ARTIGO LIVRE
Recepção: 07 Abril 2020
Aprovação: 14 Novembro 2020
DOI: https://doi.org/10.1590/1980-4369e2022017
RESUMO: Neste artigo se discute o corpus italiano relativo ao aparecimento do Monstro de Ravenna. De saída, apresenta-se uma metodologia para o exame de materiais teratológicos de uma primeira época moderna, enfocando os dispositivos de autorização e os critérios datados de sua legibilidade. A seguir, são examinados os diários de Sebastiano di Branca Tedallini, Luca Landucci e Marin Sanudo com o objetivo de apontar, primeiro, os pressupostos informacionais de sua atividade diarista e, segundo, os mecanismos de produção e consumo dos discursos teratológicos neles inscritos. Na terceira seção, propõe-se que o Monstro de Ravenna se singulariza dos demais monstros “aristotélicos” relatados nos diários quando sua morfologia é assimilada na exegese político-teológico-moral, explorada com o apoio de textos de outros letrados. Conclui-se que, nesse movimento, ele assume o caráter de “singularidade compósita”.
Palavras-chave: Monstro de Ravenna, diários, teratologia.
ABSTRACT: This article discusses the Italian corpus related to the appearance of the Monster of Ravenna. Firstly, a methodology is presented for the examination of Early Modern teratological materials, focusing on authorization devices and criteria that governed their readability. Secondly, the diaries of Sebastiano di Branca Tedallini, Luca Landucci and Marin Sanudo are examined in order to point out the diary-writing informational devices, as well as the mechanisms of production and reception of the teratological discourses inscribed in them. In the final section, it is proposed that the Monster of Ravenna should be distinguished from the other “Aristotelian” monsters described in the diaries as its morphology becomes assimilated in the political-theological and moral exegesis of other men of letters. It is concluded that, in this movement, the Monster turns into a “composite singularity”.
Keywords: Monster of Ravenna, diaries, teratology.
A teratologia da primeira época moderna: entre o empírico e o verossímil
Na primeira metade do século XVI, uma singular figura teratológica circulou amplamente na Europa ocidental. Apesar da forma mais conhecida como o “Monstro de Ravenna” ter local e data de nascimento (março de 1512), atestados por diversos relatos, seus descendentes icônicos e narrativos podem ser rastreados muito depois do episódio. Suas formas prosperaram em letras e desenhos, em impressos e manuscritos, depositando-se nas murmurações públicas e nos saberes eruditos, nos exames anatômicos e nos fenômenos preternaturais, no cotidiano da vida citadina e nos prenúncios da vontade divina. Durante séculos, a variedade empírica de seu aparecimento encobriu os vestígios de uma continuidade morfológica hoje somente legível através de uma arqueologia das práticas culturais dos tempos de sua circulação.
Gostaríamos de apresentar um intervalo representativo de um estudo monográfico que estamos preparando sobre o tema, de modo a expor alguns dos métodos empregados na reconstituição dos percursos do Monstro de Ravenna. Para fazê-lo, privilegiamos um dispositivo informacional em particular: os diarii, manuscritos anotados por diversos indivíduos - mercadores, boticários, aristocratas, etc., no início do século XVI. Os exemplares redigidos por Sebastiano Tedallini, Luca Landucci e Marin Sanudo constituem o arquivo “primitivo” acerca do monstro, fundamentando o exame dos critérios verossímeis dos decoros teratológicos então em voga, e os mecanismos de sua circulação no âmbito de uma estrutura noticiosa datada, além de sinalizar para a mobilidade de formas discursivas, modelos e procedimentos de autorização que lhe foram próprios. Nosso objetivo é investigar como os dispositivos de circulação da informação, em sinergia com os processos de decoro e incorporação dos discursos letrados da época, articulam-se na descrição “diarista” do episódio.
O monstro gozou de amplo interesse desde as primeiras notícias de seu aparecimento, em março de 1512 - período correspondente à fase aguda da guerra da Santa Liga, que culminou na Batalha de Ravenna, em abril daquele ano. Embora os primeiros relatos, preservados nos manuscritos italianos, sejam puramente textuais, notícias difundidas em territórios germânicos, franceses e espanhóis deram origem a materiais iconológicos veiculados em vários suportes. Além da adesão a códigos informacionais que circunscreviam a murmuração pública do fenômeno, é notório neles o uso de preceitos encontrados nas autoridades antigas, sobretudo latinas, onde se inscrevia a simbiose entre monstrum e mostrare - o nascimento extraordinário considerado um portento cujos signos poderiam ser decifrados através de procedimentos letrados ou sob critérios da divinatio popularis (LE CALLET, 2005, p. 43-49).
A autoridade de Lucrécio e Cícero, entre outros, permitiu vincular as noções de “prodígio” e “monstruosidade” - esta entendida, segundo os princípios de autorização genericamente acatados entre letrados italianos, nas dimensões físico-moral1 e religiosa, acarretando, no caso do Monstro de Ravenna, a possibilidade de os códigos providencialistas então vigentes absorverem a excentricidade de seu nascimento. A autoridade dos discursos aristotélicos levou a que os monstros das primeiras décadas do século XVI também fossem tidos por desvios da cadeia ordinária dos seres.2 Logo, não se esgotavam no caráter puramente alegórico de seu consumo, pois, de um lado, compunham o rol de singularidades que assegurava a identificação da diferença entre os seres, impedindo uma pura similitude que encobrisse sua diversidade;3 de outro, eram fisicamente discerníveis, como indicam os relatos: os nascimentos são registrados e veiculados pelas fontes como dados empíricos concretos, como criaturas que se têm ou se teve efetivamente sob a vista, objeto de testemunho dos letrados que os registram em seus diários - dando-se, inclusive, notícia da peregrinação dos cadáveres, às vezes embalsamados, para que pudessem ser vistos, de modo amplo, pelo público.4
Todavia, o que era manifesto no âmbito dos relatos contemporâneos tornou-se opaco à leitura atual diante da propensão, hoje hegemônica, a desconsiderar o corte ontológico que nos separa da primeira época moderna. O processo de purificação epistemológica decorrente fez convergir o exame de monstros modernos para binômios inadequados como “real versus fictício” e “popular versus científico”, circunscrevendo-os a seu caráter representacional - o que, na prática, equivale à ponderação obrigatória de que eles jamais existiram de fato.5 Esse paradigma de oposições, etnocêntrico em larga medida, acabou fundamentando analogias arriscadas: seja com animais possivelmente existentes no “nosso” mundo natural - por exemplo, no caso do hipupiara, ou monstro de São Vicente, um criptoanimal da América portuguesa costumeiramente “decifrado” na forma de um leão-marinho;6 seja enquanto narrativas inspiradas ou decorrentes, por deformação ou derivação, de nascimentos monstruosos concretos;7 ou, ainda, através da restrição analítica aos componentes ditos “maravilhosos”, “assustadores” ou “deleitosos” das descrições - no que as narrativas se deixam reduzir à latitude dos mirabilia.
Outro aspecto, essencial, é subproduto do esquecimento dos critérios datados de organização das ruínas letradas onde encontramos informações sobre os monstros. O resultado desse lapso é a interpretação teleológica contemporânea dos escritos teratológicos modernos. Ela se vincula, primeiro, a processos de objetivação explicados ideologicamente; impondo aos monstros, no interior das narrativas, o papel exclusivo de mecanismos pragmáticos de controle social, ou de instrumentos de controle moral da coletividade (DUNTHORNE, 2008, p. 1113). Ora, o estudo dos resíduos relativos ao Monstro de Ravenna mostra que não foram evocados com propósitos estritamente políticos, mas também em resposta a rumores chancelados pela autoridade de discursos tidos por verdadeiros, expectativas de deleite público e a dilemas dogmáticos que, por seu turno, provocavam repercussões teológico-políticas (NICCOLI, 1990, p. 32-33). Além disso, a força da “crença” neles é muita vez estipulada a partir de critérios deterministas. Parte da crítica do século XX reificou o exame dos monstros da primeira época moderna mediante uma sequência evolutiva tripartite: o reconhecimento de seu caráter prodigioso; sua descrição na forma de natural wonders ou de curiosidades deleitosas;8 enfim, sua transformação em objetos da anatomia médica, a partir de meados do século XVII.9 É exatamente essa sequência racionalista que gostaríamos de evitar.10 Assim, a hipótese de um declínio do rendimento puramente “mágico” dos monstros no curso da época moderna deve ser matizada, preferindo-se pensar na disponibilidade e indisponibilidade de recursos retórico-poéticos, jurídicos, teológicos e morais do período.11 Mas eles não são tudo. Uma vez que a observação e decifração dos significados do aparecimento do monstro circulam entre letrados e iletrados, não se deve prescindir de materiais de amplo consumo (“populares”, no sentido mais próprio do termo), a exemplo de folhas volantes e outros papéis efêmeros relativos a notícias extraordinárias, o que impõe, ademais, discutir a estrutura narrativa do que veiculam e a articulação daquela ordem dos discursos a uma ordem material regida por um conhecimento impresso de cuja organização prescritiva temos informações limitadas (ARAÚJO, 2020, p. 57) - mas suficientes para determinar os desafios implicados na confecção dos textos e respectivas gravuras.12 Todas essas questões estão em funcionamento em nossa abordagem, mas, por ora, vamos nos restringir essencialmente aos diários e, de modo breve e complementar, a alguns materiais que expandiram seu teor informacional e dogmático noutras direções.
