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Recepção: 19 Agosto 2018
Aprovação: 25 Março 2019
DOI: https://doi.org/10.1590/1980-4369e2021002
RESUMO: Durante a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1865-1870), houve da parte de Solano López o desejo e o investimento na criação de periódicos que servissem aos interesses da propaganda de guerra do governo paraguaio, bem como da elevação do moral das tropas. Especialmente direcionados aos soldados paraguaios, os periódicos El Centinela e Cabichuí possuíam dentre suas características o coloquialismo e o apelo constante ao humor e ao riso. Com uma linguagem que se aproximava deveras da oralidade cotidiana e incentivava a leitura em grupo, tais jornais visavam alcançar o riso de seus leitores/ouvintes através do sarcasmo, da degradação e da depreciação do inimigo. Nosso objetivo é discutir de que modo o riso, que a princípio parece ser um elemento de reduzida importância no grande espectro da guerra, pode tomar outras feições se analisado sob o prisma da história cultural. Para tal, nossa metodologia tem por mote a análise dos textos e das imagens publicados nos periódicos paraguaios, em especial, os que faziam menção aos brasileiros, de modo a buscar compreender as apropriações do “outro” realizadas pela imprensa paraguaia durante a guerra, as quais estavam inseridas em um espectro da provocação do riso e eram forjadas com intenções voltadas ao esforço de guerra.
Palavras-Chave: Guerra da Tríplice Aliança, Imprensa Paraguaia, Riso.
ABSTRACT: During the War of the Triple Alliance against Paraguay (1865-1870), Solano López interest and investment in the creation of newspapers that served the interests of the Paraguayan government's war propaganda and the elevation of the morale of the troops. Specially targeted at Paraguayan soldiers, the newspapers “El Centinela” and “Cabichuí”, possessed among their characteristics colloquialism and the constant appeal to humor and laughter. With a language that approached really the daily oral and encouraging group reading, these newspapers aimed to reach the laughter of their readers / listeners through the sarcasm, degradation and depreciation of the enemy. Our aim is to discuss how the laughter, which at first seems to be a minor element in the great specter of war, may take on other features if analyzed from the perspective of cultural history. To that end, our methodology has as its motto the analysis of texts and images published in Paraguayan newspapers, especially those referring to Brazilians, in order to understand the appropriations of the "other" made by the Paraguayan press during the war, which were inserted in a spectrum of the provocation of the laughter and were forged with intentions directed to the war effort.
Keywords: War of the Triple Alliance, Paraguayan Press, Laugh.
Um dos textos mais conhecidos do historiador Robert Darnton trata da análise do relato de um sórdido evento ocorrido em Paris no princípio do século XVIII que aborda um massacre de gatos visto como algo extremamente engraçado pelo autor da narrativa que Darnton estudou. A respeito do estranhamento do leitor moderno a tal narrativa, seguido da necessidade de se tentar compreender as redes de significados que circundam o episódio, assim discorre o historiador:
O fato surpreende desagradavelmente o leitor moderno, que não o acha engraçado, mas quase repulsivo. Onde está o humor, num grupo de homens adultos balindo como bodes e batendo seus instrumentos de trabalho, enquanto um adolescente reencena a matança ritual de um animal indefeso? Nossa incapacidade de entender a piada é um indício da distância que nos separa dos operários da Europa pré-industrial. A percepção da distância pode nos servir como ponto de partida para uma investigação, porque os antropólogos descobriram que as melhores vias de acesso, numa tentativa para penetrar numa cultura estranha, podem ser aquelas em que ela parece mais opaca. (DARNTON, 2006, p. 106)
De modo similar, ao nos debruçarmos sobre os registros da imprensa paraguaia do período da Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870), é possível perceber uma construção discursiva que tinha o humor e o riso como elementos recorrentes e repletos de intencionalidades práticas voltadas ao esforço de guerra, mas cujo senso de humor pode causar certo estranhamento e, por vezes, repulsa ao leitor moderno.
O termo humor aqui empregado é aquele em seu sentido moderno, o qual é deveras amplo, sendo apresentado por Bremmer e Rodenburg como “qualquer mensagem (...) cuja intenção é a de provocar riso, ou um sorriso” (2000, p. 13). Desse modo, os estranhamentos diante do riso têm relação direta com o fato de que o riso e o humor estão inseridos em um espectro amplo e complexo de repertórios culturais compartilhados por determinados grupos sociais, podendo ser, a depender do seu contexto histórico-cultural, algo bastante amplo ou extremamente restrito.
Nesse sentido, durante o maior conflito bélico sul-americano houve da parte de Francisco Solano López e do grupo que o apoiava o interesse e o investimento na criação de periódicos que servissem aos interesses da propaganda de guerra do governo paraguaio, bem como da elevação do moral das tropas. Algumas dessas folhas eram especialmente direcionadas aos soldados paraguaios e possuíam dentre suas características o coloquialismo e o apelo constante ao humor e ao riso. Com uma linguagem que se aproximava deveras da oralidade cotidiana e incentivava a leitura em grupo, tais jornais visavam alcançar o riso de seus leitores/ouvintes através do sarcasmo, da degradação e da depreciação do inimigo.
