RESUMO: Este artigo busca compreender a presença de miniaturas na pintura sacra setecentista no Império Português por meio da análise de duas pinturas produzidas em dois espaços diferentes: “A virgem e São José dão um colar a Santa Teresa”, de autoria da pintora portuguesa Josefa de Óbidos para a igreja da Ordem das Carmelitas Calçadas de Cascais, Portugal, e “Jesus consola Santa Teresa lembrando os trabalhos dos fundadores”, do pintor pernambucano João de Deus e Sepúlveda, cuja obra ainda se encontra na Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em Recife, Brasil. Utilizando-se de paradigmas teóricos como a concepção de arte persuasiva, engenho, decoro e maravilha, pretende-se analisar as miniaturas desses painéis dentro do contexto de produção de imagens sacras pela Igreja Tridentina, usando como base os tratados de pintura elaborados por Alberti, Paleotti e Borromeu.
Palavras-chave: miniaturas, Carmelitas, Barroco, pintura, arte tridentina.
ABSTRACT: This article aims to understand the existence of miniatures in the 18th century sacred painting in the Portuguese Empire through the analyses of two paintings produced in two different spaces: “The virgin and Saint Joseph give to Saint Teresa a necklace” by the Portuguese painter Josefa de Óbidos for the Church of the Order of Discalced Carmelites in Cascais, Portugal, and “Jesus consoles Saint Teresa remembering the founders” by the Brazilian painter João de Deus e Sepúlveda whose work is still located at the Church of the Third Order of Mount Carmel in Recife, Brasil. Using theoreticals’ paradigms as the conception of persuasive art, ingenuity, decor and wonder, this article intends to analyze the miniatures of those panels in the context of production of sacred images by the tridentin’s church based on the painting treaties written by Alberti, Paleotti and Borromeu.
Abstract: miniatures, Carmelites, Baroque, painting, tridentine art.
Artigo Livre
A miniatura na arte sacra tridentina no Império Português: os casos de Josefa de Óbidos e João de Deus e Sepúlveda
The miniatures in the sacred tridentine art of the Portuguese Empire: the cases of Josefa de Óbidos and João de Deus e Sepúlveda
Recepção: 09 Dezembro 2020
Aprovação: 15 Junho 2021
Ao entrar na Igreja Matriz de Cascais, Portugal, o fiel irá encontrar seis quadros de temática teresiana de autoria da pintora sevillana Josefa de Óbidos* datados de 1672. Originalmente, faziam parte de um retábulo dedicado à Santa Teresa d’Ávila exposto na igreja do extinto Convento das Carmelitas da mesma cidade. Dentre eles, encontra-se o painel “A virgem e São José dão um colar a Santa Teresa” cuja temática remete ao casamento místico** da Santa (Figura 1). Trata-se de uma pintura de proporções medianas (1,11 de altura por 1,45 de largura) que se localizava no canto inferior direito do retábulo junto com os demais painéis.
O espectador contemporâneo que contempla as pinturas no seu espaço atual, acima dos arcos da nave principal da Igreja Matriz, não conseguirá perceber as minúcias da composição dos referidos painéis. Mesmo no seu local original, somente uma observação mais próxima atentaria para um detalhe quase imperceptível a olho nu: o broche segurado pelo laço de fita rosa no peito da figura de Nossa Senhora possui uma representação iconográfica da Anunciação (Figura 2). A difícil identificação desse elemento iconográfico, em um primeiro momento, não se deve à qualidade do traço da pintora, mas à pequena dimensão que essa imagem ocupa dentro da composição principal. Disposta em um retábulo, é possível supor que a identificação da temática iconográfica nem sempre seria possível devido a distância entre a pintura e o fiel.
Se a iconografia da Anunciação no painel não resultava em uma apreciação visual imediata do público, reservando-se apenas para os mais atentos, cabe questionar os possíveis motivos pelos quais Josefa de Óbidos teria se dado ao trabalho minucioso de incluir esse pequeno componente à cena principal.
