continuada não apenas na filosofia de Platão e Aristóteles, mas também é representada no teatro ateniense nas obras de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. O debate sobre a Justiça é, assim, um dos temas mais caros à cidade-estado grega. Ver: HAVELOCK, 1978; GAGARIN, 1992; NAGY, 1985 e 1995; PODLECKI, 1984; BALOT, 2001.
7 Aqui usamos o termo seguindo as lições de S. Hall (1996): “As identidades culturais são pontos de identificação, os pontos instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e história. Não uma essência, mas um posicionamento. Donde haver sempre uma política da identidade, uma política de posição, que não conta com nenhuma garantia absoluta numa lei de origem sem problemas, transcendental”. (HALL, 1996, p. 70).
8 A. Van Gennep (2011, p. 107 et seq.) nos lembra da importância do casamento como rito de passagem que marca a mudança de uma condição social, afetando um grande grupo e tendo consequências econômicas consideráveis. Já F. Zeitlin (1995, p. 60) e J-P. Vernant (1974) enfatizam como a criação de Pandora e sua união com Epimeteu marcam a separação entre homens e deuses, fundando miticamente, para os gregos, as sociedades humanas. A presença das bodas no escudo de Aquiles representa a comunidade que se perpetua na união das diferentes famílias que a compõem.
9 F.D. Miller Jr. (2009, p.302-306) salienta que um equivalente à palavra “Direito” tal como usamos hoje, que demarcasse de forma explícita um direito subjetivo, não existia entre gregos e romanos. Porém, também afirma que é inegável, diante da documentação textual e epigráfica, que as sociedades clássicas possuíam mecanismos que permitiam a seus membros reivindicarem justiça perante outras pessoas ou mesmo face à comunidade como um todo: “tanto o latim quanto o grego antigos possuem um repertório sofisticado de locuções para relações legais que parecem corresponder de modo próximo às locuções modernas sobre direitos. Também há evidência de que os gregos entendiam um direito em sentido subjetivo, ou seja, como pertencendo a um indivíduo como titular de direitos”.
10 No pensamento pré-socrático a harmonia já se encontrava como um dos principais conceitos discutidos (FRANKLIN, 2002). No período clássico, a concepção de harmonia defendida por Platão é influenciada pelos pitagóricos, escola filosófica/seita religiosa cujas origens remontam à transição entre os séculos VI e V a.C. (POMEROY, 2013). No Timeu, o Demiurgo é um agente de ordem, arranjando os elementos díspares a fim de formar um todo coeso (30a-37d). A cosmogonia presente nesse diálogo apresenta uma ordenação de princípios contrários conforme proporções pensadas pelos pitagóricos para o estabelecimento do mundo físico observável (37b-d). No corpus platonicum são visíveis as conexões entre proporcionalidade, justiça e harmonia: tanto no Górgias (506d) quanto na República (397e, 411e, 591b, 617b) é defendido que há a necessidade de cada elemento “fazer a sua parte” para que haja justiça e harmonia, tanto na cidade quanto no corpo e na alma. Todavia, essas ligações já existiam no pensamento religioso helênico e estão presentes nos Hinos Homéricos, conforme defendemos no presente trabalho.
11 A segunda cidade está sitiada por inimigos externos, enquanto a primeira sofre com os conflitos internos. Trata-se de disputas diferentes, por certo. Todavia, é preciso enfatizar que os motivos de preocupação demonstrados pelos poetas arcaicos eram justamente os problemas internos, tal como apontam Alceu, Teógnis, Tirteu, entre outros. O receio desses autores não se dava sobre as ameaças de xénoi, estrangeiros, e sim sobre as desavenças existentes entre as diferentes camadas da população de uma mesma pólis. Nessa visão, a stasis é pior que o perigo estrangeiro, pois a comunidade é destruída por dentro. Nos dizeres de Sólon (FR 4W): “Mas os próprios cidadãos, com seus desvarios,/ querem destruir a grande pólis, persuadidos por riquezas,/ e injusto é o noos dos chefes do povo, aos quais está reservado/sofrer muitas aflições por sua grande hýbris”.
12 Seguimos K. Raaflaub (1997) quando afirma que, em Homero, “toda ação e decisão com importância para a comunidade toma lugar numa assembleia, seja na guerra, numa expedição ou em uma pólis pacífica. O povo testemunha tais ações, ouve o debate, expressa sua aprovação ou dissenso coletivamente (pela voz ou mesmo pelos pés!) e dividir a responsabilidade pelo resultado. No mundo antigo o modelo normal de assembleia não era o da Atenas democrática, mas aquele de Esparta, Macedônia e Roma, diretamente descendente da versão homérica: a ela faltava iniciativa e isegoria, e dependia largamente de líderes da elite ou de oficiais”. (RAAFLAUB, 1997, p. 29).