Não é nosso interesse discorrer a respeito de quais pontos das narrativas visuais e escritas presentes na imprensa paraguaia seriam verossímeis, tampouco aventurar-se na quimera de apresentar “os fatos como verdadeiramente ocorreram”. Nossa metodologia tem por mote a análise dos textos e das imagens publicados nos periódicos paraguaios, em especial, os que faziam menção aos brasileiros, de modo a buscar compreender as apropriações do “outro” realizadas pela imprensa paraguaia durante a guerra, as quais estavam inseridas em um espectro da provocação do riso em seus leitores e eram forjadas com intenções propagandísticas voltadas ao esforço de guerra.
Quando do início da guerra o Semanario de Avisos y Conocimientos Utiles - que a partir de agora passaremos a chamar somente de Semanario- era o único periódico em circulação na república paraguaia. Seu primeiro número fora lançado em 21 de maio de 1853 e sua circulação cessou no início de 1869 quando as tropas aliadas tomaram Assunção. Tal periódico foi, durante alguns anos, o único a circular no Paraguai de maneira ininterrupta, até que, em meados de 1867, o governo paraguaio incentivou o surgimento de outros jornais a fim de contribuir com o esforço de guerra.
Como o próprio nome já indicava, sua publicação era semanal (aos sábados) e seu lema, disposto no cabeçalho, era “¡Viva la Republica del Paraguay!”. O Semanario era totalmente vinculado ao Estado e sua impressão era viabilizada pela Imprenta del Estado. Além disso, em seu primeiro editorial, o então presidente da república, Carlos Antonio López, era apontado como diretor do periódico, de modo que, a missão básica do Semanario era de explicar a seus leitores a orientação política de seu governo e as ações do Estado, funcionando como uma folha oficial.
Pouco mais de uma década após o surgimento do Semanario, as hostilidades entre Paraguai e Brasil deram início aos confrontos bélicos da mais destrutiva guerra ocorrida na América do Sul. O Semanario, mantendo sua posição de imprensa do Estado, voltou suas atenções ao principal interesse do governo paraguaio naquele momento, isto é, a guerra contra o Império do Brasil. Seu primeiro número do ano de 1865 orbitou em torno de dois grandes temas: o primeiro referia-se às motivações da guerra, as quais seriam uma reação de defesa a “El exeso de tirania del Imperio [do Brasil] para con sus vecinos inofensivos [uma alusão à intervenção brasileira no Uruguai ocorrida no ano anterior] (...) Así el Imperio se declara enemigo del Paraguay y lo arrastra al terreno de la lucha” (Semanario de avisos y conocimientos útiles, Asunción, 07 de enero de 1865); o segundo tema, à exultação diante das vitórias paraguaias alcançadas em Forte Coimbra, Miranda e Dourados.
O foco na guerra se consolidaria com a exacerbação do conflito após a assinatura do Tratado da Tríplice Aliança (1º de maio de 1865), de modo que o Semanario concentrou-se quase que totalmente em ser um instrumento do governo para justificar a necessidade do combate enquanto ato de defesa da soberania paraguaia diante dos excessos expansionistas do Império do Brasil, bem como divulgando os feitos paraguaios no campo de batalha que agora contava com dois novos inimigos (Argentina e Uruguai).
A partir de 1867, quando o desenrolar dos acontecimentos no campo de batalha já não se mostrava mais tão favorável às forças paraguaias, o presidente Francisco Solano López incentivou o surgimento de outros periódicos com o intento de também servirem como porta-vozes do governo em relação à elevação do moral da população e das tropas. Desta leva surgiram os jornais: El Centinela (1867-1868), Cabichuí (1867-1868), Cacique Lambaré (1867-1868) e La Estrella (1869). Algumas dessas publicações traziam matérias no idioma guarani, vastamente utilizado no Paraguai à época, enquanto o Cacique Lambaré era quase que totalmente publicado neste vernáculo4.
