RESUMO: Em 1770, o governador do Piauí uniu a capital a todas as vilas da capitania por meio de um serviço de correios. O caso é peculiar, entre outros motivos, por causa do ensaio de uma teoria da comunicação política nos documentos então emitidos e pela minúcia com que todos os elementos do fluxo de comunicação foram normatizados. Com base em documentos do Arquivo Histórico Ultramarino, o presente artigo procura mapear o episódio à luz do processo de povoamento da capitania e da história do desenvolvimento dos sistemas de comunicação escrita na América portuguesa.
Palavras-chave: comunicação política, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, capitania do Piauí, correios.
ABSTRACT: In 1770, the governor of Piauí connected the capital to all the captaincy's villages through a postal service. The case is peculiar, among other reasons, because of the essay of a political communication theory in the documents issued and the thoroughness with which all elements of the communication flow were standardized. Based on documents from the Overseas Historical Archive, this article seeks to map the episode considering the populating process of the captaincy and the history of the development of written communication systems in Portuguese America.
Keywords: political communication, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, Piauí captaincy, postal service.
ARTIGOS LIVRES
“Circular a substância espirituosa que vivifica e faz obrar o corpo político”: o sistema de comunicação de Gonçalo Lourenço Botelho de Castro no Piauí (1770-1777)
“Circulating the spiritual substance that gives life and makes the political body work”: Gonçalo Lourenço Botelho de Castro's communication system in Piauí (1770-1777)
Recepção: 20 Dezembro 2020
Aprovação: 10 Junho 2021
Ainda no início deste século, Kenneth J. Banks observava que, nas últimas décadas, os historiadores estavam dedicando uma maior atenção aos problemas e possibilidades das comunicações (BANKS, 2003, p. 11), apontando uma tendência que tem se consolidado deste então.* Destacam-se, nesse aspecto, as preocupações com a chamada “comunicação política”, um conceito oriundo da Sociologia, da Ciência Política e das Teorias da Comunicação, áreas em que se voltam geralmente para os mass media e para a opinião pública. No campo da História Moderna, o termo - que nas áreas de origem já não tem um sentido unívoco - ganhou conotações específicas, tendo sido definido por Filippo de Vivo como “a circulação de informações e ideias sobre instituições e eventos políticos” (VIVO, 2007, p. 95 - tradução minha). Nesse terreno, há desde abordagens preocupadas com o movimento de pasquins e rumores (JOUHAUD, 1985; DARNTON, 2014; OLIVARI, 2014), até outras voltadas para as práticas de espionagem e contracomunicação (por exemplo, SOLA CASTAÑO; VARRIALE, 2015; COMISSOLI, 2017; COMISSOLI, 2018), passando por estudos sobre aquela que Chartier denominou “escrita dos representantes da autoridade pública ou a eles dirigida” (CHARTIER, 1990, p. 218).
Na historiografia sobre a comunicação política no Antigo Regime português, têm predominado os trabalhos nesse último segmento, tendo em vista a importância da escrita para uma governação que se fazia à distância.** Essas pesquisas têm abordado preferencialmente alguns elementos do esquema clássico de comunicação: os remetentes e destinatários, os códigos e os aparelhos organizacionais (transmissores e receptores), além das mensagens em si (conteúdo, forma e a tipologia).***
No caso dessa historiografia, ainda são poucos os trabalhos voltados para os canais de comunicação propriamente ditos - ou seja, os sistemas de circulação física de papéis, incluindo os aspectos logísticos das trocas de mensagens e as maneiras como as estratégias escolhidas eram moldadas e podiam moldar as práticas político-administrativas.**** Entretanto, esses canais, além de imprescindíveis para os atos comunicativos, eram instâncias de controle. Ao ligar áreas geográficas descontínuas, mas em diálogo e em contínua reconstrução, contribuíram diretamente para a transformação do espaço amorfo em um campo ordenado pela interação de diversos agentes - um processo que Claude Raffestin chama de “territorialização”, ou seja, uma organização do espaço politicamente orientada (RAFFESTIN, 1993, p. 143-144).
Na conhecida passagem em que classifica a monarquia ibérica com um “império de papel”, António Manuel Hespanha (1994, p. 91) coloca em destaque a comunicação entre o centro monárquico e os seus domínios, um eixo que tem sido o objeto preferencial das pesquisas. Mas, no corpore de corporas das monarquias modernas, as várias dimensões de poder ou instâncias administrativas também se comunicavam entre si, em um concerto polifônico e muitas vezes dissonante, cujo escrutínio pode enriquecer a compreensão de conflitos e formas de cooperação que moldavam e eram moldados pelas malhas comunicacionais. Assim, também têm surgido estudos preocupados com esses fluxos “secundários”, ao abordar as trocas entre circuitos dominiais (CUNHA; FARRICA, 2013), entre municipalidades (MOURA, 2016; OLIVEIRA, 2016), entre governadores e instâncias de poder periféricas ou locais (COSENTINO, 2014; CURVELO, 2019).
É nesse último segmento que se alinha este artigo, ao colocar em cena a comunicação entre um governador e os centros de poder local piauienses (municípios e ordenanças) em um momento em que, no encontro entre os movimentos “espontâneos” de povoação e a vontade ordenadora da coroa, erigia-se uma nova realidade territorial. O trabalho propõe-se a estudar um circuito de comunicação situado na “periferia da periferia” da monarquia portuguesa, no Piauí, capitania integrante do Estado do Grão-Pará e Maranhão até 1772-1774 e depois do recém-criado Estado do Maranhão e Piauí. Ali, em 1770, o governador Gonçalo Lourenço Botelho de Castro criou um sistema de comunicação que incluía um serviço de correios, bem como relatórios e outros documentos padronizados, alguns deles para controlar o fluxo de informações. No episódio, confluem, desse modo, tanto o problema da organização do canal, quanto o dos conteúdos a serem veiculados - ou seja, há nele um encontro explícito dos principais elementos de uma rede de comunicação - motivo pelo qual o seu estudo, independentemente de qualquer interesse particular, pode contribuir para o entendimento do quadro mais amplo dos sistemas de governança à distância de sua época. No caso específico, em um espaço geográfico em que um processo de territorialização conduzido pela coroa estava em curso, gravado por peculiaridades que decorriam, entre outros fatores, das grandes distâncias envolvidas e do povoamento recente e esparso.
As terras que formariam a capitania de São José do Piauí começaram a ser ocupadas no século XVII, nos passos principalmente das trilhas da criação de gado, em um fluxo de povoamento inverso ao da maior parte da América portuguesa, ao seguir do interior para o litoral. Embora criada em 1718, a capitania seria instalada de fato apenas 40 anos depois, quando das reformas promovidas pela coroa no norte da América portuguesa durante o período pombalino. Desde o século XVII, buscava-se conectar por terra o Estado do Maranhão e Grão Pará ao do Brasil, pois o regime de ventos e correntes marítimas criava severas dificuldades para a navegação entre a costa este-oeste (entre o Pará e o Ceará) e a costa norte-sul (do cabo de São Roque até o Rio da Prata), como se o Atlântico fosse cortado em dois naquela região, a ponto de ser mais rápido viajar de São Luís para Lisboa do que de São Luís para Salvador (RUSSELL-WOOD, 2001, p. 65). O povoamento dos sertões do Piauí facilitava as comunicações entre esses domínios. Por outro lado, depois que se iniciara o processo de expulsão dos jesuítas em 1758, era preciso também tomar posse das extensas propriedades que esses padres possuíam entre os rios Parnaíba e São Francisco (MOTT, 1985; SILVA, 2016, passim). A região era ainda palco de enfrentamentos pela posse de terras, bem como de embates entre fazendeiros e indígenas. Enquanto se reiteravam os pedidos de moradores para que se oficializasse a guerra contra essas populações originárias, Lisboa ordenava o aldeamento delas.