13 Eurímaco, a fim de inocentar a si mesmo e aos demais pretendentes, culpa Antínoo, que acabara de ser morto por Odisseu. Todavia, a transgressão perpetrada pelos nobres fere a prática da xenía, sendo também uma transgressão religiosa. Sobre a xenía, ver: HERMAN, 2002, p. 58-72.
14 Atena ex machina figura não apenas no final da Odisseia, mas também em diversas peças de Eurípides, como é bem sabido. Para I. de Jong (2004, p. 586), a atuação da deusa no fim da Odisseia pode ser vista como um protótipo para a sua ação nas tragédias do século V a.C. Entretanto, ao contrário do que ocorre nos dramas euripideanos, no poema homérico ela se faz presente a todo momento, sendo essa sua intervenção apenas uma em uma série de ações ao longo da narrativa: “Ela [Atena] divide com muitos dos seus sucessores a importante tarefa de trazer um fim satisfatório a uma história que nunca poderia terminar com o bom rei Odisseu, caracterizado na abertura como um homem ávido por salvar a vida de seus companheiros, matando todos de seu próprio povo”.
15 M. Gagarin (2005) usa como exemplo para tal conclusão os códigos oriundos de Górtina e de Atenas, afirmando que os mesmos “devotavam considerável atenção ao procedimento e mostravam menos interesse em estabelecer penalidades precisas para as ofensas”. (GAGARIN, 2005, p. 34)
16 V. Turner (1996) estabelece que dramas sociais são “uma sucessão encadeada de eventos entendidos como perfis sincrônicos que conformam a estrutura de um campo social a cada ponto significativo de parada no fluxo do tempo [...], representam uma complexa interação entre padrões normativos estabelecidos no curso de regularidades profundas de condicionamento da experiência social e de aspirações imediatas, ambições ou outros objetivos e lutas conscientes de grupos ou indivíduos no aqui e no agora”. (TURNER, 1996, p. XXI-XXII).
17 “Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas se furtam ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos, naquelas várias sociedades que ritualizam as transições sociais e culturais.” (TURNER, 1974, p. 117).
18 M. Finley (1997) afirma que, mesmo sendo um sistema social funcional, o mundo retratado nos épicos homéricos é pré-político. Conforme destacado por W. Donlan (1979; 1989; 1997), a ausência de organização estatal não corrobora a ideia de que não havia debate público sobre as questões comunitárias: podemos conceber o mundo homérico como uma sociedade hierarquizada (ranked society), na qual os heróis são equivalentes a chefes tribais. Ambos afirmam que a Ilíada e a Odisseia tratam do contexto do período geométrico. Todavia, como já foi afirmado, nossa tentativa com o presente texto é seguir a proposta de D. Hammer (2002, 2009), qual seja: ver como o épico traz à tona preocupações que eram cotidianas das póleis em gênese. Busca-se ver a política como atividade que questiona e reinventa a organização comunitária e como o épico (no caso, o H.H. IV) aborda e oferece respostas a esses enfrentamentos.
19 “Um Saio ora se escora em meu escudo,/ Arma sem par, que ao léu abandonei,/ E a vida assim salvei, largando tudo,/ Um tal escudo, enfim, não lembrarei. /Pois suma! Outro melhor eu compro, é tudo.”
20 A única passagem que diverge um pouco desse modelo é a do Canto XII.374-388 da Odisseia. Hélio vai até Zeus comunicar a insolência (hýbris) dos companheiros de Odisseu, que mataram e comeram seu gado sagrado e faz a seguinte ameaça: “se deles não receber expiação condigna,/irei para o Hades e lá brilharei para os mortos”. Zeus não demonstra surpresa, respondendo que ele mesmo se encarregará da punição: “[...] a nau veloz/despedaçarei no meio do mar cor de vinho”.
21 R. Schechner (2013, p. 28) oferece uma conceituação ampla para performance: “realizar uma performance é fazer algo segundo um padrão - para se ter sucesso, para se destacar. [...] Na vida cotidiana, fazer uma performance é exibir, ir a extremos, sublinhar uma ação para quem está assistindo. [...] As performances marcam identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam o corpo, contam histórias”.
22 “[...] Febo escutaram, e de Pito ao lar levaram/ as profecias do Deus e as palavras certas:/ que dirijam o concílio os reis honrados por Deuses,/ a quem importa a linda cidade de Esparta,/ e os primevos anciãos: depois homens do povo,/ por sua vez, respondendo às retas sentenças/ pronunciem ditos belos e ajam com justiça em tudo/ e não deem a cidade conselho<oblíquo>/ para que vitória e poder sigam as massas./ Sobre isso, eis o que Febo revelou à cidade.” Ver: PLUTARCO, Vida de Licurgo, 6.
23 Hermes e Pã compartilham o movimento, o pastoreio e a mediação como característica, conforme consta em diversos episódios narrados por Pausânias na Descrição da Grécia. Ver VIII.42.3, por exemplo.