A respeito do surgimento desses diversos periódicos, Juan Crisóstomo Centurión, militar paraguaio que tomou parte da guerra e que teve participação efetiva como redator e colaborador de várias dessas publicações, assim se expressou em suas memórias:
El Mariscal López empleaba todos los medios á su alcance para fortalecer el espíritu y mejorar en lo posible la moral del ejército. A este fin, a más del Semanario, que no solo registraba en sus columnas los sucesos de la guerra, sino que hacía una propaganda tenaz contra los aliados en el sentido de desacreditar su causa ante la opinión, mandó fundar un periodiquín llamado El Centinela, (…) y otro llamado el Lambaré, que se redactaba en guaraní (…) Estos dos periódicos veían la luz en la capital, y se distribuían profusamente en la campaña y en el ejército. En Paso Pucú se estableció una imprenta, y por indicación del Mariscal se fundó un periódico satírico de caricaturas. El que escribe estas memorias fue encargado de la dirección y redacción del mismo (…) fue aceptada a la idea mía de que fuese llamado Cabichuí. (CENTURIÓN, 1894, p. 320-321)
A historiadora Maria Johansson, ao abordar a campanha de propaganda levada a cabo pelo Paraguai durante a guerra, nos indica que:
Desde el comienzo de las hostilidades, la prensa de los países beligerantes se dedicó a tratar ampliamente el conflicto. En el caso del Paraguay, inmerso en un contexto de guerra total, el gobierno inició una campaña de propaganda que consistió en la diseminación de ideas tendientes a inducir determinados comportamientos. (...) como bien sostiene Jean-Marie Domenach, a partir del siglo XVIII la propaganda se convirtió en un auxiliar de las estrategias de guerra, que comenzaron a conducirse tanto por las armas como por la ideología. (JOHANSSON, 2015, p. 503)
Consoante Jean-Marie Domenach, durante a Revolução Francesa ocorreu uma ascensão da propaganda enquanto instrumento de guerra, a qual foi bastante utilizada, em seguida, por Napoleão Bonaparte e encontrou uma potencialização no decorrer do século XIX com a difusão da imprensa e com o surgimento e as transformações dos diversos Estados-Nação na Europa e nas Américas. Para tal autor, a propaganda converteu-se em um vigoroso instrumento de guerra:
Desde 1791, la ideología se une a las armas en la conducción de las guerras, y la propaganda se convierte en auxiliar de la estrategia. Se trata de crear la cohesión y el entusiasmo en el bando propio, y el desorden y el miedo en el del enemigo. Al abolir cada vez más la distinción entre el frente y la retaguardia, la guerra total ofrece a la propaganda, como campo de acción, no solo los ejércitos, sino las poblaciones civiles, puesto que quizá sea más segura la acción en éstas para mejor afectar a aquéllos, puesto que se puede llegar a sublevar esas poblaciones y hacer surgir en la retaguardia del enemigo nuevos tipos de soldados, hombres, mujeres y niños espías, saboteadores y guerrilleros.7 (DOMENACH, 1968, p. 18)
Mesmo com o surgimento de outros órgãos de imprensa no Paraguai, o Semanario manteve certa distinção dos demais periódicos, pois era considerado um jornal formal e de linguagem mais rebuscada que seus contemporâneos de guerra. O tom de folha oficial por parte do Semanario manteve-se de forma rigorosa, atendo-se a um discurso revestido de seriedade. Tício Escobar afirma que no Semanario o “espíritu oficial, conservador y serio, no podía hablar con naturalidad el lenguaje popular del Ejército ni expresar el sentido del humor, los temores, deseos y fantasías del pueblo combatiente” (ESCOBAR, 1982, p. 278).
Tal distinção era, inclusive, desejada pelos outros periódicos que, visando atingir um público leitor diferenciado, isto é, aqueles que lutavam no campo de batalha ou auxiliavam o esforço de guerra na capital, era forjado com uma linguagem muito menos rebuscada, e mais irônica e cômica. Desse modo, os companheiros de imprensa do Semanário não possuíam mínimos pudores de, em suas páginas, transformar os inimigos do Paraguai em macacos, asnos, gafanhotos, porcos, tartarugas, jacarés ou cachorros.
No Cabichuí, sobre o qual discorreremos com mais atenção adiante, é famosa a constante apresentação dos brasileiros recebendo epítetos como “negros” e “macacos” e, de maneira iconográfica, suas xilogravuras traziam os governantes dos países em guerra com o Paraguai com corpo humano e cabeça de animal: D. Pedro II como um macaco (“Magestad macacuna”); Bartolomeu Mitre como um cachorro; e Venâncio Flores como um asno (Figura 1). Diante dessa representação de homens em forma animalesca, Keith Thomas, em sua análise da relação do homem com a natureza entre os séculos XV e XVIII, afirma que, neste período, foi desenvolvida uma construção discursiva da superioridade humana sobre os demais animais, justificando a dominação dos mesmos. Assim:
Essa insistência tão grande em distinguir o humano do animal também teve consequências importantes para as relações entre os homens. (...) se a essência da humanidade era definida como consistindo em alguma qualidade específica, seguia-se então que qualquer homem que não demonstrasse tal qualidade seria sub-humano ou semianimal. (THOMAS, 2010, p. 55) (...) Com efeito, descrever um homem como um bicho era dizer que ele devia ser tratado como tal. (...) para aqueles que cometiam atos atrozes e sanguinários, desumanizar a vítima reclassificando-a como animal era, muitas vezes, uma preliminar mental indispensável. (THOMAS, 2010, p. 65)
Ao mesmo tempo, o uso de tais imagens enquanto meio para elaborações discursivas a respeito do outro, especialmente em uma perspectiva satírica e depreciativa, aponta para a construção, ou reforço, de uma identidade. Isto é, ao mesmo tempo em que se postulava uma suposta inferioridade do outro, também era apregoada uma inquestionável superioridade de si. Tal mecanismo em um contexto de guerra tomava feições muito mais vultosas. Desse modo, Gombrich aponta que:
Lo que en nuestros días se llama sentido de identidad se apoya siempre en el supuesto de superioridad sobre aquellos que no pertenecen al medio. En esta función la que ha cumplido siempre la sátira, tanto si pensamos en imágenes, canciones, o simplemente en anécdotas y chistes a la costa de los vecinos (…) La sátira pictórica ha contribuido a este sentimiento de superioridad ciertamente necio al reforzar el estereotipo que cualquier grupo tiene de sí mismo y de los demás. (GOMBRICH, 2003, p. 195-196)
A exacerbação do tom racista e da tônica voltada à ridicularização do inimigo, presentes nos periódicos surgidos a partir de 1867, também se fazia presente, mesmo que de modo mais contido, no Semanario, que frequentemente atribuía às tropas brasileiras o epíteto de “los infelices negros de D. Pedro II” (Semanario de avisos y conocimientos útiles, Asunción, 24 de junio de 1865).
