ARTIGOS LIVRES
Recepção: 03 Agosto 2020
Aprovação: 30 Novembro 2021
DOI: https://doi.org/10.1590/1980-4369e2022053
Financiamento
Fonte: CAPES/PNPD
Número do contrato: 88887.465297/2019-00
Descrição completa: A pesquisa que resultou nesse artigo contou com financiamento da CAPES/PNPD (Proc. 88887.465297/2019-00).
RESUMO: Nesse estudo analisamos os provimentos de serventia de ofícios militares realizados pelos governadores-gerais no Estado do Brasil para a capitania da Bahia. Ressaltaremos quais eram os tipos de tropas existentes na capitania da Bahia e quais eram suas funções no sistema defensivo local. Além disso, analisamos como as relações entre o governo-geral, as elites locais e os oficiais militares possibilitaram a inserção de interesses locais na governação por meio da delimitação espacial da defesa e da organização das bases para as expedições punitivas contra populações indígenas e mocambos.
Palavras-chave: governo-geral, Estado do Brasil, provimentos militares, defesa, elites locais.
ABSTRACT: In this study, we analyze the appointments of vacant military officers made by governors-general of the State of Brazil for the captaincy of Bahia. We seek to highlight which types of troops existed in the captaincy of Bahia and their functions in the local defensive system. Besides that, we aim to demonstrate how the relations between the general government, the local elites, and the military officers enabled the insertion of local interests in the governance through the spatial delimitation of defense and the organization of the basis for the punitive expeditions against indigenous populations and mocambos.
Keywords: general government, State of Brazil, military appointment, defense, local elites.
Este artigo abordará como o uso de provimentos militares pelo governo-geral propiciou o desenvolvimento de dinâmicas específicas que transformaram a organização da defesa na capitania da Bahia na segunda metade do século XVII. Iniciaremos pela caracterização e importância que a historiografia concedeu a temáticas correlatas, em seguida apresentaremos uma caracterização inicial dos tipos de tropas presentes na capitania da Bahia, propondo um olhar alargado sobre a multiplicidade de tropas e suas funções. Por fim, analisaremos as transformações promovidas pelo governo-geral na organização defensiva da Bahia por meio dos provimentos militares, a fim de indicar como as relações com os poderes locais interferiram e moldaram essas dinâmicas da governação.
O provimento de ofícios na monarquia portuguesa é uma das temáticas que ganhou espaço e atenção no debate historiográfico recente. Alguns desses estudos têm destacado a necessidade de analisar as especificidades dessas práticas a fim de construir uma compreensão mais delineada dos mecanismos de recrutamento e provimento dos ofícios. Esses estudos também têm apontado como vários ofícios possuíam grande importância e impacto nas sociedades da América portuguesa.1
Como sabemos a prerrogativa de provimento de ofícios foi um instrumento central de governo. A matéria era vista como tão fundamental que por vezes foi identificada como sinônimo da própria arte de governar. Evaldo Cabral de Mello inferiu que
Governar significava nomear, o que constituía fonte substancial de poder e também de renda, pois freqüentemente os cargos eram, por baixo do pano, literalmente comprados pelos interessados não legalmente à Coroa, como na França, mas ilegalmente aos governadores. Por trás de linhas jurisdicionais propositadamente indefinidas ou mal definidas, exercia-se a pressão incessante de clientelas vorazes de amigos, protegidos, fâmulos ou meros recomendados em busca de colocação no Brasil. (MELLO, 2003, p. 33).
A afirmação de Evaldo Cabral de Mello suscita algumas considerações. Em primeiro lugar, a percepção da centralidade dos provimentos na governação aparece com o devido peso que tinha na esfera da gestão do Estado do Brasil. Contudo, uma série de pesquisas recentes têm indicado que a venalidade de ofícios, além de um tópico controverso, carece de dados e de uma pesquisa exaustiva para corroborar afirmações tão contundentes2, como sugere o historiador pernambucano. Nesse sentido, caberia questionar se o autor considera as redes e os interesses identificados como algo exógeno a essa sociedade? Afinal, estamos nos referindo a uma sociedade de Antigo Regime, organizada segundo uma lógica corporativa, movimentada por redes sociais dos mais diversos tipos, na qual a divisão entre o público e o privado era bem menos evidente.
Se observarmos o caso português veremos que a questão dos provimentos possuía contornos igualmente complexos, inclusive nas esferas inferiores da hierarquia. Ao analisar o provimento de serventias em terras senhoriais, Mafalda Soares da Cunha indicou que essa prerrogativa “era uma área importante de exercício do poder dos donatários nas suas terras” (CUNHA, 2012, p. 18) que estava sob os constrangimentos impostos pelo quadro legal do reino, sendo necessário que “os providos cumprissem certo número de requisitos políticos, sociais e de mérito para o desempenho dos ofícios” (CUNHA, 2012, p. 21) com ênfase na naturalidade. Além disso, havia o constrangimento legal estabelecendo “que os ofícios não deviam ser vendidos e que o oficial provido devia servir por si e não ceder o cargo a qualquer serventuário” (CUNHA, 2012, p. 21).