24 A. Vergados (2011), porém, lembra-nos que, mesmo na Odisseia, Hermes está ligado a episódios do poema em que tons cômicos estão presentes, tal como o relatado no Canto VIII, em que Demodocos canta os amores de Ares e Afrodite e como os deuses debocham dos dois, que foram pegos pela rede de Hefestos. Ali, o argifonte é apresentado como um piadista, os deuses riem com ele (VIII.335-343). Sendo Hermes um deus de tipo trickster (trapaceiro, malandro), não nos surpreende que seus mitos estejam envoltos em caráter jocoso.
25 TEÓGNIS, v.54-60. “(...) os que antes não/conheciam justiça nem leis, mas gastavam peles de cabra em torno de seus/ flancos, pastavam fora da cidade, como cervos. E agora são homens de/bem, Polipaides.”
26 “[...] no que toca às santas honras,/Tratarei de ter as mesmas do apanágio de Apolo./Se meu pai não me concede tanto assim, eu tratarei/ - Pois disto sou bem capaz- de ser o rei dos bandidos” (v. 172-175).
27 “Mas não terás segunda chance/ de agires assim. Julguemos aqui a nossa arenga/ com retas sentenças vindas de Zeus, as melhores./ Pois a nossa herança já foi repartida e muito/ levaste de rapina, bajulando bastante os reis/ comedores de presente que querem fazer estas trocas.” (HESÍODO, Os Trabalhos e os Dias, v.35-39).
28 Contudo, Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias (v.283-284) adverte: "Mas quem em seu testemunho, quebrar juramento/e, mentindo, violar a Justiça, é sem perdão castigado". Esse castigo é de origem divina, proveniente de Zeus, não dos homens.
29 Por exemplo, a disputa entre Ájax e Odisseu pelas armas de Aquiles (XI.543-551) e mesmo a assembleia que ocorre depois da morte dos pretendentes (XXIV.420-548).
30 Em Orestes o herói, que comete matricídio, não é julgado por um tribunal em Argos, e sim por uma assembleia, tal como consta nos poemas homéricos. Nota-se, portanto, que Eurípides escolheu ater-se a uma percebida fidelidade histórica: Orestes se passaria na idade heroica, quando os tribunais não estavam plenamente organizados e as audiências ocorriam em praça pública, no mesmo local onde as assembleias reuniam-se. Também devemos levar em consideração que Tindareu não acusa Orestes de homicídio e sim de quebra dos costumes (nomina), o que era passível de ser matéria de deliberação pela Assembleia ateniense no século V a.C. O procedimento para decidir casos de homicídio no Areópago é decorrente das reformas de Efialtes em 462 a.C. No século IV a.C., o sistema de julgamentos em Assembleia foi abolido em Atenas. Ver: NAIDEN, 2013; EURÍPIDES, Orestes; ARISTÓTELES, Constituição de Atenas, XXV.
31 A teoria do conhecimento platônica, contudo, vai questionar a validade dos sentidos como meio de atingir a verdade no período clássico, o que é especialmente tratado na República (a partir do Livro V), além de outros diálogos como o Timeu. Xenófanes, na virada entre os séculos VI e V a.C., já desafiava a opinião geral da prevalência dos sentidos na obtenção do conhecimento verdadeiro e certamente inspirou a filosofia posterior. Ver: BURGER, 2013, p. 65-67.
32 Hesíodo (2011) chega a propor a Perses que resolvam sua rixa sem apelar aos basileis: “[...] Julguemos aqui nossa arenga/com retas sentenças vindas de Zeus, as melhores.” (HESÍODO, 2011, v. 35-36).
33 “Nenhuma cidade ainda,/ Cirno, homens de bem destruíram; mas quando agrada aos inferiores/ abandonarem-se à violência, corrompem o povo e concedem justiça aos/ injustos, visando lucros particulares e poder.” (TEÓGNIS, v.43-46).
34 Os Theognídea apontam a intenção pedagógica de preservar em um novo contexto social e político “os princípios éticos e morais em que se fundamentava a tradicional aristocracia: a pureza de sangue nobre, a restrita convivência com os agathoi nos âmbitos político, social e amoroso, a fidelidade e a confiança entre amigos, amantes e jovens amados, a prudência, a moderação e a justiça”. (ONELLEY, 2009, p. 116).
35 Na filosofia Aristotélica é salientado que a natureza da pólis é a pluralidade (Política, 1261a17-23, 1275a1). Em Platão as diferenças são estratificadas na vivência urbana: na República (433a-b) é defendido que cada um deve se ocupar daquilo que faz melhor para atingir excelência e para o bom funcionamento da pólis.

Autor notes

Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 2018). Atualmente (2021-2022) é professora substituta de História Antiga e Medieval na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Foi professora substituta de Teoria e Metodologia da História na Universidade Federal Fluminense (UFF), Campos dos Goytacazes (2019). Tem experiência na área de História Antiga, atuando nos seguintes temas: Religião e espacialidade religiosa, gênero e sexualidade, urbanismo, Mediterranização, cultura política e Direito na Grécia Arcaica e Clássica.

E-mail: marianavirgolino@gmail.com



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