A escrita diarista e os monstros aristotélicos
Nos dois primeiros diários, as formas do Monstro de Ravenna se inter-relacionam a partir de critérios determinados pelas écfrases que o evocam: trata-se de uma criatura conhecida não através do testemunho ocular dos diaristas, mas graças a uma série de desenhos (que não conhecemos) que circularam na época; desenhos que retomavam, por sua vez, uma imagem original supostamente preparada a mando do Papa Júlio II. O Monstro de Ravenna é testemunho do poder de circulação das imagens teratológicas no período, sendo possível que boa parte da iconologia posterior tenha sido construída a partir de um ou vários arquétipos icônicos e ecfrásticos que reproduziram a imagem inaugural perdida.
Nos manuscritos italianos, o monstro aparece sob duas formas que estabelecem uma morfologia relativamente duradoura, presente em criaturas descritas antes e depois do episódio. A mais antiga, de 8 de março de 1512, descrita por Sebastiano Tedallini, é a versão “romana”; a seguinte, de 11 de março de 1512, descrita por Luca Landucci, é a versão “florentina”. Ambas delineiam um ser bípede com tronco humano e cabeça humana (esta dotada de um corno), uma perna anfíbia, outra perna humana (contendo um olho no lugar do joelho); no relato de Landucci, consta ter asas de morcego em vez de braços. Diferem, ainda, nos signos gravados no corpo e no gênero: macho, segundo Tedallini; hermafrodita, no relato de Landucci. Uma terceira versão manuscrita italiana, de Marin Sanudo, faz menção à sua existência, sem mencionar qualquer detalhe morfológico. Nos três casos, o Monstro de Ravenna, bípede, atualiza outra criatura hermafrodita, cujo aparecimento havia sido registrado anos antes, como veremos. Nas décadas seguintes, prosperará outra forma, monópode, não mais em fontes manuscritas, mas em impressos - versão que terá longa fortuna entre os teratologistas.
O mais antigo registro, anotado por Tedallini13, afirma o seguinte:
A dì 8 di marzo, come in Ravenna è nato di una monica et un frate un mammolo a questo modo che te scrivo. Haveva la testa grossa, con uno corno nello fronte, et una bocca grande; nello petto tre lettere come vedi qua: YXV, con tre peli allo petto; una gamba pelosa con una zampa de diavolo, l’altra gamba d’homo con un occhio in mezzo della gamba; mai homo se recorda simile cosa. Lo governatore della terra mandane nella carta14a papa Iulio 2°. (TEDALLINI, 1904, p. 327).
No dia 8 de março, nasceu em Ravenna, de uma freira e um frade, um menino neste modo que te descrevo: tinha a cabeça larga, com um corno na fronte, e uma boca grande; no peito, três letras, como vês aqui: YXV, com três pelos no peito; uma perna hirsuta com uma pata de diabo, a outra humana, com um olho no meio; nenhum homem se recorda de coisa semelhante. O governador da terra o enviou [possivelmente se refere a uma imagem] em carta a Júlio II.15
Na segunda iteração, extraída do diário do boticário florentino Landucci16, lemos que:
E a dì 11 di marzo 1511 [i.e., 1512], ci fu come a Ravenna era nato d’una donna un mostro, el quale venne qui disegnato; e aveva in su la testa un corno ritto in sù che pareva una spada, e in iscanbio di braccia aveva due ali a modo di pilpistrello, e dove sono le poppe, aveva dal lato ritto un fio, e dall’altra aveva una croce, e più giù, nella cintola, due· serpe, e dove è la natura era di femmina e di maschio; di femmina era di sopra nel corpo, e ’l maschio di sotto; e nel ginocchio ritto aveva uno occhio, e ’l piè manco aveva d’aquila. Lo vidi io dipinto, e chi lo volle vedere, in Firenze. (LANDUCCI, 1883, p. 249-250).
No dia 11 de março de 1512, nasceu em Ravenna, de uma mulher, um monstro que vem desenhado aqui. Tinha sobre a cabeça um chifre que parecia uma espada; em vez de braços, tinha duas asas como de morcego; onde está o peito, tinha do lado direito um fio e do outro uma cruz; e mais para baixo, na barriga, duas cobras; e onde está o sexo, era de fêmea e macho; de fêmea era a parte superior do corpo; e de macho a parte inferior; e no joelho direito tinha um olho, e o pé esquerdo tinha [forma] de águia. Eu o vi em desenho, e quem o quiser ver, [está] em Florença.
A natureza periegética dos relatos contidos nesses diários deviam conduzir audiências letradas a acatar a singularidade da descrição ao ordenamento do mundo, pressupondo interconexão entre as palavras ditas sobre o nascimento e os eventos ocorridos ao redor dele, de modo que os termos da doxa17 incitavam a associação do aparecimento do monstro a lugares-comuns de evento, cidade e tempo18; porém, descrições de nascimentos desse gênero decerto acessavam outros protocolos. Em seu registro lacônico, a escrita diarista retoma marcos expressivos anteriores - e não exclusivamente italianos - acerca de fenômenos teratológicos, ao mesmo tempo que beneficia de dispositivos informacionais atrelados aos escritos comerciais, diplomáticos e militares das cidades italianas do período.
Assim, a exposição do decoro que permite verossimilmente postular a recepção letrada dos textos e a significação teratológica em sua generalidade contextual deve ser precedida pela reflexão acerca de suas propriedades informacionais, autorizada pelo recorte material dos relatos que chegaram até nós e as interconexões que propicia. Roma, Florença e sobretudo Veneza19 eram, afinal, grandes centros de escoamento de notícias do gênero, e a importância diplomática e comercial desta última a constituía de imediato como um vetor de acumulação e disseminação de informações. Em Veneza, o comércio de rua, caracterizado pela presença de ambulantes que vendiam os papéis de mão em mão, ou em mercados temporários, fomentou uma rede urbana decisiva à circulação de papéis, o que permite conjecturar que os conteúdos fixados nos diários participavam de outros suportes (CARNELOS, 2016, p. 741). Ao mesmo tempo, a cidade patrocinava iniciativas de compilação memorialista que estruturavam coleções de manuscritos - caso dos Diarii de Sanudo20 - a serem compulsados por aqueles que viessem a obter autorização para redigir livros sob tutela da Repubblica (NEERFELD, 2006). Isso decerto contribui para que, entre os três diários da nossa amostragem, os de Sanudo detenham o maior número de alusões a fenômenos teratológicos21 - afirmados tanto pelas pretendidas observações diretas quanto pela via dos rumores ou dos testemunhos indiretos, aos quais foram juntados, em certos casos, documentos oficiais, panfletos e desenhos.
A mobilidade física e noticiosa dos monstros assim construída os levou às praças, conselhos políticos e à corte papal, seja em papéis ou in corporis. Foi o caso, por exemplo, da criatura que teria nascido em dezembro de 1498 - dotada de quatro pernas e quatro braços, seis dedos em cada mão, duas cabeças e um só coração, e exposta a quem quisesse vê-la, mediante pagamento, na taverna do Sarraceno em San Marco22. O mesmo teria sucedido com uma criança bicéfala embalsamada e levada a toda a parte para ser mostrada em fevereiro de 1500 (SANUTO, 1886, col. 1442). Elas e várias outras indicam a existência de um fluxo mais ou menos regular de informações de ordem teratológica, além de uma demanda consistente pela visualização dos monstros por meios diretos ou indiretos - neste caso, sobretudo através dos scartabelli, panfletos que expunham relatos de crimes, sentenças e outros temas de interesse citadino (NICCOLI, 1990, p. 36).