Desse modo, no início da segunda metade do século XVIII, uma região de povoamento escasso e disperso, fruto de um processo até então espontâneo e centrífugo, passou por um intenso processo de reordenamento territorial. Nesse cenário, o primeiro governador da capitania, João Pereira Caldas, foi incumbido de criar uma rede de municípios que pudesse ancorar o novo desenho administrativo. A vila de Mocha, única existente até então, foi elevada à capital e transformada depois em cidade com o nome de Oeiras (1761). Algumas freguesias ganharam o status de vilas, com os nomes de Campo Maior, São João de Parnaíba, Marvão, Valença e Jerumenha. Algumas vezes “mal localizadas” em relação aos pontos de captação de água, essas vilas, ao serem estabelecidas em torno das igrejas sedes das freguesias, procuravam pontos mais ou menos equidistantes entre as principais fazendas. Tais povoados não passavam de precários aglomerados de poucas casas, de modo que a sua instalação foi mais fruto de uma vontade administrativa, em luta contra os hábitos de uma população afeita à vida nas fazendas, do que de movimentos espontâneos de povoamento (ALVES, 2003; SILVA, 2016; ARRAES, 2016; ARRAES, 2017). A falta de homens dificultou até a criação do regimento de cavalaria auxiliar, que embora devesse ser sediado na capital, teve suas 10 companhias distribuídas entre todos os municípios, ficando em Oeiras apenas três (COSTA, 1974, p. 168). O novo regimento ganhou, assim, a conformação de uma rede dispersa geograficamente - uma condição que exigia esforços para manter a comunicação entre as unidades militares, mas depois facilitaria a implantação do correio, como se verá.
Em 1769, Pereira Caldas foi substituído no governo da capitania por Gonçalo Lourenço Botelho de Castro (c.1733-1801), cavaleiro da Ordem de Cristo, filho de um comerciante de grosso trato, oriundo da pequena nobreza. Em 1789, em uma memória publicada pela Academia de Ciências de Lisboa, Domingos Vandell elogiou a administração dele no Piauí. Segundo aquele autor, Botelho de Castro, assim como os ex-governadores de Mato Grosso, Luís Pinto de Sousa, e de Goiás, o Barão de Maçamedes, preocupara-se em “amansar e civilizar os indígenas e acostumá-los à agricultura e a algumas artes”, de modo que se outros o imitassem, “em poucos anos se cultivaria uma grande parte do Brasil e não se necessitaria de tantos negros, os quais com o tempo devem encarecer” (VANDELL, 1789, p. 189-190). Todavia, enquanto Pereira Caldas passou pela história como um administrador enérgico, Botelho de Castro tornou-se vítima de várias apreciações negativas, depois que José Martins Pereira d’Alencastre, ainda no século XIX, o apresentou como um governador medíocre (D’ALENCASTRE, 1857, p. 33; COSTA, 1974, p. 172; GONÇALVES, 1989, p. 16). Apenas mais recentemente, ao aprofundar as pesquisas em torno da carreira de Botelho de Castro, Fabiano Vilaça dos Santos a redimensionou do ponto de vista historiográfico, ultrapassando valorações de cunho personalista (SANTOS, 2011, p. 219-234). Em diversos aspectos, é possível dizer que o governo de Botelho de Castro deu continuidade ao reordenamento da estrutura governamental e do espaço geográfico iniciado no período de seu antecessor. Nesse sentido, marcou-se pelo aldeamento de algumas tribos (Acoroás, Gueguês, Jaicós, Timbiras), pela efetiva apropriação administrativa das antigas fazendas jesuíticas e pelo estabelecimento das charqueadas em Parnaíba, a reajustar o papel daquela vila no sistema econômico da capitania (SANTOS, 2011, p. 222). Foi criada também a missão de São Gonçalo do Amarante às margens do Rio Mulato (GONÇALVES, 1989, p. 16).
Nesse quadro, o esforço de implantar um sistema de comunicação rigidamente ordenado surge sintonizado com as demais mudanças. Era preciso fazer circular ordens entre as vilas e companhias militares e receber notícias do que acontecia, para que se pudesse pensar em unidade administrativa. O estabelecimento de um sistema mensal de correios e de relatórios buscava atender tal finalidade. Se medidas como o aldeamento regulado das populações indígenas, a reconfiguração administrativa das antigas fazendas jesuíticas e a ereção de novas municipalidades correspondiam a um claro processo de territorialização em espaços mais extensos que a maioria dos Estados europeus, o novo sistema de comunicação viria coroar o processo, ao permitir a conexão entre as parcelas descontínuas de um sistema administrativo que tentava se impor às tendências centrífugas da realidade social e geográfica dos sertões piauienses.
José Martins Pereira d’Alencastre, fonte de várias monografias sobre a história do Piauí, é silente sobre os correios de Botelho de Castro (D’ALENCASTRE, 1857). Estudos clássicos sobre os serviços postais do Brasil Colônia, como o de Rodolfo Garcia e o de Carlos Rizzini, também não mencionam o caso (GARCIA, 1975; RIZZINI, 1988). O episódio foi, por outro lado, tratado por alguns pesquisadores piauienses, como Odilon Nunes e Wilson Carvalho Gonçalves, que o abordaram de passagem (GONÇALVES, 1989, p. 16; NUNES, 2001, p. 57). Mais recentemente, o assunto foi retomado, em linhas gerais, em dois estudos, um sobre as disputas entre o governador e o ouvidor Antônio José de Morais Durão (SANTOS, 2011, p. 221-225) e outro sobre os correios coloniais (SALVINO, 2020, p. 425).
Até a reforma postal de 1797-1798, conduzida por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, a América portuguesa não contou com um sistema oficial de transporte e distribuição de cartas. Houve apenas uma tentativa do correio-mor de estabelecer uma ligação entre o Rio de Janeiro, as vilas mineiras e São Paulo, no breve período de 1712 a 1715, depois da qual a sua atuação acabaria proibida no interior das terras brasileiras por D. João V em 1730. Ratificou-se naquele momento que o monopólio das cartas para o além-mar, então pertencente à família dos Matas, era restrito às operações de envio e recebimento nos portos, embora na prática as cartas circulassem livremente pelas frotas e navios soltos, por falta de uma efetiva fiscalização (SALVINO, 2020, passim). Assim, o trâmite de correspondências entre as diferentes localidades americanas dependia de soluções mais ou menos improvisadas. Em 1740, a Coroa endereçou uma consulta ao conde das Galveias, vice-rei do Brasil, sobre a viabilidade de implantação de um correio por terra, a indagar também sobre o que se devia cobrar de porte das cartas. O conde respondeu julgar impraticável a iniciativa
por ser a correspondência e carteio de todas as capitanias e mais portos, que então eram subordinados a esta, por mar e com muita frequência e porque ainda que a comunicação por terra era muito frequentada para a condução dos gados e transporte de fazendas e negros, os mesmos condutores serviam de correios, sem o desembolso de se pagar os portes das cartas que seriam de muito valor, atendendo às grandes distâncias deste vastíssimo continente, sendo necessário que as pessoas que tomassem este encargo sustentassem um grande número de cavalos e de homens, de que ao depois não tirariam o lucro correspondente ao gasto. (apud RIZZINI, 1988, p. 177).