Com o objetivo de construir uma boa hipótese explicativa, recorri aos cânones historiográficos que moldaram o conceito de Barroco, sem perder de vista os tratados de pintura que influenciaram a obra de arte sacra pós Concílio de Trento.***
A publicação do livro Imagem e persuasão (2004) de Giulio Carlo Argan constitui um marco na historiografia sobre o Barroco. Especialmente entre historiadores brasileiros, os estudos sobre arte colonial baseavam-se nas categorias formalísticas expostas por Heinrich Wölfflin em 1888 no seu livro Conceitos fundamentais da História da Arte (2015). Os estudos de Argan foram essenciais para uma lenta e gradual mudança teórica que passou a utilizar novas categorias analíticas nos estudos sobre arte sacra na América colonial. Na historiografia portuguesa, é comum abordagens com ênfase numa perspectiva puramente formalística, por vezes desconectada das especificidades do contexto social de sua produção. Mesmo nessas abordagens, a exposição teórica primordial de Argan, que define o Barroco como arte persuasiva por excelência, tornou-se parte comum nos estudos imagéticos sobre arte sacra no Império Português.
Apesar dos avanços, é preciso ir mais adiante. É perceptível um esforço dos pesquisadores em pensar a arte produzida fora dos eixos europeus contextualizando seus espaços de produção. Essa mudança de paradigma resulta na
(...) promoção do estudo de temas locais bem definidos, quer utilizando os apetrechos teóricos domainstreamocidental da disciplina, quer criando e adaptando novos termos, de incidência específica, que melhor ajudem a elucidar as novas realidades e seus contextos. Fazem-se, assim, esforços de adaptação teórica, temática, cronológica e terminológica, a partir da matriz tradicional, buscando superá-la. (MACHADO, 2008, p. 526).
Portanto, não se trata de descartar a concepção de arte barroca persuasiva, mas sim de integrá-la a outros aspectos sociais e culturais alheios ao local de fala de Argan. O conceito de persuasão é essencial na concepção de uma estrutura pedagógica de conversão e consolidação da fé católica da Igreja pós-concílio de Trento, sendo largamente utilizado na arte sacra do Império Português. Para sistematizar o conceito de arte persuasiva, Argan usou dos princípios presentes em documentos como o Decreto sobre a invocação, veneração e relíquia dos santos e sobre as imagens sagradas do Concílio de Trento (1563)****, além de tratados sobre pintura escritos por Leon Battista Alberti (1436), Gabrielle Paleotti (1582) e Federico Borromeu (1624).
No século XIII, São Boaventura justificava os usos das imagens em três fatores: a incultura dos simples, já que ela podia se comunicar com os iletrados; a tibieza dos afetos, porque os homens esquecem facilmente da palavra; e “nossos afetos são incitados mais pelo que se vê do que pelo que se ouve” (LICHTENSTEIN, 2004, p. 48); e a labilidade da memória, pois ela é instável e o que “só se ouve cai mais fácil no esquecimento do que o que se vê” (LICHTENSTEIN, 2004, p. 49).
Ao referendar o uso das imagens em seu decreto, o Concílio de Trento acrescentou uma função persuasiva a elas que deveriam não apenas rememorar ou consolidar algo que já havia sido posto, como explicitou São Boaventura, mas também modelar uma conduta de vida cristã.
Os bispos ensinem diligentemente que, por meio das histórias referentes aos mistérios da nossa redenção expressas em pinturas ou de outros modos, o povo é instruído e confirmado na comemoração e na assídua contemplação dos artigos da fé; e que de todas as sagradas imagens tira grande fruto, não só porque o povo recorda os benefícios e os dons que lhe foram conferidos por Cristo, mas também porque entram pelos olhos dos fieis os milagres e os exemplos salutares de Deus por eles, modelem a vida e os costumes à imitação dos Santos e sejam incentivados a adorar e amar Deus e a cultivar piedade. (DENZINGER, 2007, p. 460).
É perceptível a ênfase das declarações de Trento na questão da visualidade. Importante lembrar que o Concílio estava versando sobre imagens físicas, portanto, ele expressa claramente que se trata de comunicações que se formam por meio do globo ocular. Ao mesmo tempo que a imagem é criada para ser visualizada, é possível que, à primeira vista, haja uma invisibilidade parcial de alguns importantes elementos da composição. No entanto, o Concílio não se detém a questões compositivas, pois não se trata de um tratado artístico, mas sim de uma peça doutrinária.
A dificuldade de entender esses pequenos elementos começa pela escolha da palavra que os definem: detalhe, pormenor e minúcia são vocábulos que não constam no dicionário mais antigo da língua portuguesa, o Vocabulário Portuguez e Latino, escrito pelo padre Raphael Bluteau entre os anos de 1712 e 1728. Portanto, adotar as definições tal como conhecemos de detalhe, pormenor e minúcia, poderia causar imprecisões, para não dizer anacronismos. É tentador usar a palavra “particularidade” para o caso, porém o termo refere-se à ideia de característica que torna aquele evento único, o que desprezaria o caráter dimensional desse elemento, característica essencial para nosso estudo.