Devemos ter esse contexto em mente ao analisar a menção de Marin Sanudo ao Monstro de Ravenna, anotada em 23 de março de 1512:
[...] mi fo mandato di Roma uno monstro nato in Ravenna in questo anno et milesimo; cossa horenda, qual lì, a Roma, è stà butato a stampa (SANUDO, 1886, col. 49).
[...] me foi enviado de Roma um monstro nascido em Ravenna neste ano e milênio; coisa horrenda, que lá, em Roma, foi posto em gravura.
A fonte de Sanudo foi a correspondência do embaixador veneziano em Roma, Francesco Foscari (1460-1518), datada de 18 de março. Na passagem, demarca-se explicitamente que o Monstro havia sido “butato a stampa”, primeiro em Roma, de onde partiram as informações, mas provavelmente em Veneza, logo em seguida (NICCOLI, 1990, p. 45). Nele, porém, a écfrase sequer aparece. Supõe-se apenas que teve em mãos uma imagem do monstro “nato in Ravenna”, a exiguidade do registro não admitindo qualquer interpretação, salvo a ênfase na origem romana (“mi fo mandato di Roma”), e não florentina, da imagem. Por outro lado, isso reafirma a dinâmica que animava o circuito das gravuras teratológicas: os três viram imagens da criatura (Tedallini, em 8 de março; Landucci, em 11 de março; e Sanudo, em 23 de março), rapidamente disseminadas logo após a pretensa origem do fenômeno. Embora não conheçamos as imagens italianas, podemos, portanto, inferir a existência de um ou mais arquétipos icônicos, do qual um panfleto germânico impresso em 1512 (Figura 1) é também testemunha.23
Seja como for, a forma do monstro torna-se relativamente estável porque os diários que capturam sua murmuração encontram-se implicados em um processo de autorização cumulativo inerente aos dois dispositivos principais do mecanismo informacional então em funcionamento: instruir (docere), de um lado, e deleitar (delectare) a si e aos outros (o terror faz parte desse deleite) com o insólito da sua epifania, de outro. Mas é estável também porque, no caso particular dos diários, os códigos em uso para controlar o modo de informar e registrar recobrem a linguagem do comércio e das guildas - seja a partir das suas ambições políticas, seja das suas ambições como porta-vozes da cidade e de sua história. Nesse sentido, é prioritário o empenho em comunicar o acontecimento com a relativa precisão e concisão que é a essência da comunicação administrativa e, em última análise, da novella (notícia) com todo o seu campo semântico (HAYEZ, 2004; BEC, 1967). É por esse viés que conseguimos perceber, nas descrições teratológicas que se encontram nos três diários até 1512, alguns elementos comuns, posteriormente reformulados na descrição do Monstro de Ravenna. Essa modificação no estatuto da écfrase do Monstro de Ravenna, que ajuda a compor o caráter compósito da criatura, pode ser exemplificada em sua relação com criaturas anteriores e, em particular, com o Monstro de Florença. Deste, conhecemos a morfologia graças a um desenho (Figura 2) 24 que chegou ao nosso conhecimento após ter sido colado no fólio do diário de Sanudo em que se descreve um prodígio teratológico que teria ocorrido em Florença, no dia 9 de agosto de 1506:
In questo zorno, per aviso auto da Rimano, di sier Alvixe Contarini, podestà et capitanio, et par fusse letere parlicular, scrite a sier Zacaria, suo fiol, come a Fiorenza in questi zorni di una femena di bassa conditione era nato uno monstro, cossa horendissima, come è qui solo pinto. Et si ave la pyctura, la qual eri nel consejo di X fo vista, che sier Zorzi Emo, cao di X, cugnado dil prefato podestà di Rimano, le portò a monstrar al principe el altri. Et dice, che’l vixe zorni…, et poi, di comandamento di la Signoria, non fu pasudo e mori. E la madre tolse tal monstro morto per farlo imbalsamar et monstrarlo per il mondo et andò a Roma (SANUTO, 1886, col. 390).
Hoje chegou-nos notícia do senhor Alvise Contarini, podestà e capitão de Rimini, por meio de uma carta particular escrita ao senhor Zacaria, seu filho, de que em Florença uma mulher de baixa condição deu à luz um monstro nos últimos dias, cousa horrendíssima, como está aqui apenas desenhada. Ele também enviou uma imagem dela, que foi vista ontem no Conselho dos Dez. Senhor Zorzi Emo, líder dos Dez e cunhado do supramencionado podestà de Rimini, trouxe-o para mostrá-lo ao príncipe e a outros. Contarini diz que ele viveu [...] dias e então, sob ordens da Senhoria, não foi alimentado e morreu. A mãe tomou o monstro morto para mandar embalsamá-lo, de modo que pudesse mostrá-lo ao mundo, e foi para Roma.
O Monstro de Florença é, na morfologia que a imagem dá a ver, muito semelhante ao Monstro de Ravenna, identificando-se de imediato o corno na testa, as asas que substituem os braços, a perna anfíbia e a outra humana, onde se encerra o olho. Ambas as criaturas teriam nascido de mulheres pobres - algo que se pode inferir em Landucci e está explícito na passagem de Sanudo - e ambas são “horrendas”. Do ponto de vista dos signos teológicos, duas cruzes figuram na criatura de Florença no mesmo espaço anatômico onde, seis anos mais tarde, viriam a figurar as três letras na criatura de Ravenna. O processo de empréstimo fica ainda mais claro quando notamos que, embora a diegese seja localizada em Florença, toda a cena estabelecida na passagem converge para Veneza, cumprindo o mecanismo de legitimação observado em outros casos: o nascimento se situa além do testemunho ocular; dá-se entre gente de “baixa condição”; uma imagem e/ou cadáver é mostrado às autoridades e, logo em seguida, passa a correr entre os habitantes da cidade; testemunha-se o horror despertado por sua presença; sua singularidade leva a que seja encaminhado ao centro do poder papal (se não nasceu lá); registra-se o fenômeno nos compêndios dos memorialistas.
No Monstro de Florença, temos a imputação de veracidade que é ou invocação do testemunho direto (o olhar do próprio diarista) ou indireto (embora, nesse caso, nunca o testemunho de um vulgar): o elevado estatuto social dos observadores evocados no texto poderia tornar o evento descrito algo acima de qualquer suspeita25. Alvise Contarini, por exemplo, o intermediador narrativo de Sanudo no relato do Monstro de Florença, pertencia a uma das 12 famílias fundadoras de Veneza. Nesse quadro fixo de aferição de verdade pela autoridade, o vulgo tem uma função dúplice e circular: aparece na origem do fenômeno (nascido de uma anônima femena di bassa conditione), mas também no seu final: o “povo” indiferenciado, que acode em massa para ver a criatura ou seu cadáver, fecha e reenergiza, pela espetacularização, o circuito de verossimilhança do ocorrido.
É também esse dispositivo aural, extraído da pena de observadores privilegiados, que transmuta facilmente um evento florentino em um evento veneziano: a diegese originária está localizada em Florença, mas, à exceção da anônima mãe do prodígio e dele próprio, todos os personagens enumerados no texto de Sanudo (estes com nome e sobrenome, incluindo ele próprio) são venezianos. Assim, o evento “original” desloca-se do corpo presencial do monstro (visto por Contarini) para sua representação iconológica (visto pelos venezianos), criando, se não um outro monstro, um outro acontecimento, que, com isso, passa a independer de sua matriz corpórea, valendo doravante como pura informação.
Ora, vista de modo imanente, a estrutura repercute a descrição do Monstro de Aubervillers anotada em junho de 1429, quase cem anos antes, no Journal d’un bourgeois de Paris e nos Registres du Parlement de Paris pelo notário Clement de Fauquembergue:
[508] Item, le vie jour du moys de juing oudit an mil iiiie xxix, furent nées à Hobarvilliers deux enfans qui estoient proprement, ainsi comme ceste figure est; car pour vray je les vy et les tins entre mes mains, et avoient, comme vous voyez, deux testes, quatre bras, deux coulz, quatre jambes, quatre piez, et n'avoient que ung ventre ne que ung nombril, deux testes, deux dos. Et furent christiennés, et furent trois jours sur terre pour veoir la grant merveille au peuple de Paris ; et pour vray, du peuple de Paris y fut les veoir plus de dix mil personnes, que hommes que femmes, et par la grâce de Nostre Seigneur la mère en délivra saine et sauve. Ilz furent nées environ vir heures au matin, et furent christiannées en la parroisse Sainct-Cristoufle, et la dextre fut nommée Agnès, la senestre Jehanne, leur père Jehan Discret, la mère Gillette, et vesquirent après le baptesme une heure.