As formas de remuneração e as estratégias de uso dos serviços e dos méritos revelam outra faceta fundamental da economia das mercês na monarquia corporativa: a centralidade da negociação com o centro. Em um estudo recente, Javier Barrientos Grandón demonstrou como a prática de patrimonialização de serviços e méritos permeava tanto as discussões entre os juristas, quanto as estratégias familiares que visavam à obtenção de mercês e privilégios.3 O uso de um conjunto de serviços passados buscando a remuneração e a projeção de oportunidades futuras, além de possibilitar a perpetuação familiar no serviço régio, era também um componente fundamental da economia da mercê que moldou os arranjos locais de poder na América Lusa.
Sobre as especificidades dos provimentos militares em Portugal, Fernando Dores Costa indicou que a principal característica desses ofícios era o fato de não se vincularem a transmissão hereditária, o que permitia estes “regressarem periodicamente a um acto ‘livre’ de nomeação de um novo detentor” (COSTA, 2012, p. 51). O autor também ressalta a predominância da primeira nobreza nos postos mais elevados da hierarquia militar, característica essa que o autor associa ao fato do exército português ser “periférico no sistema europeu e mesmo nos espaços extra-europeus [onde] funciona como sistema de circulação intercontinental de alguns indivíduos de origem européia, mas sem que haja a formação de exércitos para além das guarnições de praças” (COSTA, 2012, p. 53). De modo que a predominância dos fidalgos nos postos cimeiros da hierarquia se deve principalmente a um fator de “autoridade social” que associava o papel da nobreza à honra advinda do comando militar (COSTA, 2012, p. 53).
Ao analisar os provimentos militares feitos pelos governadores-gerais do Estado do Brasil, Miguel Dantas da Cruz indicou como o governo-geral possuía um grau de autonomia maior do que os governadores-de-armas das províncias do Reino, isto é, na América Lusa esses oficiais dispunham de uma larga margem para intervir no processo de escolha dos providos. Além de possuírem a prerrogativa de prover as serventias dos ofícios vagos, os governadores-gerais também poderiam consultar câmaras municipais e outros oficiais antes de indicar nomes para Coroa, ao passo que os governadores-das-armas deveriam apenas encaminhar as listas formuladas pelas câmaras para o Conselho de Guerra (CRUZ, 2013, p. 235). O autor atribuiu essa maior margem de autonomia dos governadores-gerais em razão das distâncias que separavam o Estado do Brasil e o Reino, uma vez que “a imposição do encaminhamento das propostas para Lisboa constituía uma medida de uniformização administrativa impraticável” (CRUZ, 2013, p. 235). Assim, “o Conselho Ultramarino assumiu, ao longo de todo o período estudado [séculos XVII e XVIII], uma função essencialmente relacionada apenas com a confirmação e averiguação da legitimidade das patentes passadas na América” (CRUZ, 2013, p. 235).
Vale ressaltar que os provimentos de postos militares também eram alvo de disputas entre os conselhos da Coroa, fato esse que evidencia a posição central dos provimentos na pauta política da monarquia. Desse modo, a importância dos postos militares se deve a forma como “as estruturas militares ajudavam a reiterar às lógicas estamentais da sociedade portuguesa transplantada”, ao passo que frequentemente “o topo da hierarquia militar acabava mesmo por exercer funções governativas” (CRUZ, 2015, p. 667-668). Assim, as disputas entre o Conselho Ultramarino e o Conselho de Guerra são exemplos da importância atribuída a essa prerrogativa. Conforme indica Miguel Dantas da Cruz, as disputas pela prerrogativa de provimento de determinados ofícios foram intensamente debatidas entre os conselhos régios, o que resultou em uma delimitação bem específica. O Conselho de Guerra possuía jurisdição para prover os postos militares no Reino, e tencionava ser o responsável por prove-los nas conquistas ultramarinas. Em réplica, o Conselho Ultramarino justificava seu domínio sobre essa capacidade, indicando que todos os ofícios exercidos nas conquistas eram da jurisdição própria do Conselho Ultramarino, como estava expresso seu regimento. Ao cabo do embate, o Conselho Ultramarino assegurou o controle sobre todos os ofícios exercidos no ultramar, inclusive sobre as patentes militares de hierarquia elevada (como as de mestre de campo e sargento-mor), como foi apontado por Miguel Dantas (CRUZ, 2015, p. 247).
No que toca ao governo das capitanias, é possível perceber que o provimento das serventias também foi alvo de disputas. Marcos Arthur Viana da Fonseca estudou as dinâmicas de governo entre os capitães-mores do Rio Grande e os governadores de Pernambuco, analisando as transformações de poderes ocorridas a partir da subordinação da capitania do Rio Grande à jurisdição de Pernambuco,4 ressaltando as disputas pelas prerrogativas do provimento de serventias. O autor destacou como alguns setores da capitania do Rio Grande manifestaram seu descontentamento com a anexação da capitania ao governo de Pernambuco e aponta como os capitães-mores do Rio Grande atuaram para exercer a governação com relativa autonomia em relação aos governadores de Pernambuco (Cf. FONSECA, 2018).