De modo geral, para atender às suas necessidades de comunicação, os governadores lançavam mão desses recursos mais comuns, complementados pelos serviços de militares. Alguns deles, todavia, em condições excepcionais, procuraram organizar estruturas regulares de correios. A primazia nesse sentido parece ter sido de um governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará, Alexandre de Sousa Freire que, a partir de 1729, estabeleceu um correio mensal entre São Luís e Belém, com as cartas conduzidas por soldados acompanhados por guias indígenas. Não há, contudo, informações de quanto tempo teria persistido o sistema por ele implantado (GARCIA, 1975, p. 132-133; SALVINO, 2020, p. 403-405). O caso mais conhecido, todavia, é o do Morgado de Mateus que, a partir de 1772, estabeleceu uma ligação postal aberta ao uso público, entre São Paulo, Rio de Janeiro e localidades mais ao sul, até Viamão (RIZZINI, 1988, p. 179-180; BELLOTTO, 2007, p. 205-206; SALVINO, 2020, p. 422-424).
A experiência piauiense é mais ou menos contemporânea a do Morgado de Mateus, mas começou antes. Foi informada em um ofício enviado em 10 de outubro de 1770 ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro. No comunicado, Botelho de Castro explica que os objetivos da medida eram “evitar os descaminhos que levavam minhas ordens”, bem como que as vilas e demais povoados da capitania “tivessem mais frequência e regular correspondência com sua capital” (AHU_ACL_CU_016, Cx. 11, D. 649). Enquanto as localidades piauienses distribuíam-se, mais ou menos, ao longo de uma linha imaginária na direção nordeste-sudoeste (ver Figura 1, adiante), o principal fluxo comercial da capitania, o do gado, seguia principalmente o sentido noroeste-sudeste, rumo à Bahia, o que dificultava, se não inviabilizava, o seu uso para o transporte de cartas. Assim, além da segurança e do sigilo requeridos pelos papéis de governo, esse certamente era um fator importante para que se pensasse em uma solução específica para as comunicações administrativas. O sistema implantado pelo governador buscava contemplar, dessa forma, em um fluxo bidirecional, entre a capital e as vilas, os principais atributos de qualidade norteadores da implantação de correios na Idade Moderna - segurança, rapidez e regularidade.*****
No ofício enviado a Lisboa, Botelho de Castro transcreveu as instruções remetidas em 7 de maio daquele ano aos oficiais militares e juízes da capitania, nas quais expôs a motivação da iniciativa e detalhou, passo a passo, o funcionamento dela. Na introdução dessas ordens, esboçou o que se poderia chamar de uma breve teoria da comunicação política:
A falta de pronta comunicação em todas as partes deste governo com a sua capital é sem dúvida um embaraço bem considerável e quase o princípio de quantos dificultam a sua boa economia, porque assim como o corpo físico não subsiste e permanece bem regulado quando por ele não circula e se comunica com facilidade a substância espirituosa que o vivifica e faz obrar, assim também o corpo político não pode deixar de padecer e assinar-se faltando assistência do espírito que o governa, onde prontamente deve ser levada para acudir e providenciar as desordens de cada uma de suas partes tão remotas e dispersas como se veem nesta dilatada capitania. (AHU_ACL_CU_016, Cx. 11, D. 649).
A linguagem ainda é a do paradigma corporativista, com a res publica concebida como um corpo. A referência às partes dele serem “remotas e dispersas” faz lembrar o desafio da distância para a governação. Na alusão à “substância espirituosa” que “vivifica e faz obrar” o organismo político, o texto traz para o terreno da política a linguagem de tratados médicos da época, em que ainda persistia a teoria dos humores ou temperamentos de Galeno e Hipócrates e a farmacopeia dela derivada (MARTINS; SILVA; MUTARELLI, 2008, p. 9-24). Uma possível referência é Andres Piquer (1711-1772), médico e filósofo espanhol, tradutor de Hipócrates, que, em um livro de ampla circulação na Península Ibérica, o Tratado de calenturas (Tratado das febres), com várias edições a partir de 1751, recorreu várias vezes à mesma expressão utilizada por Botelho de Castro, “substância espirituosa”, ou variações dela. Em uma passagem muito próxima ao que se diz no ofício, por exemplo, Piquer afirmou que,
nos licores do corpo humano há uma parte espirituosa, sutil e sumamente ativa, a qual Hipócrates chamou impetum facies [...] porque na verdade é a causa principal de todas as outras operações que se observam [...] (PIQUER, 1768, p. 15).
Embora haja na historiografia pelo menos uma comparação entre a comunicação política do Antigo Regime e o fluxo sanguíneo (MALIKS, 2015, p. 134-152), não parece comum, nas fontes da época, assimilar a circulação de informações com aquela de fluidos do corpo. Tratados de teologia política dos séculos XVI e XVII, por outro lado, defendiam que os poderes soberanos eram a “alma do corpo político”, uma imagem resgatada no ofício de Botelho de Castro. Como lembra Vianna,
A figura da alma substancializa uma explicação causal para a matéria e a forma do Estado porque se reporta à noção teológica do nexo implicativo causal entre alma e existência do corpo: o corpo tem unidade e movimento (forma e animação) enquanto é habitado pela alma (anima); quando esta abandona o corpo, este morre - e a morte do corpo nada mais é, nestes termos, do que a desagregação do corpo em decorrência da apartação da alma. (VIANNA, 2015, p. 61 - itálicos no original).
A substituição de “alma” por “substância espirituosa” no sentido da medicina da época torna a metáfora ainda mais carnal. “Espirituoso”, segundo Raphael Bluteau, é um termo químico, com o significado de “cheio de corpúsculos, sutis e voláteis” (BLUTEAU, 1712, t. 3, p. 285). De acordo com o dicionarista, Celso chamara a certas partes do sangue arterial “muito sutis espíritos”, enquanto Lucrécio falara em “suaves espíritos exalados de um unguento cheiroso” (BLUTEAU, 1712, t. 3, p. 285).