[509] Item, en celle propre sepmaine, le dimenche ensuivant, fut né en la Chanvarie, derrière Sainct-Jehan, ung veel qui avoit deux testes, viii piez et deux queues ; et la sepmaine ensuivant fut né vers Sainct-Huistace ung pourcellet qui avoit deux testes, mais il n'avoit que quatre piez. (TUETEY, 1881, p. 238-239).
No seis de junho do dito ano de 1429, nasceram em Hobarvilliers [Aubervilliers] duas crianças que eram exatamente como está na figura; eu as vi, de verdade, e as tive entre minhas mãos, e tinham elas, como podeis ver, duas cabeças, quatro braços, dois pescoços, quatro pernas, quatro pés, não tendo senão um ventre e um único umbigo, duas cabeças, duas costas. Foram cristianizadas [batizadas] e ficaram expostas no chão durante três para dias para o povo de Paris ver a grande maravilha. E, de verdade, mais de dez mil pessoas de Paris foram lá vê-las, tanto homens quanto mulheres, e pela graça de Nosso Senhor, a mãe os pariu sã e salva. Eles nasceram por volta das sete horas da manhã e foram cristianizadas [batizadas] na paróquia de São Cristóvão, a da direita foi chamada Agnes, a da esquerda Jeanne, seu pai Jean Discret, a mãe Gillette, e viveram uma hora após o batismo.
Nessa mesma semana, no domingo seguinte, nasceu em Chanvarie [Chanverrie], atrás [da igreja de] São João um bezerro que tinha duas cabeças, oito pés e duas caudas. E na semana seguinte nasceu em Saint-Eustache um porquinho que tinha duas cabeças mas que não tinha senão quatro pés.
Neste caso, o Bourgeois de Paris afirma ter visto apenas um desenho da criatura, mas interessa ressaltar a precisão das conjunturas diegéticas: anatomia; datação e localização bem determinadas; batismo na paróquia de Sainct-Christoufle. O signo de legitimação é popular e a posteriori, derivado da exposição pública e da amplificatio aplicada ao número de pessoas que viram os gêmeos (“et furent trois jours sur terre pour veoir la grant merveille au peuple de Paris; et pour vray, du peuple de Paris y fut les veoir plus de dix mil personnes, que hommes que femmes”).
Clemente de Fauquembergue26 lança mão do mesmo procedimento:
Lundi, vje jour de ce mois, la femme d’un laboureur, demourant à Haultbarviller-leiz-Saint-Denis en France, enfanta une fille gemelle, ou deux filles joingnans ensemble en ung seul ventre, ayans tous autres membres feminins entiers et formez hault et bas doubles, c'est assavoir, deux testes, iiij bras avec les espaules, iiij jambes, iiij mains et iiij piés cum posterioribus et anterioribus membris urinalibus; dont l’une trespassa incontinent après son baptesme sur les fons de l’eglise dudit Haubertviller, et l’autre, qui estoit ung bien pou plus grant, survesqui d’un demi quart de heure ou environ; et furent gardées deux jours sans les enterrer, pour ce que pluiseurs de la ville de Paris et environ les aloient veoir et donnoient offrandes et aumosnes à ladicte eglise et à la mere acouchée, qui avoit moult travaillie en l’enfantement desdictes filles ou fille jumelle dessusdicte, si ita appellari debeat hujusmodi partus.
Cujus similis de memoria hominum visus est in hoc regno apud locum de Castello Novo d’Arry, et illius una pars aliam supervixit per spacium octo mensium vel circiter, prout fertur.
Ce mois, en ung des hostelz de me J. Porcher, conseillier du Roy, nasqui ung veau ayant viij piés et une teste. (TUETEY, 1909, p. 310-311).
Segunda, dia 6 deste mês [junho de 1429], a mulher de um agricultor, morando em Haultbarviller-leiz-Saint-Denis [Aubervilliers] na França, deu à luz uma filha gêmea, ou duas filhas, partilhando juntas um só ventre, tendo os outros membros femininos inteiros e os superiores e inferiores dobrados, a saber, duas cabeças, quatro braços com as espáduas, quatro pernas, quatro mãos e quatro pés, com os membros urinários posterior e anterior. Uma morreu imediatamente após o batismo na fonte da igreja de Haubertviller e a outra, que era um pouco maior, sobreviveu por mais ou menos uns quinze minutos. Foram mantidas sem enterro durante dois dias para que muitos da cidade de Paris e arredores viessem vê-las e desse oferendas e esmolas à dita igreja e à mãe gestante, que teve muito trabalho no parto das filhas ou filha gêmea, se assim deve ser chamado o parto desse tipo.
Semelhante a este, na memória dos homens foi visto neste reino, numa localidade de Castello Novo d’Arry, e uma outra parte daquele sobreviveu pelo período de oito meses ou perto disso, de acordo com o que [nos] foi trazido.
Este mês, em um dos hotéis do senhor J. Porcher, conselheiro do Rei, nasceu um bezerro com oito pés e uma cabeça.27
Aqui, o texto não deixa claro se Fauquembergue foi testemunha das siamesas de Aubervilliers, mas a multidão parisiense (“que pluiseurs de la ville de Paris et environ les aloient veoir”) que teria ido até lá é, mais uma vez, um dado importante, pois compõe o lastro da impressão de veracidade imposta ao causo. Como no Journal d’un bourgeois de Paris, as siamesas também serviram para contrabandear dois outros causos monstruosos (ainda que de origens diferentes): no Journal, um bezerro de duas cabeças em Chanvarie28 e, uma semana depois, um porco de duas cabeças e quatro patas nos arredores de Saint-Eustache (Paris). E, no caso de Fauquembergue, os siameses de Castello Novo d’Arry e o bezerro de J. Porcher (conselheiro do Rei)29. O atravessamento de um segundo ou mesmo de um terceiro causo, de menor importância, após a análise ecfrástica e social do causo principal, pode ser ressaltado como uma relativa constante também nos diários30. Note-se, ainda, o resultado econômico da exposição pública das gêmeas: “et donnoient offrandes et aumosnes à ladicte eglise et à la mere acouchée”, tal como se supõe acontecer com a mãe do Monstro de Florença, que “per farlo imbalsamar et monstrarlo per il mondo et andò a Roma”. Um procedimento que parecia ser recorrente nesses casos31.
Tal como nos italianos, as descrições também fazem uso preciso do estado anatômico dos monstros, mas os franceses acrescentam algo: sublinham a possibilidade da morte sem batismo, fazendo questão de assinalar o circuito densamente cristianizado da cena.
Landucci (1474, 1489) e Sanudo (1498, 1500) anotaram outras ocorrências monstruosas em seus diários:
E a dì 25 di settenbre 1474, ci fu una lettera di mano di Matteo Palmieri, ch’era capitano di Volterra, la quale vidi io e lessila; la quale conteneva questa maraviglia, che in questi dì era nato là, in quello di Volterra, un fanciullo, cioè un mostruo, ch’aveva el capo di bue, e aveva tre denti, con un vello di peli nella testa, a uso d’un corno; e in sul capo aveva aperto come una melagrana che pareva che n’uscissi razzi di fuoco. Di poi le braccia aveva pilose tutte, co’piedi di lione e cogli unghioni di lione. El corpo colla natura sua aveva di femina umana; e ‘l resto delle ganbe e insino a’piedi, aveva di bue come l’capo. E visse circa di 3 ore. La madre morì el quarto dì. Le donne che lo levorono e che v’erano intorno tramortirono di paura. E questo fu manifesto al detto Matteo, perché gli fu presentato innanzi come cosa spaventevole. El detto Matteo capitano di Volterra scrisse qui a Firenze di sua mano; e io copiai la detta lettera, le parole formali, non levai ne’posi nulla alla lettera di Matteo. E perché el detto Matteo era conpare di mio padre e battezzomi lui, e benchè fussi diritta a altri cittadini, mi vene nelle mani la propia lettera. (LANDUCCI, 1883, col. 13-15).
E no dia 25 de setembro de 1474, chegou uma carta das mãos de Matteo Palmieri, que era capitão de Volterra, a qual vi e li; ela continha esta maravilha: naquele dia havia nascido em Volterra uma criança, ou melhor, um monstro, que tinha a cabeça de boi, três dentes, com um velo de pele na fronte, em torno de um corno; e sua cabeça abria-se como uma romã de onde saíam, ao que parece, rajadas de fogo. Quanto aos braços, eram de todo hirsutos, com os pés e garras de leão. A natureza do corpo era de mulher humana, e o resto das pernas, até os pés, era de boi, assim como a cabeça. E viveu cerca de três horas. A mãe morreu no quarto dia. As mulheres que o carregaram e as que estavam ao seu redor desmaiaram de medo. E isto foi transmitido ao dito Matteo, pois lhe fora de imediato apresentado como coisa assustadora. O dito Matteo, capitão de Volterra, escreveu a Florença de sua mão, e eu copiei a dita carta, nos termos próprios, sem tirar nem lhe acrescentar nada. E porque o dito Matteo era padrinho de meu pai e o batizou, não obstante ter sido dirigida a outros cidadãos, a própria carta veio às minhas mãos.