Devemos ressaltar ainda que os provimentos de serventia eram elementos importantes da economia da mercê, e por integrarem essa esfera central de ações da monarquia, sofreram sucessivas transformações ao longo do Antigo Regime. De acordo com Fernanda Olival
os esforços de organização da economia da mercê tenderam a incidir, globalmente, em 3 pontos essenciais: em primeiro lugar, no estabelecimento de normas sobre serviços, papéis e procedimentos em sentido amplo; em segundo lugar, na integração das práticas de liberalidade no âmbito de alguns conselhos e secretarias criadas pelo sistema político; por fim, no intuito de um sistema de registro das concessões feitas, de modo a evitar que pelos mesmos serviços se duplicassem as recompensas. Como é notório, estas preocupações de enquadramento denunciam o quanto a mercê era relevante na gramática política do Estado Moderno. (OLIVAL, 2001, p. 110).
Nesse sentido, buscamos compreender as dinâmicas de governo que perpassaram o provimento das serventias a luz deste quadro de transformações administrativas. Essa opção analítica parte de uma compreensão acerca dos estudos renovados de história militar, nos quais a interseção entre recortes políticos, sociais e econômicos contribuem para a compreensão dos fenômenos associados ao universo militar.5 Sendo assim, consideramos que é fundamental compreender a variedade de tipos de tropas militares a fim de perceber o emprego político que o governo-geral fez desses tipos de oficiais. No tópico a seguir faremos uma breve caracterização dos tipos de tropas a fim de compreender suas especificidades e seu papel na governação.
Tipos de ofícios providos e suas especificidades
A capitania da Bahia figurou como o principal destino de provimentos militares do governo-geral no período analisado, representando 48,37% de todos os ofícios militares providos pelo governo-geral entre 1642 e 1682.6
Na Tabela 1, indicamos a relação entre a quantidade de patentes providas pelo governo-geral e os tipos de tropa na capitania da Bahia. Nesse sentido, é importante esclarecer que optamos por trabalhar com várias subdivisões de tipos de tropas. Os ofícios militares eram divididos em três tipos: Tropas Pagas (também chamadas de tropas de primeira linha), Tropas Auxiliares e Ordenanças. Contudo, em nossa análise optamos por desdobrar subdivisões existentes nesses tipos, por entender que essas categorias gerais por vezes ignoram a pluralidade e a dinâmica das formas de organização dos diversos tipos de tropas que encontramos. Argumentamos que considerar essas subdivisões nos auxilia a compreender as especificidades de alguns tipos de provimentos, assim como da própria lógica de organização da defesa. Portanto, trabalharemos também com os seguintes tipos de ofícios militares: indígenas, pretos e pardos, artilharia, fortificação.
A opção de trabalhar com todas essas subdivisões das tropas militares implica no esforço de definir e caracterizar cada uma delas, o que por si só é um problema fundamental, visto que a própria percepção coeva sobre alguns desses tipos não era rígida nem estanque. Deste modo, não pretendemos esgotar a discussão e a caracterização desses diversos tipos, mas antes trazê-los para o centro da discussão, buscando situar e entender as funções dessas tropas no quadro da governação. Discutir e analisar as especificidades desses tipos de tropas é um ponto de partida para nos ajudar a construir uma visão mais acurada da própria governação.
Os oficiais que compunham a Tropa Paga eram aqueles que “recebiam, mesmo que com atraso, soldo, fardamento, armamento, farinha, azeite, capim, cavalos e assistência médica. Eles vinculavam os soldados a longos períodos de serviço” (IZECKSOHN, 2014, p. 492). Esse tipo de tropa tem por função a defesa das praças que guarnecem e o combate de inimigos estrangeiros. De modo geral, os estudos tratam os oficiais de infantaria, artilharia, fortificação e cavalaria como forças integrantes das Tropas pagas. Entretanto, em nossa análise, quando nos referimos às Tropas pagas estamos remetendo àqueles oficiais tidos como de infantaria e cavalaria, de modo que essa opção foi adotada em razão de suas semelhanças hierárquicas e de organização. Por sua vez, os oficiais de Artilharia e Fortificação serão abordados separadamente adiante, uma vez que percebemos que suas especificidades ganham contornos mais definidos em uma exploração detida de suas características.
No caso das tropas de Ordenança, vemos que estas eram compostas por “homens que não possuíam instrução militar sistemática nem recebiam soldos. Seu efetivo era formado pelos moradores locais não arrolados na milícia, que permaneciam em suas atividades particulares e somente eram mobilizados em caso de perturbação da ordem pública” (IZECKSOHN, 2014, p. 493). Para além das funções de defesa e controle social, as ordenanças também eram peças centrais na arrecadação de tributos, fintas e contribuições, sobretudo por estarem organizadas em freguesias.
As tropas de Auxiliares mobilizavam “vassalos em tempo parcial, não assalariados e arregimentados segundo seu lugar de origem, ou seja, não se locomoviam como os corpos regulares”, sendo que seus “oficiais inferiores também eram eleitos entre os civis, com apenas algumas patentes superiores sendo designadas pelo vice-rei, procedimento que se tornaria mais comum ao fim do período pombalino” (IZECKSOHN, 2014, p. 493). De modo que “apesar de civis, as tropas auxiliares seriam treinadas e armadas de modo a ser, como segundo escalão da força militar, um contingente preparado para auxiliar a Tropa de Linha” (MELLO, 2009. p. 45-46), o que explica o nome dado a este corpo militar. Nesse sentido, esta tropa surge como um modelo intermediário entre a Tropa Paga e a Ordenança.