Na formulação do documento aqui estudado, esse espírito ou substância espirituosa fluiria por meio dos papéis, a transitar pelo correio. A metáfora corporal ganha forma também na evocação da doença, essa “desagregação do corpo em decorrência da apartação da alma”. Segundo o texto, a “abominável viciosidade e prática execranda dos vícios” conduz os fracos de espírito a “debilitar” a capitania. E são a “indizível inação” e o “descanso e particular conveniência de muitos” que levam “a deixar enfermar e gemer com a mais culpável negligência o bem comum da mesma capitania e interesses do Estado” (AHU_ACL_CU_016, Cx. 11, D. 649 - grifo meu). De acordo com a concepção galênico-hipocrática, a saúde era fruto do equilíbrio e da boa distribuição dos humores corporais, ou seja, dependia de eles estarem nas quantidades e nos lugares certos. Assim, a cura das doenças consistia em reequilibrá-los, com o fornecimento de substâncias que completassem as faltas ou contrabalançassem os excessos existentes (MARTINS; SILVA; MUTARELLI, 2008, p. 9-24). Na literatura médica, o termo “substâncias espirituosas”, evocado pelo governador em sua carta, podia referir-se tanto àquelas veiculadas pelos humores conforme a descrição de Piquer, quanto aos remédios destinados a esse reequilíbrio. No corpo político, segundo o documento assinado por Botelho de Castro, problemas como o excesso de vícios, de um lado, e a falta de ação dos homens, de outro, eram os males a combater. Governar, na concepção típica do Antigo Regime, tinha como uma das principais funções manter ou recolocar as coisas em seus devidos lugares na ordem corporativa (HESPANHA, 1994, p. 277-294). Para tanto, na formulação do governador, fazia-se necessário não apenas saber o que acontecia, mas fazer as ordens chegarem aos rincões mais distantes. Em um território extenso e descontínuo, apenas um bom sistema de comunicação permitiria que o remédio do bom governo fluísse a contento, a evitar que ficassem a “enfermar a gemer (...) o bem comum da (...) capitania e interesses do Estado”.
Talvez não seja descabido pensar que esses jogos retóricos possam ter o dedo de outra pessoa, várias vezes citada no ofício, o Secretário de Governo da capitania, padre Francisco Bruce. Os modelos das correspondências e da guia destinada a controlar o envio delas trazem a firma dele. Também foi o Secretário a assinar o plano logístico das linhas de correios. Tudo faz pensar que possa ter um papel maior no desenvolvimento do projeto, se é que não foi seu principal mentor, embora as fontes sejam insuficientes para asseverar com certeza essa autoria. Como se verá à frente, uma das acusações de Durão contra o governador foi ter ele criado uma espécie de tribunal paralelo na Secretaria de Governo. Todavia, no decorrer desta pesquisa, não se descobriram maiores informações sobre esse personagem fora de seu período no Piauí, seja na bibliografia seja em outros documentos dos arquivos consultados.
O sistema implantado procurou dar conta de todos os aspectos do processo comunicacional, de modo que qualificar a iniciativa apenas como criação de um correio é reducionista. Houve, sim, o cuidado com a organização de um serviço postal, para o qual se estabeleceram recursos, itinerários, frequências e controles de entregas. Mas se procurou também definir os papéis dos diversos agentes no sistema, como destinatários e remetentes das mensagens, bem como a forma e o conteúdo dessas. Até mesmo um sistema de retroalimentação (feedback) foi pensado.
O roteiro a ser seguido pelos correios foi previamente regulado, com as datas de saída e chegada em cada lugar rigidamente fixadas, de acordo com a Tabela 1. Note-se que ela estampa o que foi planejado, sem que tenham sido encontrados documentos que possam comprovar até que ponto as ordens foram seguidas na íntegra e se existiram ajustes posteriores.
Tendo em vista a extensão geográfica da capitania, foram organizadas duas linhas, que se estendiam por centenas de léguas. A primeira conectava a capital à Parnaíba, passando por Valença e Campo Maior. Em Valença, um entroncamento secundário comunicava-se com Marvão (atual Castelo do Piauí). A segunda linha ia de Oeiras a Parnaguá, passando por Jerumenha, conforme se pode ver no mapa da Figura 1.
Esses percursos eram cobertos, alternadamente, pelos soldados das companhias de auxiliares e de ordenanças de cada localidade. Para tanto, deveria ser feita uma escala anual, mediante acordo entre os comandantes. Os mensageiros deveriam se apresentar aos juízes de fora um dia antes do início de cada viagem. Caso não comparecessem, seria preso o capitão da companhia designada, para o caso ser avaliado depois pelo governador.
Embora se baseasse na divisão dos caminhos em segmentos, como era típico do sistema de postas imperante na Europa, o funcionamento das linhas piauienses fugia, em alguns aspectos, ao padrão dos correios da época, inclusive de outras tentativas de implantar serviços similares na América portuguesa. As postas europeias organizavam-se de modo que os mensageiros levassem obrigatoriamente correspondências tanto na ida quanto na volta.****** No caso aqui em estudo, ao terminar os percursos designados, os homens deveriam tornar para sua origem, independentemente de transportarem ou não correspondências. Mesmo se voltassem para suas bases com o que o documento chama de “cartas extraordinárias”, esses deslocamentos eram inúteis para a circulação de informações no eixo principal, cujo novo ciclo somente se iniciava no mês seguinte. Assim, cerca de 60% dos dias/homens dispendidos e 44% das léguas percorridas correspondiam a percursos “improdutivos” e paradas.
A aparente irracionalidade do sistema provavelmente visava a forçar a circulação de homens e informações pelo menos entre as unidades mais próximas, além de dividir os esforços entre todas as forças militares. Correspondências entre as localidades podiam circular nesses trechos “improdutivos”, mas a eventual comprovação de que isso acontecesse na prática dependeria de estudos complementares. A única localidade a não contribuir com recursos era Oeiras, apesar de contar com um corpo de soldados pagos, a companhia de dragões fundada em 1759 por Clemente Pereira de Azevedo Coutinho, além de três companhias de ordenanças e três de auxiliares (COSTA, 1974, p. 168). Talvez, por questões estratégicas, não se quisesse desfalcar as forças militares da capital, mas, em decorrência, as demais localidades precisavam fazer um esforço adicional. Além disso, os soldados que chegavam a Oeiras tinham que ficar estacionados ali alguns dias antes de retornarem, provavelmente o tempo necessário para a Secretaria de Governo processar os papéis recebidos, de modo a enviar novas ordens e dar continuidade ao ciclo administrativo.
Em maio de 1773, Gonçalo Botelho enviou ao então governador do Grão-Pará e Maranhão, o mesmo João Pereira Caldas que antes estivera no Piauí, um ofício a dar contas da situação daquela capitania. Entre outras notícias, comunicou-lhe a criação das duas linhas de correio aqui descritas, “as quais são indefectíveis todos os meses, de cujo estabelecimento é pública a utilidade, até para as correspondências dos mesmos povos” (AHU_ACL_CU_016, Cx. 12, D. 705 - grifo meu). O trecho grifado indica a possibilidade de uso do serviço pela população, o que o fazia ultrapassar o papel de estrutura apenas de comunicação administrativa. Todavia, não se pode dizer que tenha cumprido a função de um correio realmente público, já que não se sabe as possíveis condições de acesso a ele. Todos poderiam usá-lo? De que modo? Mas, de qualquer maneira, a iniciativa antecedeu aquela do Morgado de Mateus, cuja abertura ao uso de particulares é posterior a 1773, embora tenha sido apontada por Carlo Rizzini como pioneira nesse sentido no Brasil (RIZZINI, 1988, p. 179-180).