E a dì 12 d’aprile 1489, ci fu come a Vinegia era nato uno mostruo di questa qualità: la bocca fessa per lungo del naso, e un occhio dal naso e uno dirietro all'orecchio; e fesso tutto ‘l viso, come se gli fossi stato dato una coltellata. E dinanzi alla testa aveva un corno ch'era la natura. Visse 3 in 4 dì. Tagliarono quel corno e subito morì. Dicono che le parti da basso essere di strana maniera. Aveva coda d’animale.
E in questi dì ne naque un altro a Padova, el venerdì santo, eh’ aveva a ogni braccio due mani, e due teste. E visse 2 in 3 giorni. Una di quelle teste morì prima, e tagliatola, l’altra visse poco. E in oltre una donna di 60 anni à fatto tre figliuoli a un corpo. Queste cose strane sono state qui a Vinegia in pochi dì. Questa lettera fu scritta apunto come ell’ è qui, e fu mandata nel banco di Tanai de’Nerli. E di quivi la copiai, e fu vero. Questi segni significano grande tribolazione alle città dove vengono. [12 de abril de 1489] (LANDUCCI, 1883, col. 57).
E, em 12 de abril, soubemos que nasceu, em Veneza, um monstro desta natureza: a boca estava dividida com o nariz, e um olho estava no nariz e outro atrás da orelha. A face estava toda fendida, como se tivesse sido cortada à faca, e a testa era um corno. Viveu três ou quatro dias apenas; pois quando cortaram fora o corno, ele morreu imediatamente. Disseram que as partes baixas do seu corpo eram muito estranhas, e tinha cauda de animal. E outro nasceu em Pádua na Sexta-Feira Santa, que tinha duas cabeças e duas mãos em cada braço. Esse também viveu dois ou três dias; uma das cabeças morreu primeiro e quando foi cortada, a outra não viveu muito mais tempo. Além dos casos acima, uma sexagenária deu à luz três bebês de uma vez. Todas essas coisas estranhas aconteceram em Veneza, com poucos dias de diferença. A carta descrevia os fatos exatamente como eu fiz e foi enviada ao banco de Tanai de’Nerli. Eu a copiei e os fatos são verdadeiros. Tais signos significam grande perturbação na cidade onde aconteceram.
È da saper, in questi zorni fo portato in questa terra uno monstro di uno puto con do teste, et altre cosse monstruose; qual naque a ........; et, imbalsamato, fo portato a mostrar per tutto; e, perchè spesso acade questo, non scriverò altro. (SANUDO, 1886, col. 1442).
É de saber que, nestes dias, foi trazido a esta terra um monstro, um menino com duas cabeças, entre outras coisas monstruosas, o qual nasceu em... E, embalsamado, foi levado para ser mostrado por toda a parte e, porque isto ocorre com frequência, mais não direi.
Observamos as mesmas preocupações de ordem anatômica; localização e datação precisas; exposição pública direta (da qual os diaristas são eles mesmos testemunhas oculares) ou indireta (via carta ou imagem); comercialização da imagem/cadáver - embora não haja sinal de qualquer inquietação sacramental a respeito dos monstros. No detalhe, porém, Landucci deixa claro que sua fonte (para o Monstro de 1489), além de epistolar, é de cunho comercial, uma correspondência enviada por um empregado (“e di quivi la copiai”) à sede do banco de Tanai de’Nerli, um dos mais importantes banqueiros florentinos da época. Ao identificarmos as fontes de outros causos (a correspondência de Contarini, fonte de Sanudo para o Monstro de Florença de 1506; a carta de Matteo Palmieri, capitão em Volterra, fonte de Landucci para o monstro de 1474; a carta do embaixador de Veneza, em Roma, Francesco Foscari, para o Monstro de Ravenna), podemos perceber que o medium de circulação dos monstros no contexto italiano dependia fortemente do tecido das conexões militares, diplomáticas e comerciais das cidades dos três diaristas (Roma, Florença e Veneza).
Em meio a esse tecido informacional, o estudo das correspondências italianas de tipo comercial entre os séculos XIV e XV mostra que não é apenas um léxico relativamente comum, mas também todo um sistema de escritura próprio que emerge dos arquivos32. Seu denominador é a aquisição e a transmissão da informação certeira, desprovida de dubiedades - o que é compreensível, uma vez que se faz necessário um controle específico do discurso e da linguagem para que a comunicação orientada para o comércio (investimento, dívidas, produtos, cálculo, contabilidade, organização) se estabeleça e possa se interconectar com outros dispositivos informacionais.
Entretanto, se os comerciantes italianos dão testemunho de um gosto pela escrita, seus textos se distinguem daqueles dos notários e dos letrados de profissão33: seus manuscritos são extremamente precisos, enxutos, pouquíssimas rasuras (BEC, 1967, p. 49). Para além dos livros de registros e de contabilidade (libro delle possessioni, libro delle recate, libro delle vendite al minuto etc.), essa elocução se deixa observar na sua numerosa correspondência (às vezes lida publicamente para os membros da mesma guilda) e, sobretudo, na ricordanza (igualmente de caráter comercial, porém, mais pessoal e familiar), misto de efeméride, crônica, genealogia e diário, típica das famílias de mercatori. Repositório em língua vulgar de sua visão de mundo, de sua pedagogia e de sua moralidade prática, a ricordanza, cuidadosamente elaborada ao fio dos anos, é vista como um bem e representa, de certo modo, a síntese do seu estilo e de sua razão: “Sempre que fores redigir algum papel oficial, faz como se tivesse um livro [de contas], escreve a data, o nome do notário e das testemunhas, aquele da pessoa com que fizeste o contrato. Para escapar dos perigos que apresentam a falsidade dos homens, é preciso ter sempre documentos cuidadosamente redigidos. Guarda-os em teu cofre”, nos ensina Paolo da Certaldo, mercador florentino do século XIV34.
A razão de mercado que constitui a moldura de uma forma particular de escrita comparece nos três diaristas, embora apenas Landucci, boticário, tenha sido diretamente ligado ao comércio. No entanto, os códigos de concisão são similares, e todos se beneficiam das redes de informação das cidades italianas. O que os une, para além da marca mercatore de relato, é a conexão entre os signos inscritos na anatomia de seus monstros e o caráter público do fenômeno. As narrativas teratológicas, fundamentadas no esquema “mulher ⟷ monstro ⟷ morte”, são concatenadas e legitimadas pela exposição pública final, em que cada causo monstruoso encontra seu sentido último (incluindo o de ser transformado, monstro e imagem, em objetos de comércio e de arquivo). Mas esse sentido, na prática, é imanente: uma vez resolvida a equação, não é necessário recorrer a nenhum complemento sacramental ou teológico (e quando este é referido, não chega a ser, de fato, o coroamento da informação). Com efeito, na generalidade dos diários, o monstro é uma informação (extraordinária, é evidente), mas uma informação cujo sentido final se realiza na própria murmuração pública. Embora a écfrase seja uma força importante nessa caracterização, ela sozinha não sustenta a estrutura informacional: somente o circuito inteiro dá sentido ao monstro - pois, à luz das relações de autoridade implicadas em sua etimologia, ele está destinado a, no fim das contas, ser mostrado. O que é necessário à sua compreensão pública está dado em sua própria exposição, ainda que o sentido misterioso e real que o cerca escape a todos os espectadores, letrados ou não35. É apenas após esse circuito específico ter se completado que entram os clérigos e seus aparelhos, interpretando de modo profético o sentido do causo extraordinário, a partir daí encarado em sua unidade.