O incentivo e determinação para criação de outros periódicos por parte do governo paraguaio, mesmo que mantivesse o tom discursivo monolítico devido à imprensa continuar sendo a porta-voz de López, possibilitou uma ampliação do público leitor à medida que a linguagem dos periódicos surgidos, especialmente na guerra e para a guerra, revestiu-se de um teor mais coloquial e menos rebuscado se comparados ao Semanario. Havia a necessidade de dar alento e elevar o moral daqueles que se encontravam no campo de batalha, daí o fato de os diversos “periódicos de trinchera” que surgiram a partir de 1867 terem sido direcionados a um público em especial: os combatentes.
O primogênito dos periódicos de trincheira criados por incentivo estatal foi El Centinela, que teve seu primeiro número publicado em 25 de abril de 1867, apresentando-se como um “Periodico serio-jocoso”. O nome desse jornal já dava a entender seu posicionamento; ele se propunha a ser mais uma das sentinelas da República do Paraguai, um reforço às forças de Solano Lopes na defesa da nação e assim apresentava-se ao seu chefe supremo: “El Centinela Exmo. Senõr, es vuestro soldado - Al nacer os presenta sus armas y os bendice” (El Centinela, Asunción, 25 de abril de 1867).
Johansson aponta o universo de assuntos no qual El Centinela concentrou-se durante sua existência:
Informar a la tropa los episodios de la contienda, defender a la República, celebrar las victorias paraguayas, infiltrarse en las filas del enemigo con el fin de tenerlo, procurar la risa del soldado para alivianar sus fatigas, observar a los ciudadanos paraguayos y rendir honores al mariscal López. (JOHANSSON, 2015, p. 505)
Assim como o Semanario, El Centinela era publicado pela Imprenta del Estado em Assunção com uma periodicidade semanal. Contudo, conforme já dito, a intencionalidade da criação de tal folha, e das demais que surgiram nos meses e anos seguintes, era a de chegar a um público a quem a folha oficial nem sempre alcançava, isto é, os elementos das Forças Armadas, especialmente a sua maior parte que pertencia aos níveis hierárquicos mais baixos.
Sua constituição editorial assemelhava-se bastante aos demais periódicos surgidos a partir de 1867 no que se referia ao tamanho e à periodicidade, isto é, era semanal e tinha, geralmente, quatro páginas. Uma das novidades trazidas por este periódico de trincheira era a presença de várias xilogravuras em seus números, tendo sido o primeiro jornal paraguaio a trazer imagens, muitas das quais com forte teor jocoso que apresentavam o inimigo de modo ridicularizado e com um racialismo extremamente repetitivo, no qual o termo “negro” sempre surgia como sinônimo pejorativo de homens inferiores e bárbaros. Corriqueiramente, as alcunhas atribuídas aos inimigos brasileiros eram as de “negros”, “macacos”, “macacones”, sempre dispostos em uma perspectiva de inferioridade moral e cultural, descritos como incivilizados e covardes, enquanto os paraguaios seriam cultos e bravos.
No que diz respeito às pioneiras imagens presentes no periódico, cabe menção ao fato de que o criador de grande parte delas era o arquiteto e desenhista turinês Alejandro Ravizza, que havia sido contratado em 1854, ainda no governo de Carlos López, e que fora responsável pelos projetos arquitetônicos, bem como pela supervisão e execução de diversas construções de edificações em Assunção (tais como palácios, clubes, teatros, igrejas). As gravações das xilogravuras, por sua vez, eram realizadas por diversos gravadores: Manuel Colunga (do qual são a maior parte das xilogravuras), Gregorio Cáceres, Ignacio Aquino e Juan José Benítez (militar pertencente ao Batalhão nº 12). Ademais, há aí a inserção da imprensa do Paraguai em uma dinâmica de apropriações que se espraiava pela imprensa de diversos outros países que, com o desenvolvimento tecnológico e maior acessibilidade de determinadas técnicas, multiplicou as folhas com ilustrações e o vigoroso impacto de tal aparato discursivo visual ante o público leitor.
Percebe-se no El Centinela, nas suas diversas formas de escrita - prosa, notícias, crônicas, poemas, cantigas, anedotas, correspondências - uma insistência em reafirmar o prazer sentido pelos soldados paraguaios ao abater o inimigo brasileiro, cujo sinônimo em tal publicação era “negro”: “escopeteando negros á las mil maravillas” (El Centinela, Asunción, 25 de abril de 1867); “matar negros”; “los negros (...) carbonizados bien pueden servir de combustible y tizonel del inferno” (El Centinela, Asunción, 02 de mayo de 1867); “enseñemos a los negros el poder de Don Chicote” (El Centinela, Asunción, 30 de mayo de 1867); “desalojar la bílis de los negros” (El Centinela, Asunción, 27 de junio de 1867).
De modo similar ao Cabichuí, onde os ilustradores representavam Pedro II como um macaco, o El Centinela empregava a mesma dinâmica jocosa. Em um dos números desta publicação são representados em feições simiescas: o Imperador brasileiro, o Almirante Tamandaré e o Marechal de Campo Polidoro Jordão (Figura 2).