Depreende-se que os eventuais envios particulares eram gratuitos, como aconteceu também no caso dos correios do Morgado de Mateus. Na Europa, a disponibilização ao povo dos serviços postais mediante pagamento, foi uma forma de as monarquias compartilharem o financiamento deles (SALVINO, 2020, p. 102-107). No caso em pauta, todavia, além de não haver algum antecedente normativo que permitisse estabelecer a cobrança, o sistema baseava-se na utilização de recursos locais - lembre-se, nesse aspecto, que auxiliares e ordenanças não eram soldados das tropas pagas. A circulação de papéis particulares provavelmente era baixa, haja vista a pouca densidade populacional e as características fortemente agrárias do povoamento da capitania, de modo que não se deveriam esperar receitas significativas no caso de uma eventual cobrança do serviço. Por outro lado, o atendimento das eventuais necessidades de comunicação familiares e comerciais poderia contribuir para a aceitação comunitária do correio se a população pudesse usá-lo. A emissão das petições mais diversas era um dos possíveis instrumentos de pertencimento político, por meio dos quais as instâncias domésticas e particulares se reconheciam como partes do corpo mais amplo da monarquia. Essas comunicações, fora do nível local, a não ser em casos especialíssimos, somente se podiam fazer por meio da escrita. O correio periódico instituído pelo governador oferecia mais uma possibilidade para a circulação desses papéis, ao lado das tradicionais (viajantes, escravizados, mensageiros pagos, condutores de gado), com a vantagem de sua previsibilidade, decorrente da fixação de prazos e itinerários, ainda que sempre pudesse haver a desconfiança de uma vigilância indesejável por parte de membros da estrutura de governação.
Há um documento bastante conhecido da historiografia que pode ter circulado pelo correio naquele momento. Botelho de Castro também ficou conhecido como destinatário da carta de Esperança Garcia, escravizada que denunciou por maus tratos o capitão Antônio Vieira do Couto, administrador da Fazenda Poções, uma das antigas propriedades dos jesuítas.******* No mesmo documento, Esperança também pedia para voltar à Fazenda Algodões, onde antes vivia com seu marido. As duas fazendas em questão situavam-se entre as atuais cidades de Nazaré e Floriano, nas margens da linha de correio entre Oeiras e Jerumenha (ver Figura 1). A correspondência (ou petição) em pauta é datada de 6 de setembro de 1770, poucos meses depois de os correios do governador terem começado a funcionar. As acusações dela são referendadas por outro documento, anônimo e sem data (MOTT, 1985, p. 106-107), mas atribuído ao tenente de cavalos José Esteves Falcão, então administrador das Fazendas Algodões e Serrinha (SILVA, 2016, p. 206). Não há como asseverar que os dois papéis seguiram juntos para Oeiras, mas não é improvável. A presença deles em um arquivo dos órgãos de governação, entretanto, confirma que souberam encontrar caminhos para chegar a seu destino, seja utilizando os correios oficiais, seja utilizando portadores particulares. Poderiam ter os soldados do correio levado esses papéis até a capital? Nada o prova. O próprio tenente, ou terceiros, poderiam ter feito isso. Mas, como se viu, a tropa de cavalos era uma das bases do funcionamento do correio. Além disso, as coincidências dos caminhos e das datas e a possível presença no círculo de personagens de um oficial dos auxiliares, um dos responsáveis pelo funcionamento do serviço postal, são fatores favoráveis a que isso pudesse acontecer. É apenas uma possibilidade bonita, mas a História, às vezes, pode trilhar caminhos inesperados.********
Por outro lado, há fontes a indicar o trânsito de mensageiros fora do sistema aqui delineado, no eixo Oeiras-São Luís. Em 1773, ao enviar para o Maranhão alguns indígenas Timbiras, assim escreveu Botelho de Castro a Pereira Caldas, em um momento em que já esperava ansiosamente pelo acolhimento de seu pedido de retorno a Portugal: “Eu me conservo com os olhos e sentidos no caminho a ver se chegam alguns correios de V. Exa. que me conduzam alguma boa notícia para o meu regresso” (NUNES, 1975, p. 126 - grifo meu). Existem também algumas petições a mostrar soldados piauienses a atuar como mensageiros no sentido inverso. A mais antiga, do mês de janeiro de 1775, é de dois dragões de Oeiras que tinham ido para o Maranhão como correios e pediam para receber parte de seus soldos (AHU_ACL_CU_016, Cx. 12, D. 725). O documento não permite verificar desde quando os militares estavam em São Luís. No mês seguinte, outros dois dragões do Piauí também peticionaram na mesma cidade para que lhes fossem pagas parte dos soldos que não recebiam desde outubro do ano anterior, “para sua sustentação e transporte”, pois estavam fora de Oeiras há quatro meses, desde a gestão de Botelho de Castro, também a serviço dos correios (AHU_ACL_CU_016, cx. 12, D. 727). Algum tempo depois, em final de outubro de 1775, mais um dragão também reclamou que “vindo por correio a esta cidade nela se acha há mais de sete meses sem receber o soldo” (AHU_ACL_CU_016, cx. 12, D. 732).
Provavelmente, esses soldados se deslocavam como correios extraordinários, sempre que a situação o exigia. Dragões também transportaram cartas em outros pontos da América, como entre Belém e o Mato Grosso, ou entre o Rio de Janeiro e as vilas mineiras (AHU_ACL_CU_013, cx. 87, D. 7103; SALVINO, 2020, p. 360). Nada a estranhar, pois eram cavalarianos profissionais, disponíveis para as mais diversas missões, como buscas de criminosos, cobranças de impostos e outras (COTTA, 2012).
Mas o que fariam aqueles soldados há meses fora de Oeiras? Não se tratava certamente de uma viagem ocasional. Há de se lembrar que, em 15 de maio de 1772, o Estado do Maranhão e Grão Pará fora dividido em dois, o do Pará e Rio Negro e o do Maranhão e Piauí, um ato confirmado por provisão de 9 de julho de 1774. O governador do Maranhão e Piauí era o mesmo João Pereira Caldas a quem, nesse meio tempo, Botelho de Castro escrevera, a enaltecer o sucesso do correio por ele implantado. Uma hipótese é que a experiência piauiense tivesse sido levada a outros circuitos, entre São Luís, a capital do novo Estado e outras localidades, com a cessão de homens do Piauí. Outra é que fora criada uma linha regular a unir a capital do novo Estado a Oeiras e que os soldados não estivessem propriamente estacionados no Maranhão, mas a circular entre um lugar e outro. O uso de soldados pagos nesses circuitos mais longos, em vez de ordenanças e auxiliares como acontecia nas linhas internas do Piauí, talvez seja explicável pelo fato de se demandarem viagens mais longas e demoradas. Na falta de outros documentos, sãos meras especulações, apenas a ressaltar o pouco que se conhece dessas práticas.