Portanto, podemos tirar uma hipótese preliminar da exemplaridade cumulativa dos diários. Mesmo considerada a circulação restrita desse tipo de documento, a morfologia teratológica dos monstros anotados não é distinta de sua condição de notícia. Neles, a circulação não se resume ao decoro do tratado teológico, embora a teologia esteja operando no quadro de sua significação. Também não se reduzem à crônica e ao comentário histórico-político, ainda que a política possa estar, de certa maneira, sendo invocada para lhes dar sentido último. Se não podemos decifrá-los, sobretudo no caso de Ravenna, a partir de criaturas naturais conhecidas sem incorrer no debate da crença ou não crença dos contemporâneos em sua existência, não podemos recusar-lhe, por outro lado, uma configuração particular: a de imagem informacional (verbal ou icônica) vagante, que circula entre a murmuração pública e o discurso dos doutos. O Monstro de Ravenna participa, por isso, de uma estrutura cotidiana que pode ser compreendida no interior da anomalia aristotélica e do gesto de acumulação diarista. Mas a estes vem se sobrepor uma dinâmica físico-moral que, desdobrada dos comentários de Tedallini e de Landucci, faz de sua descrição um fenômeno resiliente, persistindo ao próprio ser engendrado.
A resiliência de uma forma compósita
No Monstro de Ravenna, por outro lado, e pela primeira vez nos diários, a écfrase teratológica se torna mais importante que a exposição pública das criaturas, invocada nas diegeses. A anatomia monstruosa começa a assumir uma razão em si mesma, e precisará ela própria ser decodificada - o que a transfere de uma interpretação teológica a posteriori (após a exposição pública) para uma razão teológica de tom providencialista a priori, pois inerente a seu próprio corpo. Essa operação teológica nunca esteve presente diretamente no corpo das outras criaturas anotadas nos diários, mas sempre alhures, formando o quadro público de explicação de sua existência prodigiosa.
No Monstro de Florença, como aliás em todos os outros casos teratológicos dos diários, a anatomia das partes monstruosas não é significativa para além dos critérios de diferenciação da própria normalidade da anatomia. Em outras palavras, embora configurem uma mensagem no todo (no significado geral do monstro como signo), as partes corporais do Monstro de Florença, individualmente, nada indicam senão sua monstruosidade no sentido aristotélico do termo. No Monstro de Ravenna, no entanto, as partes contêm signos que passaram a ser consideradas, implicitamente, mensagens cifradas em si - e, portanto, passíveis de decodificação. Assim, Ravenna constitui um passo importante na ressignificação dos eventos teratológicos nos diários, passando de monstro, isto é, anomalia física, a enigma que carrega nos detalhes de sua própria composição corpórea um rol de revelações.36 É desse modo que a criatura será reconfigurada posteriormente, no desenrolar de sua história e recepção editoriais.
O primeiro uso “enigmático” do Monstro de Ravenna se encontra no diário de Tedallini. Se não vincula imediatamente a anomalia física à deriva teológica, a sincronicidade das crises enfrentadas pelo papado de Júlio II, especialmente as controvérsias ao redor da convocação dos Concílios de Pisa e de Latrão, facilitaram, por outro lado, a comunicação entre o monstro e os episódios histórico-teológicos transcorridos ao seu redor. Embora não realize propriamente uma exegese a partir das letras inscritas no torso do monstro, ele as destaca como um traço corporal que não pode ser explicado apenas pela ruptura da physis. O índice genético no texto (“nasceu em Ravenna, de uma freira e um frade”) já conduz a interpretação teratológica para o lugar do curto-circuito satânico, e os segni resultantes, por amplificação, pressupõem a cena como um fenômeno de ordem diabólica - donde a necessidade de registrar de saída que notícias da criatura chegaram prontamente ao Papa. Percebe-se, nesse gesto, a ambiguidade dos segni teratológicos, que estabeleciam um horizonte hermenêutico atinente tanto a catástrofes que não se pode interromper quanto a prognósticos de uma “providência gentil”37, sensível ao arbítrio humano. O monstro desempenha, assim, o papel de linha-de-fé para onde convergem a história, as intervenções sobrenaturais e as mensagens contidas em fenômenos preternaturais. Mas, aqui, a écfrase desdobra já o catálogo de marcas, mais ou menos aparentes, que suscitam o juízo de consequências cujo alcance definitivo só pode estar nas mãos de indivíduos engenhosos e espiritualmente aptos - o sentido final provavelmente firmado no âmbito do papado.
Como dissemos, ainda que os relatos de Tedallini e Landucci sejam semelhantes, há outras particularidades nos escritos atribuídos a este último. Em relação a Tedallini, Landucci parece retomar o esquema tradicional mulher ⟷ monstro ⟷ morte ⟷ exposição pública. Ele menciona que o monstro nasceu de uma donna, e sua descrição não faz referência explícita ao anagrama YXV, mas apenas à condição hermafrodita. Embora não tenha sido testemunha ocular, diz ter visto uma imagem (“dipinto”) da criatura, e confirma que seu corpo (provavelmente embalsamado para exposição) está em Florença.38 Landucci refere-se ao bipedismo, preservando-se as características da perna direita humana (contendo o olho) e do pé esquerdo, de ave de rapina, o que sinaliza para a configuração física que é próxima ao Monstro de Florença - outro indício importante da inter-relação entre as écfrases resilientes dos dois monstros.
Apenas o hermafroditismo ecfrasticamente sublinhado por Landucci39 poderia ocupar o lugar de uma exegese anatômica satânica, com a atribuição de segni a partes específicas do corpo da criatura, uma vez que poderia municiar o lugar-comum a atar “confusão dos sexos” à desordem citadina. É consabido que o “horror à ambiguidade”40 inscrito nas práticas letradas do período recaía enfaticamente sobre a desarmonia, de que a fisicalidade monstruosa - uma vez que a androginia em termos alegóricos podia ser objeto de louvor - era exemplar41. Disseminado em escritos e oralmente, o costume amparava-se em relatos dos popolari sobre padres ou monges convencidos de terem sido engravidados por efeito de uma ação diabólica. O fato de serem “convencidos” traduzia a indisposição dos relatores em atribuir estatuto sobrenatural42 a eventos efetivamente quiméricos (CROS, 1990, p. 208).
Episódios do gênero remontam aos esquemas iconográficos da “procriação de Eva”, veiculados entre os séculos XI e XV. Neles, Adão dá Eva à luz com o objetivo de assegurar a superioridade masculina e a autonomia de seu intelecto, alegoria assim destinada a estabelecer um modelo de submissão. Isso explicaria, talvez, a razão das murmurações mencionarem padres - “mestres” e tutores da sociabilitas43 -, introduzindo o tema da confusão dos sexos e, com ele, o da “hibridação monstruosa” (CROS, 1990, p. 210-211). Esta poderia ser reforçada, ainda, pelo repertório de narrativas cristãs, identificadas a partir do século VIII e que permaneceram em circulação nos territórios italianos, da procriação de personagens históricos masculinos. A exemplaridade, tirada de escritos latinos, se voltava para Nero, fecundado por um de seus amantes, ato cuja monstruosidade corresponderia à degradação moral dos pagãos (ZAPPERI, 1983).
Tudo isso demonstra como o relato de Landucci era passível de ser lido sob o prisma de um juízo teratológico que remetia a estruturas interpretativas cuja duração ultrapassa o presente de seu relato, nuançando a objetividade de sua descrição do monstro. Além disso, já se sugeriu que o desaparecimento do teor anticlerical, explícito na anotação de Tedallini, seria consequência de uma decisão tomada em Roma com a finalidade de suprimir material crítico à Igreja.44 O argumento se fundamenta em um episódio conhecido: a oratio da sessão de abertura do quinto Concílio de Latrão, rapidamente difundida em Roma por uma série de panfletos, além de constar da edição dos atos oficiais dele decorrentes. Pronunciada por Egidio da Viterbo em 3 de maio de 1512, portanto um mês após a derrota papal na Batalha de Ravenna, e alguns meses depois da abertura do Concílio cismático de Pisa, de novembro de 1511 (NICCOLI, 1990, p. 50), alude a “ameaças celestiais” na forma de monstros, portentos e prodígios que incitavam Júlio II a retomar o controle sobre seu rebanho45 e as atrela, no efeito persuasivo do discurso e no afeto dos arcanos teológicos que antevia, aos horrores testemunhados em Ravenna. Esses “infaustos dias” convocavam reformas das práticas eclesiásticas que evitassem a ruína do catolicismo - posição mantida por Viterbo na qualidade de superior dos agostinianos, e que reverberou, com consequências imprevisíveis, nos colóquios de seus subordinados, como Lutero46.