Se procurarmos definir esses elementos a partir de sua pequena dimensão, a palavra miudeza poderia ser uma opção, pois se relaciona ao “primor e perfeição do artífice” ou a “exata consideração com que alguém está reparando nas cousas menores, menos relevantes, de menor porte”. O problema é que a palavra carrega uma dicotomia: ou representa uma destreza única de um artista na execução de uma obra de arte ou é simplesmente a parte menos importante de alguma narrativa.
Apesar de não existir uma palavra que definisse exatamente esses elementos da composição pictórica, a conceituação da técnica de representações iconográficas em espaço reduzido já existia.
Migniatura ou Miniatura, deriva-se do francês Mignature ou minature. Derão os francezes hum, e outro nome à pintura, que vulgarmente chamamos de pontinhos porque Mignar em Francez se diz das coisas lindas, bonitas e delicadas e o pintor de pontinhos, se faz com cores muito finas, em pergaminho, ou outra matéria delgada, e sempre pequeno.***** (BLUTEAU, 1716, p. 479).
Assim sendo, falta a esse conceito técnico um aprimoramento teórico sobre sua utilidade, pois, ao ser posta dentro de uma obra sacra, a miniatura adquire determinadas capacidades comunicativas que se relacionam com a natureza da pintura, afinal, os componentes de uma pintura sacra devem ter razão de existir; “Nada pode parecer desordenado ou invertido, por acaso, profano ou indecente” (BORROMEO, 2010, p. 13, tradução nossa).******
Desse modo, buscar-se-á analisar essas miniaturas como elementos indispensáveis e cruciais para a composição. A técnica de pintar pequenos elementos já era bastante conhecida no século XVII, todavia, o que não está dito na definição do padre Raphael Bluteau são os possíveis objetivos pelos quais os pintores decidiam incorporar miniaturas dentro de obras maiores, especialmente aquelas expostas nas igrejas tridentinas, grandes palcos do espetáculo católico.
A teatralidade maneirista e barroca foi um fenômeno sociológico incentivador e intensificador da política artístico-cultural da Companhia de Jesus, enfática no irracional, emotivo e sensorial. Nela, os sermões cumpriam uma função social quase idêntica ao teatro; não é por acaso que presbitérios e retábulos maiores das igrejas se transformavam em proscênios onde se materializava o invisível, cheio de suntuosos artifícios sensitivos, figurativos, auditivos e olfativos. O templo, sem seu conjunto, se convertia em um atrativo palco teatral, e o predicante em um comediante para o divino. Este, fingindo a voz, articulando truques retórico-visuais e emanando gestos afetados e exaltados, impressionava a audiência para alentar sua devoção. (SÁNCHEZ, 2017, p. 112, tradução nossa).*******
Josefa conhecia as técnicas de gravura e miniatura, de modo que alguns exemplares de sua autoria sobreviveram até os dias atuais.******** O fato de a pintora dominar a técnica decerto lhe garantiu segurança necessária para aplicá-la em quadros de maiores proporções. Contudo, a presença dessas miniaturas não pode ser explicada como mera demonstração de suas habilidades técnicas, visto que, ao serem postas a serviço da arte sacra, essas miniaturas passam a integrar um contexto maior de promoção da fé católica e devem ser examinadas como parte de uma complexa concepção do que seja a imagética sacra persuasiva.
Se dirigida para o bem, a função da imagem é prática, educativa, didática; mas essa função não se explica apenas pelo ato de transmitir, por meio de imagens, exortações morais ou exemplos edificantes. A Igreja quer manifestar na arte a origem e a extensão universal da própria autoridade; porém, já que esta tende sobretudo a influir concretamente sobre o comportamento humano, em vez de enunciar e impor verdades da fé, deve poder condicionar todas as ações dos homens, qualquer que seja sua posição social e sua preparação cultural. (ARGAN, 2004, p. 57).
Não obstante, afirmar que a miniatura é apenas um elemento que busca persuadir o espectador seria promover uma intepretação fácil e equivocada. Assim, adentremos um pouco mais no que Giulio Carlo Argan quer problematizar ao nos trazer o conceito de arte persuasiva: ele não está discutindo a capacidade ou efetividade da arte barroca em persuadir e condicionar as ações humanas, mas sim as intenções que movem essa produção imagética, seja ela eficaz ou não.