Os ofícios que classificamos como indígenas são referentes aos provimentos de oficiais para comando e gestão de tropas ou aldeias indígenas. Desde os primórdios da ocupação na América Lusa, o estabelecimento de alianças com povos indígenas mais receptivos a presença europeia foi fundamental para assegurar a permanência e o avanço do povoamento, assim como foi essencial para combater os vários grupos que resistiram às interferências dos colonos europeus.8 Essas patentes foram conferidas aos sertanistas, líderes indígenas, mamelucos e moradores de localidades que possuíam boas relações com os indígenas. Em nossa amostragem, encontramos 12 provimentos com referência explícita sobre a origem indígena do provido.9 Portanto o conjunto de indivíduos agregados a esse tipo de provimento era bastante heterogêneo, contando tanto com indivíduos de projeção local10 até lideranças indígenas em aldeias11.
O fenômeno das milícias de cor surgiu na América Portuguesa como um desdobramento direto da guerra contra os holandeses no Nordeste. O primeiro e mais evidente caso é o do mestre de campo Henrique Dias e seu terço de soldados africanos e afrodescendentes, cujo reconhecimento e institucionalização moldaram permanentemente o sistema defensivo do Estado do Brasil, num primeiro momento nas capitanias de Pernambuco e Bahia, e, posteriormente, com a difusão do modelo de milícias negras, em outras partes da América portuguesa.12 Antes, contudo, é importante destacar que havia uma grande distinção entre as tropas de pretos e pardos, fossem forros ou livres, das tropas de escravos (tanto aquelas particulares quanto aquelas mobilizadas para fins “públicos”). As tropas de pretos e pardos conquistaram direitos, privilégios e distinção social que as tropas de cativos jamais tiveram, ao passo que os grupos de escravos armados por senhores continuamente eram alvos de leis, bandos e restrições.13 Essas tropas tenderam a adquirir especificidades de acordo com as regiões onde atuavam. Se no século XVII as tropas de pretos e pardos que atuaram nas capitanias da Bahia e de Pernambuco desempenharam funções de defesa e atuaram no combate aos “inimigos internos” (SILVA, 2018. p. 152-153; MENIM, 2019. p. 95-99), no século XVIII as milícias criadas nas capitanias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro assumiram funções de ordem policial (SILVA, 2013. p. 128; MARTA, 2013. p. 43), isto é, no controle da ordem pública e auxílio na cobrança de encargos fiscais.
Os oficiais de Fortificação estavam associados à defesa de pontos estratégicos e comumente estavam integrados a Tropa Paga, comandando outros oficiais e soldados que estavam em sua guarnição. Alguns dos oficiais deste tipo poderiam receber soldos e exercer o direito de cobrar emolumentos, mas isso não se aplicava a todas as fortificações, uma vez que fatores como localização, importância estratégica, tamanho, capacidade defensiva e o fluxo de embarcações contribuíam para a hierarquização das fortificações e, por consequência, nas possibilidades de soldos e emolumentos agregados ao comando destas. De modo geral, as fortificações eram erigidas em pontos estratégicos para a defesa de rios, portos e cidades, e como indicamos em nossa amostragem, das 24 patentes encontradas para a Bahia, 15 eram referentes às fortificações localizadas na cidade de Salvador e o restante àquelas espalhadas por pontos estratégicos do recôncavo.
Podemos definir os oficiais de Artilharia como um tipo especializado de oficial militar em razão das particularidades de sua função.14 Seu papel na defesa das praças era vital, sobretudo no que toca à defesa costeira contra ofensivas navais. Os cuidados de manutenção e operação dos petrechos de artilharia exigiam desses oficiais um conjunto de competências e conhecimentos próprios para o bom exercício das funções. Além disso, esses oficiais se relacionam diretamente com dois outros tipos fundamentais anteriormente descritos: Tropas Pagas e Fortificações. A preocupação com a formação desse tipo de oficial está expressa nos regimentos do governo geral, destacando a necessidade de exercício e atividades práticas com as peças de artilharia e até mesmo a avaliação e concessão de uma carta de exame que habilitava o oficial a servir nestes postos.15
Essa caracterização inicial não explora as diversas nuances que esses tipos de tropas possuíam, tais como suas hierarquias, as médias de tempo de serviço de seus providos, as remunerações recebidas, entre outras questões.16 Contudo, a partir dela podemos compreender melhor os usos que o governo-geral fez desses diversos tipos de tropa, bem como as funções dessas tropas nas dinâmicas tecidas em torno da organização do espaço militar da capitania da Bahia, como veremos a seguir.
O provimento de ofícios e a governação: interesses, estratégias e políticas
A partir dessa caracterização inicial podemos analisar de modo detido como o provimento de ofícios moldava dinâmicas governativas específicas. No caso em questão, analisaremos esses provimentos sob a ótica da organização militar da capitania da Bahia, e por consequência como se aplicavam as medidas de governo que buscavam assegurar a defesa, viabilizar o comércio e garantir o sustento das localidades do recôncavo.