Em 1782, depois que a companhia dos dragões de Oeiras foi extinta, o seu último capitão, Fernando José Veloso de Miranda e Sousa, solicitou à rainha que lhe fosse concedido o hábito de Cristo. Entre os feitos arrolados, afirmou que, como comandante da guarnição, assistira “pronto aos despachos e conferências do governo interino da dita capitania, tomando a si o dar respostas aos correios, em que teve um grande trabalho” (AHU_ACL_CU_016, cx. 14, D. 799, grifo meu). O trecho pode se referir apenas a um trabalho burocrático, inclusive porque a palavra “correios”, às vezes, era usada como sinônimo de “correspondência”. Todavia, se uma atividade como essa, mais própria da Secretaria de Governo, foi atribuída a um militar, provavelmente envolvia a gestão dos recursos empregados no ir e vir desses papéis. O episódio pode ser mais um indício de que a rede de canais a sustentar a comunicação administrativa naquelas regiões era mais complexa e mais estável do que se poderia crer, a despeito da ausência de uma regulamentação geral por parte da coroa, com configurações que somente outros estudos podem eventualmente aprofundar.
O governo de Botelho de Castro não se preocupou apenas com os canais por onde fluiriam as mensagens. Ocupou-se, também, minuciosamente, com o teor delas e com a retroalimentação do sistema. Para tanto, para além dos códigos que já regiam a correspondência oficial da época - o da própria língua, bem como as fórmulas próprias dos documentos de governo e da epistolografia - buscou criar regras próprias.
Foram estabelecidos, então, quatro tipos de documentos para alimentar o fluxo de comunicação, independentemente dos demais papéis que circulassem entre os diversos lugares e Oeiras. Dois deles voltavam-se para regular o funcionamento do próprio canal. O primeiro deles era a escala anual dos soldados, cujas cópias deviam ser distribuídas a todos os juízes e comandantes de companhias. O segundo, uma guia-recibo em que o juiz ordinário remetente registrava o dia de partida de cada soldado, bem como quantas cartas levava. O documento devia ser assinado na próxima parada, a atestar a entrega dos papéis bem como a data de chegada. Nele também eram registradas as “cartas extraordinárias” que o soldado eventualmente ali recebesse para transportar. Ao término de cada etapa, a guia devia ficar arquivada na câmara municipal de origem, de modo a possibilitar possíveis auditorias. Depreende-se das instruções que, em cada uma das paradas, as cartas ali recebidas iam-se somando às novas em outras guias, até chegarem ao destino. Tais documentos cumpriam, assim, função semelhante à das “partes”, papéis que autorizavam as partidas dos mensageiros e serviam para controlar o trâmite das cartas pelas linhas postais, oficializados no reino pelo Regimento do Correio-Mor em 1644 (SALVINO, 2020, p. 180).
As mensagens propriamente ditas deveriam ser enviadas de acordo com dois modelos. Um deles, a “carta de conta”, deveria organizar o feedback dos comandos governamentais veiculados por meio de portarias, ofícios, despachos e outros documentos que alimentavam o sistema de comunicação a partir de Oeiras. Tinha por objetivo dar a “conta exata dos efeitos que tiveram as ordens particulares [...] principiando com uma relação cronológica de todas, cuja última execução não tiver já chegado à minha notícia, e passando a dizer o que a respeito de cada uma se tem obrado” (AHU_ACL_CU_016, Cx. 11, D. 649). O outro, chamado várias vezes de “diário”, era um relatório enviado mensalmente pelos juízes e oficiais militares, a relatar tudo quanto, no mês anterior, tivesse acontecido, dia a dia, na jurisdição de cada um
tanto no criminal como civil, militar, político e econômico, circunstanciando-o com as informações mais exatas, e pondo toda a maior diligência, para que nada escape ao meu conhecimento, e tudo chegue com o mais inviolável segredo (AHU_ACL_CU_016, Cx. 11, D. 649).
De acordo com os questionários encaminhados pelo padre Bruce, deveriam ser registrados no “diário” todos os delitos acontecidos, por menores que fossem, as citações judiciais, as correições, as prisões e solturas (inclusive de ordem do ouvidor), os falecimentos, as passagens de tropas, de comboios e de particulares, notadamente de religiosos, as diligências militares, os afastamentos dos oficiais das câmaras para suas casas ou em viagens, os pedidos de licença para ereção de casas e as construções. No caso dos falecimentos, por exemplo, não importava dizer apenas quem tinha morrido, mas se tinha testamento ou não e quais os herdeiros. Nos dias em que não houvesse nada a relatar, devia ser anotado que “não houve nada notável”.
Em outras palavras, Botelho de Castro procurou instituir uma espécie de panóptico com centro em Oeiras, a vigiar tudo o que pudesse acontecer na capitania. A determinação de que se desse a “conta exata” do que acontecia expressava o desejo daquela comunicação sem hiatos materializada em uma certa tópica da entera noticia (“inteira notícia”), presente no Antigo Regime, segundo a qual a busca do “saber completo” era necessária ao bom governo não apenas do soberano, mas também de seus prepostos (BRENDECKE, 2012, p. 577-592; p. 6287-6298). Apesar de o sistema prever a circulação dos papéis nos dois sentidos, de Oeiras para as vilas e vice-versa, as instruções enviadas orientavam-se inteiramente para as necessidades do governo da capitania, considerado como porta-voz das determinações da coroa, a não deixar dúvidas sobre o objetivo principal do empreendimento. A “boa harmonia” do corpo político - vale dizer, a sua saúde - dependia não só da “boa administração da justiça”, mas também da “fiel observância das reais ordens de sua majestade” (AHU_ACL_CU_016, Cx. 11, D. 649), a demandar univocidade de sentidos no processo comunicativo, sob a coordenação de Oeiras e a partir das interpretações que ali se fizessem dessas determinações régias. Oeiras era cabeça do Piauí, mas também órgão de um corpo maior, um relais americano da complexa malha de informações que dava vida à monarquia a partir de Lisboa.
A obrigação de emitir um relatório mensal tão detalhado, um desconforto a somar-se à mobilização dos recursos necessários, provavelmente não seria atendida de bom grado pelos diversos oficiais. Apesar disso, o governador afirmou ao Secretário de Marinha a “suavidade e boa aceitação” com que os moradores receberam o correio “pela conhecida utilidade que dele resulta” (AHU_ACL_CU_016, Cx. 11, D. 649). Não há, na documentação consultada, indícios de objeções locais mais fortes ao sistema - fosse porque a disponibilidade de uma estrutura de comunicação realmente compensava os desconfortos, fosse porque o caráter artificial da instauração das municipalidades do Piauí reduzisse seus ímpetos autonomistas e dificultasse a articulação de uma possível oposição. A resistência, no caso, não viria de instâncias locais, mas de outro oficial da estrutura periférica da coroa, o ouvidor Antônio José Morais Durão, como se verá a seguir.
Em 30 de junho de 1770, Botelho de Castro oficiava ao Secretário da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, sobre a necessidade de nomear um ouvidor para o Piauí, pois desde a morte do titular anterior não se realizavam correições (AHU_ACL_CU_016, Cx. 11, D. 638). Desde o início daquele ano, todavia, embora a notícia não tivesse chegado a Oeiras, Durão já havia sido nomeado para o cargo, acumulando também o de provedor da Fazenda Real (AHU_ACL_CU_016, Cx. 11, D. 630).