É por esse viés que Argan desenvolve o conceito de persuasão. Se as imagens dentro dos templos inicialmente eram uma simples narrativa de fatos ou uma figuração de uma personagem, no Barroco elas procuram ultrapassar o teor narrativo buscando arrebatar o espectador.********* Nesse sentido, o caráter persuasivo deve envolver elementos que vão para além da representação de uma temática narrativa, “funcionando tanto em níveis racionais quanto emocionais” (BORROMEO, 2010, p. 5, tradução nossa).********** Portanto, as imagens se direcionam para a comoção do indivíduo influenciadas pela espiritualidade da Devotio Moderna, doutrina que “se tratava de encontrar Deus com o amor que se tem para si próprio, na individualidade da experiência humana” (SANCHÉZ, 2017, p. 119, tradução nossa).***********
Nesse contexto, é imprescindível que as imagens conduzam o fiel para uma narrativa correta, livre de erros, pois “Erros históricos não serão permitidos” (BORROMEO, 2010, p. 11, tradução nossa).************ Todavia, para que a persuasão ocorresse no âmago do espectador, não apenas a imagem deveria vir acompanhada de outros elementos cenográficos como iluminação, odores e sonoridade, mas a própria pintura necessitaria canalizar o sagrado, pois seria impossível que uma imagem ímpia conduzisse o fiel para o arrebatamento divino. Paleotti explicitava bem a diferença entre o profano e o sacro:
Coisas profanas eram aquelas que se mantinham em seu estado natural potencialmente a serviço das necessidades ordinárias da população; coisas sagradas são aquelas que se elevam do comum e servem, com grande distinção, para o culto divino e questões religiosas. (PALEOTTI, 2012, p. 85, tradução nossa).*************
Portanto, a imagem sacra não é ordinária, sendo sua profanação uma ofensa à fé. Contudo, não é o suporte físico da imagem que possui qualquer espécie de divindade, ele é o objeto canalizador da entidade que se encontra representada. Por conseguinte, assim como a veneração das imagens e relíquias chegavam em seus representantes, a profanação também percorria o mesmo caminho.
No que diz respeito ao tema discutido, sobre o que é um objeto sagrado, a Fé da pessoa que o fez e o propósito para o qual ele foi feito imediatamente fornece ao objeto uma certa santificação e separa-o de outras coisas puramente profanas, tal como ocorre com igrejas, oratórios e capelas construídas para o culto divino as quais nos referimos como sacras antes mesmo de serem solenemente consagradas pelo bispo devido a representação e a finalidade para a qual são destinadas ou fabricadas. Imagens por si não são coisas, mas sinais de coisas, consequentemente, elas variam as particularidades formais do que representam, pois todos os sinais são lidos na luz de seus significados. (PALEOTTI, 2012, p. 101, tradução nossa).**************
As imagens constituíam importantes peças na engrenagem do corpo místico da Igreja por realizarem uma conexão fundamental entre os membros que não estão presentes fisicamente e aqueles que ainda se encontram no mundo físico. “A imagem sacra pode permitir também comunhão orante, não substancial, mas mística com o divino” (BORRIELLO, 2003, p. 528). Ou seja, a imagem sacra cria um canal de comunicação místico entre o divino e o humano, e, apesar do objeto físico não ser santificado, ele cria o elo entre as duas dimensões, deixando de ser uma imagem ordinária para se tornar uma imagem sacra.
O IV Concílio de Constantinopla (869-870) já declarava que a pintura sacra somente poderia ser elaborada por pessoa que pertencesse ao corpo místico da Igreja.