Tal forma de expressão visava claramente incutir nos leitores uma forma de verem os inimigos como seres animalescos, cuja morte pelas mãos dos combatentes paraguaios não deveria instigar sentimento de culpa ou compaixão. Mas, além disso, essa bestialização caricata do inimigo também visava ser um instrumento de produção do riso. Essa correlação ridículo-riso consiste em uma dinâmica onde “aviltar, degradar, humilhar pelo riso” (MINOIS, 2003, p. 299) são instrumentos de guerra e, principalmente, de propaganda, a qual, geralmente, se mostra eficaz, conforme afirma Domenach:
Ridiculizar al adversario, caricaturizando su estilo y sus argumentaciones o haciéndolo objeto de bromas y de breves historias cómicas (…) los múltiples medios de poner en ridículo a un adversario; aunque con frecuencia groseros, son sin embargo eficaces. (DOMENACH, 1968, p. 84)
Descontrair os soldados ao mesmo tempo em que se caricaturavam os inimigos tornou-se uma das bases do conteúdo do El Centinela. Conforme já dito, a folha era produzida com vias a atingir um público leitor específico: os soldados. De modo que seu título - El Centinela - já denotava tal intento, isto é, identificava-se a um soldado que, apesar de pelejar em um campo diferente daqueles que se encontravam na linha de batalha, possuía o mesmo objetivo. Assim, o pequeno jornal de quatro folhas era amplamente distribuído nos acampamentos militares paraguaios.
O periódico Revista del Paraguay, publicado em Buenos Aires na última década do século XIX, traz em um de seus números um artigo acerca da imprensa paraguaia, transcrevendo trechos de uma obra do historiador argentino Antonio Zinny, que comenta sobre a circulação d’El Centinela: “Este periódico era expresamente para el ejército y se repartía en el campamento para solaz de los soldados” (Revista del Paraguay, Buenos Aires, agosto de 1891, p. 345).
Juan Emiliano O’Leary, historiador paraguaio nascido em 1879 e grande entusiasta e defensor de Solano López e suas ações durante a guerra, afirma em uma de suas obras que:
La risa ¡Pero si fue una de las más agudas armas que esgrimió nuestro ejército contra el invasor! (…) “El Centinela” era (…) periódico satírico y de caricaturas, pero escrito generalmente en castellano. Aparecía en Asunción y circulaba también profusamente en el ejército.12 (O’LEARY, 1922, p. 324-325)
De modo que havia uma profusa escrita e representação imagética que apontava na direção da provocação do riso:
“El Centinela” que pertenece á las filas del Ejército nacional (...) Les ofrece que sus columnas las empleará en señalar las acciones distinguidas, y en proporcionar á nuestro Ejército momentos de riza y algazara. (…) Cara feia. En la táctica militar del Brasil hay un tratado de Mimica, que antes de pelear lo ponen en práctica los soldados imperiales. El oficial dá esta voz a su compañía: “cara feia al enemigo” y los negros hacen visajes que causan espanto, y por cierto que este feliz recurso es más temible que sus bayonetas. (El Centinela, Asunción, 25 de abril de 1867)
O tema “cara feia al enemigo” reaparece alguns números depois, mas dessa vez de modo imagético, apresentando a ação de soldados paraguaios mostrando as nádegas ao inimigo como forma de ridicularizar o uso de balões de observação pela Tríplice Aliança (Figura 3). Assim é descrito o ato seguido por uma xilogravura: “Nuestros cañones estan en guardia, y los soldados han bajado los calzones para hacer cara feia al enemigo” (El Centinela, Asunción, 08 de agosto de 1867).
Com vias a reforçar ainda mais a identificação buscada para com seu público-alvo, o novo recruta impresso paraguaio criou um personagem chamado de “Centinela D. Mateo Matamoros”, o qual dirige o jornal e recebe/produz correspondências (também fictícias) diretamente do campo de batalha, de um informante do exército inimigo e do Rio de Janeiro, além de escrever poemas no idioma guarani (muitas vezes à sua amada esposa).
Em seu primeiro número Mateo Matamoros assim demonstra sua política editorial:
El orden de las materias será el de un puchero, por que como soldado solo sabe dos cosas: matar negros y hacer sus baturrillos. (...) La publicación es para el Ejército, y las materias que se tratan, nada tendrán de metafísica - El lenguaje del soldado es llano y sincero. Cada artículo será tan breve como el tarrán-plan del tambor. (El Centinela, Asunción, 25 de abril de 1867)
Como já se pode perceber, a linguagem d’El Centinela diferia do Semanarioe ao utilizar “expressiones coloquiales o vulgares perseguia el fin de exponer a los lectores lo más claramente posible las opiniones y reflexiones de los periódicos que al gobierno le interesaba consolidar” (JOHANSSON, 2015, p. 504).