Esses argumentos são convincentes, mas esbarram nas lacunas documentais que nos impedem de seguir o envolvimento de Landucci, se é que houve, na polêmica. O mais razoável é supor, portanto, que Tedallini e Landucci registraram relações de causa e efeito deflagradas pelo episódio para disponibilizá-los aos saberes aptos a avaliar um portento singular. Seja como for, a capilaridade dos dispositivos de verificação é clara nos trechos citados. Parte-se dos vulgares, que geram as criaturas, instituindo uma relação entre miséria e monstruosidade47. Responsabiliza-se majoritariamente a mãe, cujas “fantasias” (o motivo viria a povoar obras eruditas sobre o tema)48 estimulam o desalinhamento da physis que acaba acarretando o nascimento. Os eventos são confirmados no âmbito dos poderes político-teológicos,49 mas se disseminam graças à murmuração pública e ao empenho dos letrados, que deles fixam memória. A mesma consistência física, retórico-poética, moral, teológica e material autoriza - e até determina - o caráter multifacetado do Ravenna. Assim, ao mesmo tempo em que as gravuras e descrições tomam umas às outras empréstimos que se legitimam de forma cumulativa, as marcas de um monstro conhecido tornando-se cada vez mais aceitáveis ao juízo de todos esses públicos, favorecem permutações que, ao fim e ao cabo, prestam testemunho de uma singularidade compósita.
A recepção da criatura terá uma enorme fortuna em vernáculo e em latim - por sua vez, o modelo anatômico-teológico de Tedallini terá maior reverberação nos textos latinos. As inter-relações ecfrásticas e imagéticas entre Florença e Ravenna (que já aparecem em Tedallini e Landucci) permanecem como a marca imagética fundamental. Mas, na recepção do Monstro, a écfrase tende a ganhar uma disposição anatômica mais fina e detalhada (e ao menos um tratado completo, em vernáculo) em todos os casos posteriores aos diários italianos.
Contemporânea à escrita dos diários é a carta escrita por Pietro Martyr d’Anghiera, letrado italiano a serviço da corte espanhola no Novo Mundo, a Pedro Fajardo Chacon (1477-1541), Marquês de los Vélez. Redigida na Espanha e datada de 20 de março de 1512, dá conta não apenas da amplitude de circulação das imagens para além das fronteiras citadinas italianas, como também reitera e autoriza, em latim, a écfrase detalhada por Tedallini e Landucci. Não há inflexão de cunho teológico ou apocalíptico atrelada às partes anatômicas. No entanto, podemos tomar o trecho como testemunho da subtração do elemento público (presencial e imediato) do esquema de registro teratológico dos diários e, portanto, da emancipação da écfrase monstruosa em relação a esse circuito:
Ex Italia monstri allatum depictum simulachrum Ravennae ortum, ex conjugata. Hominis est figura, sed capite, vultuque planissimo, torve leonem aemulans, facie capillisque a leoninis non dissimilibus. Erectum habet in fronte cornu, sed carneum. sinistram, Luna & litera Ypsilon, monstratur habere mammillam signatam: dextram vero T litera, pectus litera B. Crux habet dextrum virile, lene sinistrum squamosum. Dextro genu videtur habere oculum, pedes efferos, ut gryphis confingunt pictores. Haec de Monstro, cujus imaginem ab Urbe allatam vidimus, sit nec ne monstrum ipsum ita genitum, nil curo fictum putant aliqui. (ANGHIERA, 1530, f. 106-r106v).
Foi trazido da Itália um simulacro pintado de um monstro nascido em Ravenna a partir de forma conjugada. A figura é de homem, mas imitando, de maneira selvagem, um leão no que diz respeito a sua cabeça e, do mesmo modo, o seu rosto; na face e nos cabelos não se difere da aparência dos leões. Um chifre ereto há na sua fronte, mas [feito] de carne. É mostrado que possui o peito esquerdo assinalado com uma lua e uma letra Y; e, no peito direito, há, na verdade, uma letra T; uma cruz em forma de letra B ocupa o peito viril direito, e o esquerdo [é] levemente escamoso. Parece haver um olho no joelho direito e possuir pés selvagens, assim como os pintores desenham os grifos. Eis o que se pode dizer do monstro, cuja imagem, que foi trazida da Urbe, nós vimos; o próprio monstro pode ter nascido dessa maneira ou não: não cuido disso. Uns acreditam que [ele] seja ficto.50
Outra fonte, mais tardia em relação aos diários e em vernáculo, é o letrado espanhol Andrés Bernáldez (1450-1513), cura da igreja de Los Palácios, em Sevilha, numa seção da sua Historia de los Reyes Católicos D. Fernando y Doña Isabel, que circulou em forma manuscrita à época. Bernáldez, com uma écfrase cuidadosa, retoma o circuito diabólico de Tedallini (“una monja parió un monstruo espantable”51), restabelecendo o anagrama XYV. Mas, tal como Anghiera, acrescenta-lhe uma meia lua, e também põe acima do corpo a cabeça leonina. Apesar da ideia de exposição pública estar insinuada (“tuviéronlo en gran maravilla”), a narrativa de Bernáldez restringe o “público” à pessoa do Papa Júlio II - incluindo aí a emancipação da sua imagem, pois a ordem para “dibujarle” o monstro “de la manera y forma que era” teria partido dele. A criatura aqui é bípede e hermafrodita. A anatomia do monstro não recebe nenhuma explicação particular, mas Bernáldez é explícito sobre o anagrama e a meia lua no torso gerarem “diversas opiniones y juicios [...] entre las gentes”, sem dar ele mesmo, porém, sua própria posição a respeito:
En la ciudad de Rávena, en la Italia, acaeció́ el dicho año de 1512, antes un poco de la batalla de Rávena, que una Monja parió un monstruo espantable; conviene á saber, una criatura viva, la cabeza, rostro y orejas y boca y cabellos como de un león, y en la frente tenía un cuerno como hacia arriba, y en lugar de brazos tenia alas de cuero como los murciélagos, y en el pecho derecho tenia una señal de un Y griega, ansí Y: y enmedio del pecho tenía letra tal X, y en el pecho izquierdo tenía una media luna y dentro una V de esta echura, V. De lo que significaban estas letras y media luna diversas opiniones y juicios ovo entre las gentes. Tenía más debajo de los pechos dos bedijas de pelos; tenía más dos naturas, una de másenlo y otra de femina, y la del másculo era como de perro, y la de femina era como de muger, y la pierna derecha tenía como de hombre, y la izquierda tenía tan luenga como la otra, toda cubierta como de escamas de pescado, y abajo por pié, tenía una echura como pié de rana ó de sapo, el cual dicho monstruo nació́ en el mes de Marzo del dicho año de 1512, como dicho es, y vivió́ tres días, y fué llevado al Papa, el cual lo vido y mandó dibujarle de la manera y forma que era, y tuviéronlo en gran maravilla. (BERNÁLDEZ, 1881, p. 372).
Na cidade de Ravenna, na Itália, sucedeu que, no dito ano de 1512, um pouco antes da Batalha de Ravenna, uma monja pariu um monstro espantoso; convém saber, uma criatura viva, a cabeça, rosto e orelhas e boca e cabelos como os de um leão; e em frente tinha um corno como acima, e em lugar de braços tinha asas de couro, como os morcegos; e o peito direito tinha um sinal de Y grego, assim Y; e no meio do peito tinha [outra] letra, como X; e no peito esquerdo tinha uma meia-lua e dentro um V dessa feitura, V. O que significavam essas letras e meia-lua diversas e opiniões juízos houve entre as gentes. Tinha mais abaixo dos peitos duas mechas de pelos; tinha duas naturezas [sexos], uma de macho e outra de fêmea, a de macho era como de cachorro e a fêmea como de mulher, e a perna direita era como de homem, e a esquerda, tão longa quanto a outra, coberta de escamas de peixe, e abaixo, em lugar de pé, tinha uma forma como pé de rã ou de sapo. O dito monstro nasceu no mês de março do dito ano de 1512, como disse, e viveu três dias, e foi levado ao Papa, que o viu e mandou desenhá-lo da maneira e forma que era, e tomaram-no em grande maravilha.