Aqueles que tem sido anátemas por este sagrado e ecumênico concílio não é permitido pintar imagens sagradas nas igrejas ou pregar ensinamentos em qualquer lugar, sem importar se estas são divinas ou puramente de natureza secular. Qualquer um que emprega este tipo de pessoas, violando este decreto, se ele for um clérigo correrá em risco de ser deposto desta posição; se for um leigo, ele será privado da sagrada comunhão. (CONCILIUM, 2019, s.p., tradução nossa).***************
Afirmava-se que a imagem religiosa não era uma imagem comum, visto que possuía uma finalidade sacra, portanto não poderia ser produzida por mãos ímpias, equiparando-se aos signos orais. Um cristão em pecado era uma mazela no corpo místico, uma fratura que poderia comprometer todo o resto. No ano de 1733, o frade carmelita pernambucano Ignácio de Jesus procurou o Tribunal do Santo Ofício em Lisboa, relatando que “se vio combatido de muytos pensamentos contra a caridade” e “ficou depois com tal perturbação que depois de ter consagrado duvidou se tinha dito todas as palavras da consagração e se tinha tido tenção de consagrar”****************. Em agravo à sua consciência, não lembrava se teria jejuado antes da consagração. Assim, a finalidade sagrada da missa havia sido comprometida porque o celebrante encontrava-se em desacordo com a Igreja, portanto a transubstanciação não teria ocorrido. As palavras, que deveriam ser sacras, passaram a ser apenas um discurso ordinário profano. Da mesma forma, o pintor das imagens deveria ser alguém em acordo com o corpo místico da Igreja, como definido no IV Concílio de Constantinopla. Caso não fosse, corromperia a sacralidade da imagem, pois “Pintura é, afinal de contas, um tipo de discurso falado, embora do tipo em que os pintores falam à mente humana ao invés de seus ouvidos” (BORROMEO, 2010, p. 119, tradução nossa).*****************
Os elementos que compõem a imagem sacra, dentre eles as miniaturas, deveriam estar conectados e direcionados para a divindade, não sendo permitida nenhuma espécie de distração que viesse a prejudicar esse canal. Mesmo que não fossem vistos de imediato, esses elementos compunham o constructo desse canal místico, pois, como expressou Paleotti em frase já citada, se uma imagem não é um simples objeto, mas signo de um objeto, a imagem sacra está em direta comunicação com o elemento sagrado da qual é signo.
Regrada pela utilidade, a imagem sacra não poderia ser fruto de uma deliberação unilateral do artista, pois havia preceitos e cânones que deveriam ser seguidos. Na monarquia pluricontinental portuguesa as práticas de mecenato das artes pela Igreja Tridentina se replicavam na América com maior expressividade em encomendas realizadas pelo clero regular e secular. Essa relação entre artista e compradores é fundamental para a definição da iconografia representada. Como aventa Márcia Bonnet (2009), “A instituição encomendante estabelecia uma série de regras a serem respeitadas pelo artífice sob pena dele não receber o pagamento, no todo ou em parte, pelo trabalho realizado, ou ainda de ser obrigado a refazer toda a obra ou devolver o dinheiro”. (BONNET, 2009, p. 76).
Por volta de 1730, o pintor pernambucano João de Deus e Sepúlveda era contratado para realizar mais de 56 quadros para o templo da Ordem Terceira do Recife. Um quadro específico nos chama atenção e fornece indícios dos porquês do uso da miniatura. Posto na parte superior do coro alto, a miniatura somente podia ser vista por quem tivesse a bem-aventurança de subir até o coro alto. Inspirada na gravura de autoria de Arnold van Westerhoutl******************, publicada no livro Vita effigiata della serafica vergine S. Teresa di Gesú fondatrice dell’Ordine Carmelitano Scalzo, de 1716 (Figura 3), o painel “Jesus consola Santa Teresa lembrando os trabalhos dos fundadores” (Figura 4) faz uma alteração significativa******************* na sua fonte modeladora: ao fundo, por detrás da santa, em vez de copiar o detalhe da mesa com uma cruz presente na gravura, João de Deus e Sepúlveda acrescenta uma iconografia com a temática da transfiguração de Cristo no Monte Tabor (Figura 5).
Uma hipótese é que esses pequenos elementos tenham sido colocados no intuito de persuadir o comprador da obra do engenho do pintor. O reconhecimento das habilidades técnicas como forma de distinção social de determinado artista já estava aventado em tratadista como Leon Battista Alberti, “O fim da pintura é granjear para o pintor reconhecimento, estima e glória, muito mais do que riqueza. A isto chegarão os pintores cuja pintura cativar os olhos e a alma dos espectadores” (ALBERTI, 2009, p. 127). Essa estima e glória que o pintor deveria almejar era resultado direto da sua habilidade de pintar com engenho e despertar o efeito da maravilha.
Entretanto, explicar a modificação apenas como uma escolha do encomendante é desconsiderar todos os princípios que regiam a concepção de uma arte sacra. Além das escolhas feitas pelo encomendante, o processo de construção da iconografia pelo pintor deveria ser conduzido pela observância de determinados preceitos. Em 1563, o Concílio de Trento já defendia a expurgação de imagens equivocadas, “de modo que não sejam erigidas imagens que favoreçam doutrina errôneas e para as pessoas simples sejam ocasião de algum erro perigoso” (DENZINGER, 2007, p. 460). As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia declaravam que os Bispos deveriam verificar as imagens para que não houvesse “nesta matéria abusos, superstições, nem cousa alguma profana, ou inhonesta” (VIDE, 1853, p. 256).