Depois que ele chegou ao Piauí, em 26 de agosto de 1771, não demorariam a surgir divergências entre ambos. Sem necessariamente ter sido o estopim do processo, um episódio parece ter ocupado um lugar importante nesses embates. Ao longo de 1772, alguns integrantes do corpo de cavalaria auxiliar foram escolhidos para ocupar cargos na câmara de Oeiras, a qual também tentou promover uma eleição para os oficiais de dragões, cujos postos eram de designação privativa do governador. Em fevereiro daquele ano, Botelho de Castro determinou que se fizessem valer as disposições legais referentes a ambos os casos, as quais também isentavam os auxiliares de servir nos cargos concelhios (AHU_ACL_CU_016, Cx. 12, D. 697). Durão defendeu a designação dos oficiais de cavalaria para a vereança, com a alegação da falta de homens brancos de qualidade para suprir aqueles ofícios. O governador manteve a sua posição e, a partir desse momento, as divergências entre ambos motivaram diversas correspondências do ouvidor à Lisboa, queixando-se de o governador estar invadindo suas atribuições, além de acusá-lo de supostas “ações escandalosas” nos terrenos militar e judicial (AHU_ACL_CU_016, Cx. 12, D. 697; AHU_PIAUÍ, CX. 10, DOC. 14; AHU_ACL_CU_016, Cx. 12, D. 698; AHU_ACL_CU_016, Cx. 12, D. 699).
Disputas de jurisdição entre governadores e ouvidores não eram incomuns, mas o episódio aqui estudado atingiu um nível especialmente acerbo. A prestação de contas mensal que os juízes ordinários tinham de enviar ao governador logo foi colocada no campo de disputas. Na primeira das cartas para Lisboa com suas queixas, em 16 de junho de 1772, Durão reclamou que:
[o governador] obrigava os juízes das vilas a dar-lhe todos os meses conta por um miúdo diário de tudo o que tinha sucedido nos seus distritos e juízos; não tirando nenhum deles devassa de caso algum, sem ordem sua e remetendo todas as que tiravam para a Secretaria do Governo, para se pronunciarem pelos ouvidores interinos, ao seu arbítrio (AHU_ACL_CU_016, Cx. 12, D. 685).
Tendo em vista as acusações de corrupção que recaíram sobre o ouvidor quando de sua saída do cargo, Fabiano Vilaça dos Santos aventou a hipótese de que a ojeriza dele aos correios pudesse derivar de um desejo de embaraçar a circulação das notícias sobre seus malfeitos (SANTOS, 2011, p. 224-225). No trecho aqui destacado, nota-se que Durão começa por reclamar que o governador, além de obrigar os juízes a fazerem o “miúdo diário”, centralizara as decisões sobre a abertura de devassas e concentrara as existentes naqueles que chama de “ouvidores interinos” da Secretaria de Governo. Um caso evidente de disputa por jurisdição, quaisquer que tenham sido as razões originais. A se acreditar nas acusações, o fato de Botelho de Castro - que pouco antes, lembre-se, pedia um ouvidor para o Piauí - ter concentrado processos de alçada da ouvidoria em outro órgão pode ser sinal de falta de confiança em Durão.
Pouco mais de um ano depois de chegar ao Piauí, em 20 de dezembro de 1772, Durão pediu para ser substituído na capitania por causa de seus embates com o governador (AHU_ACL_CU_016, Cx. 12, D. 699). Poucos meses antes, em agosto, o governador também solicitara que pudesse voltar ao Reino, mas por razões diversas (AHU_ACL_CU_016, Cx. 12, D. 695). Alegava problemas de saúde, mas talvez a real motivação tenha sido o desejo de voos mais altos na administração portuguesa (veja-se mais à frente). Apesar de a troca de Durão não ter acontecido como solicitou, não se registram mais queixas dele a Lisboa, até maio de 1774, quando escreveu novamente ao Secretário de Marinha e Ultramar, agora sobre desentendimentos com o governador do Estado, João Pereira Caldas (AHU_ACL_CU_016, Cx. 12, D. 714).
Essa trégua nas reclamações formais não significa que a situação tivesse sido pacificada. As pendengas continuaram até a partida do Botelho de Castro, que ficou à frente da capitania até o último dia de 1774. A sua saída, depois de dois períodos no lugar, atendia seus pedidos, sem qualquer relação com o ouvidor. Depois de retornar ao Reino, uniu-se a D. Ana Joaquina Apolônia de Vilhena Abreu Soares, pertencente a uma importante família da nobreza, casamento que contribuiu para uma carreira ascendente. Nos próximos anos, o ex-dirigente do Piauí tornou-se fidalgo-cavaleiro da Casa Real, guarda-roupa da Câmara Real, engenheiro-mor do Reino, brigadeiro de infantaria, tenente-general e marechal de campo (SANTOS, 2011, p. 219-232).
Durão recusou-se a comparecer às despedidas do ex-governador (AHU_ACL_CU_016, Cx. 13, D. 755; AHU_ACL_CU_016, Cx. 13, D. 756). Como não havia sucessor designado, o governo passou para as mãos de uma junta provisória, de acordo com o alvará régio que regulava o assunto, datado de 12 de dezembro de 1770. O novo governo foi encabeçado pelo ouvidor, que, desse modo, ficou à testa do Piauí até 1778. A mudança deu início a uma sucessão de juntas que perdurou até 1797 (SANTOS, 2011, p. 224; GONÇALVES, 1989, p. 16-17).
Durante a sua gestão, Durão acabou com o envio mensal do diário implantado por seu predecessor, porém não foi possível apurar em que momento. Em uma carta remetida ao juiz de Parnaíba (e provavelmente também aos demais), o ouvidor relembrou que, em ocasião não especificada, já adotara essa providência. A carta não traz o dia de sua emissão, mas é possível inferir que seja de meados de 1777. A partir daquele momento, o sistema de envio de mensagens também seria descontinuado. Na mesma correspondência, Durão comunicou que entre “as muitas utilidades que tenho procurado para esta capitania, principalmente em benefício do seu sossego”, estava agora a de “extinguir os correios nela introduzidos há sete anos para que cessem os prejuízos que têm causado a todos (AHU_ACL_CU_016, Cx. 13, D. 757). Ironicamente, porém, a câmara deveria remeter a certidão do registro das ordens recebidas naquela ocasião pelo “correio que ainda há de vir com a resposta dessa” (AHU_ACL_CU_016, Cx. 13, D. 757).
Desse modo, Durão livrou-se primeiramente dos relatórios mensais e, se estiver correta a datação proposta, demorou cerca de dois anos e meio desde que assumiu o governo para acabar com o serviço postal. Essa sequência de decisões aponta para uma definição de prioridades, ou para a eventual dificuldade de implantar cada uma delas. Provavelmente o fim dos relatórios coincidiu com a desmontagem da alegada “ouvidoria paralela”, ou de qualquer forma de controle administrativo dos processos judiciais por parte da Secretaria de Estado. Não havia muita dificuldade em extinguir o diário implantado pelo antigo governador - bastava uma ordem para tal. A um primeiro olhar, não seria diferente com os correios, mas não é de se descartar que o serviço tenha realmente se tornado de alguma forma útil, seja para o próprio governo da capitania, seja para as instâncias locais, como alegara Botelho de Castro alguns anos antes, o que pode ter demandado um cuidado maior para a sua extinção.