Não obstante, o que poderia subentender uma formação letrada inferior por parte dos redatores e articulistas do El Centinela por conta de sua linguagem menos rebuscada, não correspondia à realidade, na medida em que tais funções eram exercidas por homens letrados, muitos com formação na Europa (como no caso do desenhista Alejando Ravizza, citado anteriormente), os quais contribuíam para o Semanarioe que, em seguida, também passaram a escrever para os demais periódicos de trincheira fundados no decorrer do conflito. Um exemplo dessa confluência de articulistas nos variados jornais pode ser percebido na direção do novo “soldado” de López, que ficara a cargo do boliviano, exilado no Paraguai, Tristán Roca Suaréz,15 o qual já tinha ativa participação no Semanario. Além disso, pode-se citar a atuação de Juan Centurión, o qual também contribuía na escrita e na direção de vários desses periódicos.
O que se pode perceber de tal constatação era que havia da parte dos grupos letrados que colaboravam com a imprensa paraguaia a percepção de que os soldados pertenceriam a um grupo social cuja linguagem era rasa, curta e vulgar. Essa generalização atribuída àqueles que se encontravam nos acampamentos e campos de batalha era fruto das representações de tais articulistas, os quais formatavam uma linguagem diferenciada da que costumeiramente faziam uso no Semanario com o fim de repassarem a mensagem desejada.
Nesse sentido surge no acampamento de Paso Pucú outro periódico seguidor da mesma linha do El Centinela. Em suas memórias, Juan Crisóstomo Centurión (oficial do exército paraguaio) aponta o modo de escolha do nome deste novo “combatente”:
Durante dos ó tres días fue vivamente discutido el título que debía llevar el dicho periodiquín, así como el dibujo que debía servirle de frontispicio ó portada. Por fin, fue aceptada la idea mía de que fuesse llamado Cabichuí, nombre de una avispita negra muy brava, que construye su colmena en los árboles y en los aleros de las casas; igualmente fue aprobado el dibujo de la portada, consistente en un negro acosado por una multitud de esas avispas. (CENTURIÓN, 1894, p. 321)
Uma multidão de vespas nativas do Paraguai acossaria um homem negro. Essa é a descrição dada por Centurión do frontispício do periódico idealizado no acampamento militar de Paso Pucú e que teve seu primeiro número publicado em 13 de maio de 1867 (Figura 4). Em todos os seus 95 números, tal imagem ilustraria a primeira página do jornal considerado o mais relevante dos periódicos surgidos no Paraguai durante a guerra. Tratar-se-ia de uma clara alegoria, onde as pequenas vespas seriam uma representação dos paraguaios e o homem negro com feições bestiais a materialização do inimigo, em especial, o maior dos inimigos, isto é, o Império do Brasil, cujos combatentes na guerra em andamento geralmente eram descritos como negros.
Não obstante, Roberto Goiriz considera que o personagem da imagem teria um significado muito mais amplo, na medida em que não se assemelhava totalmente aos desenhos que visavam representar os combatentes brasileiros. Tal representação, seguindo a recorrente perspectiva antropozoomórfica, corresponderia a um homem bestializado convertido em fera, o qual seria uma alegoria à “barbarie, brutalidad y salvajismo atribuidos a los ejércitos aliados” (GOIRIZ, 2008, p. 32).
O Cabichuí surge com missão similar ao seu irmão pouco mais velho - El Centinela - de levar as informações da guerra aos seus compatriotas, especialmente àqueles que se encontravam no teatro de operações, de modo cômico e sempre exaltando os grandes feitos paraguaios no campo de batalha. Também com amparo estatal o novo periódico era produzido nas prensas da Imprenta del Ejercito. Por tal razão, grande parte de seus colaboradores eram militares, tais como o já citado Capitão Juan Crisóstomo Centurión, o tenente Natalicio Talavera18 e o correntino Victor Silvero; não obstante, civis também escreviam para o Cabichuí, como o padre Fidel Maíz.
Contudo, apesar dos diversos pontos de similaridade, outros tantos tornavam os periódicos irmãos de trincheira díspares. De acordo com Goiriz:
El primero [El Centinela] estaba editado en la capital del Paraguay, en la imprenta Nacional y, por tanto, muy cerca del control del estado y del propio López, cuando éste estaba en el lugar, mientras que la humilde avispita gozaba de mayor libertad, al ser producida, muchas veces, en los propios campos de batalla, en escenarios dispersos y alejados. Por ese solo motivo, el discurso de El Centinela era mucho más cercano al discurso oficial y estaba en sintonía con las proclamas y directivas provenientes del gobierno. (GOIRIZ, 2008, p.51)
É nesse sentido que cabe ressaltar a participação de soldados como os artistas responsáveis pelas xilogravuras do Cabichuí, as quais tiveram grande repercussão no Paraguai e no Brasil ainda durante a beligerância. Assim, os cerca de 400 desenhos publicados no Cabichuí tinham por autores, dentre outros, os soldados: Inocencio Aquino, M. Perina, Francisco Ocampos, Gregorio Acosta, Jerónimo Cáceres, J. Bargas, Francisco Velasco e o pintor Satúrio Rios. Carentes são os dados biográficos da maior parte dos militares paraguaios gravadores das xilogravuras do Cabichuí, com algumas exceções, como no caso de Satúrio Rios (o qual inclusive estudara no Brasil antes da Guerra).