Em 15 de Dezembro de 1654, alguns meses após a capitulação dos holandeses em Pernambuco, houve a elaboração de uma relação dos oficiais militares e soldados que atuavam na Bahia. Na Lista da mostra que se passou a toda a Infantaria dos dois Terços do Presídio e guarnição desta praça”,17 encontramos de modo detalhado a distribuição numérica dos soldados pelas companhias dos terços da Tropa paga de Salvador. O documento apresenta um quadro em que consta a divisão das companhias dos dois terços, os nomes dos capitães que comandavam essas companhias, o número de soldados e a condição (efetivos, doentes ou de licença), bem como as localidades que essas tropas guarneciam.
A produção de uma relação tão detalhada se deve ao contexto de tensões que marcou o final da guerra contra os neerlandeses em Pernambuco. O ônus do sustento da infantaria recaia sobre a população do Recôncavo, que utilizava a Câmara de Salvador como meio de ressoar seus descontentamentos e pretensões. Desde o governo de Antônio Teles da Silva (1642-1647) diversas fintas e imposições haviam sido acordadas para viabilizar o sustento das tropas, e, posteriormente, com a criação da Companhia Geral de Comércio (1649), a pressão fiscal se acentuou sobre os luso-brasileiros com a instituição do estanco (monopólio) de quatro gêneros: vinhos, azeite, bacalhau e farinha18. Com as esperanças do fim da guerra no horizonte, vislumbradas pela vitória da segunda batalha de Guararapes (em fevereiro de 1649), as elites baianas começaram a buscar meios para reduzir o peso destes custos. Em uma carta dirigida ao monarca os oficiais da Câmara representavam sobre a forma como continuamente contribuíam para o sustento das tropas “com liberal vontade”, e por esta razão se encontravam sobrecarregados. Pediam, em contrapartida, que o monarca ordenasse uma reforma na organização dos terços, em razão do desequilíbrio entre o número de oficiais e soldados, ressaltando que o elevado número de oficiais era a causa de “ser maior o dispêndio das primeiras planas do que é o da infantaria”.19 Neste momento, o presídio de Salvador contava com três terços, que mobilizavam pouco menos de 2500 soldados e com uma grande quantidade de oficiais, o que implicava em despesas de mais de 4000 mil rações por conta da Câmara de Salvador.20 Diante dessa situação, tanto o Conselho Ultramarino quanto o governo-geral iniciaram um processo de redução dos oficiais e reorganização das companhias, denominado nas fontes como “reforma do terço”. Após a reforma firmou-se um novo termo entre a câmara e o governo-geral sobre as condições do sustento da tropa, que eram significativamente mais favoráveis a municipalidade de Salvador.21 Um movimento de articulação semelhante ocorreu entre as elites locais fluminenses e o governador do Rio de Janeiro, o que resultou na reforma das tropas pagas daquela capitania também no ano de 1652 (MOREIRA, 2015, p. 165-185).
Nesse sentido, compilamos os dados que encontramos de diversas mostras dos terços da Bahia realizadas entre 1642 e 1660 (Tabela 2), utilizando aquelas que apresentavam mais informações sobre a distribuição das forças pelo recôncavo da capitania.
De modo geral, essa documentação não segue um modelo estabelecido de elaboração dos dados, sendo que para alguns anos temos ausência de informações ou de detalhes qualitativos sobre os dados apontados. Nas mostras de 1642 e 1644 não temos indicações detalhadas sobre a distribuição das forças pelo recôncavo e nem sobre o número de soldados de licença. A mostra de 1654 que mencionamos anteriormente é a relação que apresenta as informações mais detalhadas sobre a organização e distribuição das forças dessa amostragem, incluindo oficiais das Tropas Pagas, Fortificações e Artilharia, como exploraremos adiante. A relação de 1659 também apresenta muitos detalhes, mas não informa o número de soldados doentes e de licença. Por fim, a relação de 1660 apresenta informações muito semelhantes à de 1659, porém esta não aponta de modo detalhado os números de soldados em cada forte, por isso optamos por agregar os dados ao número de oficiais em Salvador, visto que a cidade concentrava grande quantidade de fortificações. Assim, a relação aponta apenas que “trezentos e trinta e quatro [soldados] que estão pelos fortes assim desta cidade como de seu recôncavo e nos postos assim do Morro de São Paulo, como na Ilha de Taparica, Maragogipe e Sergipe del Rey”.28 É interessante observar que as mostras de 1654, 1659 e 1660 apresentam informações detalhadas para cada terço, permitindo, assim, mapear o número de soldados de cada força, e também traz detalhes de cada companhia, como o capitão responsável, a quantidade de soldados, a condição (efetivos, doentes e de licença) e localização das forças de cada companhia.