A conexão teológica que vemos esboçada em Tedallini será plenamente realizada em algumas passagens latinas, quando começam a aparecer mais claramente atribuições político-moralizantes para explicar a anatomia teratológica da criatura. Essa mudança aparece ainda em 1512. Sua origem é uma anotação de Johannes Multivallis à edição do Chronicon52, editada pelo impressor parisiense Henri Estienne (1460-1520). Multivallis foi um letrado oriundo de Tournai, do qual quase nada se sabe, a não ser que, em 1512, era corretor na oficina dos Estienne. A inserção do monstro (na última página da obra) demonstra sua popularidade, pois é entendida como um evento maior na história do mundo. Trata-se, porém, da primeira descrição monópode do Monstro de Ravenna - forma que, como dissemos, foi apropriada pelos tratados teratológicos do século XVI (NICCOLI, 1990, p. 51). Multivallis também é o primeiro a apresentar a écfrase em tonalidade decididamente teológico-política, fazendo corresponder cada traço importante do corpo da criatura a um atributo moral - aproximando-a, assim, do modelo iconográfico das alegorias corporificadas e inferindo seu significado final a partir do conflito entre italianos e franceses. Por conta disso, Multivallis é o primeiro a dar especificidade iconológica (ainda que ecfrástica) ao Monstro de Ravenna, fazendo-o diferir formalmente do Monstro de Florença de 1506:
Ravennae paulo ante natum fuerat monstrum cornum in capite: allas habebat, brachia nulla, pedem unum, ut avix rapax, oculus in genu, sexum utrumque, in medio pectore Ypsilon et crucis effigiem.
Aliqui interpretati sunt: cornu superbiam, allas brevitatem mentis et incostantiam. carentiam brachionun defectum bonorum openun; pedem rapacem rapinam, usuram et omnimodam avaritiam, oculum in genu solum ad res terrenas mentis defectionem, utrumque sexum sodomiam. Et propter hec vitia Italiam sic nunc bellicis contributionibus quati. Regem autem Francie non sua virtute id facere, sed solum esse dei flagellum. Ypsilon vero et ✠ signa esse salutis: nam ypsilon figura est virtutis. Ideo, si ad virtutem recurrant ed ad CHRISTI crucem, ab his pressuris et tribulationibus conveniat respirationem et pacem, conquassationibus desiderabiliorem, quam dare dignetur Christus in omnia saecula benedictus. Amen. (MULTIVALLIS, 1512, ff. 175r-175v).
Em Ravenna, pouco [tempo] atrás, havia nascido um monstro; [tinha] um chifre na cabeça; tinha asas, nenhum braço, um pé, como ave de rapina, [um] olho no joelho, sexo de ambos os tipos, no meio do peito um ypsilon e uma efígie de cruz.
Alguns interpretaram o chifre [como] a soberba; as asas [como] a leviandade e a inconstância da mente; a carência de braços [como] a falta de boas obras; o pé de ave de rapina [como] a usura e todo modo de avareza; o olho no joelho [como] o abandono da mente às coisas terrenas; o sexo de ambos os tipos [como] a sodomia. E assim, por causa desses vícios, a Itália [está] agora [a] ser estremecida pela contrição da guerra. O rei da França, porém, não faz isso por sua virtude, sendo apenas o flagelo de Deus. O ypsilon, por outro lado, e o [sinal] ✠ são os sinais da salvação, pois o ypsilon é a figura da virtude. Desse modo, se eles [os italianos] correrem de volta à virtude e à cruz de CRISTO, dessas opressões e tribulações advirá o alívio e a paz, mais desejáveis do que os tumultos, [alívio e paz] que Cristo considerará digno de conceder a todos os séculos, bendito [seja]. Amém.53
Em um mundo analogicamente organizado, a interconexão dos segni físico-teológico-morais instituídos no texto de Multivalis era mediada por uma assinatura celeste proporcionada; se, afirmava Nicolau de Cusa, “as coisas visíveis são verdadeiramente imagens do invisível e, assim, o criador pode ser cognoscivelmente visto (grifo nosso) pelas criaturas como que num espelho e por enigmas”, caberia admitir que “todas as coisas têm entre si reciprocamente uma certa proporção, embora oculta e incompreensível para nós” (De docta ignorantia, I, 11). Isto é, a singularidade do portento equivalia a impacto de semelhante grau na ordem do mundo. A partir de agora, o mistério pode ser desenrolado na expressão sugestiva do aparecimento da criatura, sinal sensível da presença divina que incita o gênero humano a efetivamente descobri-la, retirando o véu espesso que encobre o sentido mais profundo do evento54. Embora o recrudescimento das restrições católicas à divinatio no século XVI tenha afastado qualquer possibilidade de uma teratomancia explícita - a ponto de, posteriormente, letrados como Cornelius Gemma, voltados para o desenvolvimento de métodos de decifração da “semiótica universal”, evitarem o termo, cunhando uma teratoscopia em tudo semelhante aos mecanismos divinatórios antigos -, a modalidade de compreensão do real implicada nela não cessou (CÉARD, 2004, p. 20-21).
A nota de Multivallis canaliza preceitos analogistas para recusar a assimilação dos monstros como fenômenos contra naturam. Permitiam postular a natureza segundo formulações escolásticas da potestas obedientiae, ou seja, animada pelo desejo ativo de ostentar a obra divina, o que por vezes exige revelar variedades inauditas de sua ação55 - ou quase. A bem pensar, o aparecimento do Monstro de Ravenna prontamente passa a apontar para uma situação limite: compartilha com outros fenômenos prodigiosos, os telúricos ou atmosféricos, além da geração espontânea de bestas inferiores, a qualidade de repetições raras, porém equiparáveis em longa duração, sendo, ao mesmo tempo, em alguma medida, singulares.
As variações elocutivas de seu circuito informacional articulam-se, assim, a uma finalidade providencialista, evocadas em contextos específicos como testemunho enfático dos desdobramentos das leis naturais de que o Monstro de Ravenna participou com este e outros nomes. Além disso, aliava-se a tais procedimentos a dignidade das marcas citadinas atreladas aos eventos teratológicos. Em um mundo vivamente agônico, a irrupção de monstros também servia de evidência da singularidade de cidades como Ravenna, Florença, Veneza e Roma, onde não restava dúvida de que a impiedade da ira de Deus trazia consigo o consolo de sua misteriosa presença.
***
Como ficam os acontecimentos dos diários pensados à luz dessa evolução? Conseguimos destacar mais claramente neles duas categorias: a de monstros “aristotélicos”, em que o significado é geral, quer dizer, uma epifania cujo extraordinário morfológico precisa ser decifrado como um todo; e a de monstros “compósitos”, cujas partes anatômicas, advindas de seres diferentes, são dotadas de significados próprios, de caráter teológico-político-moral - através das tópicas disponíveis em Tedallini e Multivallis, por exemplo.
Assim, a primeira recepção erudita do Monstro de Ravenna, exemplificada pelos excertos acima, estabeleceu, de um lado, a manutenção das características aristotélicas compartilhadas com outras criaturas relatadas nos diários italianos. Neste contexto, no período da primeira circulação das notícias, tanto “exegetas” (Viterbo, Multivallis) quanto “memorialistas” (Tedallini, Landucci) fazem parte, a despeito de seus propósitos particulares, dos elos da ruminação pública, registrando causos em que as singularidades apontavam para rupturas cujo sentido não era conhecido, apenas indicado pelas marcas de desvio da normalidade.
De outro lado, o Monstro de Ravenna trazia em si, anatomicamente, sentenças divinas cujos sentidos (sem prejuízo de especulações mais ou menos sofisticadas) somente se esclareceriam no desenvolvimento da história teológico-política (vista como consequência de abandonos dogmáticos ou morais). Sua primeira vida foi, desse modo, inscrita em assinaturas corporais particulares que recobriam signos, em si mesmos inertes e mudos56, à espera de decifração.
Assim, physis e juízo teológico realinhavam-se à medida que os eventos preternaturais se conformam a uma excepcionalidade regulada por múltiplas, mas não infinitas, variações das propriedades generativas. Não há, logo, oposição entre a dimensão natural da existência dos seres teratológicos e a epistemologia preternatural passível de ser aplicadas a eles, mas um continuum dotado de “peculiaridades individuais”, frequentes o suficiente para formarem um próprio espaço de exemplaridade e raras o bastante para não esgotarem seu potencial cognitivo-moral.
Eis a razão, ademais, de os relatos italianos controlarem, no âmbito de um regime de semelhanças, a individualidade dos monstros, vetando, neste caso, sua redução a uma “espécie”57 genérica a ser constatada em múltiplas regiões. Eram, assim, distribuídos localmente58 a partir de pequenas diferenças (ou melhor, curtas distâncias na ordem da semelhança) que interditavam a redução ao mesmo.
Nos diários, o Monstro de Ravenna é decerto único entre as singularidades teratológicas. Enquanto os monstros “aristotélicos” (não-compósitos) têm sua singularidade exaurida pouco após o fenômeno que lhes deu origem, o Monstro de Ravenna é resiliente. Singularidade compósita fabricada morfologicamente a partir do Monstro de Florença, ele pode passar da forma bípede para outra, monópode, a exemplo do que fez Multivallis, sem que seu sentido profético se esgotasse nessa elasticidade.
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Notas
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