As escolhas para a composição pictórica não podiam ser frutos apenas dos desejos dos envolvidos. Josefa incorporou a imagem da Anunciação à iconografia do colar porque ela tinha significação dentro da temática do casamento místico. Descrita no evangelho de São Lucas, a cena da Anunciação reforça a experiência mística esponsal ao colocar a concepção terrena de Cristo como fruto da revelação de Deus, “Continuando nessa direção, místico passou a indicar, mais explicitamente e antes de tudo, o próprio Jesus como manifestação visível e, ao mesmo tempo, mistério da obra salvífica de Deus” (BORRIELLO, 2003, p. 399). Josefa de Óbidos integrava à temática da miniatura a iconografia principal, aprimorando o canal de comunicação entre o suporte físico e a entidade espiritual. Nesse sentido, Josefa seguiu o decoro que a temática dos desposais exigia:
O decoro conservou sempre a responsabilidade por orientar o artista na procura do que é adequado e conveniente, tanto em relação aos aspectos internos e implícitos à obra (matéria, gênero, estilo, proporções, ordem e disposição apropriada de elementos e partes, ornamentos e elocução característica, ética e patética, proporção de comodidades e efeitos adequados), quanto também em relação aos aspectos externos e circunstantes a ela, a recepção que a obra deveria ter pelos destinatários. (BASTOS, 2013, p. 32).
Esse devir não pode ser compreendido como uma amarra para a inventividade do pintor ou impedir sugestões de seus encomendantes. “O decoro, é óbvio, implica uma moderada e bem delimitada percepção ocular, ou seja, ver as coisas como são e devem ser, sem desvios nem acréscimos nefastos” (SÁNCHEZ, 2017, p. 68, tradução nossa).******************** Mesmo que não fossem pensados para serem compreendidos à primeira vista pelo público, esses detalhes não poderiam ferir o decoro das imagens. Assim, as miniaturas poderiam servir como complemento à narrativa iconográfica caso o espectador tivesse a oportunidade de uma observação mais próxima e atenta.
Em Portugal, os pintores se sentiam mais à vontade para recriar tipos iconográficos********************* para as temáticas religiosas. Josefa de Óbidos é um bom exemplo de uma pintora que não se restringiu aos tipos iconográficos difundidos à época. As pinturas do ciclo de Santa Teresa, por exemplo, carregam, no máximo, uma influência longínqua de tipos anteriores, bem longe do que acontecia com a pintura no além-mar, bem mais fiel aos modelos gráficos.**********************
Mesmo em pinturas que copiavam com pouquíssimas alterações as gravuras, havia a presença de traços diferenciados. A qualidade do pintor de trabalhar inventivamente em cima de uma temática ou, até mesmo, de uma imagem já concebida, era bastante bem quista, daí porque prezava-se e louvava-se o engenho do artista.
De um modo geral, o engenho era a capacidade do artífice em, primeiramente, penetrar com perspicácia as matérias da invenção, para depois, com versatilidade, aliá-las decorosamente na produção, criando efeitos convenientes de agudeza e maravilha. (...) O engenho poderia ainda variar ou emular esses lugares já autorizados proporcionando efeitos de novidade e maravilha à discrição da recepção que os reconhecia (BASTOS, 2013, p. 40).
No além-mar, a engenhosidade do pintor se processou de forma diferente, sem diminuir sua importância para a concepção da obra. Borromeo (2010) estabelecia que “pintores e escultores não podem ser indiferentes às fontes literárias, na verdade eles deveriam se esforçar para tirar algum proveito dessas fontes para eles” (BORROMEO, 2010, p. 61, tradução nossa).*********************** Se os textos eram essenciais para definir a temática da cena a ser representada nas igrejas da América portuguesa, o tipo iconográfico baseava-se nas gravuras, imagens de fácil circulação.