O período do ouvidor à frente do governo terminou mal. Denunciado por desvios de dinheiro e diversas formas de abuso de poder, acabou preso por ordem de Joaquim de Melo e Póvoas, sucessor de João Pereira Caldas no governo do Estado. Entre as acusações, estavam alegados insultos contra Botelho de Castro e contra o próprio Póvoas (AHU_ACL_CU_016, Cx. 13, D. 755; AHU_ACL_CU_016, Cx. 13, D. 756). Segundo o governador, a extinção do correio implantado por Botelho de Castro - “cousa a mais útil e importante ao bom regime” da capitania (AHU_ACL_CU_016, Cx. 13, D. 757) - fora um dos maus passos de Durão.
Entre os abusos atribuídos ao ouvidor, apontou-se que era “acostumado a abrir cartas alheias para ver o que contêm” (AHU_ACL_CU_016, Cx. 13, D. 756). Em algumas dessas ocasiões, teria mandado fazer cópias dessas correspondências e, em outras, revelou o conteúdo delas a terceiros. Esse era um delito previsto na legislação portuguesa desde o Código Afonsino, cujas posturas foram confirmadas nos Livros V das Ordenações Manuelinas e Filipinas. A escala de penalidades imputáveis aos violadores de cartas refletia as clivagens de uma sociedade corporativa, com as sanções a serem aplicadas de acordo com a posição social dos culpados e de suas vítimas. Não era inédito que oficiais régios fossem acusados de procedimentos semelhantes, normalmente tratados como deslizes menores (SALVINO, 2020, p. 115). A tentação de as autoridades bisbilhotarem as correspondências alheias em busca de segredos, seja em função de suas atividades oficiais, seja para atender interesses privados, faz parte da história dos correios, tanto em incidentes isolados, quanto em manifestações mais institucionalizadas, como os chamados “gabinetes negros”, estruturas mais perenes para a espionagem das cartas, sob a alegação geralmente de “razões de Estado” (VAILLÉ, 1950, passim). No caso de Durão, nada impedia que essas correspondências fossem captadas das mãos de outros portadores, mas há de se convir que o correio controlado a partir de Oeiras era um excelente meio para isso - ou seja, o ouvidor pode ter tentado lançar mão do sistema montado pelo seu desafeto para obter informações de terceiros, o que poderia explicar, pelo menos em parte, a relativa demora em extingui-lo.
Odilon Nunes (1975, p. 131) afirma, sem indicar fonte, que, depois da queda de Durão, o correio foi restabelecido. A defesa do serviço por Póvoas é um elemento favorável à possível retomada do sistema, mas a confirmação do fato dependeria de algum suporte documental. O que se encontrou mais próximo disso, no decorrer desta pesquisa, talvez seja a já citada petição do capitão de dragões Fernando José Veloso de Miranda e Sousa, que solicitou o hábito de Cristo em 1782 pelos seus trabalhos de dar resposta aos correios (AHU_ACL_CU_016, cx. 14, D. 799), mas somente outros documentos poderiam elucidar do que se tratava realmente a atividade mencionada e a qual período se referia. Todavia, independentemente dessa possível retomada, as fontes disponíveis confirmam que a estrutura criada por Botelho de Castro funcionou por, pelo menos, sete anos, talvez o mais longo período para uma experiência do tipo antes das reformas postais do final do século XVIII.
O caso se singulariza também por outros aspectos: o ensaio de uma teoria da comunicação política, embrionária, mas consoante com o pensamento de seu tempo e com as práticas de governação em jogo; o cuidado na normatização de outros elementos do ciclo comunicacional, para além do transporte das cartas. O amplo uso de recursos locais - soldados das tropas de ordenanças e auxiliares - pode ter inspirado, inclusive, o sistema do Morgado de Mateus, implantado a partir de outubro de 1772, quando se ordenou a todos os capitães-mores estabelecidos no caminho entre o São Paulo e o Rio de Janeiro que
façam estabelecer nos seus distritos paradas prontas pelos moradores que se acharem na direção do dito caminho que discorre de um para outro governo, pelas quais farão remeter instantaneamente todas as ordens e cartas do serviço que se enviarem de uma para outra capital, fazendo-se entrega de todas com recibo as outras paradas que as conduzirem. (DOCUMENTOS, 1901, p. 75).
Embora na história desse pioneiro correio piauiense tenham interferido os ímpetos talvez excessivamente personalistas de Durão, o episódio não deixa de ser ilustrativo dos conflitos de jurisdição comuns em uma monarquia em que a pluralidade de poderes e uma certa indefinição das jurisdições se sobrepunham. A oposição ao correio, no caso, parece ter-se concentrado, se não inteiramente, pelo menos principalmente, no ouvidor, mesmo que oficiais das vilas e tropas pudessem se sentir aborrecidos pela obrigação do relatório mensal. Na América portuguesa, os poderes locais quase sempre se colocaram contrários às tentativas de implantação do correio-mor, incomodados pelo monopólio oneroso de um serviço que, afinal - como informou o conde das Galveias quando da consulta régia já lembrada aqui -, podia ser prestado gratuitamente pelos condutores de gado e comerciantes de escravizados e fazendas. Não há, contudo, notícias de reações negativas mais fortes terem acontecido nos episódios protagonizados por outros governadores, provavelmente porque a disponibilidade graciosa de um serviço postal periódico, menos sujeito à irregularidade dos prazos garantidos pelas soluções tradicionais, era um atrativo. O serviço implantado por Botelho de Castro, todavia, assentava-se principalmente no trabalho de soldados das ordenanças e auxiliares - vale dizer, homens sacados aos seus afazeres cotidianos, sem ser para acudir um caso de guerra ou emergência pública. Esse fato poderia gerado desconforto entre os envolvidos. Mas, fique aqui como hipótese, além da utilidade que o correio realmente pudesse ter, que a decidida política de Botelho de Castro de apoiar a não convocação dos oficiais dessas tropas para as obrigações das municipalidades possa ter compensado sobejamente o incômodo de se enviar de quando em quando um soldado (vale dizer, um vaqueiro, um lavrador ou assemelhado) para cumprir essas funções.
Essa é uma história carregada de lacunas. Apesar disso, refere-se a um dos sistemas de comunicação escrita implantados na América portuguesa de cujo funcionamento temos mais pormenores, a ponto de ser possível reconstruir sua malha logística, seus prazos e suas rotinas operacionais e administrativas. Trata-se, assim, de uma passagem fundamental para a compreensão dos aspectos materiais desse tipo de comunicação nas conquistas americanas durante um determinado período do Antigo Regime português. No cenário multifacetado dessas práticas comunicativas, a criação de um sistema logístico que se estendia por centenas de léguas através do sertão nordestino é uma demonstração de que, provavelmente, ainda há muito a ser descoberto sobre a circulação da escrita no período anterior às reformas postais do final do século XVIII. As pessoas comerciavam e interagiam por diversos motivos à distância e, para tanto - de acordo com a definição de carta de Cícero que atravessou os séculos e chegou ao Vocabulário de Raphael Bluteau - “falavam com os ausentes”.********* E se havia um “império de papel”, um corpo político a se estender por mares e sertões, eram necessários canais, improvisados ou mais perenes, para fazer circular a “substância espirituosa que o vivifica e faz obrar”.
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