Não obstante, essa vigorosa presença de soldados e sargentos paraguaios na produção e na gravação das ilustrações do Cabichuí demonstra um aspecto deveras relevante quando comparamos esta folha às demais existentes no Paraguai e até mesmo nas outras nações partícipes no conflito, a saber, a participação ativa de grupos, que apesar de letrados, não constituíam a elite intelectual do país, mas que foram ativos partícipes da produção da propaganda de guerra paraguaia. Consoante Josefina Plá:
exceptuando a Saturio Ríos, salta a la vista que ninguno de esos grabadores tenía auténtica versación dibujística. Inclusive en algunos de ellos, la ausencia de disciplina académica es absoluta. Es precisamente esa ingenuidad la que, urgida por un espontáneo, fervoroso impulso interior, se traduce en esas composiciones vitalmente ricas y transparentes de sentido, plenamente significativas.20 (PLÁ, 2016, p. 9)
Apesar da vultosa presença de imagens, deve-se ter em vista que, tanto no El Centinela como no Cabichuí, as legendas tinham suma importância na construção de todo o escopo. Isto é, ambas as folhas ainda faziam uso das legendas para dar ao seu leitor o roteiro que desejavam que tivesse a leitura das suas imagens.
Juan O’Leary, grande apologista de Solano López (já citado por nós), aponta com entusiasmo a existência da folha de Paso Pucú durante a guerra:
teníamos un periódico satírico “El Cabichui”, que era el órgano oficial de la alegría de nuestro ejército. (…) Aquella pequeña avispa (Cabichui) volaba través del ejército, desatando la hilaridad de nuestras tropas, y cruzando nuestras trincheras, iba a clavar su envenado agujón en el corazón del enemigo. (O’LEARY, 1922, p. 324)
Dentre os pontos de aproximação do Cabichuí e do El Centinela poderíamos citar: o ano de surgimento, o público leitor a que foram destinados, a linguagem coloquial, a presença de imagens, o tom satírico e depreciativo a respeito do inimigo, o fervor nacionalista, a exaltação da figura de Solano López e do soldado paraguaio. Mas, além de tais fatores, outro merece destaque, a saber, a forte presença de uma linguagem de teor oral neste tipo de publicação escrita. No Cabichuí, tal elemento tem muito mais preponderância e se mostra como algo proposital, na medida em que era produzido com intenções de ter seu conteúdo lido de maneira coletiva no acampamento, em voz alta, com leitores e ouvintes.
Em artigo intitulado “Palavras além das letras” (MOREL, 2010), Marco Morel aponta os intercâmbios existentes entre a imprensa e a oralidade nos periódicos do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XIX; de modo similar à perspectiva de Morel, guardado o devido distanciamento cronológico e espacial, pode-se perceber também nos jornais paraguaios do período da guerra contra a Tríplice Aliança que havia uma forte imbricação entre a imprensa e as formas de expressão oral. Isso não é tão notável no Semanario, mas nos jornais surgidos a partir de 1867 é algo inextrincável.
Dentre as variadas gravuras publicadas pelo Cabichuí, a que reproduzimos a seguir é deveras significativa a esse respeito (Figura 5). Apresentando-se com a legenda “La lectura del Cabichui”, pode-se perceber um grupo de soldados em um momento de descanso, no qual um deles lê o jornal aos demais, que demonstram em suas feições interesse, prazer e descontração:
Ora, além de ser produzido com uma linguagem que se aproximava deveras da oralidade cotidiana e incentivadora da leitura em grupo e em voz alta, o Cabichuí visava alcançar o riso de seus leitores/ouvintes através do sarcasmo e da depreciação do inimigo. O riso, que poderia parecer um elemento de reduzida importância no grande espectro da guerra, toma outras feições se analisado sob o prisma da história cultural, especialmente quando se constitui em um riso coletivo, pois o mesmo pode forjar um sentido de comunidade por parte daqueles que riem junto. Analisando o humor na Alemanha oitocentista, a historiadora Mary Townsend afirma que:
O simples ato de compartilhar o riso era mais importante do que o conteúdo específico ou impacto imediato de qualquer piada ou caricatura. Rir junto significava participar de uma cultura comum, uma forma de comunicação sobre assuntos de interesse mútuo. (...) O humor popular estabelecia um sentido de comunidade entre os participantes. (TOWNSEND, 2000, p. 228)
Apesar de a abordagem de Townsend remeter a outro contexto histórico-cultural e geográfico, podemos tomá-la como extremamente útil para nossa compreensão do aspecto humorístico presente nos periódicos de trincheira paraguaios, os quais intentavam construir um espírito homogêneo de resistência à Tríplice Aliança.
Assim como no El Centinela, a ridicularização satírica do inimigo era basilar na Vespa de López. As tropas brasileiras eram sempre apresentadas de modo pejorativo e, do mesmo modo que se enfatizava a figura de López, também se personalizavam representações quanto aos líderes militares da Tríplice Aliança, mas de modo extremamente depreciativo, em especial dos comandantes brasileiros.
Essa dinâmica da criação, leitura e apropriação das caricaturas e desenhos dispostos nos periódicos de trincheira paraguaios era possível a partir da dimensão metafórica em que as mesmas estavam inseridas. Ou seja, os acontecimentos recentes da guerra e o modo como os jornais os noticiavam imiscuíam-se em uma intensa rede de percepções culturais que traduziam os signos. Acompanhando Gombrich em sua análise da caricatura política:
Naturalmente, es este género de la caricatura el que consigue su efecto del uso de la metáfora para comentar las noticias de la actualidad diaria. Se basa en un público que disfruta del ingenio de una comparación que no puede explicar pero que resume una situación.22 (GOMBRICH, 2003, p. 199)
Assim, as constantes referências ao Marquês de Caxias no periódico, atribuíam a Luís Alves de Lima e Silva adjetivos similares àqueles dados às tropas brasileiras. Além disso, as diversas representações imagéticas de Caxias produzidas em Paso Pucú sempre o apresentam como um homem negro caricato (Figura 6).