O conjunto de dados apresentado na Tabela 2 nos permite perceber algumas particularidades de cada período em que a mostra foi realizada. É possível observar que durante os anos de conflito contra os neerlandeses no Nordeste (1642, 1644 e 1654) havia uma maior quantidade de soldados mobilizados, sobretudo na urbe soteropolitana.29 Algumas localidades também estão relacionadas ao contexto de cada momento, assim em 1642 e 1644 temos indicações de forças na “Fronteira do Rio Real”,30 que não só era parte dos limites geográficos da Capitania da Bahia, mas até 164831 era também a região de fronteira com os territórios ocupados pelos neerlandeses, portanto as tropas ali presentes possuíam uma função defensiva importante. Ao passo que no pós-guerra (1659 e 1660) as forças passaram a guarnecer localidades da capitania de Sergipe del Rey, que era anexa à capitania de Bahia, tal como as forças do Morro de São Paulo na capitania de Ilhéus.
É interessante observar que a lógica defensiva adotada após a capitulação dos holandeses foi sugerida por Salvador Correia de Sá em uma consulta do Conselho Ultramarino e de certa forma representa em parte o que os dados compilados na Tabela 2 apontam. No parecer apresentado ao Conselho Ultramarino, Salvador Correia de Sá sugere que na
cidade [de Salvador] lhe parece que Vossa Majestade deve ter dois terços, com vinte e quatro Companhias com dois mil e quatro centos Infantes, porque destes se há de guarnecer Sergipe delRey com uma [companhia]; o Morro [de São Paulo] com duas; e para a defensa do Recôncavo, seis barcos da própria forma, que se apontam os do Rio de Janeiro sustentados por semelhantes efeitos, e guarnecidos com duas destas companhias, ficando as dezenove para guarnição da Praça que de tudo necessita.32
Esses dados nos indicam como a distribuição dessas forças estava voltada para a defesa de pontos fundamentais para o escoamento da produção açucareira. A defesa destes pontos vitais da economia do recôncavo era não só uma preocupação fundamental do governo-geral, como um interesse dos grande produtores da região e da Câmara de Salvador, conselho do qual vários dos senhores de engenho do Recôncavo faziam parte, basta recordar que durante o século XVII 60% dos oficiais que serviram na câmara de Salvador e na provedoria da Misericórdia eram senhores de engenho (KRAUSE, 2015. p.141).
Para compreender melhor a forma como foram dispostas essas forças, elaboramos a representação no mapa 1, no qual destacamos a presença das tropas do terço em pontos essenciais ao fluxo produtivo do Recôncavo. Como vemos, os pontos 1 e 3 do mapa indicam os principais polos de defesa da cidade de Salvador, e que concentravam 1654 de um total de 1844 soldados que pertenciam aos terços. Estes dados apontam para a divisão de áreas de atuação entre os dois terços de Salvador: enquanto o terço velho do Mestre de Campo João de Araújo concentrava suas forças em Salvador, com alguns soldados nos fortes da Barra e de Itapagipe; o terço novo do Mestre de Campo Nicolau Aranha Pacheco também concentrava a maior parte de seu efetivo na urbe, mas também distribuía suas forças na Ilha de Itaparica,33 no Rio Paraguaçu e na plataforma de São Francisco. Algumas localidades como o Morro de São Paulo (em Ilhéus) e a plataforma de Matoim eram guarnecidas por soldados de ambos os terços34.
Os pontos 4, 535 e 6 indicados no mapa representavam posições estratégicas para a defesa dos rios, freguesias e povoações, sendo que essas localidades eram responsáveis por grande parte da produção e do escoamento dos principais gêneros cultivados no recôncavo. Como Stuart Schwartz indicou em seu estudo clássico, a posição de ancoradouros e pequenas angras favoreciam a conexão de várias regiões produtoras. Sendo que nessa “categoria estavam a foz do rio Matoim [6]36, protegida pela ilha da Maré, e a entrada do rio Paraguaçu [4]37. A baía de Todos os Santos, com suas ilhas e enseadas, portos e praias, era um mar mediterrâneo que tornava possível e lucrativo um contato íntimo entre o porto de Salvador e sua hinterlândia agrícola” (SCHWARTZ, 1988, p. 78). A importância defensiva dessas localidades foi ressaltada em uma consulta do Conselho Ultramarino da seguinte maneira: “os fortes de Matoim e Peruaçú e Itaparica se devem conservar porque asseguram os engenhos de açúcar e tiram de poderem querenar as naus inimigas”.38 A preocupação com a defesa dessas regiões era fruto das sucessivas investidas neerlandesas que assolaram as freguesias e distritos açucareiros do recôncavo.39
É importante destacar que a principal localidade fora do Recôncavo de Salvador com tropas dos terços era a fortaleza do Morro de São Paulo (Tabela 2). A rigor, essa fortificação fazia parte da jurisdição da capitania de Ilhéus,40 fornecendo proteção às “vilas de baixo” (Camamú, Cairú e Boipeba), uma das linhas vitais de abastecimento da capitania da Bahia. A importância estratégica dessa fortificação era fortemente ressaltada em uma consulta do Conselho Ultramarino, na qual se discutia a importância da conservação e dos reparos das fortalezas do Recôncavo:
a praça do Morro se deve mandar conservar em sua perfeição e defensa porque dela se seguem grandes consequências a conservação da Bahia pois se além de estar na cabeça da barra donde precisamente vão demandar todos os navios que buscam aquele porto, vem daquele distrito as mais das farinhas de que a Bahia se sustenta e as madeiras de que se fazem os reparos para a artilharia e esplanadas para os fortes.41
Contudo, importa acrescentar como o governo-geral se valeu dos oficiais militares nessa região para para assegurar o abastecimento do Recôncavo. Em 27 de Junho de 1651, Pedro Gomes, que servia como Tenente General da Artilharia, foi enviado a Ilhéus para garantir que não houvessem descaminhos com as farinhas que proveriam o sustento de Salvador. As cartas que foram destinadas as principais autoridades das vilas de Ilhéus deixavam bem claro que o envio das farinhas seria efetivado, nem que para isso o oficial enviado tivesse que usar de meios coercivos.42 Essas ações aparentemente lograram êxito imediato, como as cartas remetidas pelo governador-geral a Pedro Gomes explicitam.43 Francisco Carlos Teixeira apontou em sua tese de doutorado como a “vocação abastecedora” dessas vilas de Ilhéus foi forjada pela conjunção de interesses das elites baianas, que fixaram um valor baixo pelos produtos adquiridos, e pelo governo-geral que enviou oficiais militares para garantir o envio regular de mantimentos e coibir o descaminho e a venda para terceiros, uma vez os governadores-gerais constantemente se viam em dificuldade para assegurar o abastecimento da cidade e o municiamento das frotas.44
Podemos aprofundar as considerações sobre organização da defesa na capitania ao observarmos os dados relativos aos provimentos de oficiais militares. Isso nos permitirá observar mais detidamente a importância das localidades do Recôncavo, como indicamos na Tabela 3. Estes dados evidenciam a percepção sobre como o governo-geral se relacionava com os mais diversos níveis de poder local. A “cabeça do Estado do Brasil” respondia sozinha por 58,84% (253 patentes) dos provimentos do recôncavo, com predominância dos oficiais da Tropa Paga (165)45 e das Ordenanças (50). Por outro lado, temos um volume de provimentos igualmente relevante (177 patentes) destinados às freguesias, distritos, aldeias indígenas, e outras localidades ao redor de Salvador, sendo que a imensa maioria desses provimentos era de oficiais das Ordenanças (149). A participação de algumas localidades reflete a situação do povoamento no Recôncavo, assim como as funções produtivas das vilas e freguesias que movimentavam a economia da Bahia. Deste modo, se observa que as freguesias de Maragogipe (4 patentes) e Jaguaripe (13 patentes) produziam mandioca e possuíam em seu entorno algumas aldeias indígenas administradas; Santo Amaro de Ipitanga (8 patentes) fazia às vezes de porto do centro da zona açucareira; os distritos de Cachoeira (9 patentes) serviam tanto de “entrada para o sertão”, por sua posição favorável a penetração no interior, quanto região produtora de açúcar e mandioca, e no final do século XVII também cultivava o fumo, incrementando seu mosaico produtivo (SCHWARTZ; PÉCORA, 2002. p. 19). Outras regiões eram especializadas na criação de gado, como os Distritos do Rio Real (7 patentes) e as terras pertencentes a Casa da Torre (9 patentes), dos descendentes de Garcia D’Ávila, de modo que a atividade subsidiou o processo de expansão ao rumo ao interior e a fundação de núcleos de povoação nos arredores do Rio São Francisco, território que algumas décadas depois integraria a jurisdição da capitania do Piauí (SANTOS, 2017. p. 32-33).
Sendo assim, é interessante observar as mudanças que ocorreram na organização das Ordenanças, sobretudo a partir das transformações efetuadas no governo de Alexandre de Souza Freire. Em 1668 os rumores de uma incursão naval holandesa levaram o governador-geral a promover uma intensa mobilização defensiva na capitania da Bahia, uma vez que número de soldados nas tropas pagas era bem diminuto52. Em razão disso, a necessidade de mobilizar as Ordenanças culminou na reorganização da jurisdição dessas tropas na capitania. O território do recôncavo foi dividido em quatro partidos, sendo que cada um era governado por um Coronel e um sargento-mor, que tinham sob seu comando as freguesias e distritos que compunham a região de seu partido.53 As companhias da cidade de Salvador e seus arrabaldes eram comandadas por outro Coronel.54 Como resultado dessa mobilização o governador-geral informou a Coroa que conseguiu mobilizar 4080 soldados “entre infantaria e ordenança”, dos quais cerca de “trezentos desarmados”.55 Na avaliação de Thiago Krause, essa medida de Alexandre de Souza Freire angariou grande simpatia da nobreza baiana, visto que as modificações organização das tropas da ordenança abriram “espaço para quatro novos coronéis (incluindo homens poderosos, como Francisco Gil de Araújo) e muitos outros oficiais”, realizando a inclusão desses “coronéis nas discussões da Câmara sobre a cobrança do donativo, com o objetivo de tornar a arrecadação mais eficiente” (KRAUSE, 2015, p. 250).