Os processos picturais brasileiros também se valeram sem parcimônia das imagens gravadas como fontes. As imagens impressas trazidas a lume após a Reforma Tridentina serviram para tipificar padrões iconográficos sancionados pela Igreja e divulgá-los pelo mundo cristão. A análise de vasta produção gravada, de diversos artistas, que representa a mesma passagem religiosa, revela semelhanças consideráveis. Gravava-se, vendia-se e permitia-se a circulação do que estava dentro da idealização iconográfica pós-Trento, procedimento que, no Império Português, assegurou-se por intermédio dos instrumentos de censura (SANTIAGO, 2009, p. 250-251).
Como se tratavam de imagens cujos possíveis erros e indecências já haviam sido corrigidas, as gravuras serviram de modelos definidores dos tipos iconográficos das pinturas na América portuguesa. “(...) a utilização de estampas como modelos ou fontes de inspiração para a pintura foi uma prática universalmente generalizada durante a época barroca.” (SOBRAL, 1996, p. 15). Como o engenho era uma das qualidades que se prezava nos artífices, as miniaturas constituíram espaços privilegiados em que a engenhosidade poderia aflorar sem modificar demasiadamente os tipos iconográficos, especialmente quando eles eram sugeridos pelos encomendantes.
O que permanece em comum entre Cascais e Recife é o objetivo final de alcançar a “mirabilia”, “meraviglia” ou “diletto”, sinônimos presentes nos tratados latinos e italianos que foram comumente traduzidos para o inglês como “delight” e para o português como “maravilha”. Não se trata de uma simples surpresa que se esvaneceria depois dos primeiros contatos, mas de um elemento que prendia a atenção do espectador ao mesmo tempo que lhe proporcionava prazer. Provocar esse efeito era um triunfo para o artista, pois a imagem realizava a sua função catequética: dirigir o cristão até a sua fé, entendida neste contexto como toda a conjunção cosmogônica católica.
Categoria retórica e estética fundamental para o Barroco, a maravilha em Il cannocchiale aristotélico desempenha duplo papel: por um lado, o público experimenta uma sensação de maravilha quando surge a inesperada imagem do objeto representado, confirmando precisamente a sua eficácia como metáfora arguta; por outro lado, os mesmos ouvintes ou leitores experimentam maravilha quando, simultaneamente ao encontro empolgante com a metáfora, se apercebem da agudeza do engenho representante na transposição de termos e objetos. A maravilha serve para medir o grau de êxito obtido junto ao público (...) por uma metáfora inédita. (SNYDER, 2007, p. 130-131).
Pintor em ascensão no Recife, estaria João de Deus e Sepúlveda querendo impressionar os membros da Ordem Terceira aplicando todo o seu engenho em favor do decoro e da maravilha? Afinal, tratava-se de um importante cliente que lhe oferecia uma obra grandiosa: mais de 50 painéis dedicados a Santa Teresa. Para isso, agiu de forma incomum, mesclou diferentes tradições na representação da transfiguração, criando um tipo iconográfico novo que não aparece em nenhuma gravura localizada até agora, apesar de resguardar semelhanças espelhadas com o quadro “Transfiguração” (c. 1610), do pintor português Simão Rodrigues (Figura 6).
A presença da transfiguração conversa diretamente com a temática principal do painel, pois assim como Cristo ordenou a Teresa que aceitasse seu caminho junto as suas dificuldades e percalços, ao modo como fizeram os demais fundadores das ordens religiosas, a passagem da transfiguração foi o momento em que Deus revelou que Jesus morreria no calvário e ordenou aos três apóstolos presentes, Pedro, Tiago e João, que aceitassem o destino de seu filho.
A própria localização da miniatura sugere que um dos objetivos era o efeito da maravilha. Parte do painel esconde-se por detrás da estrutura do coro alto e a miniatura apenas pode ser vista por aqueles que possuem acesso à parte superior. Assim, como podia ocorrer com a pintura de Josefa, a miniatura poderia causar um segundo impacto de deslumbre, uma duplicação da experiência inicial, quando o espectador conseguiria finalmente “ver” a miniatura.
Entrelaçados na formação dessa linguagem pictórica que deveria ser decorosa, engenhosa e causadora de maravilha, encontravam-se preceitos católicos sobre os significados da imagem, um catálogo de gravuras modeladoras, encomendantes com dinheiro suficiente para financiá-las e pintores em busca de mais reconhecimento. Todos esses elementos devem ser considerados ao interpretar a razão de ser da criação do discurso imagético nas igrejas tridentinas: a construção da persuasão da imagem sacra.