Além de Caxias, outros líderes militares da Tríplice Aliança não passariam incólumes pela sanha cômica do Cabichuí, por exemplo: o Visconde de Inhaúma (Figura 7). O Comandante em Chefe das forças navais imperiais brasileiras sempre era representado com traços caricatos e animalescos (geralmente como um suíno), que enfatizavam seu sobrepeso, apontando o Almirante Joaquim José Ignacio como um homem covarde que comandava uma esquadra lenta e ineficiente.
Diversas vezes os combatentes da Tríplice Aliança são apontados nestes jornais como covardes, fracos, estúpidos e inábeis guerreiros. De modo proposital, o tom satírico era bastante recorrente e aliado a ele estava a informalidade do texto. Enquanto o El Centinela afirmava que “los amilanados negros (...) aturdidos no podían hacer uso de la formidable armada” (El Centinela, Asunción, 13 de junio de 1867), o Cabichuí apontava “o oprobio (...) que ha recojido esa cobarde y miserable armada de esclavos” que estava sob “el infame trapo auriverde” (Cabichuí, Paso Pucú, 13 de junio de 1867).
Tal construção de um discurso racial a respeito dos combatentes brasileiros, retratados como negros/escravos pelos jornais de Assunção e pela folha de Paso Pucú é bastante conhecida. Além dos aspectos relacionados à tentativa de apresentar o inimigo como inferior a partir de teorias racialistas do período, havia também o forte ensejo de demonstrar que, em uma luta que postava, supostamente, escravos23 e homens livres em oposição no campo de batalha, claramente os dotes morais e guerreiros mais louváveis estariam do lado dos homens livres da República paraguaia.
No final de 1867, o El Centinela assim se referiria em tons de escárnio às forças brasileiras (fazendo menção à Forte Coimbra e à Batalha Naval do Riachuelo): “¿Con que fuerzas nos combate el enemigo? ¿Son acaso los neglos esclavos que asaltamos en Coimbra y Corumbá, ó los imbeciles marinos que en Riachuelo avanzamos y derrotamos con nuestras celebres chatas y vaporcillos mercantes?” (El Centinela, Asunción, 05 de diciembre de 1867).
Isto é, ao apresentar as fileiras inimigas compostas por escravos negros e marinheiros imbecis, os quais, apesar do grande potencial bélico, não tinham hombridade nem capacidade intelectual para usar tal potencial, tais periódicos intentavam dar fôlego em uma guerra que já chegava à exaustão para aqueles que, por sua vez, eram representados como bravos e heroicos: os combatentes paraguaios.
O último número do Cabichuí foi publicado em 20 de agosto de 1868, já no acampamento de San Fernando. Um mês antes a principal fortaleza paraguaia, Humaitá, havia caído e encontrava-se nas mãos dos aliados. O fim do Cabichuí coincidiu com uma espécie de começo do fim da guerra, pois poucos meses depois Assunção seria tomada e se iniciaria a última fase do conflito, a famigerada Campanha das Cordilheiras, com mote de pôr fim à guerra através da captura ou morte de Solano López.
Concluímos apontando que nosso objetivo neste texto foi levantar uma discussão a respeito do modo como o riso e o humor podem ser elementos relevantes em uma investigação sobre a Guerra da Tríplice Aliança. Por mais que o sangue, as mortes, a destruição, a dor e o choro possam ter sido aspectos frequentes em tal período da história sul-americana, o riso e o escárnio, enquanto manifestações culturais, também se fizeram presentes nas trincheiras, navios, acampamentos e cidades.
Tomando por base os escritos de Darnton (2006), Gombrich (2003), Domenach (1968), Townsend (2000), Bremmer (2000), Roodenburg (2000) e Minois (2003), chegamos à conclusão de que a representação/ridicularização do inimigo nas folhas paraguaias durante o conflito, as quais sugeriam o riso coletivo, tinham dentre suas potencialidades a constituição de um sentido de comunidade e identidade em seus leitores/ouvintes, tornando-se um poderoso instrumento de propaganda de guerra, à medida que incentivavam a continuidade da luta em um momento do confronto em que, aparentemente, não havia motivos para rir.
Referências
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Fontes primárias
Cabichuí, Paso Pucú / San Fernando, 1867-1868. Biblioteca Nacional do Paraguai - Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Paraguai. http://bibliotecanacional.gov.py
El Centinela, Asunción, 1867-1868. Biblioteca Nacional - Hemeroteca Digital Brasileira. http://memoria.bn.br
Revista del Paraguay, Buenos Aires, Ano I, n. 8, agosto de 1891. http://www.archive.org
Semanario de Avisos y Conocimientos Útiles, Asunción, 1865-1866. Biblioteca Nacional - Hemeroteca Digital Brasileira. http://memoria.bn.br
Notas
Autor notes
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