O que observamos, portanto, é que no período do post-bellum as elites baianas conseguiram maior autonomia e capacidade de intervenção nas localidades da capitania. O alto grau de mobilização observado nos preparativos de 1668 indica não só a organização desses grupos, mas também um desejo manifesto de controlar determinados aspectos da vida política da capitania. Certamente a população do Recôncavo não desejava que os custos de sustento da Tropa Paga se elevassem como no período da guerra. Ademais, a força advinda dessa mobilização podia ser utilizada para consolidar outros interesses e projetos. Não por acaso se observa que a partir desta data as incursões contra os mocambos e os indígenas do Recôncavo se intensificaram. Essas ações também contaram com o aval régio: “E visto que não tem efeito a ida da Armada de Holanda executareis (já que vos achais com prevenção) a ordem que vos mandei para se fazerem as entradas no sertão contra os gentios e mocambos que no recôncavo dessa cidade fazem as hostilidades de que me destes conta”.56 Basta observar que no espaço de 18 anos, entre 1649 e 1667, foram organizadas 9 expedições57 contra indígenas e negros nas capitanias de Bahia, Ilhéus e Sergipe del Rey.58 Após a mobilização de 1668, em um espaço de seis anos, ocorreram 9 expedições nas mesmas capitanias, o que é um sintoma de como a prática se intensificou.59 E não estamos considerando aqui as expedições contra Palmares e aquelas que fizeram parte da dita “guerra dos bárbaros” nas capitanias do Norte, uma vez que elas ficaram a cargo do governo de Pernambuco. Cabe ressaltar, no entanto, que “nem todos os governadores-gerais deram a mesma ênfase ao problema do gentio bárbaro durante seus governos respectivos, nem privilegiaram da mesma maneira as jornadas do sertão” (MARQUES, 2014, p. 33). Para Guida Marques os governadores-gerais que se envolviam mais diretamente com as expedições ao sertão buscavam “assentar a sua própria influência política” de modo que “as guerras contra os índios bem podiam constituir um mecanismo de poder importante no meio das relações de poder locais, mas também um lugar de tensão” (MARQUES, 2014, p. 33).
Portanto, esses novos arranjos de poder interessavam não apenas as elites baianas que vislumbravam um novo meio para expansão de sua influência, mas também para o governo-geral e a Coroa, que aproveitaram as vantagens advindas da mobilização da população a fim de empreender a execução de expedições sem grandes investimentos, e da mesma forma a arrecadação de tributos passava a contar com uma rede de oficiais capazes de agir com maior diligência.60
Considerações finais
O provimento de serventias ocupou uma posição central na esfera de governo por ser um instrumento de intervenção muito eficaz, além de uma expressão significativa da economia da mercê e um dos principais termos do vocabulário político do governo-geral. Como temos indicado, as especificidades dos tipos de tropas estavam diretamente associadas às funções que estas assumiram no quadro da governação.
Outra faceta importante que os provimentos nos permitem acessar é a incorporação e mobilização de indivíduos das mais variadas qualidades sociais e condições jurídicas. A mobilização de indígenas, assim como de pretos e pardos, aparece como um traço marcante da organização militar da América Lusa, que utilizou esses indivíduos desde os primórdios da colonização, e que lentamente os incorporou à sua estrutura de tropas, por meio da concessão de patentes e outras distinções honoríficas.
A análise dos provimentos em uma escala territorial, como a que fizemos para Salvador e seu Recôncavo, nos auxilia a compreender a estruturação de dinâmicas de poder, bem como os processos que permearam essas mudanças. Neste sentido, apontamos como a gestão da defesa estava associada tanto a interesses locais, quanto a interesses da Coroa e dos governadores-gerais. Essas ações apontam por um lado para a proteção das regiões produtoras e para o desenvolvimento de interesses expansionistas das elites baianas, por outro lado, revelam a estratégia de reprodução da influência política do governo-geral e de aumento da eficiência na arrecadação dos tributos. A negociação e a mediação desses provimentos se mostraram centrais para a viabilização da governação, e na mesma medida permitiu a inserção e a perpetuação de interesses locais em esferas de influência que dependiam da chancela do governo-geral e da Coroa. Inferimos que a conjugação da dinâmica dos provimentos com outros processos da governação nos permite identificar e compreender ações de interferência política, bem como a negociação e a construção de alianças.
Portanto, buscamos apontar com essa reflexão o potencial ainda inexplorado da atuação dos oficiais militares no Estado do Brasil e suas relações com o governo-geral. A presente análise não se propôs a esgotar possibilidades, nem tão pouco apresentar modelos de análise prontos. Acreditamos que à luz das novas questões propostas pelos estudos de história política e militar seja possível construir novas interpretações acerca do exercício do poder. Diversas questões surgem a partir de análises como esta: qual era o perfil desses diferentes tipos de tropa? Quais eram as possibilidades de circulação e acrescentamento que cada tipo de tropa permitia aos membros de suas fileiras? Quais eram os tipos e modalidades de remuneração material e imaterial que eram oferecidas aos oficiais dessas tropas? Em que bases se organizavam a relação entre o governo-geral, as elites locais e os oficiais militares?
Nesse sentido, este estudo convida à reflexão, à crítica e à experimentação de diferentes metodologias de análise a fim de compreender os fenômenos ocorridos por um prisma mais alargado, observando tanto as transformações ao longo do tempo em um recorte quantitativo, quanto à importância de não se perder de vista as influências particulares e situacionais que eram resultantes das várias conjunturas de conflitos no Estado do Brasil seiscentista.
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Notas
Autor notes
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