A persuasão somente existe quando essas imagens atingem o âmbito do sacro, tornando-se instrumentos a serviço do corpo místico da Igreja. “Há outro muito notável e importante efeito que deriva das imagens cristãs, que é persuadir as pessoas, como fazem os oradores, e trazê-los, por meio das pinturas, a compreensão de qualquer assunto pertinente à religião” (PALEOTTI, 2012, p. 110, tradução nossa).************************
A imagem sacralizada fala ao espírito do espectador. Trata-se da divindade canalizada por meio da iconografia que se introjeta no fiel, arrebatando-o. A conexão com o divino efetiva-se por meio de métodos, técnicas e elementos visíveis que se mesclam a componentes não visíveis, como a pureza do pintor, a verossimilhança à entidade sacra e demais códigos hagiográficos. A imagem ordinária, profana, é elevada ao patamar de sacra, “uma coisa pode muito bem ser chamada de sagrada pela forma e mistério que ela sozinha representa” (PALEOTTI, 2012, p. 101, tradução nossa).*************************
As miniaturas servem como ponto de aperfeiçoamento da mensagem iconográfica. Ajudam a sincronizar o receptáculo, no caso o fiel, transmissor da mensagem, à entidade sagrada. A imagem sacra tem que ser perfeita. Nela não cabem elementos aleatórios que não participem da sua finalidade maior. Assim como os templos, todos os elementos da pintura sacra devem estar meticulosamente articulados para garantir a sacralidade da arte.
De fato, a regra que nada, além das imagens sagradas ou coisas relativas ao mistério sagrado, deveriam aparecer nas igrejas, é correta e deveria ser tão escrupulosamente observada que mesmo os ornamentos ao redor das portas, janelas, arquitraves, frisos, peça de altares, a abóboda do teto, o pavimento, e todo outro local deveria harmonizar com a atmosfera da igreja, e ser composto de materiais eclesiásticos e ser adequado ao templo sagrado. (PALEOTTI, 2012, p. 182, tradução nossa).**************************
Não se tratava de um acaso, um capricho ou um mero desejo do artista ou encomendante: as miniaturas existiam para tornar a comunicação entre divino e homem mais precisa. É o reforço do movimento místico que transforma o suporte físico num elemento sacro. Paleotti fazia questão de dividir as imagens em profanas e sacras, deixando claro de que havia uma diferença entre elas e que, portanto, deveriam ser pensadas e tratadas de maneira diversa. Nesse contexto, a função da miniatura vai para além do deleite visual: ela ajusta o canal comunicativo entre a imagem e o referencial sacro.
Longe de serem ordinárias, as imagens sacras carregavam elementos físicos, mas também eram imbuídas de características metafísicas. Para apreender a persuasão barroca é necessário transcender à ideia de propaganda imagética convincente tal qual nós a vivenciamos no nosso dia a dia contemporâneo, pois, para a concepção da imagem na Igreja Tridentina, a persuasão não se realizava apenas através da visualidade, mas se efetuava pela própria natureza mística da imagem sacra. Dentro dos elementos iconográficos, os códigos culturais e sociais transformavam-se em elementos místicos que, mesmo não sendo perceptíveis, realizam ou aperfeiçoavam a conexão entre o suporte físico e a divindade representada.
Ao afastar a explicação sobre a presença das miniaturas nessas pinturas como simples elementos aleatórios ou decorativos, percebe-se como essas pequenas iconografias se tornavam partes indissociáveis da conexão entre objeto físico e representado metafísico. Mesmo que elas servissem também para fins mais mundanos, como convencer os encomendantes do engenho do autor através da demonstração de uma destreza técnica e teórica do pintor, as miniaturas deviam servir a um propósito divino. Na imagem sacra todos os elementos pictóricos deveriam contribuir para a construção do canal místico que conectava o fiel à divindade.
Imersas em um ambiente teatral, as miniaturas cumpriam o papel de aprimoramento da sintonia entre signo/significado/significante, constituindo-se em elemento intrínseco ao caráter persuasivo dessas pinturas. Para além de ajustar/reforçar o elo entre o físico (pintura) e o metafísico (entidade), as miniaturas, ao despertarem o efeito de maravilha no seu receptor, incitavam “o público a desempenhar um papel mais do que meramente passivo e/ou agradável” (SNYDER, 2007, p. 132). Ou seja, para que a maravilha se realizasse, era necessário tornar os receptores agentes da pintura. Desta maneira, impelia os cristãos a buscar a compreensão do conteúdo retratado, aprofundando os preceitos do cristianismo, e completando, desta forma, o ciclo evangelizador da imagética barroca.
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